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MESTRE AURÉLIO ENTRE AS PALAVRAS Rubem Braga Ora, resolvi enriquecer o meu vocabulário e adquiri o livro Enriqueça o seu vocabulário que o sábio Professor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira fez, reunindo o material usado em sua página de Seleções. Afinal de contas nós, da imprensa, vivemos de palavras; elas são nossa matéria- prima e nossa ferramenta; pode até acontecer (pensei eu) que, usando muitas palavras novas e bonitas em minhas crônicas, elas sejam mais bem pagas. Confesso que não li o livro em ordem alfabética; fui catando aqui e ali o que achava mais bonito, e tomando nota. Aprendi, por exemplo, que a calhandra grinfa ou trissa, o pato gracita, o cisne arensa, o camelo blatera, a raposa regouga, o pavão pupila, a rola turturina e a cegonha glotera. Tive algumas desilusões, confesso; sempre pensei que trintanário fosse um sujeito muito importante, talvez da corte papal, e mestre Aurélio afirma que é apenas o criado que vai ao lado do cocheiro na boléia do carro, e que abre a portinhola, faz recados, etc. enfim, o que nos tempos modernos, em Pernambuco, se chama calunga de caminhão. E sicofanta, que eu julgava um alto sacerdote, é apenas um velhaco. Cuidado, portanto, com os trintanários sicofantas! Aprendi, ainda, que Anchieta era um mistagogo e não um arúspice, que os pêlos de dentro do nariz são vibrissas, e que diuturno não é o contrário de noturno nem o mesmo que diário ou diurno, é o que dura ou vive muito. Latíbulo, gigajoga, julavento, gândara, drogomano, algeroz... tudo são palavras excelentes que alguns de meus leitores talvez não conheçam, e cujo sentido eu poderia lhes explicar, agora que li o livro; mas vejo que assim acabo roubando a freguesia de mestre Aurélio, que poderia revidar com zagalotes, ablegando-me de sua estima e bolçando-me contumélias pela minha alicantina de insipiente. Até outro dia, minhas flores. (BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. 19 ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.) PALAVREADO Luís Fernando Veríssimo Gosto da palavra “fornida”. É uma palavra que diz tudo o que quer dizer. Se você lê que uma mulher é “bem fornida”, sabe exatamente como ela é. Não gorda mas cheia, roliça, carnuda. E quente. Talvez seja a semelhança com “forno”. Talvez seja apenas o tipo de mente que eu tenho. Não posso ver a palavra “lascívia” sem pensar numa mulher, não fornida mas magra e comprida. Lascívia, imperatriz de Cântaro, filha de Pundonor. Imagino-a atraindo todos os jovens do reino para a cama real, decapitando os incapazes pelo fracasso e os capazes pela ousadia. Um dia chega a Cântaro um jovem trovador, Lipídio de Albornoz. Ele cruza a Ponte de Safena e entra na cidade montado no seu cavalo Escarcéu. Avista uma mulher vestindo uma bandalheira preta que lhe lança um olhar cheio de betume e cabriolé. Segue-a através dos becos de Cântaro até um sumário - uma espécie de jardim enclausurado -, onde ela deixa cair a bandalheira. É Lascívia. Ela sobe por um escrutínio, pequena escada estreita, e desaparece por uma porciúncula. Lipídio a segue. Vê-se num longo conluio que leva a uma prótese entreaberta. Ele entra. Lascívia está sentada num trunfo em frente ao seu pinochet, penteando-se. Lipídio, que sempre carrega consigo um fanfarrão (instrumento primitivo de sete cordas), começa a cantar uma balada. Lascívia bate palmas e chama: - Cisterna! Vanglória!

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MESTRE AURÉLIO ENTRE AS PALAVRAS

Rubem Braga

Ora, resolvi enriquecer o meu vocabulário e adquiri o livro Enriqueça o seu vocabulário que o sábio Professor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira fez, reunindo o material usado em sua página de Seleções.

Afinal de contas nós, da imprensa, vivemos de palavras; elas são nossa matéria-prima e nossa ferramenta; pode até acontecer (pensei eu) que, usando muitas palavras novas e bonitas em minhas crônicas, elas sejam mais bem pagas.

Confesso que não li o livro em ordem alfabética; fui catando aqui e ali o que achava mais bonito, e tomando nota. Aprendi, por exemplo, que a calhandra grinfa ou trissa, o pato gracita, o cisne arensa, o camelo blatera, a raposa regouga, o pavão pupila, a rola turturina e a cegonha glotera.

Tive algumas desilusões, confesso; sempre pensei que trintanário fosse um sujeito muito importante, talvez da corte papal, e mestre Aurélio afirma que é apenas o criado que vai ao lado do cocheiro na boléia do carro, e que abre a portinhola, faz recados, etc. enfim, o que nos tempos modernos, em Pernambuco, se chama calunga de caminhão. E sicofanta, que eu julgava um alto sacerdote, é apenas um velhaco. Cuidado, portanto, com os trintanários sicofantas!

Aprendi, ainda, que Anchieta era um mistagogo e não um arúspice, que os pêlos de dentro do nariz são vibrissas, e que diuturno não é o contrário de noturno nem o mesmo que diário ou diurno, é o que dura ou vive muito.

Latíbulo, gigajoga, julavento, gândara, drogomano, algeroz... tudo são palavras excelentes que alguns de meus leitores talvez não conheçam, e cujo sentido eu poderia lhes explicar, agora que li o livro; mas vejo que assim acabo roubando a freguesia de mestre Aurélio, que poderia revidar com zagalotes, ablegando-me de sua estima e bolçando-me contumélias pela minha alicantina de insipiente.

Até outro dia, minhas flores. (BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. 19 ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.)

PALAVREADO

Luís Fernando Veríssimo

Gosto da palavra “fornida”. É uma palavra que diz tudo o que quer dizer. Se você lê que uma mulher é “bem fornida”, sabe exatamente como ela é. Não gorda mas cheia, roliça, carnuda. E quente. Talvez seja a semelhança com “forno”. Talvez seja apenas o tipo de mente que eu tenho.

Não posso ver a palavra “lascívia” sem pensar numa mulher, não fornida mas magra e comprida. Lascívia, imperatriz de Cântaro, filha de Pundonor. Imagino-a atraindo todos os jovens do reino para a cama real, decapitando os incapazes pelo fracasso e os capazes pela ousadia.

Um dia chega a Cântaro um jovem trovador, Lipídio de Albornoz. Ele cruza a Ponte de Safena e entra na cidade montado no seu cavalo Escarcéu. Avista uma mulher vestindo uma bandalheira preta que lhe lança um olhar cheio de betume e cabriolé. Segue-a através dos becos de Cântaro até um sumário - uma espécie de jardim enclausurado -, onde ela deixa cair a bandalheira. É Lascívia. Ela sobe por um escrutínio, pequena escada estreita, e desaparece por uma porciúncula. Lipídio a segue. Vê-se num longo conluio que leva a uma prótese entreaberta. Ele entra. Lascívia está sentada num trunfo em frente ao seu pinochet, penteando-se. Lipídio, que sempre carrega consigo um fanfarrão (instrumento primitivo de sete cordas), começa a cantar uma balada. Lascívia bate palmas e chama:

- Cisterna! Vanglória!São suas escravas que vêm prepará-la para os ritos do amor. Lipídio desfaz-se de suas roupas - o sátrapa, o lúmpen, os

dois fátuos - até ficar só de reles. Dirige-se para a cama cantando uma antiga minarete. Lascívia diz:- Cala-te, sândalo. Quero sentir o seu vespúcio junto ao meu passe-partout.Atrás de uma cortina, Muxoxo, o algoz, prepara seu longo cadastro para cortar a cabeça do trovador.A história só não acaba mal porque o cavalo de Lipídio, Escarcéu, espia pela janela na hora em que Muxoxo vai

decapitar seu dono, no momento entregue aos sassafrás, e dá o alarme. Lipídio pula da cama, veste seu reles rapidamente e sai pela janela, onde Escarcéu o espera.

Lascívia manda levantarem a Ponte de Safena, mas tarde demais. Lipídio e Escarcéu já galopam por motins e valiums, longe da vingança de Lascívia.

*“Falácia” é um animal multiforme que nunca está onde parece estar. Um dia um viajante chamado Pseudônimo (não é

o seu verdadeiro nome) chega à casa de um criador de falácias, Otorrino. Comenta que os negócios de Otorrino devem estar indo muito bem, pois seus campos estão cheios de falácias. Mas Otorrino não parece muito contente. Lamenta-se:

- As falácias nunca estão onde parecem estar. Se elas parecem estar no meu campo é porque estão em outro lugar.E chora:- Todos os dias, de manhã, eu e minha mulher, Bazófia, saímos pelos campos a contar falácias. E cada dia há mais

falácias no meu campo. Quer dizer, cada dia eu acordo mais pobre, pois são mais falácias que eu não tenho.- Lhe faço uma proposta - disse Pseudônimo. - Compro todas as falácias do seu campo e pago um pinote por cada uma.- Um pinote por cada uma? - disse Otorrino, mal conseguindo disfarçar o seu entusiasmo. - Eu devo não ter umas cinco

mil falácias.

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- Pois pago cinco mil pinotes e levo todas as falácias que você não tem.- Feito.Otorrino e Bazófia arrebanharam as cinco mil falácias para Pseudônimo. Este abre o seu comichão e começa a tirar

pinotes invisíveis e colocá-los na palma da mão estendida de Otorrino.- Não estou entendendo - diz Otorrino. - Onde estão os pintores?- Os pintores são como as falácias - explica Pseudônimo. - Nunca estão onde parecem estar. Você está vendo algum

pinote na sua mão?- Nenhum.- É sinal de que eles estão aí. Não deixe cair.E Pseudônimo seguiu viagem com cinco mil falácias, que vendeu para um frigorífico inglês, o Filho and Sons. Otorrino

acordou no outro dia e olhou com satisfação para o seu campo vazio. Abriu o besunto, uma espécie de cofre, e olhou os pinotes que pareciam não estar ali!

Na cozinha, Bazófia botava veneno no seu pirão.

“CHATEAR” E “ENCHER”

Paulo Mendes Campos

Um amigo meu me ensina a diferença entre "chatear" e "encher". Chatear é assim: você telefona para um escritório qualquer na cidade.— Alô! Quer me chamar por favor o Valdemar?— Aqui não tem nenhum Valdemar.

Daí a alguns minutos você liga de novo:— O Valdemar, por obséquio.— Cavalheiro, aqui não trabalha nenhum Valdemar.— Mas não é do número tal?— Mas aqui nunca teve nenhum Valdemar.

Mais cinco minutos, você liga o mesmo número;— Por favor, o Valdemar já chegou?— Vê se te manca, palhaço. Já não lhe disse que o diabo desse Valdemar nunca trabalhou aqui?— Mas ele mesmo me disse que trabalhava aí.— Não chateia.

Daí a dez minutos, liga de novo.— Escute uma coisa! O Valdemar não deixou pelo menos um recado?

O outro desta vez esquece a presença da datilógrafa diz coisas impublicáveis. Até aqui é chatear. Para encher, espere passar mais dez minutos, faça nova ligação:— Alô! Quem fala? — Quem fala aqui é o Valdemar. Alguém telefonou para mim?

CRÔNICA E OVO

Luís Fernando Verissimo

A discussão sobre o que é, exatamente, crônica, é quase tão antiga quanto aquela sobre a genealogia da galinha. Se um texto é crônica, conto ou outra coisa interessa aos estudiosos de literatura, assim como se o que nasceu primeiro foi o ovo ou a galinha, interessa aos zoólogos, geneticistas, historiadores e (suponho) o galo, mas não deve preocupar nem o produtor nem o consumidor. Nem a mim nem a você.

Eu me coloco na posição da galinha. Sem piadas, por favor. Duvido que a galinha tenha uma teoria sobre o ovo, ou, na hora de botá-lo, qualquer tipo de hesitação filosófica. Se tivesse, provavelmente não botaria o ovo. É da sua natureza botar ovos, ela jamais se pergunta "Meu Deus, o que eu estou fazendo?" Da mesma forma o escritor diante do papel em branco (ou, hoje em dia, da tela limpa do computador) não pode ficar se policiando para só botar textos que se enquadrem em alguma definição técnica de crônica.

Há uma diferença entre o cronista e a galinha, além das óbvias (a galinha é menor e mais nervosa). Por uma questão funcional, o ovo tem sempre o mesmo formato, coincidentemente oval. O cronista também precisa respeitar certas convenções e limites, mas está livre para produzir seus ovos em qualquer formato. Nesta coleção, existem textos que são contos, outros que são paródias, outros que são puros exercícios de estilo ou simples anedotas e até alguns que se submetem ao conceito acadêmico de crônica. Ao contrário da galinha, podemos decidir se o ovo do dia será listado, fosforescente ou quadrado.

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Você, que é o consumidor do ovo e do texto, só tem que saboreá-lo e decidir se é bom ou ruim, não se é crônica ou não é. Os textos estão na mesa: fritos, estrelados, quentes, mexidos... Você só precisa de um bom apetite."

Machado de Assis, A Semana , 08 de abril de 1894.

Quinta-feira à tarde, pouco mais de três horas, vi uma coisa tão interessante, que determinei logo de começar por ela esta crônica. Agora, porém, no momento de pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu para um espetáculo, que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releve a importância; os gostos não são iguais.

Entre a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo passadiço, ao pé dos trilhos de bondes, estava um burro deitado. O lugar não era próprio para remanso de burros, donde concluí que não estaria deitado, mas caído. Instantes depois, vimos (eu ia com um amigo), vimos o burro levantar a cabeça e meio corpo. Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mais tão frouxamente que parecia estar próximo do fim.

Diante do animal havia algum capim espalhado e uma lata com água. Logo, não foi abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quem quer que é que o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena ação. Se o autor dela é homem que leia crônicas, e acaso ler esta, receba daqui um aperto de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água; estava já para outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos.

Meia dúzia de curiosos tinham parado ao pé do animal. Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca do burro para esperta-lo, então eu não sei conhecer meninos, porque ele não estava do lado do pescoço, mas justamente do lado da anca. Diga-se a verdade; não o fez - ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos. Esses poucos minutos, porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na Terra valerão por um século, tal foi a descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos.

O que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos curiosos, como ao capim e à água, tinha no olhar a expressão dos meditativos. Era um trabalho interior e profundo. Este remoque popular: por pensar morreu um burro mostra que o fenômeno foi mau entendido dos que a princípio o viram; o pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à matéria do pensamento, não há dúvidas que é o exame da consciência. Agora, qual foi o exame da consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso tempo que ali gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; não decifrei palavras escritas, mas idéias íntimas de criatura que não podia exprimi-las verbalmente.

E diria o burro consigo:“Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso. Não furtei, não menti, não matei,

não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei três coices, foi o mais, isso mesmo antes haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e calar. Quando ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi que me não entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com idéia de agravar ninguém. Nunca dei com homem no chão. Quando passei do tílburi ao bonde, houve algumas vezes homem morto ou pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando autoridade.”

“Passando à ordem mais elevada de ações, não acho em mim a menor lembrança de haver pensado sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma revolução declarado os direitos do burro, tais direito não existem. Nenhum golpe de estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os obrigou. Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os interesses da minha espécie. Qualquer que seja o regímen, ronca o pau. O pau é a minha instituição um pouco temperada pela teima que é, em resumo, o meu único defeito. Quando não teimava, mordia o freio dando assim um bonito exemplo de submissão e conformidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava sentir o freguês no tílburi ou o apito do bonde, para sair logo. Até aqui os males que não fiz; vejamos os bens que pratiquei.”

“A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa o tílburi e o namorado à casa da namorada - ou simplesmente empacando em lugar onde o moço que ia no bonde podia mirar a moça que estava na janela. Não poucos devedores terei conduzido para longe de um credor importuno. Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na quietação dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria fazer rir os amigos, fui sempre em auxílio deles, deixando que me dessem tapas e punhadas na cara. Enfim...”

Não percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que pesaroso. Contente da descoberta, não podia furtar-me à tristeza de ver que um burro tão bom pensador ia morrer. A consideração, porém, de que todos os burros devem ter os mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam, não seriam menos exemplares do que esse. Por que se não investigará mais profundamente o moral do burro? Da abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga também, coletivamente falando, isto é, que as suas instituições políticas são superiores às nossas, mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior?

Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de Novembro, achei o animal já morto.Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante; mas a infância, como a ciência, é curiosa

sem asco. De tarde já não havia cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos deste mundo. Sem exagerar o mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste final de século. Requiescat in pace.

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CHAPEUZINHO VERMELHOMillôr Fernandes

Era uma vez (admitindo-se aqui o tempo como uma realidade palpável, estranho, portanto, à fantasia da história) uma menina, linda e um pouco tola, que se chamava Chapeuzinho Vermelho. (Esses nomes que se usam em substituição do nome próprio chamam-se alcunha ou vulgo). Chapeuzinho Vermelho costumava passear no bosque, colhendo Sinantias, monstruosidade botânica que consiste na soldadura anômala de duas flores vizinhas pelos invólucros ou pelos pecíolos, Mucambés ou Muçambas, planta medicinal da família das Caparidáceas, e brincando aqui e ali com uma Jurueba, da família dos Psitacídeos, que vivem em regiões justafluviais, ou seja, à margem dos rios. Chapeuzinho Vermelho andava, pois, na Floresta, quando lhe aparece um lobo, animal selvagem carnívoro do gênero cão e... (Um parêntesis para os nossos pequenos leitores — o lobo era, presumivelmente, uma figura inexistente criada pelo cérebro superexcitado de Chapeuzinho Vermelho. Tendo que andar na floresta sozinha, - natural seria que, volta e meia, sentindo-se indefesa, tivesse alucinações semelhantes.).

Chapeuzinho Vermelho foi detida pelo lobo que lhe disse: (Outro parêntesis; os animais jamais falaram. Fica explicado aqui que isso é um recurso de fantasia do autor e que o Lobo encarna os sentimentos cruéis do Homem. Esse princípio animista é ascentralíssimo e está em todo o folclore universal.) Disse o Lobo: "Onde vais, linda menina?" Respondeu Chapeuzinho Vermelho: "Vou levar estes doces à minha avozinha que está doente. Atravessarei dunas, montes, cabos, istmos e outros acidentes geográficos e deverei chegar lá às treze e trinta e cinco, ou seja, a uma hora e trinta e cinco minutos da tarde".

Ouvindo isso o Lobo saiu correndo, estimulado por desejos reprimidos (Freud: "Psychopathology Of Everiday Life", The Modern Library Inc. N.Y.). Chegando na casa da avozinha ele engoliu-a de uma vez — o que, segundo o conceito materialista de Marx indica uma intenção crítica do autor, estando oculta aí a idéia do capitalismo devorando o proletariado — e ficou esperando, deitado na cama, fantasiado com a roupa da avó.

Passaram-se quinze minutos (diagrama explicando o funcionamento do relógio e seu processo evolutivo através da História). Chapeuzinho Vermelho chegou e não percebeu que o lobo não era sua avó, porque sofria de astigmatismo convergente, que é uma perturbação visual oriunda da curvatura da córnea. Nem percebeu que a voz não era a da avó, porque sofria de Otite, inflamação do ouvido, nem reconheceu nas suas palavras, palavras cheias de má-fé masculina, porque afinal, eis o que ela era mesmo: esquizofrênica, débil mental e paranóica pequenas doenças que dão no cérebro, parte-súpero-anterior do encéfalo. (A tentativa muito comum da mulher ignorar a transformação do Homem é profusamente estudada por Kinsey em "Sexual Behavior in the Human Female". W. B. Saunders Company, Publishers.) Mas, para salvação de Chapeuzinho Vermelho, apareceram os lenhadores, mataram cuidadosamente o Lobo, depois de verificar a localização da avó através da Roentgenfotografia. E Chapeuzinho Vermelho viveu tranqüila 57 anos, que é a média da vida humana segundo Maltus, Thomas Robert, economista inglês nascido em 1766, em Rookew, pequena propriedade de seu pai, que foi grande amigo de Rousseau.

A MARQUESA SAIU ÀS CINCO HORAS

Paulo Mendes Campos

Paul Valéry, com seu horror à vulgaridade literária, dizia-se incapaz de escrever um romance por não possuir a coragem de redigir uma frase como esta: A marquesa saiu às cinco horas.

Pois se dá que neste momento, em crise de frivolidade, fico pensando nas inúmeras maneiras de descrever um episódio tão banal. Tais como:

A marquesa talvez tenha saído às oito horas, talvez um pouco antes, talvez um pouco depois, talvez nem tenha saído. Eu pelo menos nem a vi (Tipo mineiro, à la José Maria de Alkimin)

Ninguém poderia jurar que a marquesa saiu às cinco horas (Tipo agnóstico) Se a marquesa saiu às cinco horas, às cinco horas, logicamente, a marquesa não devia estar em casa. (Policial carioca) Teria realmente a marquesa saído às cinco horas (Cético) A marquesa, ô lá lá, saiu às às cinco horas (Tipo Pichador) A marquequequesa sasaiu às cicinco horas (Nervoso) Madame la Marquise a sortit à cinq heures (Tipo francófilo) A maphyeza saiu cay ac cihko gopac (Criptografico primário) Se a marquesa saiu às cinco horas devia estar ligada a movimentos subversivos (DOPS) A MARQUESA SAIU ÀS CINCO HORAS ! (Manchete de vespertino) A Marquesa deu a saída às cinco horas (Repórter esportivo) Por que a marquesa saiu às cinco horas? (Marquês) A marquesa saiu at five o' clock (Colunista social) A marquesa saiu às cinco en punto de la tarde (Associativo) A marquesa saiu, sem a mudança, às cinco horas (Dono de transporte de móveis) A marquesa saiu às cinco horas, mas eu não fui (Mitômano) A marquesa por cima saiu por baixo às cinco horas por cima (Débil mental) Apa marpaquepesapa sapaiupia aspas cinpincopo hoporaspas (Pueril) A marquesa saiu às cinco horas. Uma pouca vergonha. (Ressentido)A marquesa saiu às dezessete horas (Eslarecedor) A Msa. saiu às 5 (Sintético)

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Venho pela presente declarar, a quem interessar possa, que a marquesa saiu às cinco horas (Comercial) A marquesa saiu às cinco horas na tarde azul rumando ao Sul no barco em flor do meu amor (Bossa nova) A marquesa saiu às cincos horas gozando o favor do preceito constitucional que lhe assegura o direito de ir e vir

(Bacharelesco) A marquesa tá um pavor, minha filha, saiu às cinco horas (Uma Amiga da Marquesa) A marquesa saiu às cinco horas como um raio de sol belo e terrível (Augusto Frederico Schmidt) &%$#%$@*%$§#%5&*§§£³ (Henry Miller) A marquesa saiu às cinco horas lançando pianos na tarde (Murilo Mendes) A marquesa saiu às cinco horas, mas posso garantir que aqui na casa do velho Braga ela não esteve (Rubem Braga) Quando soube que a marquesa tinha saído às cinco horas, a macróbia de Boca do Mato me telefonou para dizer: "Essa

bruaca já estava sobre a borocochô no baile da Ilha Fiscal" (Stanislaw Ponte Preta) A Marquesa! Saiu! Às cinco horas! Ba-ta-ta! (Nelson Rodrigues) Eu jamais escreveria: A marquesa saiu às cinco da tarde (Paul Valéry) A marquesinha, que gracinha, saiu às cinco horas (Vinicinho) Salve a marquesa, real turquesa do Brasil do Brasil do céu de anil que saiu às cinco horas de reco-reco e tamborim, ai de

mim (Escola de Samba)

O ESTRANHO PROCEDIMENTO DA DONA DOLORES

Luis Fernando Verissimo

Começou na mesa do almoço. A família estava comendo - pai, mãe, filho e filha - e de repente a mãe olhou para o lado, sorriu e disse:

- Para a minha família, só serve o melhor. Por isso eu sirvo arroz Rizobon. Rende mais e é mais gostoso.O pai virou-se rapidamente na cadeira para ver com quem a mulher estava falando. Não havia ninguém.- O que é isso, Dolores?- Tá doida, mãe?Mas dona Dolores parecia não ouvir. Continuava sorrindo. Dali a pouco levantou-se da mesa e dirigiu-se para a cozinha.

Pai e filhos se entreolharam.- Acho que a mamãe pirou de vez.- Brincadeira dela…A mãe voltou da cozinha carregando uma bandeja com cinco taças de gelatina.- Adivinhem o que tem de sobremesa?Ninguém respondeu. Estavam constrangidos por aquele tom jovial de dona Dolores, que nunca fora assim.- Acertaram! - exclamou dona Dolores, colocando a bandeja sobre a mesa. - Gelatina Quero Mais, uma festa em sua

boca. Agora com os novos sabores framboesa e manga.O pai e os filhos começaram a comer a gelatina, um pouco assustados. Sentada à mesa, dona Dolores olhou de novo

para o lado e disse:- Bote esta alegria na sua mesa todos os dias. Gelatina Quero Mais. Dá gosto de comer!Mais tarde o marido de dona Dolores entrou na cozinha e a encontrou segurando uma lata de óleo à altura do rosto

falando para uma parede.- A saúde da minha família em primeiro lugar. Por isso, aqui em casa só uso o puro óleo Paladar.- Dolores…Sem olhar para o marido, dona Dolores o indicou com a cabeça.- Eles vão gostar.O marido achou melhor não dizer nada. Talvez fosse caso de chamar um médico. Abriu a geladeira, atrás de uma

cerveja. Sentiu que dona Dolores se colocava atrás dele. Ela continuava falando para a parede.- Todos encontram tudo o que querem na nossa Gelatec Espacial, agora com prateleiras superdimensionadas, gavetas

em Vidro-Glass e muito, mas muito mais espaço. Nova Gelatec Espacial, a cabe-tudo.- Pare com isso, Dolores.Mas dona Dolores não ouvia. Pai e filhos fizeram uma reunião secreta, aproveitando que dona Dolores estava na frente

da casa, mostrando para uma platéia invisível as vantagens de uma nova tinta de paredes.- Ela está nervosa, é isso.- Claro. É uma fase. Passa logo.- É melhor nem chamar a atenção dela.- Isso. É nervos.Mas dona Dolores não parecia nervosa. Ao contrário andava muito calma. Não parava de sorrir para o seu público

imaginário. E não podia passar por um membro da família sem virar-se para o lado e fazer um comentário afetuoso:- Todos andam muito mais alegres desde que eu comecei a usar Limpol nos ralos.Ou:- Meu marido também passou a usar desodorante Silvester. E agora todos aqui em casa respiram aliviados.Apesar do seu ar ausente, dona Dolores não deixava de conversar com o marido e com os filhos.

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- Vocês sabiam que o laxante Vida Mansa agora tem dois ingredientes recém-desenvolvidos pela ciência que o tornam duas vezes mais eficiente?

- O quê?- Sim, os fabricantes de Vida Mansa não descansam para que você possa descansar.- Dolores…Mas dona Dolores estava outra vez virada para o lado, e sorrindo:- Como esposa e mãe, eu sei que minha obrigação é manter a regularidade da família. Vida Mansa, uma mãozinha da

ciência à Natureza. Experimente!Naquela noite o filho levou um susto. Estava escovando os dentes quando a mãe entrou de surpresa no banheiro,

pegou a sua pasta de dentes e começou a falar para o espelho.- Ele tinha horror de escovar os dentes até que eu segui o conselho do dentista, que disse a palavra mágica: Zaz. Agora

escovar os dentes é um prazer , não é, Jorginho?- Mãe, eu…- Diga você também a palavra mágica. Zaz! O único com HXO.O marido de dona Dolores acompanhava, apreensivo, da cama, o comportamento da mulher. Ela estava sentada na

frente do toucador e falando para uma câmera que só ela via, enquanto passava creme no rosto.- Marcel de Paris não é apenas um creme hidratante. Ele devolve à sua pele o fresco que o tempo levou, e que parecia

perdido para sempre. Recupere o tempo perdido com Marcel de Paris.Dona Dolores caminhou, languidamente, para a câmara, deixando cair seu robe de chambre no caminho. Enfiou-se

entre os lençóis e beijou o marido na boca. Depois, apoiando-se num cotovelo, dirigiu-se outra vez para a câmara.- Ele não sabe, mas estes lençóis são da nova linha Passional da Santex. Bons lençóis para maus pensamentos. Passional

da Santex. Agora, tudo pode acontecer…Dona Dolores abraçou o marido. Que olhou para todos os lados antes de abraçá-la também. No dia seguinte

certamente levaria a mulher a um médico. Por enquanto, pretendia aproveitar. Fazia tanto tempo. Apagou a luz, prudentemente, embora soubesse que não havia nenhuma câmara por perto. Por via das dúvidas, por via dúvidas.

INCIDENTE NA CASA DO FERREIRO

Luis Fernando Verissimo

Pela janela, vê-se uma floresta com macacos. Cada um no seu galho. Dois ou três olham o rabo do vizinho mas a maioria cuida do seu. Há também um estranho moinho, movido por águas passadas. Pelo mato, aparentemente perdido – não tem cachorro – passa Maomé a caminho da montanha, para evitar um terremoto. Dentro da casa, o filho do enforcado e o ferreiro tomam chá.

Ferreiro – Nem só de pão vive o homem.Filho do enforcado – Comigo é pão, pão, queijo, queijo.Ferreiro – Um sanduíche! Você está com a faca e o queijo na mão. Cuidado.Filho do enforcado – Por quê?Ferreiro – É uma faca de dois gumes.(Entra o cego.)Cego – Eu não quero ver! Eu não quero ver!Ferreiro – Tirem esse cego daqui!(Entra o guarda com o mentiroso.)Guarda (ofegante) – Peguei o mentiroso, mas o coxo fugiu.Cego – Eu não quero ver!(Entra o vendedor de pombas com uma na mão e duas voando.)Filho do enforcado (interessado) – Quanto cada pomba?Vendedor de pombas – Esta na mão é 50. As duas voando eu faço por 60 o par.Cego (caminhando na direção do vendedor de pombas) – Não me mostra que eu não quero ver,(O cego se choca com o vendedor de pombas, que larga a pomba que tinha na mão. Agora são três pombas voando

sobre o telhado de vidro da casa.)Ferreiro – Este cego está cada vez pior!Guarda – Eu vou atrás do coxo. Cuidem do mentiroso por mim. Amarrem com uma corda.Filho do enforcado (com raiva) – Na minha casa você não diria isso!(O guarda fica confuso mas resolve não responder. Sai pela porta e volta em seguida.)Guarda (para o ferreiro) – Tem um pobre aí fora que quer falar com você. Algo sobre uma esmola muito grande. Parece

desconfiado.Ferreiro – É a história. Quem dá aos pobres empresta a Deus, mas acho que exagerei.(Entra o pobre.)Pobre (para o ferreiro) – Olha aqui, doutor. Essa esmola que o senhor me deu. O que o senhor está querendo? Não sei

não. Dá para desconfiar...Ferreiro – Está bem. Deixa a esmola e pega uma pomba.

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Cego – Eu nem quero ver...(Entra o mercador.)Ferreiro (para o mercador) – Foi bom você chegar. Me ajuda a amarrar o mentiroso com uma... (Olha para o filho do

enforcado.) A amarrar o mentiroso.Mercador (com a mão atrás da orelha.) – Hein?Cego – Eu não quero ver!Mercador – O quê?Pobre – Consegui! Peguei uma pomba!Cego – Não me mostra.Mercador – Como?Pobre – Agora é só arranjar um espeto de ferro que eu faço um galeto.Mercador – Hein?Ferreiro (perdendo a paciência) – Me dêem uma corda.(O filho do enforcado vai embora, furioso.)Pobre (para o ferreiro) – Me arranja um espeto de ferro?Ferreiro – Nesta casa só tem espeto de pau.(Uma pedra fura o telhado de vidro, obviamente atirada pelo filho do enforcado, e pega na perna do mentiroso. O

mentiroso sai mancando pela porta enquanto as duas pombas voam pelo buraco no telhado.)Mentiroso (antes de sair) – Agora quero ver aquele guarda me pegar!(Entra o último, de tapa-olho, pela porta de trás.)Ferreiro – Como é que você entrou aqui?Último – Arrombei a porta.Ferreiro – Vou ter que arranjar uma tranca. De pau, claro.Último – Vim avisar que já é verão. Vi não uma mas duas andorinhas voando aí fora.Mercador – Hein?Ferreiro – Não era andorinha, era pomba. E das baratas.Pobre (para o último) – Ei, você aí de um olho só...Cego (prostrando-se ao chão por engano na frente do mercador) – Meu rei.Mercador – O quê?Ferreiro – Chega! Chega! Todos para fora! A porta da rua é serventia da casa!(Todos se precipitam para a porta, menos o cego, que vai de encontro à parede. Mas o último protesta.)Último – Parem! Eu serei o primeiro.(Todos saem com o último na frente. O cego vai atrás.)Cego – Meu rei! Meu rei!

DA ARTE (OU TÉCNICA) DE COMPRAR (OU ALUGAR) UM APARTAMENTO

Millôr Fernandes

Afinal, você reuniu o tutu suficiente pra comprar um teto onde poderá repousar sua cabeça da fadiga de tantos anos de labuta etcétera e tal e coisa. Mas como não tem experiência em matéria de tetos, é bem capaz de comprar nabos em sacos, gato por lebre, alhos por bugalhos e outras disparidades que tais. Para evitar isso, apontamos aqui as coisas principais a verificar:Local: A primeira coisa a verificar deve ser o local da moradia. Se você, por exemplo, sonha com um apartamento de frente para o mar e o cara o convence a comprar um, excelente, em Conceição do Mato Dentro, você deve recusar peremptoriamente. Não é que você não possa ver o mar, morando em Conceição, mas o fará com dificuldades bem maiores do que um astronauta simples.Terreno: O prédio em que você compra o apartamento tem terreno? O terreno é firme, ou movediço? Verifique também se o terreno tem, pelo menos, a área do edifício. Quando o terreno é menor que o edifício, a construção, em geral, oscila um pouco.Muros: Um apartamento tem, basicamente, quatro paredes. Cada divisão interna, também basicamente, possui o mesmo número de paredes. Conte o número de peças, multiplique por quatro e verifique se o construtor não lhe roubou nenhuma parede. É claro que uma sala só com três paredes estará sujeita a chuvas e ventanias, e um banheiro sem uma parede exterior ficará muito indiscreto, coisa que só não terá importância se sua senhora já está naquela idade em que nenhuma indiscrição é mais possível."Refrigeração: Saiba se o apartamento tem ar central (ar central não tem, necessariamente, que estar no meio do apartamento: é apenas uma maneira de dizer) ou local para instalar aparelhos de ar condicionado. Apartamento sem ar condicionado tende a ser muito quente, sobretudo no verão. E, embora no momento em que vivemos todo ar seja mais ou menos condicionado, é bom checar.Fundações: Observe se as fundações estão bem fundadas. Utilize uma carga de dinamite de 10 a 30 quilos sob os pilares centrais. Se o edifício resistir, é bastante sólido.Iluminação: O apartamento tem interruptores e locais para colocar lâmpadas? Se tem locais para colocar lâmpadas, mas não tem interruptores, você vai queimar a mão toda vez que for apagar a luz. Se não tiver locais para colocar lâmpadas mas tiver interruptores, o que é que você vai interromper com eles?

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Teto: Olhe para cima e veja se o apartamento tem teto. Se não tiver teto e, em vez do vizinho de cima, você avistar o céu, não reclame logo: pode ser que você esteja comprando uma cobertura."Instalação hidráulica: As tubulações hidráulicas são de chumbo, ferro ou plástico? Se, por acaso, forem de bambu, é bom você começar a desconfiar do resto da construção. Quem faz instalação hidráulica de bambu é um arquiteto com evidente influência japonesa, e na certa terá construído as paredes com papel crepom. Não compre o apartamento sem uma gueixa como compensação.Incêndio: Verifique se o apartamento tem saídas fáceis em caso de incêndio, se as paredes resistem bem ao fogo, se há encanamentos, água e bombas suficientes para apagar rapidamente um sinistro qualquer. O melhor processo de verificar isso tudo é começar um incêndio de verdade e sair gritando como um doido: "Au secours, sauvez moi!".Garagem: Esses edifícios modernos possuem, geralmente, uma garagem tão pequena que cada proprietário tem direito a guardar apenas metade do carro. Sendo assim, veja pelo menos se consegue, com o síndico, um arranjo para guardar um dia a parte da frente do carro, outro dia a parte de trás. Caso não seja possível, tente o acordo de guardar o carro inteiro dia sim, dia não."Crianças: Veja se o regulamento permite crianças e outros animais. Caso ele permita crianças, verifique se onças e panteras são proibidas ou são consideradas legítima defesa.Janelas: Examine bem se as janelas, sobretudo exteriores, abrem com facilidade ou se já estão empenadas. As janelas empenadas, além de dificultar a aeração do apartamento, obrigarão você a ir lá fora botar o lixo no lugar próprio.Banheiro: O banheiro deve ter pia, banheira, chuveiro, vaso e bidê. Em todas essas peças, deve haver canos, dos quais, nos momentos necessários, saia água. Sobretudo no chuveiro. Ou você se lava a seco?Armários embutidos: Conte o número e o tamanho dos armários embutidos. Conte com cuidado, porque muitas vezes você pensa que está diante de um armário embutido e está diante do quarto de empregada. As empregadas dos apartamentos modernos adoram dormir em pé.