Livio Sansone - Negritude Sem Etnicidade

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negritude, etnicidade, antropologia

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  • SANSONE, Lvio. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas

    relaes raciais e na produo cultural negra do Brasil, trad. de Vera

    Ribeiro, Salvador/Rio de Janeiro, Edufba/Pallas, 2004, 335 pp.

    Petrnio Domingues1

    Professor de Histria Universidade Estadual do Oeste do Paran (Unioeste)

    A negritude brasileira na era global

    Lvio Sansone nasceu na Itlia. doutor em antropologia pela Univer-sidade de Amsterd, na Holanda. No incio da dcada de 1990, transfe-riu-se para o Brasil. Depois de ser professor-visitante em universidadesbrasileiras, como a Unicamp, e de dirigir o Centro de Estudos Afro-Asiticos da Universidade Cndido Mendes, no Rio de Janeiro, tornou-se professor de antropologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA)e, atualmente, coordenador de dois importantes programas na mesmauniversidade: o Fbrica de Idias do Centro de Estudos Afro-Orientais(que promove anualmente o curso avanado sobre relaes raciais, reu-nindo estudantes de ps-graduao do Brasil e do exterior) e o recm-lanado Programa Multidisciplinar de Ps-Graduao em Estudos t-nicos e Africanos, o primeiro do gnero no Pas. H mais de uma dcadaSansone vem realizando pesquisa, proferindo conferncias, participan-do de encontros acadmicos e publicando artigos acerca da cultura ne-gra e das relaes raciais no Brasil. Negritude sem etnicidade representa ocoroamento de tudo isso.

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    O livro uma coletnea de artigos. O primeiro captulo, Pais ne-gros, filhos pretos. Trabalho, cor, diferena entre geraes e o sistema declassificao racial num Brasil em transformao, analisa as mudanasna terminologia e na classificao raciais de duas reas da regio da Gran-de Salvador (Bahia), cruzando as variveis raa, classe e gerao. Se-gundo Sansone, os negros de idade mais avanada dessa regio, na casade 30 a 60 anos, conseguiram certa colocao no mercado de trabalho etm uma formao escolar baixa. J os integrantes da nova gerao da-quela regio, jovens negros na faixa dos 15 aos 25 anos, esto excludosou includos marginalmente no mercado de trabalho e possuem um n-vel de educao superior ao de seus pais. Tais jovens desenvolveram umamaneira diferente de se relacionar com sua identidade racial. Em vez dese autodeclararem pretos, pardos, mulatos e at morenos, como tpicoda gerao dos pais, a maior parte dos jovens negros utiliza o termo ne-gro com um sentido de afirmao tnica para se autodeclarar.

    Portanto, a principal concluso de Sansone nesse captulo que cha-mar a si mesmo de negro, preto, pardo ou escuro no depende exclusi-vamente da cor, mas tambm da idade e, at certo ponto, do nvel deinstruo (p. 87). Mas o autor lembra que o sistema de classificaoracial dos locais pesquisados fluido, sendo tambm influenciado poroutras variveis, como sexo, local de residncia, status, lugar em que sed a fala, relaes de amizade etc. Sansone constatou que havia reas oumomentos em que a cor era vista com importncia nas relaes sociaise de poder, j, em outras reas e momentos, a cor era consideradairrelevante. No primeiro caso que o autor definiu de reas leves darelao de cor , o racismo era atenuado e ocorria quando as distinessociais eram associadas sobretudo classe, idade, vizinhana e ao sexo.J no segundo caso que Sansone definiu de reas pesadas , o racis-mo era acentuado e acontecia no mercado de trabalho, principalmente

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    no momento de procura de emprego, no namoro e casamento e nasinteraes com a polcia.

    O segundo captulo, Da frica ao afro. Usos e abusos da frica nacultura popular e acadmica brasileira durante o ltimo sculo, enfocaos usos e abusos da frica e o constante intercmbio (cultural e mate-rial) que se estabelece entre os pases do Atlntico Negro. Segundo San-sone, desde a globalizao tradicional (aquela que se iniciou com otrfico negreiro transatlntico) at a nova globalizao (que comeoua partir da Segunda Guerra Mundial), certos objetos e idias/ideais, tidoscomo negros, foram transformados em mercadorias e tm viajado emincessantes trnsitos entre o centro e a periferia do sistema global. Nessecircuito, o papel da Bahia (e do Brasil) de importador de objetos eprodutos culturais negros com aura de modernidade e exportador deobjetos e artigos culturais negros com aura de tradio e africanismo.

    A partir da cidade de Salvador e da regio que a circunda (o Recn-cavo), Sansone investiga como a frica, ou seja, os objetos e smbolosconsiderados de origem africana, tem sido mercantilizada e recriada per-manentemente. De primitiva e anacrnica no final do sculo XIX e in-cio do sculo XX, a cultura africana adquiriu status na cultura popular eda elite, na Bahia. A frica passou a significar cultura e tradio den-tro da cultura negra. Em plena modernidade, as expresses do africa-nismo (como o Candombl, a capoeira e o batuque) so celebradas pelodiscurso estatal, pela cultura acadmica e popular.

    O terceiro captulo, O local e o global na Afro-Bahia de hoje, abor-da o florescimento de uma nova cultura negra baiana e a maneira comoos smbolos negros internacionais e a cultura da juventude se adaptam tradio afro-baiana. Para Sansone, a chamada nova cultura negra baia-na seria caracterizada, em linhas gerais, por estar

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    centrada na cor e no uso do corpo negro; (...) tem uma ligao muito mais

    estreita com a cultura juvenil e com a indstria do lazer e da msica; (...)

    tem uma orientao muito mais internacional do que em qualquer outra

    poca; e deposita uma nfase renovada no consumo. (p. 119)

    Esta ltima caracterstica enfatizada pelo autor. Embora o acervosobre o qual se constri a nova cultura negra seja maior e mais diversi-ficado do que nunca, o acesso a ele determinado pelo dinheiro. Osnovos objetos negros costumam ser caros (p. 130).

    De acordo com Sansone, a nova gerao de afro-baianos manifestamais explicitamente sua identidade negra. Mas o autor adverte que asformas culturais dessa nova identidade negra funcionam como umavlvula de escape (uma fuga simblica do preconceito racial) e no tmum contedo poltico, ou seja, no so expresses de luta organizadacontra o racismo (p. 148). A nova identidade ostenta tendncias in-ternacionais e internacionalizantes, mas no perde de vista os valoresespecficos da cultura negra baiana.

    O quarto captulo, O funk glocal na Bahia e no Rio de Janeiro.Interpretaes locais da globalizao negra, explora de que maneira amsica funk considerada um cone global adquire um significadolocal prprio, entre os jovens negros de classe baixa no Rio de Janeiroe em Salvador. O autor afirma que alguns aspectos da globalizao, emvez de criarem a homogeneidade, acabam sendo teis para a criao devariedades locais da cultura negra jovem (p. 208). interessante saberque, para os jovens negros, os bailes funk no so vistos como expressode uma indentidade negra militante. Assim, todos os entrevistados porSansone no associavam tais bailes ao protesto poltico da negritude.

    O quinto captulo, Ser negro em duas cidades. Comparao entrejovens negros de classe baixa em Salvador e em Amsterd, traa, emuma perspectiva comparativa, o processo de construo de novas cultu-

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    ras e identidades negras em duas cidades: Salvador, no Brasil, e Amster-d, na Holanda. Uma das principais concluses de Sansone de que oexemplo desses locais aponta que no existe nada que permita qualificarde sobrevivncias tipicamente negras. Os smbolos negros globais soseletivamente reelaborados nos contextos de Salvador e Amsterd, eaquilo que no pode ser combinado com a situao dos jovens negrosdessas duas cidades descartado. Embora os cones associados msi-ca e aos estilos juvenis tendam a convergir, diz Sansone, as prefern-cias musicais e as reinterpretaes concretas desses cones so tenazmen-te locais (p. 230).

    O livro acaba com uma longa concluso, denominada O lugar doBrasil no Atlntico Negro. O autor entende que raa e etnicidadeno so categorias universais e a-histricas; elas so influenciadas pelocontexto, pela classe, pela gerao, pela profisso, pela posio geogrfi-ca e pelo gnero. O autor postula que a linha divisria entre raa (ofentipo africano) e etnicidade (os aspectos culturais, como o uso detranas e de roupas afro) sutil. No haveria necessidade de que aetnicidade seja traduzida em termos raciais ou de que se articule pormeio de um discurso racista. A etnicidade pode existir sem raa, e a raa,sem etnicidade (p. 255). Segundo Sansone, exatamente isso que cha-ma a ateno do sistema racial brasileiro: a existncia de uma negritudesem etnicidade (da o ttulo do livro), uma afirmao do orgulho ne-gro descomprometida politicamente com as manifestaes tnicas afrotradicionais. Em funo da pouca importncia poltica que a etnicidadevem cumprindo no Brasil, o autor lana um polmico desafio: aqui, noseria melhor pensar anti-racismo sem etnicidade? Assim, a frente anti-racista no ficaria restrita ao movimento negro organizado que, confor-me o autor, desenvolve uma poltica de identidade negra antipluralista a polarizao racial (negros versus branco) no seria a melhor maneirade combater o racismo no Pas. Para formar um movimento amplo pelos

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    direitos civis, seria necessrio atrair pessoas de classes e credos diferentese inventar algo que se adapte a um pas no qual grande parte da popula-o sente-se mestia encontrar uma mediao que rejeite a seduo deApolo (fronteiras ntidas) e de Dionsio (fronteiras vagas). Alm disso,devemos pensar num movimento que reconhea que a negritude podeser vivenciada de muitas maneiras, sob formas mais ou menos indivi-dualizadas (p. 294).

    Infelizmente, Sansone no apresenta maiores indicaes do que con-siste essa sada mediadora, de equilbrio, para resolver o problema doracismo na sociedade brasileira. Condenar a luta pela construo daidentidade racial levada a cabo pelo movimento negro, de um lado, edefender uma certa dose de mestiagem, de outro, no nenhuma fr-mula inovadora: essa vem sendo a posio predominante das elites in-telectuais e polticas brasileiras desde a dcada de 1930, quando imple-mentaram um projeto de nacionalidade baseado na celebrao damestiagem. Entretanto, tal mestiagem foi (e ainda ) utilizada comoinstrumento ideolgico, quer obliterando as desigualdades raciais exis-tentes entre negros e brancos na sociedade brasileira, quer colocandoem xeque a legitimidade da luta do movimento negro, afinal, se o Brasil um pas essencialmente mestio, no haveria espao para uma polticade identidade negra.

    A obra apresenta um ou outro erro factual. Por exemplo, Sansonediz que a primeira organizao negra de tipo moderno, a Frente NegraBrasileira, floresceu dos anos 20 at meados da dcada de 1930, quandofoi desarticulada pelo ditador Vargas. Em seguida, alguns de seus mem-bros teriam se ligado ao integralismo, um movimento neofacista eultracatlico de direita (p. 46). O primeiro erro que a Frente Negrano surgiu nos anos 20 e, sim, no incio da dcada seguinte, em 1931, eseu perodo de vida se estendeu at 1937, com a instalao do EstadoNovo. O segundo erro que no h evidncias de que alguns dos ex-

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    ativistas dessa organizao migraram para o integralismo. Um outro tipode problema diz respeito indicao das fontes bibliogrficas. O autoradota o sistema autor-data, mas alguns dos autores que so indicadosno decorrer do texto (p. 194, 235, 266, 285) no aparecem nas refern-cias bibliogrficas do final da obra.

    De toda sorte, Negritude sem etnicidade surge num momento opor-tuno. Tendo em vista que a questo racial est colocada na ordem do diano Pas (principalmente via imprensa e academia), Sansone apresentauma interpretao da identidade e cultura negras um tanto quantoimpressionista, porm arrojada, sofisticada, em sintonia com os novosdesafios espistemolgicos suscitados numa era marcada, cada vez mais,pela influncia da globalizao nas relaes raciais locais.

    Nota

    1 Doutor em Histria Social-USP, e-mail: [email protected].