livro Capitalizacao

download livro Capitalizacao

of 136

Transcript of livro Capitalizacao

1

Paulo Amador

Capitalizao Uma Histria de Prosperidade

Grupiara

1

2

Apresentao

Este livro relata a histria de uma idia de prosperidade, a da capitalizao, que teve bero na Frana, em 1850, e encontrou no Brasil as condies indispensveis para seu desenvolvimento. Pedido pelos estudiosos, h muito j se sentia a necessidade de um livro que apresentasse, no apenas os principais fatos da histria institucional da capitalizao no Brasil, mas pesquisasse a origem e o desenvolvimento dos conceitos fundamentais desta importante atividade econmica. Sabe-se que a capitalizao descoberta tpica da simplicidade cartesiana do gnio francs. Ttulo de investimento de custo unitrio baixo, para pagamento vista ou em pequenas mensalidades, sua comercializao dispensa a didtica sofisticada do mercado financeiro. Conforme relatado neste livro, sua importncia econmica e social deriva sobretudo do emprego reprodutivo das pequenas quantias que afluem em grande nmero, resultando em fomento e progresso das atividades criadoras de riquezas. No Brasil, onde a capitalizao percorreu uma trajetria marcada por crises de conjuntura econmica e at mesmo por perodos de confuso conceitual. Mas desde meados da dcada passada, quando o Pas ingressou num ciclo positivo de estabilidade monetria, a capitalizao pde iniciar um ciclo de prosperidade que se reflete nas estatsticas da produo do setor. Este livro relata exatamente a histria desta conquista da capitalizao. Escrito pelo jornalista Paulo Amador, editorialista do Jornal do Brasil e autor de mais de uma dezena de livros publicados, pesquisou diligentemente os principais fatos que se relacionam com a trajetria de muito trabalho, muita deter-

2

3

minao e muita crena nas possibilidades da capitalizao. Em tudo que nossa atividade pode representar para a economia brasileira, em termos de formao de reservas aplicveis em projetos de interesse nacional, e de retribuio aos milhes de possuidores de ttulos de capitalizao. Como afirma o autor deste livro, os fatos e os nmeros aqui apresentados apontam em uma direo. Para a capitalizao brasileira aparece que j comeou o futuro em que todos ns sempre acreditamos.

Joo Elisio Ferraz de Campos Presidente da Fenaseg

3

4

Introduo e agradecimento

Pode-se dizer que a capitalizao brasileira nasceu da convergncia do acaso com a necessidade. Por acaso, seu introdutor no pas, o empresrio Antnio Sanchez de Larragoiti Junior, conheceu os fundamentos conceituais dessa modalidade de ttulo. Por necessidade, a capitalizao foi introduzida no Brasil, numa poca de crise, quando o Pas viu-se repentinamente rfo dos capitais externos que desde a proclamao da Independncia vinham financiando nosso desenvolvimento. Graas a sua simplicidade, e aos aspectos ldicos que a envolvem, a capitalizao se difundiu, a princpio apenas nos grandes centros financeiros, de Rio e So Paulo, para progressivamente, e com o aprimoramento de sua comercializao, chegar a todos os recantos do territrio nacional. Hoje a capitalizao est presente em todo o Pas. Juntamente com as demais modalidades de ativos financeiros, o ttulo de capitalizao tem vivido momentos bons e momentos difceis. Sensvel s variaes do humor da economia, que se refletem nos nveis de renda e propenso poupana, a capitalizao atravessou os anos de incerteza, quando a inflao impedia o acesso das famlias aos produtos financeiros. Hoje, d mostras de vigor e de maturidade, e vem cumprindo uma de suas finalidades, que favorecer a formao e a difuso da riqueza. Por tudo isso importante desvendar os principais momentos na histria institucional da capitalizao brasileira. Foi a tarefa a que me impus. E para realiz-la, pude contar com a participao e os prstimos de alguns profissionais do setor. Eles tornaram menos embaraosa a procura por documentos e informaes que permitissem dar histria da capitalizao uma progresso

4

5

aceitvel por parte do leitor atual, e utilidade como fonte de consulta para os estudiosos do futuro. Agradeo, antes de tudo, o apoio recebido da Fenaseg e Funenseg, atravs de seu presidente Joo Elisio Ferraz de Campos, e das sociedades de capitalizao, que aceitaram patrocinar a pesquisa, redao e edio deste livro. Devo aos estudiosos da matria, e em especial ao professor Cludio Contador e Clarisse Ferraz, pela utilizao de suas sries histricas sobre a evoluo econmica da capitalizao. Devo mais, ao estmulo sempre presente de Suzana Munhoz. iniciativa da presidente da comisso de capitalizao da Fenaseg, Rita Batista Moo, e paciente generosidade de Glria Aranha. Devo boa vontade de Ana Paula Almeida, da Sul Amrica Capitalizao, e Mrcia Cuntin, da Bradesco Capitalizao, por terem partilhado comigo o trabalho de inventariar documentos e ilustraes. Devo a Luiz Martiniano de Gusmo as luzes sobre inmeros fatos histricos. Sou grato a ngela Cunha, Valria Maciel e Adriana Beltro, por sua ajuda no levantamento de fontes de pesquisa. Finalmente agradeo as bibliotecrias Juscenira de Freitas e Rosana Figueiredo, por terem subsidiado e facilitado a consulta nos livros e documentos da biblioteca da Fenaseg.

5

6

Pioneirsmo e trabalho

A capitalizao brasileira nasceu dentro da Sul Amrica, no dia 4 de setembro de 1929, por iniciativa de Antnio Sanchez de Larragoiti Junior. Casualmente ele conhecera essa modalidade de ttulo, durante viagem a Paris, e convencido de suas vantagens, entendeu que a capitalizao poderia contribuir para o desenvolvimento do Brasil, numa fase especialmente adversa da economia em todo o mundo. O mundo, nessa poca, sofria as conseqncias da quebra da bolsa de Nova York. O Brasil, nessa poca, sofria com a crise interna do caf, e encontrava dificuldade para financiar sua produo, atravs de emprstimos nos centros financeiros internacionais. Era preciso, portanto, criar internamente algum mecanismo de formao de grandes massas de poupana, de preferncia a partir da economia popular j disponvel. A capitalizao foi uma das respostas. E introduzida no Brasil a partir da criao da Sulacap Sul Amrica Capitalizao, desde 1929 vem mantendo uma presena positiva no esforo de promover a formao da prosperidade, que deve estender a todos os brasileiros os benefcios do desenvolvimento econmico e social. Desde ento, a Sulacap tem preservado o mesmo entusiasmo de seu fundador, que acreditou na capitalizao, instrumento simples de formao de riqueza, cuja comercializao dispensa a didtica sofisticada do mercado financeiro. E temos a firme convico de que a histria relatada neste livro, que apresenta a capitalizao brasileira em suas verdadeiras dimenses, no teria acontecido sem o nimo pioneiro de Antnio Sanchez de Larragoiti Junior e sem a dedicao de nosso trabalho.

6

7

Captulo Um

Quando o Presidente Washington Luis assinou o decreto n 18.891, de 4 de setembro de 1929, autorizando o funcionamento da primeira companhia de capitalizao no Brasil, o mundo ocidental caminhava perigosamente para o desastre de um mergulho nas guas turvas da depresso. Em Wall Street, no corao do moderno capitalismo do Sculo XX, uma sucesso de acontecimentos dramticos, que seriam levados ao ponto mximo de tenso no dia 24 de outubro desse ano fatdico, vinham turbilhonando a formao de ondas de pnico e desespero, que nas semanas seguintes arrasariam os nervos do povo americano e abalariam as os fundamentos da economia nacional mais prspera da Terra. Dificilmente a histria da humanidade repetir um ano igual quele. Sobretudo no se ter, at os dias de hoje, registro de um dia to tragicamente surpreendente quanto essa quinta-feira, que entraria para a histria como a data inicial do crash que arrasaria com os negcios na Bolsa de Nova York. Desde o dia 19, um sbado, quando o poderoso Secretrio de Comrcio dos Estados Unidos encontrara dificuldade para levantar 100 mil dlares de fundos governamentais, que se destinariam ao pagamento de despesas do iate presidencial, j se sabia que uma legio de bruxas andava solta. E ainda no sbado, antes que acabasse o dia, a bolsa registraria uma movimentao recorde de 3,5 milhes de aes mudando de donos, e uma queda desnorteante de 12 pontos no ndice industrial. Na segunda-feira, 21, graas a um artifcio de tcnica, que retardava em mais de uma hora a exibio do ritmo das transaes, e apresentava ndices escolhidos para criar a iluso de uma normalidade que j no existia, o mercado

7

8

fechou com uma perda lquida de apenas 6 pontos negativos. Na tera, os analistas se encarregaram de alavancar artificialmente os nimos, fazendo crer que os dois dias de quedas significavam apenas a sada de especuladores do mercado, e que os preos dos papis, a partir da, deveriam refletir com mais realismo os efeitos benficos da Lei Seca, que tinha tornado o trabalhador americano mais produtivo e digno de confiana. 1 Durou pouco o mel desse engodo. Na quarta-feira, 23, embora as negociaes tivessem iniciado em calma e desconfiado otimismo, ao longo do dia vai-se esgarando a cortina de fumaa criada pelos ilusionistas de Wall Street, e o mercado despenca: 31 pontos negativos. Milhares de especuladores puxando o tapete, saindo fora com um ganho que julgavam razovel nas condies vigentes. E outros milhares sendo chamados para cobrir margens de negociaes j feitas. E ainda assim, corretores e operadores no entregam os pontos. Falase num deus ex-machina. Uma soluo que cairia do cu. Ou melhor, que desceria do Olimpo onde viviam os banqueiros, que j estariam generosamente organizando o apoio financeiro necessrio a uma travessia que a cada momento ia-se mostrando mais improvvel. No dia 24, quinta-feira, na abertura dos negcios na Bolsa de Valores de Nova York, medo e apreenso. Preos firmes, volumes razoveis, uma aparncia de calma. E de repente, o desastre. Os preos comeam a cair. A gritaria aumenta. Os compradores se retraem. At mesmo os papis cujas cotaes haviam sido artificialmente escolhidas para fazer figurao no painel eletrnico deslizam vertiginosamente para o buraco. s 11h o mercado se desorganiza por completo. O medo aumenta. J se fala em colapso da Bolsa. s 11h30, a maior economia do Ocidente mergulha no pnico. Numa das ruas prximas, quando um operrio surge no topo de um prdio, onde faria reparos, a multido comea a gritar pula, pula. Para alvio geral e provisrio do mercado, os banqueiros decidem cumprir a promessa de salvao e enviam Bolsa um corretor com ordem de compra de papis acima das cotaes do painel. Wall Street respira. Respira trs dias. As veias abertas por onde esguichava o sangue do mercado no se fecham

8

9

completamente, mas pelo menos corta-se o mpeto da hemorragia. Na sexta e no sbado, baixa a febre do desespero. No domingo, a famlia americana reza agradecida, pelo que parecia o fim da tragdia. Na segunda-feira, nova recada, e a cotao geral baixa 49 pontos. Os banqueiros voltam a se reunir, mas j no fazem promessa de um novo milagre salvador. O pnico est de volta. O pnico e a devastao, quando o prego abre na tera-feira, dia 29, com uma avalancha de ordens de venda. Tenta-se animar o mercado, com o aceno de dividendos razoveis. Mas a queda livre continua: 43 pontos abaixo, mais de 16 milhes de aes mudando de mos. Os banqueiros se renem. Mas ningum mais parece acreditar nos banqueiros. Fala-se numa possibilidade que parecia sensata: o fechamento da Bolsa at que as coisas se acalmassem. Um porta-voz do Presidente Hoover, falando pelo rdio, ainda tenta soprar o balo da esperana em dias melhores, declarando que os negcios fundamentais do Pas so slidos e prsperos. Muita gente j no acredita. E finalmente, quando o corpo de um corretor apareceu boiando no Rio Hudson, o mundo soube que a maior economia ocidental acabara de atolar as quatro rodas na areia movedia da depresso. Entre 1929 e 1932, mais de 9 mil instituies bancrias e 85 mil empresas decretam falncia. A cotao dos papis nas bolsas americanas cai em mdia 85%, reduzindo a p e cinza a riqueza nacional. O trabalhador perde o poder de compra, quando os salrios so reduzidos em 60%, e mais de 13 milhes de pessoas so atingidas pelo desemprego. Muita gente comea a desconfiar da eficcia da mo invisvel que sustentava ideologicamente a democracia americana, e comea a pedir que a mo do Estado mais precisamente a de Franklin Delano Roosevelt, eleito Presidente em 1932 assuma um novo compromisso (o New Deal) com a nao em desespero. No seio da economia liberal americana, que at ento praticamente s conhecia de controle governamental uma escassssima regulamentao de tarifas ferrovirias, telefnicas e telegrficas, e uma superviso muito leve dos bancos, aparece a mo visvel, e pesada, do Estado. A economia americana passa a conviver com a interveno do Estado no domnio econmico, no momento

9

10

em que Roosevelt, adotando as idias de John Maynard Keynes, decide combater o desemprego com a clebre teoria que determina que o Estado invista na criao de postos de trabalho, ainda que seja para a ocupao de enterrar e desenterrar garrafas. 2 Mas as conseqncias da depresso no param a, no entusiasmo da regulamentao governamental do New Deal. Alm das fronteiras dos Estados Unidos o mundo e a economia, que nesse passado j remoto ainda no fora globalizada, enfrentariam o rescaldo da quebradeira de Wall Street. A Europa, desde 1920, vinha vivendo um ps-guerra de muita alegria, boas transformaes nas estruturas e no comportamento social. As mulheres, que durante os anos de guerra haviam substitudo os homens nas fbricas e nos escritrios, assumiam um papel inteiramente novo num palco at ento vedado sua presena. Na Frana, onde Josephine Baker fazia sucesso ao danar seminua em cabars, as mooilas em flor j se atreviam a sair sozinhas nas ruas. Na Inglaterra, onde Margaret Bondfield ocupava o cargo de Ministra do Trabalho (!), as demais mulheres adquiriam o direito de voto aos 30 anos de idade. E por toda a Europa, estimulada pelos atrevimentos do Amante de Lady Chaterley, e amparada pela revoluo libertadora de Freud, moas, rapazes, senhoras e senhores j conseguiam sussurrar, publicamente, a palavra sexo. Acima de tudo, a Europa vivia uma dcada de franca recuperao econmica. Os nveis de prosperidade material de antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) eram recuperados e ultrapassados. A produo de trigo subira de 25,8 milhes de toneladas em 1920 para alcanar 38,1 milhes em 1930. O consumo de eletricidade, que havia sido de 30 bilhes de Kwh em 1912, subira para cerca de 113 bilhes de Kwh em 1929. A produo de ao passara de 26,3 milhes de toneladas em 1920 para mais de 43 milhes de toneladas em 1930. E a produo havia experimentado um avano ainda mais espetacular em trs itens tpicos da modernidade: borracha, de 70 para 230 mil toneladas entre 1920 e 1929; tecidos sintticos, de 20 para 130 mil toneladas; e papel, 4,25 para 86 milhes de toneladas.

10

11

De repente, a sombra da depresso americana cobre os cu de prosperidade da Europa com o manto negro da puxada de tapete dos emprstimos e investimentos americanos de que o velho continente tanto dependia, desde o fim da guerra, para manter o mpeto de quase uma dcada inteira de recuperao e prosperidade. Em maio de 1931 o maior banco da ustria, o Creditanstalt, declarado insolvente. Na Alemanha, em junho, 67,5 milhes de libras esterlinas em ouro e divisas deixam o pas, obrigando o governo a impor srias restries ao crdito. Em agosto, a Inglaterra assiste a uma brusca retirada de fundos alemes de curto prazo, aplicados na City londrina. E obviamente que, puxado o tapete das grandes economias do Ocidente, o passo a seguir era o desmanche do castelo de cartas pobres das pequenas economias perifricas do mundo que apenas emergia. Foi o que aconteceu no Brasil. Pas que o ufanismo do incio do sculo gostava de apresentar ao mundo como essencialmente agrcola, o Brasil vinha havia apresentado nesse ano de 1929 uma boa produo per capita de alimentos e de outros produtos extrados da terra. Para uma populao estimada em 36 milhes de brasileiros, nada menos que 15 milhes de toneladas de cana haviam sido colhidas, o que representava mais de 400 quilos por habitante. A produo de cacau havia ficado prxima de 65 mil toneladas, quase dois quilos de chocolate por habitante. E o caf, principal produto brasileiro de consumo e de exportao, apresentava a terceira safra sucessiva de mais de um milho de toneladas: 1.576.565 toneladas em 1929, o que significava uma produo de mais de 40 quilos por habitante 3 O Rei Caf, entretanto, no vivia seus melhores momentos. A comercializao da super safra do ano cafeeiro de 1927-1928, quando o Brasil colhera mais de 1.670.000 toneladas do produto, vinha encontrando resistncia nos mercados internacionais. E dez anos depois de terminada a Primeira Guerra, o pas ainda no conseguira reconquistar totalmente os mercados perdidos ou abalados pela desorganizao do comrcio internacional, ocorrida nos anos de conflito. Para o Brasil, qualquer abalo ou desastre nos mercados desse produto,

11

12

que representava mais de 70% de todas as nossas exportaes na dcada de 20, significava desequilbrio, quebradeira, sofrimento para a populao. O Brasil procurava danar na corda bamba das condies climticas e dos humores do comrcio internacional, que ditavam o bom xito ou o geral desespero dos plantadores e da populao. Procurava-se compensar o excesso de uma safra com uma reduo na colheita seguinte, na tentativa de manter o equilbrio em um mercado cuja demanda pouco elstica ditava preos de acordo com as condies de oferta. 4 Alm disso, os fazendeiros de caf ainda eram obrigados a se submeter praga da dependncia de intermedirios, que igualmente contribuam para dificultar as coisas em momentos de crise. Para tentar segurar os preos e as virtudes desse mercado to viciado por condicionadores que vinham de fora ou das praas de caf, Santos e Rio de Janeiro, os produtores experimentavam as solues que podiam. E a primeira grande medida foi o estabelecimento de uma poltica e a tentativa de se criar um monoplio na comercializao do produto, o que de certa forma resultaria, em 1906, na assinatura do clebre Convnio de Taubat, pelos presidentes (atualmente, governadores) dos Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e So Paulo. Principal objetivo: definir uma estratgia e prticas de valorizao do produto, e impedir a queda nos preos em perodos de grandes safras, ajustando no mercado internacional a oferta e procura do caf. Essa poltica de valorizao implicava, de um lado, numa medida fisicamente radical, que era reter e queimar excedentes nas reas de produo e nos armazns; e complementarmente, financiar por meio de emprstimos contrados no exterior, as operaes comerciais do Brasil com os mercados consumidores. Traduzindo em cifras, contrair dvidas no exterior significava, desde 1823, recorrer aos ingleses. Esse foi o ano em que o Brasil, j liberto de Portugal, decidira pedir ao Banco da Inglaterra um emprstimo de 300.000 libras para fazer um acerto nos cofres do Tesouro. Operao repetida e ampliada no ano seguinte, quando novamente o pas recorre aos ingleses, a Nathan Roths-

12

13

child e mais trs firmas inglesas, para um outro emprstimo de 3.686.200 libras (apenas 2.999.940 entraram efetivamente no Brasil), a juros de 5% ao ano, amortizao de 1% e prazo de 36 anos. 5 Curioso nesse emprstimo que ao terminar seu prazo, em 1854, o Brasil tinha conseguido pagar apenas 513.000 libras, sendo obrigado a prorrogaes sucessivas at sua liquidao em 1890. Isto : depois de 65 anos, perodo em que o Brasil pagou juros. 6 Desde ento o Brasil se acostumaria a pedir dinheiro Inglaterra. Ou a pagar at o que no devamos. Como foi feito em 1825, em decorrncia do Tratado de Paz firmado com Portugal, para reconhecimento de nossa Independncia. Em troca de sermos livres, assumamos uma dvida de 2.000.000 de libras contrada por Portugal junto Inglaterra, o que custaria ao Brasil, ao fim de amortizaes e consolidaes de principal e juros, nada menos que 6.186.199 libras. E novamente recorreramos aos ingleses, em 1829, para pedir a Nathan Mayer Rothschild e Thomas Wilson & Cia. Um novo emprstimo, de 769.200, dos quais entrariam no Pas apenas 400.000, e cuja renda lquida seria quase inteiramente absorvida pelos juros e amortizaes dos emprstimos anteriores. 7 Criado o gosto e a dependncia do dinheiro ingls, alguma coisa s mudaria com a Primeira Guerra Mundial, quando finalmente deixamos de ter a Inglaterra como emprestador e investidor hegemnico, e passamos a bater s portas crescentemente generosas dos banqueiros americanos. Entre 1914 e 1930, enquanto as inverses inglesas no Brasil passavam de 254 para 282 milhes de libras esterlinas (incremento de apenas 10%), os investimentos americanos passavam de 10 para 120 milhes de libras. 8 Nessa poca os capitais americanos evitavam os negcios tradicionais do caf, e tomavam prioritariamente a direo de setores novos, que vinham se expandindo no Brasil, preferindo a indstria dos derivados de petrleo e os servios pblicos, fossem de iluminao, transportes ou telefonia. Os americanos achavam uma justificativa na lei Anti-Trust para se afastarem da proposta monopolista do Convnio de Taubat, e chegavam a combater abertamente a poltica adotada pelo Brasil. Tal como aconteceu em 1925, quando o Secret-

13

14

rio de Comrcio dos Estados Unidos, Herbert Hoover, chegou a dirigir pessoalmente uma campanha contra a defesa permanente do caf, tal como pretendida pelos signatrios do clebre Convnio, deixando reservados, fidelidade conservadora dos ingleses ao produto, os financiamentos produo nessa rea. Por todos esses motivos, no momento em que o rescaldo da Depresso Americana atinge a City londrina, parecia anunciar-se para o Brasil um perodo de dificuldades. Os historiadores, entretanto, tm se recusado, quase por unanimidade, a atribuir diretamente ao crash da Bolsa de Nova York a a origem de uma grande crise que abalaria, exata e coincidentemente nesse ano fatdico de 1929, a produo cafeeira do Brasil. Caio Prado Junior faz recuar a gnese da crise ao tempo do fim da Primeira Guerra, quando grandes setores da economia mundial assistem, como vtimas passivas, formao de novos e poderosos trustes financeiros. Participando do financiamento das colheitas, esses trustes manobravam o Instituto do Caf do Estado de So Paulo, rgo criado para controlar inteiramente o comrcio exportador do produto, regulando suas entregas ao mercado e procurando manter o equilbrio entre a oferta e a procura. Para tanto, adota a prtica de reter estoques, sem limite de quantidade, conservando-os armazenados e liberando-os apenas na medida das necessidades do comrcio exportador. 9 Esperava-se, com essa poltica, dar ao Brasil as condies necessrias para atuar especulativamente no mercado mundial do caf, para o qual contribua com 60% da produo na poca. Mas o resultado acabaria por se tornar um desastre. Como os preos internacionais eram altos, a produo interna era fortemente estimulada. S no Estado de So Paulo, entre 1924 e 1929 o nmero de cafeeiros sobe de 949 milhes para 1,155 bilho em 1930. Em todo o Pas, a produo exportvel aumenta de 17,761 milhes de sacas para 28,492 milhes no mesmo perodo; mas o comrcio exterior absorve apenas dois teros desse total; e em 1929, pouco menos da metade. E o pior ainda estava por

14

15

vir. Contra expectativas mais otimistas, os produtores percebem que uma enxurrada de caf est para chegar ao mercado com a safra de 1929-1930. No dia 5 de outubro, o jornal Praa de Santos informa que agncias bancrias do interior do estado de So Paulo vinham-se recusando a descontar saques sobre qualquer empresa que operava com caf. J no h mais compradores. Os preos comeam a ceder. E cedem mais ainda. Vertiginosamente, quando chegam ao Brasil as primeiras notcias do crash da Bolsa. O Presidente Washington Luis declara, em mensagem ao Congresso, que o Instituto do Caf fez adiamentos lavoura at os seus extremos recursos. Tudo, porm, tem limites e a crise cafeeira chegou ao seu, produzindo-se verdadeiro pnico. O pnico no se explica, constata-se. intil examin-lo, estud-lo, descrevlo. 10 Os efeitos dessa dupla adversidade, a crise e o crash, sobre a economia brasileira so devastadores. As exportaes caem de 95 milhes de libras em 1929 para 65 milhes em 1930. A entrada de capital estrangeiro no Pas, que vinha minguando desde 1927, de repente pra de todo. As estimativas de um saldo-ouro de mais de 64.000 contos, previstos para o oramento federal para 1930, cai para menos de 10% do que era esperado. Em lugar de um excedente lquido nas contas do Pas, que deveria atingir 117.000 contos de ris (2,2 milhes de libras esterlinas), registra-se um dficit de 785.000 contos (15 milhes de libras). Havia sobretudo o bem fundamentado pavor associado perda de consistncia nos preos do caf cuja saca, que chegara a valer mais de 200 mil ris em agosto de 1929, em janeiro de 1930 despencaria para pouco mais de 21 mil ris em suas melhores cotaes. E obviamente que essa desvalorizao pesava decisivamente na balana de nossas possibilidades naquele ano de crise, quando haviam sido registradas vendas de caf para o exterior no valor de Cr$ 2,740 bilhes, equivalentes a 71% do total de Cr$ 3,860 bilhes de exportaes. E mesmo no ano seguinte, quando a corda j comeava a arrebentar para o lado dos cafeicultores, o caf ainda responderia por 63% do total de nossas expor-

15

16

taes, registrando vendas internacionais de Cr$ 1,827 bilho, para um total de exportaes no valor de Cr$ 2,907 bilhes. 11 Abalado pela crise interna do caf, alarmado com as notcias que chegavam de Nova York e Londres, e de repente rfo dos capitais externos que tradicionalmente vinham financiando seu desenvolvimento, mais do que nunca o Brasil precisava de algum tipo de negcio que promovesse a formao interna de grandes massas de poupana. De preferncia, a partir da economia popular j disponvel.

16

17

Captulo Dois

Esse instrumento, capaz de mobilizar as pequenas poupanas populares e transform-las em grandes massas de reservas, no s existia como j chegara ao Brasil um ano antes, na bagagem de Antnio Sanchez de Larragoiti Junior, Diretor Presidente do Grupo Sul Amrica, em seu retorno de uma viagem a Paris. Tratava-se de uma descoberta tpica da simplicidade cartesiana do gnio francs: o ttulo de Capitalizao. Um ttulo de investimento, de custo unitrio baixo, para pagamento vista ou em pequenas mensalidades, cuja comercializao dispensava a didtica sofisticada do mercado financeiro. Um ttulo cuja importncia econmica e social derivava da aplicao da massa de valores arrecadados, do emprego reprodutivo das pequenas quantias que afluem em grande nmero, resultando em fomento e progresso das atividades criadoras de riquezas, portanto em benefcio da economia pblica e privada. 12 Parece no haver dvida de que a capitalizao teve bero francs, e veio ao mundo em 1850, em lar humilde, na oficina de um gravador estabelecido em Paris, na Rue des Martyrs, 7. Quanto ao nome do pai, isto , do inventor da capitalizao, Anatole Weber 13 , em tratado substancioso , diz que teria sido um certo Paul Verger, que a teria dado luz sob forma de uma sociedade em participao integrada por 250 associados, que contribuam com 10 centavos (centimes) por semana para a constituio de um fundo comum, que se destinaria distribuio por sorteios de 100 francos, realizados na Pscoa, So Joo e Natal. Podiam concorrer todos os associados que se achassem em dia com suas contribuies, e para que no houvesse dvida quanto lisura do sorteio, os nmeros de cada concorrente eram colocados num chapu, e um menino extraa os vencedores. O ganhador parava de contribuir para o fundo.

17

18

A primeira sociedade de capitalizao, que em homenagem a seu criador teria sido chamada de Le Verger, no sobreviveu a seus fundadores, mas o modelo prosperou. Por toda a Frana comearam a surgir dezenas de outras instituies com caractersticas semelhantes, que gradativamente iam incorporando mudanas. At que, em 1869, quando a idia j assumia ares de maturidade, uma sociedade denominada La Ville de Paris emitiu uma combinao de ttulos no valor unitrio de 25 francos, reembolsveis por sorteios de 150 francos, e emitidos pelo prazo de 60 anos! 14 Em pouco tempo espalha-se por toda a Frana esse tipo de operao, rebatizada com o nome de Reconstituio de Capital, e sob essa capa comum abrigam-se as mais diversas modalidades de negcios que mantm entre si a identidade fundamental da capitalizao tal como criada por Verger. o que circula entre os estudiosos. Traduzida diretamente de sua principal fonte de informao histrica, que o clebre tratado de Anatole Weber, essa verso entraria no Brasil bem embalada numa envelopagem cannica, e repercutiria em praticamente todos os textos disponveis em lngua ptria. Assumida por Jos Sciotti, 15 que acrescentaria uma adjetivao colorida figura discreta de Verger, descrito como "habilssimo ourives, que seria dotado de frtil imaginao, e que aliava sua percia de lapidrio de pedras preciosas um senso incomum de financista." Verso adotada sem restries por Flix Sampaio 16 , que decide apenas mudar a profisso de Verger, transformado em inteligente operrio decorador, imbudo do esprito de economia. Ou por Francisco Marques 17 , que ampliaria o nmero de verses nacionais para a histria do inventor da capitalizao, ao mudar mais uma vez a profisso, e agora tambm o pr-nome de Verger, que seria rebatizado como "Paul Berger, modesto gravador. Tradutores, traidores. Houve quem fosse ainda mais longe, e apareceu uma outra verso, mal abonada, fantasiosa, e insistentemente repercutida, que atribuiu a inveno da capitalizao a um Paul Viget (no seria a corruptela de Verger?). Tido por diretor de uma cooperativa de mineiros (no se diz exatamente de onde), teria sido ele o idealizador de um sistema de recolhimento de pequenas contribuies individuais mensais, destinadas formao de um capital garantido, que seria devolvido aos prestamistas em prazo previamente de-

18

19

terminado. Segundo essa verso, preocupado com a situao de penria dos associados, e mais preocupado ainda com o atraso no pagamento das contribuies, esse Viget teria decidido realizar sorteios entre os contribuintes pontuais, atribuindo como prmio a iseno do pagamento das mensalidades pelo perodo de um ano. De qualquer forma, e no obstante a traio futura dos tradutores brasileiros, a boa semente plantada por Verger fora "lanada em bom terreno, e surgiram ento outras tentativas semelhantes, j um tanto organizadas, consistindo no que se chamava naquela poca de reconstituio de capitais. Havia estabelecimentos emissores de ttulos que assumiam a obrigao de pagar aos seus subscritores, aps um determinado prazo, uma importncia fixa, em espcie, alm de distriburem periodicamente, por meio de uma pequena loteria, prmios suplementares, muito vantajosos." 18 Mas, antes de sua universal aceitao, e antes de assumir a forma como hoje conhecida no Brasil, a Capitalizao estava destinada a enfrentar as vicissitudes naturais a tudo que decorre da condio humana. Eis que, ainda na Frana, e em torno do bero embalado por Verger, ao lado de empresas honestas, que operavam sob o rigor da lei e da matemtica, comearam a surgir aquelas que no se envergonhavam de prometer o que no cumpririam. E os tais ttulos, que at 1888 seriam emitidos sob a forma de Reconstituio de Capital, comeam a ser colocados sob suspeita pela Corte de Justia de Paris, que vislumbrou, sob a mscara difana e honesta da idia de poupana de longo prazo cumulada com sorteios, alguma espcie mal conformada de loteria. Isto , jogo! Desde ento, uma cansativa discusso em torno da natureza moral da capitalizao comea a envolver financistas e advogados. Aqui mesmo, no Brasil, meio sculo depois, a chama dessa especulao intelectual ainda se manteria acesa, e assoprada por algumas cabeas bem articuladas, que tentavam decifrar o enigma proposto pela desconfiana da Corte de Paris: afinal de contas, a capitalizao, quando recorre ao sorteio, deixa de ser um mero ttulo formador de economia, ou se transforma jogo?

19

20

Ren Brosar, em guia prtico destinado aos produtores de capitalizao, advertiria, na dcada de 50, que esse profissional deve estar preparado para expor, sempre que puder, a diametral diferena existindo entre a capitalitao e os jogos de loterias ou de azar. E para melhor convencer, alinhava argumentos que julgava satisfatrios, dizendo que o comprador de loteria, para obter, gasta. O subscritor de ttulos, para ter, guarda. O primeiro age por sentir falta de dinheiro. O segundo, por dispor de sobras. Aquele desembolsa fcil, displicentemente. Este, contando, quase a contra-gosto 19 Com argumentao menos direcionada ao sentimento e mais friamente tcnica, Jorge Aveline considera que os sorteios, mediante os quais se amortizam contratos antes de seu natural vencimento, so praticados, sem exceo, por todas as companhias de capitalizao. Nada justificaria, entretanto, a comparao desse tipo de sorteio com qualquer modalidade de jogo de loteria. Nesta, compra-se um bilhete pela possibilidade do prmio, enquanto que na capitalizao o desembolso nico ou peridico favorece mensalmente uma possibilidade de receber um capital mas, se isto no acontece, as contribuies se encontram resguardadas num fundo, capitalizando. Em sntese, diz que os sorteios de capitalizao imprimem um fator psicolgico ao subscritor, prendendo-o numa esperana ms a ms renovada, e que, com o decorrer do tempo, se cristaliza na realidade de uma economia perseverante. 20 Pode ter sido esse o tom da argumentao dos defensores da capitalizao, em face da suspeita levantada, perante a Corte francesa, da existncia de parentesco ntimo e prximo com o jogo. L, por volta de 1888, os adversrios da capitalizao bradavam que ttulos emitidos para resgate em at 100 anos, certamente no achariam comprador se no existisse o apelo simples e direto dos sorteios. Mas a Corte de Cassao (tribunal de Segunda Instncia na Justia Francesa) deve ter percebido a inconsistncia desse argumento solteiro, e decidiu a favor das muitas razes de defesa da capitalizao. Segundo Georges Hamon, advogado honorrio nessa Corte francesa, juzes supremos recusaram-se a identificar a prtica exprobada dos sorteios de Capitalizao como uma loteria, baseando-se no fato de que sendo o montante e a atribuio dos prmios de capitalizao determinados pelo prprio contrato e de modo uni-

20

21

forme para todos os subscritores, o acaso da sorte no intervm seno para determinar a poca do reembolso. 21 E assim, no dia 26 de abril de 1902, a Corte proferiu sentena que permitia a sobrevivncia da Capitalizao. Estava aplainado o caminho para o bom futuro da criao de Verger. E no dia 19 de dezembro de 1907 edita-se na Frana a lei que regulamentava a atividade das companhias emissoras de capitalizao, e protegia o portador de ttulos contra o possvel desaparecimento de suas economias, As Sociedades de Capitalizao, depois disso, ficaram definitivamente livres das controvrsias e ao abrigo dos ataques. E firmadas em sua lei, passaram a ser na Frana uma potncia economicamente to formidvel que, no fim de 1936, o total dos capitais garantidos elevava-se a mais de 35 bilhes de francos. 22 E em 1939 registrava-se a existncia de 1 ttulo de capitalizao em cada grupo de quatro franceses! 23 Apesar de srias resistncias que eventualmente encontrava, em razo do equvoco de seu parentesco j devidamente esclarecido em relao ao jogo, condenado pela moral pblica de muitos pases, a Capitalizao conseguiu mostrar sua real utilidade ao mundo sempre necessitado de instrumentos de formao de poupana. E muitos outros pases passaram a estudar, aceitar e legalizar a instituio, cuja estrutura repousava agora em bases slidas e deixava perceber a contribuio dos economistas hbeis que a modificavam, aperfeioando-a segundo os cnones da Cincia das Finanas 24 No Brasil, seu aparecimento ainda haveria de esperar algum tempo. E o que mais curioso, existiu em estado latente no corpo da lei, quase vinte anos antes de aparecer no mercado. Isto , diferentemente do que ocorrera na Frana, onde a legislao apareceria 57 anos depois de existirem o ttulo e o mercado, entre ns a capitalizao nasceu antes que tivesse acordado a iniciativa privada e para despert-la tomou a si o legislador proclamar a legitimidade das operaes de capitalizao, triunfante no grande embate que haviam sofrido no seu pas de origem 25

21

22

Filha de um lampejo de clarividncia da burocracia nacional, a Capitalizao brasileira nasceu no bero de um regulamento (Decreto 14.593, de 31 de dezembro de 1920), baixado pelo Presidente Epitcio Pessoa para definir as bases da atuao administrativa do Estado na fiscalizao das companhias de seguros nacionais e estrangeiras. 26 O Artigo 4 desse famoso decreto estabelecia que dependem de prvia autorizao do Governo Federal, para funcionamento na Repblica, ou para nela terem agentes e representantes quaisquer sociedades ou agremiaes, nacionais ou estrangeiras, que se consagrem a qualquer espcie ou ramo de seguros, terrestres, martimos, agrcolas, industriais e outros que tenham por fim indenizar perdas ou danos, direta ou indiretamente causados a cousas ou animais, quer se trate de seguros sobre a vida humana, de acidentes s pessoas, e suas congneres. No Artigo 5, o primeiro ovo do que futuramente seria a capitalizao, ao determinar que sujeitam-se ao regime de registro e fiscalizao as sociedades nacionais e estrangeiras que, sob qualquer denominao, tenham por objetivo reunir e capitalizar em comum as economias de seus associados ou aderentes, embora sem tomar para com os mesmos obrigaes determinadas e positivas. 27 O grifo, que naturalmente no consta do texto oficial, e foi acrescido a essa verdadeira prola barroca, estranha e excessiva, ajuda a destacar no clebre decreto a revelao de uma dupla tendncia do esprito nacional brasileiro. Revela a predileo pela forma analtica, pela abundncia que procura prefigurar no corpo de uma norma tantas situaes concretas quantas possam se manifestar presentemente ao esprito do legislador. Mas acima de tudo revela a boa inteno do legislador, que quis dar ao Brasil, ainda que para utilizao futura muito remota, um instrumento de iniciativa econmica apto a reproduzir, entre ns, os bons resultados que j vinham sendo observados em outros pases. Essa boa inteno do legislador no escapou ao registro da histria. Schiotti, orgulhosamente a destaca em sua obra ao dizer que, em nosso Pas, muito antes de ser adotada, a Capitalizao mereceu referncias jurdicas que concordavam inteiramente com o ponto de vista dos legisladores franceses.

22

23

Isso prova como, apesar de constituirmos uma Nao nova, todos os problemas humanos nos interessam de perto, como seguimos e nos deixamos entusiasmar pelos legtimos progressos do engenho e da arte, assimilando-os de logo e dando-lhes feio prpria, de acordo com o nosso temperamento e as nossas tendncias. No tocante capitalizao, o legislador brasileiro antecipou-se aos fatos, estudou-os antes de serem realidade no Pas e a eles referiu-se em texto de Lei! 28 Pode-se dizer que uma das feies prprias, acrescentadas capitalizao pelo Decreto 14 594 e por nosso temperamento e as nossas tendncias foi abrig-la, juntamente com as atividades tipicamente de seguros, sob um ttulo nico (Das condies de funcionamento das companhias de seguros), e disposies comuns de um mesmo Captulo I. Vale dizer, submet-las a um regime nico de fiscalizao, acrescentando um gro de sal receita originria da Frana e ao modelo criado por Verger. No Brasil, desde sua mais remota origem, Seguro e Capitalizao tm sido normativamente considerados membros de um s corpo ou, quando muito, frutos ou galhos de uma rvore comum. Ento o caso de se perguntar se haveria mesmo essa identidade fundamental entre as duas modalidades de negcios, ou a simplificao do histrico decreto deve ser vista apenas como uma soluo de economia normativa? Tanto quanto no passado, na Frana, antes da Lei de 1902, as opinies se contradiziam quando tentavam confundir ou distinguir a Capitalizao do puro jogo lotrico, o Decreto 14.593 suscitou, no Brasil, o fogo cruzado dos argumentos contra ou a favor de uma identidade essencial entre Capitalizao e Seguro. Ren Brosar, embora admitindo que a base da capitalizao da mesma essncia do seguro, delimita com aceitvel evidncia os termos de definio e separao de campos de cada atividade. Segundo ele, o seguro um contrato que visa reparao ou recomposio de um valor ativo e produtivo. Esse valor se acaba prematuramente ou se amortiza antes do tempo. um fim imprevisto, que est dentro do previsto. As tarifas de seguros tm sua

23

24

base na probabilidade dos sinistros, estabelecida matematicamente. Enquanto a capitalizao um contrato que tem por fim a constituio de um bem patrimonial, capaz de garantir a recomposio de um valor ativo e produtivo afirma. E aprofunda sua argumentao ao acrescentar que tanto em uma como outra modalidade, o segurado ou prestamista tem o nus dos prmios. No seguro, entretanto, o gasto definitivo, haja ou no o sinistro, enquanto que na capitalizao o gasto compensado pela constituio de reservas para atender liquidao ou resgate dos contratos. 29 Em sntese, e no obstante a simplificao normativa do Decreto 14.593, Seguro e Capitalizao, embora calcados nos mesmos preceitos tcnicos e base cientfica 30 no tm idntica natureza. Embora ambos representem uma guarda de dinheiro, donde decorreria uma certa confuso legislativa, quando cuida, no interesse fiscal, dessas empresas, h quem considere que a capitalizao melhor estaria, se subordinada sua atividade fiscalizao bancria. Porque mais ligao ao negcio bancrio tem a Capitalizao, do que com o Seguro propriamente 31 Discusses e divergncias parte, a verdade que a capitalizao, prefigurada no Artigo 6 do Decreto 14.593, a repousaria como possibilidade futura, at que o futuro chegou. Chegou como idia, em 1928, trazida da Frana na mala de propsitos de Antnio Sanchez de Larragoiti Junior, que a conhecera por casualidade, durante uma viagem a Paris, e quando lhe foi oferecida participao numa empresa de capitalizao. O relato desse momento seminal da capitalizao no Brasil seria feito anos depois, em conferncia proferida Larragoiti: Meus colegas e eu estvamos especializados no seguro de vida, e o mecanismo da capitalizao nos era estranho. Um grupo de amigos franceses nos forneceu todos os esclarecimentos tcnicos e comerciais que podamos desejar; e, afastada de ns a ocasio de participarmos de uma companhia francesa, surgiu de repente no nosso esprito a idia de implantarmos a capitalizao no Brasil. No reagimos contra ela: antes a principiamos a acariciar. Pouco tempo depois j gostvamos dela. J nos amos habituando. Finalmente decla-

24

25

ramos aos nossos interlocutores franceses que, se eles nos ajudassem a montar ua mquina com a mesma perfeio com que haviam sabido faz-lo na Frana, aceitaramos tentar a aventura. 32 Alm do incitamento aventura, o entusiasmo de Larragoiti era movido pela crena do patriotismo e pela mola da simplicidade do que era a prpria capitalizao. Em 1929 fiz parte de um conjunto de homens que sonhou implantar no Brasil um mtodo de economia sistematizada, j velho na Europa, chamada Capitalizao relataria, em conferncia proferida em 1954. 33 Segundo ele, naquela altura de nossa evoluo nacional dizia-nos a grande maioria ser impossvel incutir no povo brasileiro isso a que os franceses chamam de lepargne (poupana, traduo do autor); os espanhis de ahorro (poupana, idem), e para o qual a lngua lusitana no possui ainda uma denominao exata. 34 Larragoiti acreditava que tanto o sul-americano em geral, como o brasileiro em particular, graas s promissoras riquezas de seu ambiente continental, no eram dados prtica da economia. Adicionalmente, ostentavam a m fama de sempre viverem acima de seus meios; de gastarem mais do que seus ingressos permitiam em s cautela, sacando sobre o futuro, enfim. Diante disso, ele se perguntava como era possvel sonhar em lev-lo a criar economias e dedic-las subscrio de ttulos? A acreditar nessa propenso continental para a irresponsabilidade financeira, o futuro da capitalizao em nosso Pas poderia j estar nascendo comprometido. Assim mesmo Larragoiti parecia determinado. Acreditava firmemente que a capacidade de economia de uma nao uma das maiores foras internas e externas que o destino pode reservar-lhe, e que um povo incapaz de economizar no chegar nunca a ser um grande povo. Mais que isto, os introdutores da capitalizao no Brasil queriam contribuir para despertar no esprito de nosso meio o sentimento da necessidade da economia, fonte de progresso para os destinos de um povo livre. E se no bastasse o apelo do patriotismo, havia a praticidade do homem de negcios, que imediatamente acreditou

25

26

na simplicidade da capitalizao, que poderia por a economia ao alcance do cidado mais modesto. 35 nimo e idias. E tambm a colaborao intelectual de tcnicos franceses, entre os quais Ren Cuvillier, um pioneiro. Tudo estava pronto para o aparecimento da primeira sociedade de capitalizao no Brasil. E finalmente, no dia 4 de setembro de 1929, o Presidente Washington Luis assina o Decreto 18.891, 36 que concedia autorizao para o funcionamento da Sociedade Annima Sul Amrica Capitalizao. Ato a que se segue, no dia. 21 de outubro de 1929, a assinatura da Carta Patente n 224, pelo Ministro da Fazenda Francisco Chaves de Oliveira Botelho, e pelo Inspetor Geral de Seguros, Francisco Vergne de Abreu. Registrada na Inspetoria, s folhas s folhas 28 do livro competente, essa carta concedia empresa recm-criada o direito de funcionar nos Estados Unidos do Brazil, em seguros de capitalizao. 37

26

27

Captulo trs

Alm de lutar contra a adversidade de uma crise importada, o sucesso ou o fracasso da capitalizao em nosso pas teria que enfrentar um outro inimigo: a suspeita generalizada em relao ao esprito de gastana de nosso povo. Dizia-se que o brasileiro no possua esprito de economia, que era jogador, que a nica cousa a interess-lo seria o sorteio, e que, por conseguinte, pagaria apenas algumas mensalidades de seus ttulos, at a poca dos primeiros sorteios, deixando caducar os ttulos depois caso no fosse favorecido. 38 Havia nmeros, entretanto, que eram do conhecimento dos criadores da capitalizao brasileira, que contrariavam essa crena e demonstravam que a to achincalhada propenso nacional gastana no passava de mais uma dessas meias-verdades que volta e meia aplicam a qualquer povo, e no necessariamente o brasileiro, traos de personalidade nacional que no resistem ao teste dos fatos concretos. Hermann W. Sthamer, diretor da Sulacap, em trabalho publicado em 1937, os valores relativos a saldos de depsitos em cadernetas de economia nas Caixas Econmicas Federais: Cr$ 516 milhes em 1929, Cr$ 492 milhes em 1930, e Cr$ 536 milhes em 1931. 39 Com base nesses nmeros, Sthamer preferia argumentar que, ao invs de suposto e no demonstrvel trao de personalidade nacional, que impediria o hbito da poupana, o que existiria na verdade era a situao de fragilidade material das famlias. Era a insuficincia da mdia dos ordenados, de salrios, da recompensa de qualquer trabalho em geral que, segundo ele, dificultava a formao de economias por parte do indivduo, e de capital novo por parte das empresas. Da a dificuldade da constituio de economias no vasto crculo dos menos abastados que, por sua vez, tm a maior necessidade de economias para amparar seu lar e suas famlias contra as vicissitudes da vida. 40

27

28

Desimpedida e desembaraada do obstculo da suposta propenso nacional gastana, a capitalizao pde ensaiar seus primeiros passos no mercado brasileiro. Para apresent-la aos poupadores, a Sulacap iniciou uma campanha de educao do pblico e, ao ofertar os seus ttulos, evocava o sorteio como um simples acessrio, secundrio; vendia-os fazendo compreender aos compradores que se tratava de uma operao de verdadeira economia, independentemente dos bafejos da sorte, e quo interessante era a operao financeira para o subscritor lembraria, anos mais tarde, Antnio Larragoiti Junior. 41 Assim, embalada numa boa mensagem, a capitalizao comeou a chegar aos lares brasileiros. A prpria histria do Pas, se incumbiria de dar a ela um empurrozinho a mais. Em 1930 o Brasil vivia o Ano Zero de uma era de grandes transformaes. Triste, o Pas chorava a morte de Sinh, o pai e a me do samba carioca. Fascinado, tentava decifrar o doce mistrio da criao de um jovem farmacutico de Itabira, Carlos Drummond de Andrade, que acabara de publicar sua Alguma Poesia, a mais refinada de todas as metforas do quotidiano humilde e das situaes corriqueiras. Envaidecido, o Pas comemorava o ttulo de Miss Universo, conquistado pela gacha Yolanda Pereira no ms de Agosto. E olhava para o cu, do Rio de Janeiro e do Recife, onde um gigantesco charuto de 235 metros e 58 toneladas, o Graf Zeppelin, carregava no baixo-ventre a cpsula envidraada onde 43 tripulantes se mobilizavam para propiciar a 19 passageiros o sonho caro (20 mil contos) da travessia area do Atlntico a uma velocidade de 128 quilmetros por hora. Entretanto, no ar havia alguma coisa alm do Graf Zeppelin. No ar. Na terra, no mar, desmanchava-se a Repblica Velha, e o Pas caminhava para a modernidade da Revoluo que levaria Getlio Vargas ao Poder. Desde a Presidncia de Campos Salles (1898-1902), a Repblica vinha sendo alternadamente governada por paulistas e mineiros, irmanados num pacto de oligarcas, a clebre poltica do caf com leite. E para as eleies de 1930, depois da gesto paulista de Washington Lus, havia chegado a vez dos mineiros. Esse era o trato. Isso era o combinado.

28

29

Numa tentativa de salvar o barco da caf de um naufrgio que tinha se tornado ainda mais iminente aps o crash da Bolsa de Nova Iork, Washington Lus decide atender aos apelos dos produtores coestaduanos, e ro as cordas que o atavam aos interesses do leite. Ele decide lanar e abenoar uma chapa oficial, a Concentrao Conservadora, encabeada pelo paulista Jlio Prestes, e tendo como candidato a vice Vital Soares. Estava rasgado o pacto do caf com leite. Os oligarcas de Minas, e juntamente com eles os do Rio Grande do Sul e da Paraba, decidem resistir. Dentro do Partido Republicano, o mesmo que sustentava o poder de Washington Lus e o pacto que acabava de ser rasgado, fundam a divergncia da Aliana Liberal, novo partido, que lana candidatura prpria Presidncia da Repblica: Getlio Vargas e seu Vice, Joo Pessoa. Alm disso, a Aliana Liberal assume pose revolucionria, e busca o apoio dos clebres tenentes que desde 1922 vinham pregando a necessidade de uma revoluo libertadora, que arrancasse o povo das garras da misria e do status quo mantido (ironicamente) pelas prprias oligarquias com que agora se aliavam. A Aliana Liberal sabia bem o que podia significar o ardor e o mpeto guerreiro da jovem oficialidade, liderada por Lus Carlos Prestes e Juarez Tvora. De qualquer modo, no dia 1 de maro, em pleno carnaval, realizam-se as eleies. A Aliana Liberal derrotada, pela mquina situacionista, que Washington Luis tivera a competncia de azeitar em 17 Estados, e pela fraude. A chapa de Jlio Prestes e Vital Soares obtm1.091.709 votos, de um total de 1.890.524, contra os 737.000 votos dados a Getlio Vargas e Joo Pessoa. o momento em que o Governador ( poca Presidente) de Minas, Olegrio Maciel, falando em nome da coragem conservadorista da Aliana derrotada, solta a palavra de ordem de um partido que no esquecia suas razes: Faamos a revoluo, antes que o povo a faa! Mais que palavras de ordem, alguns lderes jovens, como Oswaldo Aranha e Lindolfo Collor, comeam a inflamar o Pas com um vibrante pedido de

29

30

guerra. E no dia 26 de julho, quando Joo Pessoa, Governador da Paraba, candidato derrotado Vice-Presidncia na chapa de Vargas, assassinado no Recife, no interior de uma Confeitaria, a indignao nacional caminha para o clmax. O pas ferve. Marca-se uma revoluo para o dia 3 de outubro, e os combates tm incio nessa data, em Porto Alegre, s 17h30, no encerramento do expediente nos quartis. Getlio Vargas, comandante civil, faz um discurso em que afirma que a Revoluo o povo se levantando para readquirir a liberdade, para restaurar a pureza do regime republicano, para a reconstruo nacional. 42 Tudo se precipita. As tropas revolucionrias, que subiam do Rio Grande do Sul na direo de Santa Catarina e do Paran, chegam fronteira com So Paulo, ao municpio de Itarar So 7.800 homens e 18 canhes, sob o comando de Miguel Costa, e encontram pela frente 6.200 homens, tendo frente o Coronel Pais de Andrade. Uma grande batalha est para acontecer no dia 25 de outubro. Defenda Itarar a todo transe, so as ordens dadas a Pais de Andrade. Mas, na vspera, dia 24 de outubro de 1930, no Rio de Janeiro, Washington Luis tinha sido deposto, e no houve necessidade do disparo de um tiro sequer pelos 14 mil soldados que se defrontavam.. Itarar entra para a histria como a batalha que no houve, e os gachos continuam avanando na direo do Rio de Janeiro. Ali, cavalos amarrados no obelisco na Avenida Rio Branco, eles aguardariam e assistiriam posse de Getlio Vargas, no dia 3 de novembro, como chefe do governo Provisrio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil. Com a vitria da Revoluo de 1930, parecia que o Brasil finalmente entrava no Sculo XX. E o novo sculo, nessa dcada de transformaes em todas as partes do mundo, parecia anunciar um modo novo de relacionamento do Estado com a economia. Na Europa, ensaiavam-se os primeiros passos da encenao nacionalista, que na Alemanha resultaria na exacerbao do nazifascismo, e na Itlia no anacronismo imperialista de Mussolini. Em ambos os modelos, o Estado passava a ter uma presena forte na economia. Mesmo nos Estados Unidos, ptria da livre iniciativa, o governo vinha ensaiando formas

30

31

cada vez mais escancaradas de interveno no domnio econmico, o que por l era considerada um verdadeiro sacrilgio desde a Constituio de 1776. Por fora das circunstncias e por um imperativo da poca, o Brasil tambm ensaiava um modo novo de relao do Estado com a economia. Empossado no cargo de Ministro do Trabalho, Indstria e Comrcio, caberia a Lindolfo Collor, uma das lideranas jovens da Repblica de Vargas, seria o porta-voz da proposta revolucionria de poltica econmica, ao declarar que O Brasil o melhor mercado para o Brasil. Isto , o Brasil passaria a dar maior valor a seu mercado interno, procurando se organizar economicamente a partir de suas prprias foras. Era uma proposta que vinha bem a calhar com os propsitos da Capitalizao, que j comeava a ter alguma visibilidade nos primeiros meses que se seguiram posse de Vargas. Antes mesmo, e no apagar das luzes de seu governo, o Presidente Washington Luis assinaria o Decreto 19.380, no dia 22 de outubro, concedendo autorizao para o funcionamento da Prudncia Capitalizao S.A., sediada em So Paulo. Essa empresa, que contribuiria para firmar o bom conceito da capitalizao no Brasil graas a uma presena marcante no financiamento de grandes projetos imobilirios, iniciaria verdadeiramente suas atividades no incio do ano seguinte, ao receber da Inspetoria Geral de Seguros a Carta Patente 228/31. A Prudncia teria vida longa e produtiva, encerrada no dia 2 de abril de 1959, quando suas atividades foram definitivamente interrompidas. 43 No dia 30 de abril de 1931, no salo nobre da Associao dos Empregados no Comrcio, na Avenida Rio Branco, Rio de Janeiro, realiza-se o primeiro sorteio de capitalizao no Brasil. Alm de diretores e funcionrios da Sulacap, achavam-se presentes jornalistas e grande nmero de subscritores, que acompanharam a movimentao das mquinas Fichet, de onde foram extradas as seguintes combinaes: KJM NIE KUK XOK XGV OVK. Todos os portadores de ttulos em vigor, que contivessem qualquer das seis combinaes, foram convocados para imediatamente receber, na sede da

31

32

Sul Amrica Capitalizao, na Rua do Ouvidor, esquina de Quitanda, o capital integral do titulo sem desconto algum. A capitalizao dava passos muito firmes em sua primeira infncia. Em julho de 1931, a Revista de Seguros informa que a Prudncia Capitalizao havia acabado de se filiar Associao de Companhias de Seguros. Nessa mesma edio, um pequeno anncio d conta de que em 21 meses de funcionamento a Sul Amrica Capitalizao amortizou, por meio de sorteios mensais, ttulos no valor de 4.275 contos de ris. Esclarecia que os ttulos, depois de pagos em 15 anos, no tendo sido sorteados, do direito em qualquer momento a um valor de resgate superior s importncias capitalizadas. Diz ainda que no 15 ano de vigncia, os ttulos participam dos lucros da Companhia. E informa que o prximo sorteio, mensal, ocorrer no dia 31 de agosto, s 15h, Era boa poltica, essa de dar visibilidade aos sorteios da capitalizao. E tudo parecia mesmo correr no melhor dos trilhos, nessa fase de expectativas que normalmente se segue s revolues transformadoras. "A revoluo de 1930 encontrou a capitalizao nos seus primeiros dias de existncia anota lvaro Silva Lima Pereira, Presidente da Diretoria da Sulacap, em texto histrico publicado em 1954. Como era natural sucedesse, o esprito reformador que dominava os espritos e os entusiasmos do momento tomaram a si analisar o sistema que apenas iniciava seus passos, e dessa anlise resultou a sua consolidao definitiva e que se traduzia em uma sbia e prudente regulamentao que lhe deu estrutura, que seria, como o foi, a garantia de seu xito, de vez que fixou os princpios de ordem tcnica e matemtica, que estabeleceram a absoluta segurana de seus fins e objetivos." 44 Uma dcada havia decorrido desde a edio do Decreto 14.493, de 31 de dezembro de 1920, sombra do qual a capitalizao havia nascido no Brasil. Baixada pelo Presidente Epitcio Pessoa, essa norma j pertencia s calendas da histria. E era ela que, em seu Artigo 5, vinha abrigando a constituio de sociedades nacionais e estrangeiras que, sob qualquer denominao, tenham por objetivo reunir e capitalizar em comum as economias de seus associados

32

33

ou aderentes, embora sem tomar para com os mesmos obrigaes determinadas e positivas. Faltava, entretanto, um regulamento especfico da capitalizao, mesmo depois da edio de um outro decreto, o 21.143, de 10 de maro de 1932, que apenas oficializava os termos da autorizao para funcionamento das sociedades de capitalizao. Era como se o Governo ganhasse tempo, enquanto urdia a tessitura firme daquele que seria a verdadeira base ciclpica em cima da qual, para as dcadas a vir, o Brasil fundamentaria a solidez de sua indstria da capitalizao: o Decreto 22 456, de 10 de fevereiro de 1933! O mercado respirou fundo. E respirou aliviado, assim que o Dirio Oficial publicou a ntegra desse famoso decreto que trazia, de quebra, alm de toda a regulamentao da atividade futura da capitalizao no Brasil, uma substanciosa exposio de motivos assinada por ningum menos que o ardoroso talento de Oswaldo Aranha. O alvio tinha razo de ser. prprio da condio humana e trao comum de todas as revolues que se pretendem transformadoras, um acentuado vezo moralista, que tende a ver pecado e comprometimento em cada ato de pessoa ou instituio. E durante dois anos, desde a ecloso vitoriosa do movimento revolucionrio, at a edio do Decreto 22 456, ainda pairava sobre a capitalizao a velha suspeita de que se tratava de mais uma modalidade de jogo. No Brasil, onde todos os sorteios so permitidos, e dirios anotaria Francisco Marques, em conferncia proferida em 1935 loterias, aplices populares, prdios, mercadorias, relgios, pianos, comestveis tambm surgiram os moralizadores. E os sorteios de capitalizao se acham reduzidos a doze por ano. A questo no foi levada aos tribunais, mas o governo revolucionrio, impressionado com a grita de interessados ou por outro qualquer motivo, num decreto regulamentando loterias, incluiu os sorteios da capitalizao entre os jogos de azar, equiparando-os roleta, baccarat, pharoon etc., e os proibiu, no

33

34

obstante j estarem funcionando, devidamente autorizados pelo governo constitucional, duas sociedades de capitalizao. 45 Mais que o alvio, com a edio do Decreto 22 456 o mercado seria brindado com uma exposio de motivos assinada pelo Ministro da Fazenda Oswaldo Aranha, que de certo modo assumia, explicitamente, no s a defesa da moralidade mas da prpria utilidade social e econmica da capitalizao. incontestvel o servio que as Capitalizaes prestam coletividade. Elas vo buscar na economia popular as pequenas contribuies individuais que de nada serviam, para transform-las em massas colossais de dinheiro, fecundando as indstrias e o comrcio, criando empresas novas, desenvolvendo o crdito e aumentando o bem-estar das populaes afirma o Ministro, escorado na citao direta da edio francesa do Vocabulrio Jurdico de Henri Capitain. 46 E prossegue, advertindo sobre a necessidade de uma rgida fiscalizao governamental para impedir que as sociedades, por incompetncia ou desarrazoada ambio de lucros, no destruam as enormes reservas monetrias, que de fato no lhes pertencem, nem mesmo excedam, com despesas e lucros, uma determinada porcentagem das contribuies recolhidas. indispensvel que a economia popular encontre nessas operaes, depois de um certo prazo, a justa recompensa de sua perseverana, recebendo realmente, pela fora dos juros, somas maiores do que as empregadas. Oswaldo Aranha prossegue enumerando as garantias que o Decreto assegura vida futura das empresas, e lisura dos negcios da capitalizao, ao amparar o pblico contra clusulas leoninas, cuja verdadeira interpretao passaria desapercebida. E mostra os cuidados do legislador ao impedir a constituio de vultosos lucros ocultos, prejudiciais no s ao errio pblico como aos prprios subscritores dos ttulos de Capitalizao. E ao comentar a criao de um prazo mximo para os ttulos, deduz uma justa defesa desse tipo de poupana afirmando que se a previdncia um nobre ato de desprendimento a favor de filhos ou netos, ela torna-se incompreensvel se os beneficirios pertencerem terceira ou quarta gerao; e por isso, nas capitalizaes a prazo

34

35

demasiadamente longos, deixa de existir o carter de previdncia, predominando apenas o desejo egosta de lucro imediato proveniente de uma loteria. A Exposio de Motivos assinada por Oswaldo Aranha, mas acima de tudo o texto do Decreto, foram saudados como anunciadores de boa sorte para a Capitalizao. Tais palavras do Poder Pblico, que culminaram o estudo prolongado que fizera pelos seus rgos mais competentes do sistema de Capitalizao, constituem documento de alta valia, pois que, ao mesmo tempo que afirma a legitimidade e segurana matemtica das operaes de capitalizao, desdobra o panorama fecundo em benefcios resultantes de suas atividades no meio social, de vez que congrega as pequenas contribuies individuais, que s poderiam, pela imprevidncia e desperdcio, perder, e as transforma em massas de capitais que, longe de ficarem inertes, logo se movimentam em proveito do comrcio e da indstria, criando empresas novas, desenvolvendo o crdito e aumentando o bem estar das populaes! comenta lvaro Silva Lima Pereira, com muito flego, nenhuma pausa, e alguma redundncia. 47 Exaustivamente analtico, o Decreto 22 456 estende-se por 89 artigos e respectivos pargrafos, que descem mincia de regulamentar as condies gerais de funcionamento das sociedades de capitalizao, as formas de constituio e aplicao de capitais, a forma de cessao das operaes, tabelas, planos, modos de constituio e emprego de reservas, perda e recuperao dos ttulos, fiscalizao e regime repressivo. No pargrafo nico do Art.1, o decreto estabelece que as nicas sociedades que podero usar o nome de Capitalizao sero as que autorizadas pelo Governo tiverem por objetivo oferecer ao pblico, de acordo com planos aprovados pela Inspetoria de Seguros, a constituio de um capital mnimo perfeitamente determinado em cada plano e pago em moeda corrente em um prazo mximo indicado no dito plano a pessoa que subscrever ou possuir um ttulo, segundo clusulas e regras aprovadas e mencionadas no mesmo ttulo. 48 O texto, embora ruim e redundante, delimita o campo e define os atores que nele podem atuar. E ele se completa com o Art. 37, em que so fixadas

35

36

as regras e os pressupostos do jogo: tanto quanto a autorizao para funcionar, as sociedades dependem de prvia aprovao, pela autoridade competente, dos planos, tabelas de contribuies, taxas de juros, frmulas e modo de distribuio de lucro. Mas o que particularmente deve ter interessado ao Governo Provisrio de Vargas, tanto quanto hoje interessa economia do Pas, era o modo como as reservas tcnicas deviam ser empregadas: sem limite, em aplices da dvida pblica ou ttulos que gozem de garantia da Unio, Estados ou Distrito Federal; com prvia autorizao, ttulos de negociao privada, e,prstimos sob cauo de ttulos, bancos, cadernetas da Caixa, ou imveis. Dois outros artigos do Decreto chamam ateno. O Art.45, ao estabelecer durao dos ttulos nominativos, num mnimo de 10 e num mximo de 30 anos, bem de acordo com a mente do legislador, preocupado em arredar da capitalizao a pecha de aventura financeira ou de jogo. E o Art. 53, que determina que as sociedades so obrigadas a manter nas capitais e nas praas comerciais dos Estados onde lhes convier emitir ttulos, um agente com poderes necessrios para assumir as responsabilidades que lhes cabem em virtude deste decreto, resolver reclamaes e receber primeiras e outras citadas. Nada mais saudvel e mais de acordo com a defesa do consumidor, que essa preocupao, j antiga, de dar visibilidade e presena aos agentes de capitalizao. Isto , proteger o interesse mais vital para o comprador de um ttulo, que saber com quem e onde vai falar quando necessrio.

36

37

Captulo Quatro

Abenoada pelo Governo Provisrio, a Capitalizao enfim pde prosperar. Em 1933, assistiu ao nascimento de duas novas companhias: A Alliana da Bahia, sediada em Salvador, autorizada a funcionar pelo Decreto 22.488, de 22 de fevereiro de 1933, e Carta-patente 234/33; 49 e Companhia Internacional de Capitalizao, com sede no Rio de Janeiro, que recebeu autorizao para funcionar pelo Decreto 23 287, de 25 de outubro de 1933, e Carta-patente 236/33. 50 E prosperava em um pas que ainda no conseguira dar estabilidade s prprias instituies polticas, episodicamente ameaadas de retrocesso em razo de cicatrizes, desconfianas e rancores antigos, deixados no rastro do movimento revolucionrio que levara Getlio Vargas ao poder. Assim foi em 1932, no dia 25 de janeiro, quando 100 mil pessoas, em sua maioria jovens e trabalhadores, se reuniram na Praa da S, em So Paulo, para pedir a formao de uma Assemblia Constituinte que desse ao Pas uma Carta de Direitos, e desse aos Estados uma autonomia poltico-administrativa que vinha sendo sufocada pelo centralismo do ainda Governo Provisrio. A resposta ao clamor paulista tmida. Marca-se para maio de 1933 a eleio para a assemblia Constituinte. E como a histria tinha pressa, no dia 9 de julho explode o movimento que teve comando militar dos generais Bertoldo Klinger e Isidoro Dias Lopes, e do coronel Euclides Figueiredo, pai de Joo Batista, que mais de quarenta anos depois se tornaria Presidente da Repblica pela mo de um centralismo ironicamente parecido com o do Governo Provisrio de Vargas. Nessa guerra de irmos, perdida pelos constitucionalistas, o Brasil perderia o Pai da Aviao: deprimido ao ver o combate desigual e desumano, dos gavies de penacho da reduzida fora area paulista contra os vermelhinhos legalistas, Santos Dumont suicida num hotel em Guaruj. E aps trs meses de combate e algumas centenas de mortos nos dois lados (633 s no lado paulista), no dia 1 de outubro de 1932 a revoluo est encerrada.

37

38

A capitalizao atravessaria impvida os poucos meses de conflito, quando a economia do Pas enfrentava alguns reveses. Antnio Lopes da Costa, inspetor da Sulacap em So Paulo, em depoimento prestado alguns depois, relembraria o que foi essa prova de vitalidade em tempos to difceis. Quando em 1932 deflagrou o movimento Constitucionalista da Capital da generosa terra Bandeirante, numa poca em que a medo se faziam negcios e emprstimos, quando os Bancos, com suas portas cerradas no operavam por prudncia, a Sulacap processava e fazia adiantamentos aos portadores de seus ttulos que j tinham mais de dois anos, na elevada soma de cerca de cinco mil contos! 51 E concluiria seu relato com um entusiasmo que patrioticamente se justificava: Que lio maravilhosa podemos tomar aqui! Aos imprevidentes e descuidados, na formao de reservas para o futuro! Os nmeros justificavam a boa expectativa de Lopes da Costa: em 1932 a Sulacap comercializou 27.129 ttulos novos, num valor de 334.335 contos, tendo a carteira em vigor atingido um montante acumulado de 887.640 contos. Por sorteio, foram amortizados 541 ttulos, representando a importncia de 6.605 contos de ris. 52 Rapidamente a capitalizao adquiria maior prestgio e visibilidade junto ao consumidor e ao prprio Governo, que manifesta mais uma vez a importncia crescente dessa atividade, ao editar o Decreto 24.782, de 14 de julho de 1934, pelo qual era extinta a Inspetoria Geral de Seguros, criando-se em seu lugar o Departamento Nacional de Seguros Privados e Capitalizao. Fruto de uma modernidade ps-revolucionria que ento se ensaiava no Brasil, essa nova regulamentao viria luz dois dias antes de o Pas ter assistido, em 16 de julho de 1934, promulgao de uma nova Constituio Federal. E nasceria trs dias depois de Getlio Vargas ser, finalmente e para alvio geral dos nimos ainda assustados de todos os brasileiros, eleito Presidente da Repblica no dia 17 de julho, por maioria dos votos dos constituintes, reunidos no Palcio Tiradentes, no Rio de Janeiro.

38

39

Pelo Decreto 24.782 o Governo criava o Ministrio do Trabalho, Indstria e comrcio e o Departamento Nacional de Seguros Privados e Capitalizao. E em sua regulamentao, baixada pelo Decreto n 24.783, de 14 de julho de 1934, pode-se dizer que j se acha refletido o nimo intervencionista e centralizador do Estado, que a partir do Artigo 111 da nova Constituio, caminharia no sentido da nacionalizao das empresas de seguros em todas as suas modalidades, e da negao dos princpios tericos do liberalismo, O Departamento Nacional de Seguros Privados e Capitalizao substituiria a Inspetoria de Seguros, em funcionamento desde 1903, e sua ao se estenderia por todo o Pas. Caberia a ele, como objetivo geral, fiscalizar as operaes de seguros privados em geral e as que consistem em reunir, capitalizar e distribuir pelos contribuintes as economias individuais, mediante obrigaes determinadas e positivas ou no sob a forma de capitais mobilirios, 53 Tambm caberia a ele amparar, nos limites de suas atribuies administrativas, os interesses e direitos do pblico relativos s operaes de seguros e capitalizao, e promover o desenvolvimento de tais operaes, bem como o esprito de previdncia em relao s mesmas. Alm de fomentar o desenvolvimento do seguro e da capitalizao, cabia ao Departamento o estudo das questes tcnicas e jurdicas referentes s aludidas operaes e interessar-se junto ao Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio pela adoo de todas as providncias que julgar teis e necessrias aos interesses gerais, relacionados com tais operaes. E como no podia deixar de ser, tambm a ele incumbia zelar os interesses da Fazenda nacional relacionados com as operaes j citadas, auxiliando de modo direto a fiscalizao da arrecadao dos impostos que recaiam sobre tais operaes. Regulamentao nova e quatro empresas constitudas e operantes (Sul Amrica, Prudncia, Aliana da Bahia e Internacional), a Capitalizao apresenta, em 1935, um primeiro balano setorial cujos nmeros globais j comeam a impressionar: 119.632 ttulos vendidos no ano, e constituio de reservas matemticas que atingem o montante de 90.675:749$038. Isto , em linguagem e

39

40

moeda da poca, mais de 90 mil contos de ris em ttulos reservas acumuladas em apenas um ano! 54 Somada essa produo dos anos anteriores, em 1935 a capitalizao brasileira j contabilizava um total de 245.317 ttulos ativos em carteira, o que representava um capital de 2.367.398:000$000 (1.876.065:000$000 em 1934) e receita correspondente a prmios nicos num montante de 53.308:966$300 (contra 42.356.688$250 no ano anterior). Isto , em 1935 havia no Brasil mais de 2 milhes e 300 mil contos aplicados em ttulos de capitalizao, valor que era superior produo de caf registrada naquele ano. 55 Os nmeros eram animadores. A capitalizao em 1935 havia superado o Seguro de Vida, que mantinha em carteira 2 milhes de contos em aplices emitidas no Brasil. E o ufanismo nacional j comeava a vislumbrar a possibilidade de fazer comparaes com a capitalizao francesa que, nesse mesmo ano, havia registrado um total acumulado de 42,777 milhes de contos de ris de ttulos em vigor. Isto, na ptria da capitalizao, com uma indstria que operava ininterruptamente desde 1850. 56 E tudo isto acontecia num pas ainda conflagrado politicamente, e que ainda no conseguira resolver todas as contradies inerentes ao processo revolucionrio, que se institucionalizara como Governo mas que continuava a bater cabea em meio s faces de poder e interesses que pareciam inconciliveis. No centro, as velhas oligarquias, que haviam demonstrado vigor novo nas eleies para a Assemblia Nacional Constituinte, realizadas em 1933, e de certo modo conseguiriam dominar a cena poltica nos debates que resultaram na elaborao da nova Constituio. direita, a Ao Integralista Brasileira, organizada por Plnio Salgado em torno de um iderio fascistide, que procurava recriar nos trpicos a experincia o modelo nacionalista de Mussolini. esquerda, a Aliana Nacional Libertadora, criada em janeiro de 1935 sob o comando de Luis Carlos Prestes e a bandeira vermelha da luta anti-fascista. Acima de todos, Getlio Vargas, que tenta responder aos assanhamentos das vrias faces invocando e aplicando a Lei de Segurana Nacional, promulgada no ms de abril desse ano.

40

41

Em maio, Maurcio de (pai de Carlos) Lacerda, prefeito de Vassouras, dissolve no tiro uma tentativa de desfile integralista. Em junho, Vargas expulsa do exrcito um grupo de soldados e sargentos que haviam participado de um comcio da Aliana Nacional Libertadora no bairro de Madureira, no Rio. Em julho, durante comcio realizado no Rio, lido manifesto de Luis Carlos Prestes, em que se pede todo poder ANL. Como resposta, uma semana depois a Aliana colocada na ilegalidade e sua sede no Rio de Janeiro fechada. Em setembro uma reunio de integralistas no bairro de Bonsucesso dissolvida a tiros, e em novembro a Justia probe o uso das camisas verdes, uniforme dos seguidores de Plnio Salgado. Em novembro, explode uma rebelio comunista em Natal e depois em Recife. O Pas entra em Estado de Stio, na madrugada de 26 para 27 de novembro, na Praia Vermelha, cumprindo ordens de Prestes e sob o comando de Agildo Barata, comanda um levante armado no quartel do 3 Regimento de Infantaria. O episdio, que entraria para a histria como Intentona Comunista, foi de curta mas dolorosa durao. Depois de sofrer um bombardeio cerrado de obuses e metralhadoras, j no incio da tarde do dia 28, com uma bandeira branca amarrada num cabo de vassoura, os amotinados capitulavam, para embarcar em vrios nibus rumo ao crcere. Mas nem tudo era dor, violncia e perplexidade. Pelas ondas do rdio, o Brasil descobria e se encantava com uma constelao de astros e estrelas da msica e dramaturgia. Araci de Almeida, a Dama da Central, que cantava as msicas de Noel Rosa e mostrava ao pas uma cara nova da boemia. A boemia das mulheres. E Carmem Miranda, a Pequena Notvel, vestida de baiana e coberta de balangands. Ou Dalva de Oliveira, que integrava o Trio de Ouro com Herivelto Martins e Nilo Chagas. Elas e mais os gnios de Ary Barroso, Noel Rosa, e Lupicnio Rodrigues, inventavam no ter, no espao, uma nova cultura e um novo gosto que em poucos anos mudaria a sensibilidade do povo brasileiro.

41

42

Em meio aos trancos das rebelies e ao balano da boa msica, e das ondas mdias e curtas da Rdio Nacional, Rdio Tupi, Mayrink Veiga e outras grandes emissoras que surgiam, operava-se, finalmente o to proclamado milagre instantneo da unidade nacional. O Brasil progredia. A capitalizao progredia. "No Brasil, que absolutamente no est em atraso no progresso afirmava na poca George Hamon a capitalizao colheu resultados: os capitais garantidos elevam-se, em dezembro de 1936, a mais de Cr$ 2.500.000.000,00; e nesta cifra a Sul Amrica Capitalizao, S.A. figura sozinha em dois bilhes de cruzeiros. Isto melhor do que um comeo honroso; um xito brilhante, que denota o esprito progressista na nao e que ser, esperemo-lo, seguido de outros muitos." 57 Contaminadas por esse esprito progressista, as empresas procuravam se expandir. A Sul Amrica Capitalizao, por exemplo, deu incio em 1936 s obras de construo de um prdio, situado no Rio de Janeiro, na esquina das ruas da Alfndega e Quitanda, modelado nas suas necessidades cada vez mais desdobradas, destinado a abrigar sua sede. O programa da direo dotar essa companhia em todas as capitais brasileiras de prdios prprios, no s para renda como para a instalao dos seus servios anunciava a Revista de Seguros. O edifcio seria inaugurado no segundo semestre de 1937, em presena de Herbert Moses, Presidente da Associao Brasileira de Imprensa, e Edmundo Perry, Diretor do Departamento Nacional de Seguros Privados e Capitalizao. Sobre pretenses futuras da empresa, a revista acrescentava: lemos no seu relatrio agora publicado, a notcia da compra de um prdio em Santos, o qual j demoliu para, em seu lugar, construir um edifcio que faa honra ao nosso primeiro porto martimo. Tambm adquiriu trs prdios em Porto Alegre, rua dos Andradas, os quais vo tambm ser demolidos, surgindo no local um majestoso edifcio que atestar o prestigio dessa sociedade no Rio Grande do Sul. 58

42

43

O mesmo esprito de progresso estava presente em outras iniciativas. Como a criao da Kosmos Capitalizao, que se constituiu no dia 9 de maro de 1937, pelo Decreto nmero 1.483, e Carta Patente nmero 264/37. Tendo sede no Rio de Janeiro, seu capital era de 2.000:000$000 (dois mil contos de ris), dividido em 10.000 aes de 200$000 (duzentos mil ris) cada uma, tendo sido realizado imediatamente 40% A durao prevista para a empresa era de 99 anos, e de seus lucros lquidos 20% seriam levados a Fundo de Reserva, 10% para oscilao de valores do ativo, 50%, no mximo, para dividendos aos acionistas, 15% para remunerao aos fundadores, cabendo 3% a cada um, e 5%, no mnimo, para lucros suspensos. 59 Ainda em 1937, entre 9 e 15 de agosto, transcorreu o 1 Congresso Sulacap. Realizado no Rio de Janeiro, foi o primeiro do gnero a acontecer no Brasil.. Nele, a capitalizao, foi estudada em todos os seus aspectos, desdobrando-se em 82 teses concernentes tcnica, doutrina, administrao, produo, experincia e estmulo, organizao, aspecto legal e Participaram do evento, alm de autoridades e dirigentes da empresa, inspetores, agentes, bem como altos funcionrios, todos irmanados num ideal santo de melhorar o ndice econmico do nosso povo. 60 Sem dvida, aquele foi um ano muito especial para a capitalizao brasileira. Na produo agregada de todas as cinco empresas que operaram naquele ano, a carteira de ttulos ativos havia registrado um capital de 3.099.008:250$000 (isto , mais de 3 milhes de contos), com um crescimento de 13% sobre os 2.736.933:000$000 (2,7 milhes de contos) registrados em 1936. A receita de prmios registrados no ano ascenderia a 90.857:937 (mais de 90 mil contos), o que significava um crescimento de 25% sobre os 72.971:646 $000 (72,97 mil contos) registrados em 1936. E o volume de reservas totais constitudas no exerccio ascenderia a 165.461:183$000 contra 124.420:780$000 constitudas em 1935.. 61 A recm-criada Kosmos, em pouco mais de oito meses de funcionamento, emitiria 12.726 ttulos, que representavam um capital de

43

44

84.343:750$000 (84,343 contos de ris), e constituiria reservas matemticas num montante de 735:115$012 (735 contos de ris). Os resultados de cada uma das quatro outras companhias eram mais que animadores. A Aliana da Bahia, que mantinha em vigor uma carteira de 498.336:000$000 (498 mil contos) emitiu 21.881 novos ttulos, e constituiu reservas num total de 10.866:154$500 (mais de 10 mil contos). A Internacional, que encerrou o exerccio com uma carteira no valor de 212.415:000$000 (212 mil contos), emitiu 21.321 ttulos num valor de 165.422:500$000, e constituiu reservas no valor de 6.389.383$400. A Prudncia encerrou o exerccio com 25.558 em vigor, representando um capital garantido de 213.123:500$000, e reservas no montante de 8.611:742$154. A Sul Amrica, que representava aproximadamente 70% do mercado brasileiro de capitalizao, encerrou o ano de 1935 com uma carteira de ttulos no valor de 2.090.790:000$000, isto , mais de 2 milhes de contos de ris. 62 No havia mais dvida: a capitalizao tinha iniciado no Brasil uma trajetria sem retorno. E nessa fase em que o Pas ainda parecia no ter encontrado um caminho que trouxesse paz social e tranqilidade populao, nem mesmo os atropelos da histria poltica pareciam capazes de impedir seu desenvolvimento. Em setembro de 1937 o Pas sacudido pela inquietao da descoberta de um documento, o chamado Plano Cohen. Sua autoria era grotescamente atribuda ao chefe do partido comunista hngaro Bela Kuhn (donde a corruptela Cohen), e seu teor entraria para a histria como a mais grosseira falsificao de um projeto de insurreio destinada a instalar no Brasil uma ditadura comunista. Hoje, sabe-se, o Plano Cohen no passou de uma farsa montada com a participao de um capito do Exrcito, Mouro Filho, integralista. No h dvida que foi uma burla novelesca, em que, num enredo complicado de equvocos, o papel hipottico, concebido como um possvel plano de agresso comunista assinado por Bela Kuhn, transitou sigilosamente nos gabinetes civis e militares, at ser dado imprensa e considerado, com seriedade, uma prova da ameaa grave que pesava sobre o regime. 63

44

45

Acreditasse, ou no, e praticamente certo que no acreditou, Vargas deixou que o caldeiro dos medos, rancores e desconfianas dos polticos e dos militares fervesse num tempo que deve ter julgado suficiente, e no dia 10 de novembro, valendo-se da falsa ameaa ao regime fechou o Congresso Nacional e extinguiu os partidos polticos. Sob os aplausos de batalhes de inimigos de outros momentos, os camisas verdes de Plnio Salgado (e do Capito Mouro Filho), que desfilaram saudando o nascimento de uma nova ditadura. Acabava de nascer o Estado Novo. As repercusses da nova ordem sobre a vida das seguradoras e das sociedades de capitalizao chegariam pela via indireta de um remendo constitucional, redigido s pressas por Francisco Campos, e empurrado goela abaixo do Pas na manh do mesmo dia 10. Ideologicamente, era a tomada de posio intermdia, em que sucederia ao dissdio comuno-fascista (arredado o sistema democrtico propriamente dito), um misto de presidencialismo onipotente ( polonesa) e trabalhismo italiano. 64 E nessa nova Constituio, que em razo de sua origem caricata receberia o apelido de Polaca, havia um incmodo Artigo 145 onde se mexia com os nervos e a pacincia de muitas seguradoras, numa poca em que o mercado brasileiro era fortemente dominado pela presena de companhias estrangeiras. Estava l, no Artigo 145 da Polaca: S podero funcionar no Brasil os bancos de depsito e as empresas de seguros, quando brasileiros os seus acionistas. Aos bancos de depsitos e empresas de seguros atualmente autorizados a operar no Pas, a lei dar um prazo razovel para que se transformem de acordo com as exigncias desde artigo. 65 As cinco sociedades de capitalizao em atividade passaram ao largo dessa novidade. E sem atropelo, puderam apresentar em 1938 um balano altamente positivo de sua produo. O valor dos ttulos ativos ascendeu a 3.467.650:750$000 (3 milhes e 467 mil contos), com um crescimento de 12% sobre o ano anterior. O volume de reservas atingiu o montante de 209.330:709$000 (209,3 mil contos), contra 165.013:312$000 (165 mil contos)

45

46

registrados em 1937. E especialmente uma empresa, a Kosmos, apresentou crescimento ainda mais convincente: 94.446:750$000 (94,4 mil contos) em ttulos ativos, contra 50.855:000$000 (50,8 mil contos), isto , 86% de crescimento em apenas um ano. Dois registros de natureza administrativa. Em junho de 1938 foram solenemente instaladas, no Departamento de Seguros do Ministrio do Trabalho, as Comisses Permanentes de Seguros e de Capitalizao, destinadas a promover o dilogo produtivo entre as classes produtoras e os poderes pblicos. E em maio de 1939, o Conselho Nacional do Trabalho reconheceu aos corretores de capitalizao o direito de se associarem aos Institutos dos Comercirios, equiparados, portanto, aos agentes de seguros. Um registro de natureza cultural: em abril de 1938 a Sulacap exibiu, no Cine Broadway, no Rio, um filme sobre o congresso de seus agentes. Alm de mostrar na tela o magnfico edifcio de sua sede, os dirigentes da empresa saram do cinema convencidos de que os que nunca tiveram hbitos de economia e que virem essa fita, certo mudaro de pensar. Pensaro, ento, no futuro e no triste fim dos imprevidentes. 66

46

47

Captulo cinco

No dia 31 de outubro de 1939, nas comemoraes do dcimo aniversrio da capitalizao no Brasil, os pioneiros se reuniram numa grande solenidade realizada nos sales do Automvel Clube, na Cinelndia, e decidiram fazer uma homenagem simblica comunidade. Alm dos discursos de praxe, que no pouparam adjetivos para exaltar a f nos destinos do Brasil e de confiana no constante progredir da capitalizao, foi entregue ao Dr. Herbert Moses, Presidente da Associao Brasileira de Imprensa, um titulo saldado no valor de 10:000$000 destinado a compor o patrimnio da Casa do Pequeno Jornaleiro. A capitalizao tinha mesmo razes de sobra para comemorar. Havia atravessado galhardamente uma dcada inteira de turbulncia poltica, e as cinco empresas que operavam no Brasil podiam apresentar um balano conjunto de sua atuao que era um verdadeiro atestado de eficincia, e uma prova da importncia dessa atividade para o desenvolvimento econmico e social do Pas. A carteira de ttulos em vigor registrava a quantia - astronmica para a poca - de 3.960.220:000$000, isto , quase quatro milhes de contos de ris, valor que naquele ano representava o dobro da produo nacional de caf, contabilizada em 1.979.850:000$000 em 1939. 67 Mais importante que isso: o volume agregado de reservas matemticas das cinco sociedades de capitalizao atingia o montante de 325.375:340$000 (mais de 325 mil contos). O crescimento no volume dessas reservas era sempre muito bem visto pelo Pas, pois essa massa formidvel de recursos normalmente era canalizada para ativos que, em ltima instncia, representavam investimento em setores vitais da economia. Para se ter uma idia do que a capitalizao podia significar no financiamento do desenvolvimento nacional, apenas a Sul Amrica, nesse ano de 1939, canalizara 113.055:479$000 (mais de 113 mil contos) de suas re-

47

48

servas matemticas para aplicao em aplices e outros ttulos de renda, e 31.296:351$000 (mais de 31 mil contos) para investimento em imveis. Tanto em um como em outro caso quem ganhava era o Pas. E em razo de sua crescente utilidade social e econmica, a capitalizao vinha conquistando a ardorosa simpatia de aliados cada dia mais numerosos. As sociedades brasileiras de capitalizao tm tido boa aceitao pelo povo destacava a Revista de Seguros, em editorial publicado na edio de outubro de 1940. So empresas bem administradas e honradamente dirigidas. Algumas se formaram sombra de sociedades de seguros fortssimas e acreditadas no pas; outras, sob a influncia de nomes comercialmente conhecidos e prestigiosos. A situao financeira de absoluta segurana. O servio prestado pela Capitalizao incontestvel. Buscando no seio do povo contribuies, transformam-nas em massas colossais de valores. As indstrias e o comrcio no deixam de ser auxiliados por esse dinheiro de carter social acrescentava. 68 O carter social desse dinheiro cada dia mais evidente nos balanos das empresas e nas reas urbanas, onde comeavam a aparecer, em concreto e tijolo, os primeiros resultados de uma poltica de investimentos que j vinha sendo praticada pela capitalizao. No balano conjunto das operaes de capitalizao no ano de 1941 69 , entre os ativos das empresas comeam a ganhar corpo dois itens que interessavam muito ao pas: os investimentos em imveis, que somaram 46.499:045$000, e as aplicaes em emprstimos hipotecrios, destinados construo de moradias, que somaram 78.589:184$000. Somados, esses valores j se aproximavam do montante aplicado em ttulos de renda naquele ano, num total conjunto de 156.538:462$000. Dois anos depois, e agora contabilizado na moeda nova do Pas, o Cruzeiro (Cr$), o balano conjunto das cinco empresas de capitalizao registrava a mudana: os ttulos de renda, em que haviam sido investidos Cr$ 180.091.266,40, tinham sido superados pela soma dos totais de aplicaes em imveis (Cr$ 95.249.672,60) e emprstimos hipotecrios ao comrcio e indstria ( Cr$ 136.476.918,00). 70

48

49

Isto significava que o Pas passava a contar com uma extraordinria fonte de financiamentos para seu desenvolvimento urbano e programas de construo de moradias, o que contribua para a busca de soluo ao mais grave problema de economia familiar que perdura ainda hoje, a questo habitacional. Tambm ganhavam as empresas, que podiam constituir reservas com uma lastro mais slido e mais permanente, capaz