LIMA H E ''a Micro-historia Italiana'' Cap III ''História Social e Microanálise_Edoardo Grendi''...

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CAPÍTULO LI História Social e Microanálise: Edoardo Grendi

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CAPÍTULO LI História Social e Microanálise: Edoardo Grendi

Edoardo Grendi foi certamente o principal responsável pela definição do campo inicial de investigação e pelos fundamentos do debate teórico da micro-história. Sua atuação junto à direção dos Quaderni Storici a partir de 1970, bem como a sua interlocução e influência direta e indireta sobre o trabalho da maior parte dos historiadores que protagonizaram o debate nas décadas seguintes são um claro indicador disso. Por outro lado, de modo diverso de Carlo Ginzburg ou Giovanni Levi, que tiveram seus trabalhos traduzidos e se tornaram — cada um a seu modo — os principais divulgadores da micro-história fora da Itália, as contribuições de Grendi ainda não tiveram uma exposição maior nem mereceram até agora uma atenção proporcional à im-portância que tiveram e têm no debate italiano. Disso deriva, em parte, o fato de seu lugar na compreensão do debate nem sempre ser claramente reconhecido.1

Grendi fez sua formação escolar em Gênova, cidade onde nasceu em 1932 e onde se laureou em Literatura em 1956, junto à Universidade de Gênova.2 Entre 1958 e 1960 foi Research Student junto à London School of Economics na Inglaterra. Docente de História Moderna e depois de Histó-ria Contemporânea, tornou-se professor de história das doutrinas econômi-cas na Universidade de Torino (1967-1972). Em 1970 entrou para o comitê de redação dos Quaderni Storici, que mais tarde co-dirigiu. No mesmo ano tornou-se também professor de História Moderna na Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Gênova. A partir de 1976, foi professor ordiná-rio da mesma matéria junto a Faculdade de Letras e Filosofia daquela univer-sidade, cargo que ocupava quando morreu em Nothingham, em 4 de maio de 1999. Entre os projetos que deixou em andamento estava um "Seminário Permanente de História Local" de Gênova e da Ligúria, conduzido desde o

fim da década de 1980, juntamente com Massimo Quaini, Diego Moreno, Osvaldo Raggio e Angelo Torre.

A trajetória de pesquisa de Grendi não comporta a imagem de um rotei-ro predefinido e coerente. Seu interesse onívoro por temas diversos e cambi-antes de investigação e discussão teórica conviveu, por outro lado, com a fidelidade de décadas a alguns problemas de pesquisa bem definidos. Como apontou Osvaldo Raggio, seu colaborador de vários anos, talvez a caracte-rística mais permanente do trabalho de Grendi seja a associação constante entre a prática histórica e a discussão teórica.3 Ainda que não se possa dizer realmente que o trabalho de pesquisa empírica de Grendi seja a aplicação automática das suas discussões teórico-metodológicas, não há dúvida de que a inflexão recíproca dessas duas dimensões em seu trabalho parece ser o principal motivador de uma trajetória intelectual realmente original. De saída, a forte consciência da dimensão teórica do ofício do historiador é uma das suas contribuições mais evidentes a todo o debate da micro-histó-ria, cujos fundamentos parecem ter sido, de resto, lançados pelo seu próprio trabalho.

1. DE GÊNOVA A LONDRES, E DE VOLTA

O tema da tesi di laurea de Grendi, defendida em 1956 sob a orientação do crítico e historiador da literatura italiana Walter Binni,4 versava sobre a esté-tica de Benedetto Croce. O estudo, intitulado La critica letteraria de Benedetto Croce, tentava sobretudo discutir a obra do pensador napolitano a partir das suas contradições internas: o gosto de Croce pela pesquisa e erudição, con-trastando com "suas tentativas de sistematização teórica e a sua tensão ética e política".5 O interesse por Croce (e sua "rebelião inconsciente" a ele)6

parece ter pavimentado o empenho de Grendi em enfrentar essas tensões no plano da pesquisa empírica e histórica: a continuidade do seu trabalho, dei-xando de lado não apenas o estudo da literatura, mas também se afastando do elitismo intelectual do pensamento crociano, leva-o para uma área de estudos inteiramente distinta.

Por conselho de Franco Venturi, então professor em Gênova,7 Grendi segue para a Inglaterra. Em 1958, ingressa com uma bolsa de estudos na London School of Economics (LSE), onde irá dedicar-se à história do movi-mento operário britânico.

A passagem para Londres implicava, sobretudo, um deslocamento ra-dical frente ao mundo cultural e científico italiano. A efervescência da ca-pital inglesa manifestava-se desde o plano político até o intelectual, passando por toda a explosão da cultura popular e de massa vivida também naqueles anos (em pouco tempo, os Beatles e o rock matizariam ainda mais esse clima de vanguarda e experimentação). O deslocamento cultural era acres-cido pela exposição ao estudo intenso de um conjunto de disciplinas que eram pouco ou marginalmente estudadas na Itália, sobretudo a sociologia e a antropologia.

É difícil determinar as motivações desse duplo deslocamento espacial e temático. A sensibilidade política de Grendi — evidente no seu trabalho tanto quanto nas intervenções e debates sobre a história social e a didática histórica nos anos seguintes — refletia-se certamente na escolha do novo campo de investigação. Um engajamento breve com a esquerda não comu-nista, lembrado e reivindicado décadas mais tarde, era de todo modo coe-rente com isso.8

O que se pode afirmar com certeza é que esses anos londrinos marcaram fortemente seus interesses de pesquisa e suas orientações teóricas posteriores.

No campo de estudos da história do trabalho, Grendi encontra na Ingla-terra um panorama intelectual igualmente fervilhante. A história social nos anos 1950 vivia ali um momento importante de articulação de novos pro-blemas, bem como a recuperação de uma tradição forte da história do movi-mento operário, que havia sido marcada, nas primeiras décadas do século XX, pelos trabalhos de Beatrice e Sydney Webb e pelos de John e Barbara Hammond. Eles (e os Webb, em especial) haviam sido os "fundadores da Labour Historiography britânica", tendo estabelecido padrões importantes de análise e lançado uma perspectiva socialista na leitura da história dos movimentos sociais e das organizações operárias. Uma tradição que não ha-via visto continuidade direta após os anos 1920.9 Os anos 1950 marcavam, por outro lado, exatamente uma retomada desses estudos, definida de modo

claro pela abertura para as ciências sociais, e que teve entre seus protagonis-tas vários historiadores que influenciaram de algum modo as discussões da micro-história, como Eric Hobsbawm e Edward Thompson. A história "a partir de baixo" (from below) era a marca principal desses estudos, que pro-curavam aliar os instrumentos e problemas herdados da tradição marxista àqueles oriundos das ciências sociais. A tentativa era a de confrontar as in-terpretações históricas que partiam do ponto, de vista das classes dominantes com uma história que se repropunha a partir das experiências das classes subalternas, das pessoas comuns e anônimas; no estudo do movimento ope-rário, a experiência dos trabalhadores e não apenas a de suas instituições e organizações.10

Grendi não fica, é certo, indiferente a esse panorama de estudos rico e facetado. A própria escolha do seu tema de investigação — o trabalhismo inglês — revelava a curiosidade não dogmática pela multiplicidade de cami-nhos tomados pelos movimentos políticos dos trabalhadores.11 Por outro lado, fica claro desde o início que suas escolhas teóricas, implicadas no estu-do da história social dos trabalhadores, permanecem sempre a uma distância crítica do marxismo.12

Os resultados finais da pesquisa de Grendi realizada junto à London School of Economics (entre 1958 e 1960) foram publicados na Itália em 1964, com o título Lavvento del Laburismo (O advento do trabalhismo).13

O tema do trabalhismo era abordado a partir do problema, bastante amplo, da afirmação e desenvolvimento da democracia no quadro político inglês. A análise partia do movimento operário e em especial do tradeunionism e das transformações sofridas pelos sindicatos no seu "afirmar-se como 'elemento do sistema de decisões da sociedade global'":

(...) não a democracia dos sonhos iluministas e populares, mas aquele proces-so contraditório que estimula e empenha, (...) a democracia como processo histórico. (...) Este processo, portanto, analisado do ponto de vista do desen-volvimento das formas políticas do movimento operário: o que representa, contudo, uma seleção de elementos do corpo complexo de transformações sociais mais gerais, em um período que é crucial para afirmação daquela per-sonalidade (a personalidade política) do movimento.14

O trabalhismo era o "protagonista" do estudo de Grendi, e era considerado — "com suas conotações de obreirismo e radicalismo burguês, assim como de conservadorismo social" que marcavam sua complexidade e ambigüidade — também o protagonista político da democracia inglesa. O trabalhismo institucionalizado — e o Labour Party — era pensado por meio de um processo no qual o "complexo corpo institucional" nascia de um "movimento social cuja institucionalidade era muito mais disforme e parcial".15 Grendi reafirmava uma perspectiva francamente "a partir de baixo": a história do trabalhismo é a história de um movimento de trabalhadores que conquista uma dimensão nacional. Uma história investigada em sua pluralidade de dimensões: os intelectuais e lideranças, bem como as bases do movimento; suas expressões na "história do território, das cidades, das fábricas e de todos aqueles lugares no interior dos quais aconteciam intercâmbios culturais entre os diversos estratos da sociedade".16

Eavvento dei Laburismo não era, entretanto, um trabalho de história social em completa sintonia com os termos os quais o próprio Grendi enten-dia, quando da publicação do livro, serem os mais próprios para um estudo do gênero. Trabalho assumidamente "macro-histórico" (a expressão é sua, usada na introdução), de sistematização e interpretação do significado de uma faceta fundamental da história dos trabalhadores britânicos. Ainda as-sim, um trabalho que tentava não sacrificar a perspectiva da história local, definida por ele na introdução ao livro como a "história rainha (...) — no sentido em que ela representa o natural e imediato campo de experimenta-ção de uma história social que antiidealisticamente não renuncia a uma pró-pria utópica tensão científica".17 Uma empreitada, no entanto, levada adiante apenas parcialmente na terceira parte do livro, que explorava os aspectos da ascensão regional do trabalhismo.18

A LSEf onde Grendi tinha realizado sua pesquisa, havia sido fundada pelos Webb e era um centro importante de documentação e estudos (sobre-tudo na área de sociologia e ciência política) sobre o movimento operário inglês naqueles anos. A pesquisa de Grendi na instituição — orientada por Ralph Miliband19 — voltava-se para a discussão do "advento" do trabalhismo inglês entre 1880 e 1920 e a criação do Labour Party. A influência dos estu-dos inspirados por uma perspectiva "a partir de baixo" era assumida por

Grendi, que agradecia a Eric Hobsbawm sugestões ao livro. Sua perspectiva global guardava, entretanto, distinções importantes.

Em primeiro lugar, a marca da discussão sociológica. Antes de mais nada, uma perspectiva de estudos que parte da estratificação social das classes tra-balhadoras para reconhecer a lógica de suas organizações e-o sentido de suas reivindicações. Além disso, a interrogação sobre as formas associativas pas-sava ao largo do problema da "classe" e o tema da "consciência de classe" — que era, de resto, questão central no debate da história social britânica na-queles anos (basta lembrar The Making of the English Working Class, de Thompson) — estava inteiramente ausente.

Podemos explorar melhor as referências intelectuais que Grendi articu-lava nesse seu trabalho inicial em algumas resenhas publicadas nos primeiros anos da década de 1960, sobretudo os parâmetros envolvidos em suas leitu-ras da produção histórica sobre o movimento operário e as diversas tradi-ções socialistas na Inglaterra entre os séculos XIX e XX.20 Acrescentam-se a isso outros pontos de referência: por um lado, a história urbana e o interesse pelos estudos locais (que eram, de resto, uma marca do debate intelectual sobre a história do movimento operário na Itália que parece ter influenciado Grendi), por outro, os estudos sociológicos, como aqueles sobre a estrati-ficação social e as discussões teóricas sobre a social cbange.

Em um artigo-resenha publicado, em 1961, em uma revista da Fondazione Feltrinelli, de Milão (um centro de estudo e documentação sobre o movi-mento operário), Grendi colocava estes parâmetros em ação na análise de vários estudos sobre o "cartismo" que haviam sido publicados naqueles anos, em especial os trabalhos de Asa Briggs, Eric Hobsbawm, W. W. Rostow e Neil J. Smelser.21

Algumas questões apareciam de imediato. Em primeiro lugar a necessi-dade de abordar a questão a partir da história social e não a partir de um ponto de vista um tanto abstrato de uma "história geral". A ênfase de Grendi estava nas qualidades de uma discussão preocupada em pensar as relações que se estabeleciam entre as realidades econômicas e os movimentos sociais, bem como o lugar dos estudos locais como abordagem privilegiada.

À história social era dado um papel central. Seu "significado profundo" estava, para Grendi, em ela ser capaz, mais do que qualquer outra aborda-

gem do mundo social, de permitir o "embasamento e o tratamento dos te-mas mais diversos" de investigação a partir de uma perspectiva sintética e integradora, ao mesmo tempo que atenta para a densidade e singularidade dos seus objetos.22 Assim, aquela oposição entre história(s) geral (is) e histó-ria social do movimento cartista fazia sentido na medida em que Grendi lia essa última a partir das perspectivas abertas pelos estudos locais que permi-tiam dar "tempo e espaço" definidos à investigação. Seu julgamento sobre os trabalhos de Asa Briggs a respeito do cartismo era exemplar: a atenção do historiador inglês pelas dimensões locais na compreensão da origem do movimento era enfatizada por Grendi como reveladora da contribuição fun-damental que — no seu julgamento — os estudos locais traziam para a histó-ria do movimento operário.23 Esses estudos ligavam-se à história urbana e, a partir daí, à possibilidade de explorar com mais atenção a complexidade das classes, ligadas a estruturas locais de poder.

Por quanto que se possa discutir e dissentir sobre as origens econômicas ou históricas da cidade moderna, a sua relevância para o estudo da história soci-al do século XIX é incontestável: na verdade um discurso sobre a estrutura social adquire significado apenas se referido a estas precisas unidades locais. (...) Levando em conta a complexidade das classes, o discurso sobre a varie-dade dos alinhamentos de classe nas diversas cidades e nos diversos períodos constitui um primeiro esclarecimento de uma estrutura local de poder: deli-neia-se assim um nexo lógico entre estrutura econômica, estrutura social, relações entre grupos e classes — contexto que consente uma interpretação de elementos culturais em termos de tradicionalismo e de reorientação.24

O tema da estruturação social era central na análise de Grendi. A atenção sobre as relações entre grupo e classes, variáveis com relação ao espaço, remetia à necessidade de reconstituir a estratificação social não apenas da classe operária, mas da burguesia, tanto por meio de procedimentos quan-titativos quanto indagações qualitativas. O problema da estrutura social das classes trabalhadoras ligava-se deste modo à discussão sobre a "estratificação social", um tópico comum à história urbana e à sociologia, atentas às dinâmicas associativas e à morfologia social.25 Junto à história urbana, também a

demografia entrava no campo de discussão de Grendi em suas resenhas (ambas se dedicavam à possibilidade de precisar de modo mais claro a composição social em um recorte geográfico definido); não apenas a Inglaterra (Asa Briggs), mas também a França (C.-E. Labrousse, Adeline Daumard) eram referências importantes.26

Na primeira metade dos anos 1960, a perspectiva geral dé uma história social da experiência operária desenhava o horizonte sintético dessas discus-sões; uma direção que aparecia de modo claro na conclusão que Grendi fazia da sua apreciação crítica da historiografia sobre o cartismo:

E assim, se a Revolução Francesa é, na cultura européia moderna, a clássica revolução, o movimento operário inglês é um pouco o clássico movimento operário e, certamente, a revolução industrial inglesa a clássica revolução industrial. Tem-se a sensação, na verdade, de que o progresso da história social do movimento operário (e a história do século XIX em geral) é ligado de algum modo ao progresso da historiografia das classes trabalhadoras in-glesas. O terreno está maduro e já preparado para uma radical perspectiva lefebvriana a partir de baixo: para isso é preciso historiadores dotados de um verdadeiro espírito de missão.27

O tema da história operária inglesa não se esgota no trabalho sobre o Laburismo britânico, tampouco nas discussões sobre a história urbana inglesa que iriam constituir ainda assunto de publicações posteriores. O retorno a Gênova depois da temporada na Inglaterra produziu, de todo modo, outro deslocamento de interesses. Os temas da história urbana, as formas da vida associativa e a experiência dos trabalhadores tornaram-se o centro de suas novas investigações sobre a cidade lígure. O arsenal de perguntas e preo-cupações forjado por Grendi no clima intelectual londrino e na London School é dirigido em seguida para os estudos sobre a cidade de Gênova.

O elemento mais significativo da retomada dos estudos históricos em Gênova é o impressionante esforço de pesquisa de arquivo. Aqui se inicia de fato o longo e intenso relacionamento de Grendi com os arquivos genoveses que será interrompido apenas com sua morte. Essa intensidade se mostra imediatamente presente nos artigos publicados em 1964 e 1965 sobre a his-

1 G o

tória social e urbana da Gênova oitocentesca: as sociedades mutualistas, o episódio revolucionário de 1848 e, sobretudo, em um longo artigo sobre um ofício urbano na primeira metade do século XIX, os carregadores do porto de Gênova.28 O elemento articulador permanecia a interrogação sobre o mundo do trabalho, a vida associativa das classes subalternas e seu pro-tagonismo político dentro do contexto da evolução industrial da cidade. São questões — sobretudo aquelas referentes às formas associativas urbanas — que serão transpostas em seguida para a história da cidade pré-industrial, marcando a partir daí o grande quadro de investigação que Grendi não aban-donará nas décadas seguintes.

Em 1965 e 1966, Grendi publica dois artigos que marcaram tanto o avanço em direção ao estudo da história moderna de Gênova quanto a problematização teórica que iria caracterizá-lo: Morfologia e dinamica delia vita associativa urbana. Le confraternite a Gênova fra i secoli XW e XVIII e Confraternite e mestieri nella Gênova settecentesca.29

Os dois textos tinham em comum a discussão sobre a vida associativa urbana em Gênova enfatizando a centralidade das irmandades como forma de associação fundamental na cidade em boa parte do período moderno (elas são extintas por lei em 1811). Em Confraternite e mestieri, Grendi tentava reconstruir uma tipologia das irmandades que partia da constatação inicial da sua importância como expressão associativa dos ofícios e das artes no ambiente urbano. A insistência no caráter "popular" das irmandades ("des-sas associações, apenas os pobres absolutamente indigentes estavam excluí-dos"30) apontava ao mesmo tempo para sua importância na dinâmica social e política da cidade, como para o interesse bastante claro de Grendi por interrogar essâ dinâmica sem impor nenhuma definição prévia de importân-cia. Nenhuma categoria era privilegiada na análise, nenhuma forma associativa (seja irmandade "laica", seja "religiosa") era considerada mais importante para a interrogação sobre o significado dessas associações na cidade.31

Grendi mostrava uma articulação direta, nas irmandades não ligadas à aristocracia, entre os ofícios e as Igrejas como um aspecto constante dessas formas associativas urbanas. A ligação implicava, para além dos aspectos de devoção e vida espiritual, seu caráter mutualista e, sobretudo, uma rela-ção entre os ofícios (e as irmandades) e os territórios da cidade. A topogra-

fia das associações parecia lançar luz sobre as tensões e diferenças sociais, mas tanto essas tensões não eram exploradas quanto a própria idéia de lançar um olhar aproximado sobre aquelas associações não era de fato desenvolvida. Era marcante, por outro lado, a tentativa de construir uma tipologia das irmandades que recuperasse os parâmetros qup estavam en-volvidos na sua articulação.32

É importante notar aqui que seus estudos sobre as irmandades de Gêno-va foram desenvolvidos em uma chave sociológica que era bastante marcada pela preocupação "tipológica" e "morfológica". Essa "chave" era definida mais pelas preocupações que orientavam a investigação do que pelas catego-rias de análise utilizadas: nenhum dos conceitos sociológicos contemporâ-neos para lidar com o sentido da associação, como "classe" ou "luta de classes", comparecia. Por outro lado, a história social propriamente dita — história das irmandades singulares, do significado da sua associação etc. — era explorada apenas parcialmente. A falta de fontes "qualitativas" sobre o funcionamento dessas associações parece ter sido um fator determinante para fazer desses trabalhos estudos mais amplos sobre o fenômeno associativo que elas representavam.

O tema dos significados das formas associativas e sua articulação com a política tornou-se o centro das preocupações de Grendi em seus estudos sobre Gênova por cerca de uma década, em combinação com outras ques-tões que envolviam a história política e econômica da República na era mo-derna. Temas consagrados da história local da Ligúria foram enfrentados e sistematicamente repropostos em trabalhos que tratavam desde a dinâmica política da República de Gênova e a importância das associações aristocráti-cas e populares (os alberghi) até a figura de Andrea Doria, passando pela caridade e as práticas assistenciais, além das políticas de abastecimento de grãos e o comércio no porto de Gênova.

Eram artigos de caráter fortemente inovador, sobretudo em confronto com os paradigmas correntes da historiografia da Ligúria (essencialmente regional). Mas, como apontava o próprio Grendi quando apresentou uma coletânea com esses artigos em 1987,33 eram também estudos que tinham um escopo "fundamentalmente histórico-político": isto é, não coincidente com aquele paradigma da história social que, a partir do final dos anos 1960,

distanciava-se cada vez mais dos estudos seriais, tomando um caminho cada vez mais "radicalizado em sentido etnográfico".34 Esse caminho, percorrido em seguida pelo próprio Grendi, não se esboçava senão de passagem naque-las investigações sobre a Gênova moderna.

Por outro lado, no final da década de 1960 e início da seguinte, era exatamente sobre a história social e as implicações teóricas e metodológicas da incorporação das ciências sociais no horizonte dos historiadores que se articulou uma parte importante das preocupações históricas de Grendi. Seria equivocado enxergar aí, entretanto, provas de que sua pesquisa empírica se desenvolvia sem contato com a reflexão teórica. É na inflexão recíproca entre as duas dimensões do trabalho de Edoardo Grendi que está provavelmente a chave para o desenvolvimento posterior da sua proposta microanalítica.

Vale a pena olhar com atenção, portanto, os meandros dessa discussão teórica com a história social.

2. DISCUTINDO A HISTÓRIA SOCIAL

Há dois aspectos centrais que marcam a importância da intervenção de Grendi no debate historiográfico italiano a partir do início dos anos 1970. Em pri-meiro lugar, a atenção constante à discussão dos aspectos teóricos sobre a história e as ciências sociais; em segundo lugar, a tentativa de estabelecer, no campo da história, vínculos sólidos entre o debate intelectual italiano e o internacional. Essa intervenção tem seus espaços e características: a atenção ao debate no campo da história social, sobretudo na Inglaterra e na França, está presente em várias resenhas publicadas — principalmente na Rivista Storica Italiana (dirigida por F. Venturi) — na primeira metade dessa déca-da; a reflexão sobre a teoria econômica e a antropologia econômica tem um espaço igualmente importante. Coerente com tudo isso a integração ao gru-po que dava a partida — em 1970 — à nova fase dos Quaderni Storici. A consonância de preocupações é evidente. A revista havia nascido com a in-tenção explícita de colocar a discussão histórica na Itália em sintonia com o debate internacional mais importante; sua preocupação com a "história lo-

cal" era compartilhada por Grendi, que também estava em sintonia com o interesse "modernista" da revista — uma "longa Idade Moderna" que alcan-çava o século XIX. O perfil "não-alinhado" — seja com os historiadores marxistas, seja com a história ético-política — refletia perfeitamente a posi-ção de Grendi em relação às grandes correntes da historiografia italiana no período.

Para encontrar o sentido da trajetória da "microanálise" entre as idéias de Edoardo Grendi, é preciso tentar encontrar os fios que ligam em seu trabalho o debate teórico e historiográfico à pesquisa e à discussão aproxi-mada da história social e das ciências sociais (sobretudo a antropologia) nes-ses anos. Um desses fios é, certamente, o longo diálogo que Grendi estabelece com a obra de Edward Thompson.

O lugar de Thompson nas leituras de Grendi nos anos 1970 é central. O historiador inglês é lido muito criticamente, mas com uma atenção conti-nuada que revela também uma grande sintonia de interesses. A crítica de Thompson a um marxismo ao qual permanece, de resto, fiel no plano heurístico, sua incorporação das sugestões da antropologia, sua forma de articular a história social com a interrogação sobre a cultura, mesmo seu gosto (e sua empatia política) pelos "românticos" (de William Blake a Wiiliam Morris): são todos elementos que revelam para Grendi algo das suas pró-prias inquietações intelectuais. Thompson será — tanto como referência quan-to como contraponto — uma interlocução constante de Grendi.

Quando o clássico livro de Thompson, The Making of the English Working Class (A formação da classe operária inglesa, 1963), foi traduzido para o italiano, em 1969, Grendi fez uma resenha na Rivista Storica Italiana. The Making não era, entretanto, resenhado sozinho; fazia-lhe companhia o livro do também britânico John F.C. Harrison, Quest for a New Moral World (A busca por um novo mundo moral, 1969), um trabalho de fôlego sobre Robert Owen e a tradição owenista na Grã-Bretanha e na América no século XIX.

O estudo de Harrison tinha certamente intenções, e proporções, mais modestas do que o amplo estudo de Thompson sobre a formação da classe operária inglesa. Consistia, entretanto, em um inteligente experimento de investigação e escrita no campo da história social e intelectual comparada, tratando o owenismo — nos dois lados do Atlântico — de modo muito

diferente do que costumava ser feito pelos historiadores do socialismo e do movimento operário: a chave de leitura do "owenismo" não era procurada nas tradições socialistas que o haviam "superado" durante o século XIX, mas no significado que tinha para os seus contemporâneos. Nas palavras de Harrison: "Em vez de se perguntar em que o owenismo contribuiu para a formação [the making] da classe operária inglesa, ou como ele se relacionava com as condições da fronteira americana e a expansão para o Oeste", ele preferia "examinar os pontos de contato ou similaridade na experiência so-cial britânica e americana que tornaram o owenismo aceitável em certas situações".35

E era exatamente nessa diferença de intenções e alcance que se encon-trava o ponto principal da crítica de Grendi, que preferia largamente o livro de Harrison — atento às especificidades locais do seu objeto e às modula-ções que possuía em uma área relativamente delimitada — do que o de Thompson que era, no seu julgamento, amplo e impreciso demais.

Em primeiro lugar, a recusa de Thompson em olhar a classe por meio de seus números era fortemente criticada por Grendi: isso era impensável para alguém que via na demografia "o fundamento, a pedra angular da história social".36 No julgamento de Grendi, a incapacidade de Thompson em abordar concretamente a composição social da classe e o peso dado por ele ao momento político acabavam por comprometer a própria inten-ção geral do livro de estabelecer o caráter constitutivo da classe a partir do quadro das relações entre os homens. A "cultura" da classe seria abordada com a mesma imprecisão: ela não era "definida antropologicamente como qualidade das relações humanas ativas", mas sim "em relação à leitura e às ideologias". Na crítica de Grendi, a '"economia moral' da classe operária" tal como era pensada por Thompson não consistia em "um cimento de solidariedades e reciprocidades", mas era considerada "uma 'economia política socialista'".37

Grendi via em The Making a tendência à generalização fácil —em que os "fenômenos sociais locais" eram tratados como se fossem "símbolos de um processo nacional" — agravada pela falta de uma "convincente técnica historiográfica". O tratamento das particularidades locais parecia particu-larmente grave no julgamento de Grendi. Thompson reconhecia de fato a

"diversidade das sociedades e 'culturas' locais", mas era incapaz de integrá-las de modo convincente ao quadro geral.

Entram essas situações diversas na "classe trabalhadora" comum? Thompson, recusando-se a considerar a classe objetivamente, a "verificá-la" segundo definições e tentativas de quantificação, não oferece nenhuma resposta, e o seu salto das "culturas" necessariamente locais à "classe operária inglesa" resulta realmente grosseiro demais. (...) A identificação da classe com a consciência de classe e com a cultura política é já problemática; a passagem inversa das "culturas" políticas à consciência de classe, à classe, parece fran-camente artificial.38

O livro de Thompson tinha elementos inovadores, mas não era capaz de "empenhar a mente" ou "seduzir a inteligência"; o de Harrison, por outro lado, era "legível e estimulante", com uma "abordagem moderna" e "otima-mente conduzido".

Biografia da seita e biografia da classe: voltemos aos termos do paralelo ini-cial entre os trabalhos de Thompson e Harrison. Dois exemplos de história social, um ambicioso, mas sem rigor teórico, o outro mais circunscrito, mas quanto mais sólido e inteligente! Onde um filosofa, o outro explica e verifi-ca; onde um polemiza e toma partido, o outro desmonta e constrói. (...). Pessoalmente não acredito que o livro de Thompson tenha uma grande virtu-de inspiradora, se não por outro motivo, pelo fato de que não é realmente novo. A história social mais autêntica é sem dúvida aquela do livro de Harrison (...). O sucesso e as discussões suscitadas pelo livro de Thompson demons-tram apenas o quanto a historiografia moderna deixou de lado os estudos dos fenômenos de transformação social que, repito, Thompson se limita a reivin-dicar, não a desenvolver ilustrativamente. Creio que na história da cultura historiográfica seja este o significado do livro de E. E Thompson.39

Um juízo talvez excessivamente duro com o livro de Thompson. É um fato, entretanto, que a despeito da sua tradução relativamente rápida, The Making não teve uma grande repercussão na Itália; mas as razões do dissenso de Grendi não eram apenas reflexo de um humor geral dos estudiosos italianos

sobre o movimento operário (grupo do qual Grendi dificilmente poderia ser considerado um representante típico). Elas devem ser encontradas em outro lugar.

O julgamento de Grendi sobre essa obra de Thompson se manteve prati-camente inalterado ao longo dos anos: é a experiência posterior do historia-dor inglês, seus trabalhos sobre o século XVIII, que irá interessá-lo a ponto de torná-lo responsável pela organização de uma coletânea dos ensaios do historiador britânico sobre a história inglesa pré-industrial, publicada, com uma introdução, como um dos volumes inaugurais da coleção Microstorie, em 1981.40 Nessa coletânea — que incluía, entre outros, A economia moral da multidão inglesa no século XVIII — Grendi reunia aqueles trabalhos nos quais Thompson articulava de modo inovador suas discussões sobre a histó-ria social e os estudos antropológicos. Sua interrogação sobre a cultura pare-cia ter encontrado aí, no juízo de Grendi, uma formulação mais rica e convincente do que no livro sobre a formação da classe operária. Nesse interesse comum pela antropologia e a interrogação sobre a cultura é que se pode encontrar de fato o sentido dessa aproximação.

São temas que Grendi vinha percorrendo, de todo modo, também em suas investigações sobre a história social dos trabalhadores. Nos primeiros anos da década de 1970 — durante e imediatamente após o período em que lecionou em Turim — Grendi voltou a discutir sobre as perspectivas para a história do movimento operário e do socialismo no século XIX em diferen-tes oportunidades: resenhas, um artigo nos Quaderni Storici, duas coletâne-as de documentos e textos críticos sobre a tradição socialista e o movimento operário inglês. Nestes textos se explicitavam mais claramente os sentidos das suas aproximações e dissensos com relação à historiografia sobre o mo-vimento operário (incluída aí a radical experiência inglesa).

Quando organizou uma coletânea sobre a tradição socialista na Inglater-ra, em 1970, Grendi (em parceria com Gino Bianco)41 fez uma longa intro-dução ao tema, expondo os termos que dirigiam sua montagem. Tratava-se de textos políticos, daquela longa tradição "pré-marxista" que marcara o socialismo inglês: em especial o owenismo e a tradição neo-ricardiana. Defi-nir "as características e o 'significado'" deste socialismo era o elemento cen-tral da análise.

O socialismo como "corpo de idéias" e como "fato social": não se trata-va de uma ciência em desenvolvimento, mas antes de tudo de uma resposta da sociedade do passado aos seus problemas concretos.42 Uma resposta da sociedade e não de uma classe, bem entendido. Desse modo, na interpreta-ção dos organizadores da coletânea, era preciso criticar aquela leitura do socialismo que fazia dele uma ideologia por meio do movimento operário.

A história e, não menos, a intuição da complexidade da realidade social nos ensinam certo ceticismo. As idéias certamente não governam o mundo, e a tentativa de assimilar a história do movimento operário à genealogia ideal do pensamento socialista produziu uma sorte de historiografia "ético-política" do movimento operário, que gerou uma estéril padronização dos conceitos inerentes à transformação social. E verdade que as idéias constituem uma resposta a condições e experiências históricas sociais, são elas mesmas um fato social: a negação total desse seu aspecto de "testemunho" não represen-ta tanto um saudável ceticismo, quanto uma evasão do problema da interpre-tação. Por outro lado, o socialismo não existe como integral "cultura proletária": a definição das idéias pode adquirir um significado de classe, mas a gênese das idéias está sempre em estreita relação com o movimento diverso da cultura do tempo.*3

O problema central era compreender o socialismo a partir do quadro da transformação da sociedade britânica do século XIX. O socialismo e as lutas políticas das classes trabalhadoras eram lidos antes de tudo como "respostas de defesa do corpo social, em nome seja da experiência, seja da tradicional 'economia moral'".44 Mais uma vez, não a classe, mas o "corpo social". A interpretação da ideologia socialista e do seu significado político proposta por Grendi e Bianco distanciava-se significativamente daquela marxista, que via no socialismo um desenvolvimento interno da ideologia de uma classe social — o proletariado — que era considerada o principal protagonista do processo histórico contemporâneo.

Essa crítica à interpretação marxista era um elemento central da argu-mentação de Grendi, que a retoma em uma intervenção sobre a história do movimento operário em 1972, nas páginas dos Quaderni Storici. Ali, Grendi

enfatizava os elementos que, no seu julgamento, deveriam fazer parte de uma perspectiva renovada de estudos.

Em primeiro lugar, era preciso retirar o estudo da história operária do campo da especialização e devolvê-la para o contexto da sociedade global, torná-la um momento de uma história social entendida de modo amplo. Na análise de Grendi, o movimento operário deveria ser visto desse modo a partir de uma angulação "culturalmente mais substancial", aquela do "signi-ficado associativo do movimento político". A compreensão da mudança so-cial passaria necessariamente pelo entendimento dos modos por meio dos quais um grupo social se articulava, adquirindo um "significado nacional" de modo a ser pensado como uma "classe". Nesse contexto, fazia sentido propor que se prestasse menos, atenção à estruturação dos organismos polí-ticos e mais às formas e modos de união que se estabeleciam entre esses e os grupos sociais. À "história associativa que sustenta a ação social" era atribuí-do um papel primordial na trajetória do movimento operário. Mas essa his-tória se estendia necessariamente — para além das instituições políticas e mesmo do próprio mundo do trabalho — ao estudo do tempo livre, às di-mensões cotidianas "do analfabetismo, do alcoolismo, da criminalidade, da mortalidade diferencial". Enfim, a dinâmica, a diversidade e a pluralidade das culturas dos trabalhadores.45

Tudo isso era acompanhado de uma crítica enfática às categorias usadas para se pensar a experiência dos trabalhadores. "Classe operária", "consci-ência de classe" e mesmo "movimento operário" — do^ mesmo modo, a lógica de concatenação que ia da formação da classe, à maturação de uma consciência de classe e ao movimento político da classe para o poder — eram categoricamente rechaçados como termos "decididamente inadequa-dos como parâmetros analíticos para a história das classes trabalhadoras da sociedade industrial".46 Claro que a crítica se dirigia a uma historiografia militante, considerada por ele "idealista", na medida em que pretendia ex-plicar o movimento dos trabalhadores e os conflitos da sociedade nacional a partir de coordenadas simplificadas, transformadas em "parâmetros de jul-gamento" e "normas de ação". Uma historiografia que sacrificava "a análise e o trabalho severo por uma preocupação pelos 'significados' macro-históri-cos".47 Em contraste, Grendi afirmava a necessidade de escapar à "lingua-

gem das fórmulas" e ganhar a análise social, a discussão dos instrumentos analíticos a partir da sua relevância empírica.

Comparando o estado das pesquisas históricas sobre a época contempo-rânea com os resultados da pesquisa sobre a Europa moderna, Grendi se perguntava como era possível ter presente a complexidade da estratificação social do ancien régime e ao mesmo tempo se contentar Com o "quadro simplificado" em que se lia a realidade social a partir do século XIX.48 A comparação não era casual: por um lado, enfatizava os resultados importan-tes que a historiografia "modernista" vinha atingindo com seus diálogos cada vez mais densos com as outras ciências sociais; por outro, contrastava preci-samente a escassez desses mesmos diálogos nos estudos contemporâneos. Desenhava assim, em contrapartida, uma proposta de estudos: a compreen-são do movimento operário, nascido no bojo da sociedade industrial, pode-ria ganhar muito ao incorporar a perspectiva da sociedade pré-industrial.

Os termos da discussão de Grendi sobre a história do movimento operá-rio e dos trabalhadores avançam, nesses textos, em uma direção aberta ante-riormente pela sua própria pesquisa sobre o trabalhismo e o socialismo ingleses. Há, entretanto, um novo conjunto de questões articuladas àquelas anteriormente formuladas. Para além da (ou em acréscimo à) preocupação "morfológica" e da interrogação sobre a diversidade das formas associativas, o que se incorpora cada vez mais é uma consciência clara da importância da cultura como questão central para a compreensão do significado da associa-ção política. As inspirações são várias e merecem ser examinadas.

O que logo se evidencia, a partir da leitura das suas discussões sobre a história social no início dos anos 1970, é a preocupação com a dimensão antropológica da experiência dos trabalhadores. Isso transparece, por exem-plo, quando Grendi discute, em 1972, os trabalhos de Maurice Agulhon publicados naqueles anos sobre as classes sociais e as transformações no campo da cultura política na Provença do século XIX.45 Ao lado de uma apreciação positiva do empenho de Agulhon em ir além do quadro "conjuntural" da história social francesa e em colocar-se no "âmbito metodológico e epis-temológico das ciências sociais", Grendi criticava o tratamento dado pelo historiador francês ao "folclore" em relação à vida associativa. Ele via uma tendência — comum, de resto, à história social — a subestimar a associação

popular em torno dos temas "folclóricos" (como os charivari), em detrimen-to das formas de associação política laica (como a maçonaria). Essa tendên-cia era lamentada e contraposta à abordagem sugestiva que havia aparecido no ano anterior, em um artigo da historiadora americana Natalie Zemon Davis: The reasons of misrule (Razões do desgoverno). Davis, que também seria objeto de uma resenha de Grendi alguns anos depois,50 em uma abor-dagem fortemente estimulada pela antropologia, investigava ali o sentido político da "vida festiva" popular na França pré-industrial. Articulava de fato — por exemplo, com o estudo das associações juvenis — a interrogação sobre o "folclore" e a cultura com a indagação sobre os grupos sociais. Uma abordagem semelhante, aliás, àquela que começava a ser elaborada nos tra-balhos de Edward Thompson sobre o século XVIII.

Essas são questões de fundo presentes de algum modo tanto nas discus-sões de Grendi sobre a história do movimento operário no século XIX quanto em seus estudos sobre a cidade pré-industrial. A pergunta sobre o significado da associação — e da associação política em particular — exigia uma inves-tigação no plano da cultura, definida em termos antropológicos. Uma inter-rogação que, na falta de um quadro explicativo convincente, só poderia ser resolvida de fato no plano da investigação empírica.

Uma tentativa nessa direção era esboçada por Grendi em 1973, na apre-sentação de uma coletânea organizada sobre a história e a historiografia do movimento operário na Inglaterra.51

O tema das "origens" daquele movimento orientava a organização da obra, composta de documentos e textos críticos sobre as lutas operárias en-tre 1815 e 1848.52 O recorte temporal marcava a necessidade de considerar aqueles elementos que precederam de algum modo os grandes movimentos e as instituições da classe que definiram o período seguinte: não apenas as rupturas e inovações, portanto, mas também as continuidades. Uma pers-pectiva declarada de saída na introdução ao volume:

O objetivo da análise histórica é tornar concreta a transformação como "pro-cesso", isto é, como continuidade e ruptura de morfologias sociais velhas e novas, lá onde, sobre o plano da teoria geral, é antes a consideração da ten-dência que prevalece, com o resultado óbvio de superestimar o "novo".

O "movimento operário" é estudado como reflexo da transformação so-cial concreta que não seria tal se não provocasse novas orientações "cultu-rais". Nesse terreno — o da "consciência social", das instituições e dos impulsos institucionais, das ideologias populares — o jogo da tradição e da novidade é eminentemente complexo, de modo a exigir uma forte imaginação sociológi-ca e uma grande fineza exegética.53

A compreensão da transformação implicava, portanto, colocar as novas configurações sobre o pano de fundo das experiências históricas passadas: não apenas as precursoras diretas das novas formas, mas o universo das experiências possíveis. Compreender a mudança a partir da ótica do processo permitia escapar da tentação de vê-la como evolução gradual e homogênea (portanto não-conflitual), mas também significava afastar-se de uma concepção que via na mudança a abrupta irrupção do novo. Mais uma vez, a crítica à visão marxista da mudança (que estava no bojo da oposição entre a análise histórica e a "teoria geral") era central no argumento de Grendi: a visão marxista da "revolução social como explosão resultante da radicalização da contradição" era considerada "mecânica demais, social-mente pouco concreta".54

A análise histórica deveria tentar compreender a transformação a partir do ponto de vista das mudanças que aconteciam no campo das relações so-ciais, bem como os seus significados culturais. Na perspectiva esboçada por Grendi, o problema da transformação implicava articular dois eixos comple-mentares: sociedade e cultura. Mesmo reconhecendo o risco do raciocínio funcionalista, o postulado de um "sistema de valores" compartilhado era reivindicado: a chave para a compreensão do movimento operário podia ser encontrada, para Grendi, na apreensão daquela "ética coletiva""que seria seu pressuposto. A luta dos trabalhadores fazia sentido então como uma defesa dos valores ameaçados pela ascensão da sociedade de mercado. A referência à cultura e aos padrões de comportamento que davam sentido ao movimento coletivo — uma "ética" compartilhada que se expressava "den-tro de esquemas de reciprocidade de comportamentos" que definiam por sua vez as "inter-relações sociais em uma comunidade pré-capitalista"55 — apontava para um diálogo próximo entre a história social e a antropologia.

Nesse diálogo Grendi não entrava sozinho. Esse é um caminho de apro-ximação que já havia sido pavimentado por estudos anteriores, representa-dos por um artigo de Hobsbawm presente na coletânea.

O significado cultural das lutas operárias e sua ligação com os valores das classes subalternas pré-industriais constituíam de fato um tema impor-tante nas discussões inglesas. O ensaio de Hobsbawm sobre os "destruidores de máquinas" é um exemplo disso. Grendi comentava o trabalho do historia-dor britânico que, segundo o seu juízo, resgatava aquele movimento "do complô historiográfico e ideológico que o havia apresentado como a típica manifestação de uma ação social irracional, masoquista e, no melhor dos casos, desesperada". Hobsbawm resgatava a "racionalidade política" do movimento, "mediante um discurso no centro do qual está a viva e válida instância da 'compreensão cultural'".56

Há aqui uma convergência entre as várias inquietudes intelectuais de Grendi no início da década de 1970. Por um lado, suas pesquisas sobre Gênova e as formas associativas urbanas exigiam cada vez mais atenção aos aspectos rituais envolvidos na política, o que acabava apontando para a necessidade de explorar as sugestões da antropologia, tanto no campo interpretativo quanto metodológico, que adiante voltaremos a examinar. Por outro lado, também era na antropologia que se encontrava uma dis-cussão mais sólida sobre o significado dos padrões de comportamento redistributivos que estariam na origem da racionalidade política (e eco-nômica) das classes subalternas pré-industriais (padrões que alimenta-vam de algum modo a ética do movimento operário). Para além disso, a preocupação de Grendi com a formalização e a construção de modelos interpretativos para abordar a racionalidade política e econômica impli-cava ainda não apenas a aproximação com os debates da antropologia (em suas várias vertentes), mas também com os modelos interpretativos da teoria econômica.57

Se o ponto de convergência é a antropologia, vale a pena olhar com mais atenção como ela era lida e discutida por Grendi.

3. D A ANTROPOLOGIA ECONÔMICA À MICROANÁLISE HISTÓRICA

Em termos muitas vezes ambíguos, o tema do encontro entre história e an-tropologia era corrente na historiografia do princípio dos anos 1970. No campo da história do trabalho, contudo, esse tema "da moda" havia sido antecipado em alguns dos trabalhos de Hobsbawm duas décadas antes: seu interesse pelos movimentos de protesto das classes trabalhadoras pré-indus-triais (urbanas, mas também, e especialmente, rurais) era um exemplo disso. Inspirado de muitos modos pela leitura de Gramsci, Hobsbawm não apenas tinha estudos importantes sobre o movimento operário, mas também havia refletido sobre as formas "arcaicas" de luta social nas sociedades campone-sas na Europa meridional e na América Latina.58 Sociedades que "não ha-viam nascido no mundo capitalista, mas que tiveram que lidar com o problema de adaptar-se a ele".59 O diálogo do historiador britânico com a antropolo-gia social no fim dos anos 1950 ganha em significado se levarmos em conta o esforço que aquela disciplina começava a fazer para se livrar do legado estrutural-funcionalista que marcava fortemente suas tradições mais impor-tantes no contexto inglês. Um exemplo eloqüente desse esforço se encontra em um episódio relatado pelo próprio Hobsbawm: em meados da década de 1950, Meyer Fortes e Max Giuckman — dois antropólogos sociais de for-mação inglesa que desenvolviam suas pesquisas na Africa — convidaram-no para uma palestra sobre as "formas arcaicas" de movimento social na Euro-pa. Os motivos do convite residiam na experiência de campo junto às popu-lações africanas durante as lutas anticoloniais. O espanto diante das formas que essas tomavam motivava os antropólogos a repensar seus próprios pres-supostos: o exemplo principal era o movimento de resistência dos Mau-Mau, no Quênia, com suas características de adaptação e de criatividade que desafiavam a imagem de uma sociedade indefesa e "primitiva" que desmoro-nava diante do encontro com o colonizador. A palestra de Hobsbawm, que respondia ao impulso de comparação entre as situações africanas e euro-péias, daria origem a Rebeldes primitivos.60

O encontro de Grendi com a antropologia social data desse mesmo perío-do. Na verdade, ela estava desde o princípio entre as suas "aquisições" du-rante a temporada na Inglaterra. Estudar na London School of Economics

no fim dos anos 1950 significava entrar em contato com uma das institui-ções mais importantes no contexto das ciências sociais inglesas, e onde a antropologia tinha um lugar especial. A tradição importante de estudos an-tropológicos na escola havia sido inaugurada por Broníslaw Malinowski (que lecionara ali muitos anos), e continuada por seus alunos, que ali fundaram também a própria Associação Britânica de Antropologia Social (ASA). Raymond Firth havia substituído Malinowski na direção da LSE e era uma das figuras centrais da antropologia econômica inglesa na época em que Grendi a freqüentava.

O quadro de referências de Grendi brota daí. As pesquisas no campo da antropologia social e econômica — sobretudo britânicas — nos anos 1950 e 1960 constituem o seu roteiro de leituras: o tema da organização social e das formas de articulação e integração dos grupos sociais, bem como a lógica das suas inter-relações políticas (nos debates sobre a network analisys, por exemplo); o tema da transformação social e sua relação com os modelos antropológicos; a interrogação sobre a pertinência das categorias e modelos da teoria econômica para a análise das sociedades "primitivas" e pré-industriais.

Esses são tópicos presentes de modo mais ou menos direto nos trabalhos de Grendi entre o final da década de 1960 e o início da seguinte. Uma dis-cussão propriamente teórica emerge de suas publicações nesse período. As-sim, no ano acadêmico de 1970/71 na Universidade de Turim, um curso inteiro é dedicado à história do pensamento econômico sob o título "Teoria dos sistemas e formas econômicas" (com o subtítulo "marxismo — história — antropologia").61 O curso era dividido em duas partes. Na primeira delas, Grendi comparava as duas interpretações que lhe pareciam heuristicamente mais importantes sobre a origem do capitalismo: a de Karl Marx e a de Karl Polanyi.

Sobre Marx, o juízo de Grendi era expresso nas primeiras linhas:

Dois aspectos do pensamento e da obra de Marx são particularmente "mo-dernos" e importantes: o coerente historicismo que considera o capitalismo como um modo de produção contingente — isto é, emerso no curso do de-senvolvimento histórico e objeto de transformação — e a proposta da econo-

mia política como anatomia da sociedade civil, modelo, portanto, de análise "total" na qual "a teoria econômica é convertida em análise histórica e a exposição da história em uma história encadeada racionalmente". Esses dois pontos fundam, como é fácil ver, uma concepção qualitativa do sistema soci-al, qualidade que deriva claramente da análise da sua "estrutura" e da procu-ra das suas origens.62

Apesar da sua "escatologia", a perspectiva de Marx colocava a contingência em um lugar central: a sociedade capitalista era produto de uma história e não o resultado necessário e natural do desenvolvimento da sociedade. As formulações de Marx sobre a emergência do modo de produção capitalista eram construídas sobre o "clássico" modelo inglês e pensadas para a realidade da economia da Europa ocidental: isso explicaria, para Grendi, "o caráter teleológico" que a sua exposição da história assumia. O que não comportava necessariamente "a inelutabilidade do destino capitalista para todas as sociedades econômicas", nem a "universalidade das categorias explicativas do capitalismo" para o estudo de qualquer sociedade.63

A interpretação de Polanyi, por outro lado — tal como exposta em A grande transformação64 —, tinha em comum com a de Marx a ênfase no caráter contingente do capitalismo. Como para Marx, é a história inglesa que dá material para as discussões de Polanyi, mas os pressupostos teóricos que dirigem seu trabalho são bastante diferentes: a "sociologia clássica e a antropologia aplicada" tomavam o lugar que, no pensamento de Marx, ha-via sido ocupado pela "filosofia e a economia clássica".

O tema-chave é desenvolvido na parte central [de A grande transformação]: é uma apaixonada crítica não da sociedade industrial, mas da economia e da sociedade de mercado. A tese central é clara, já que se trata, como poucas, de uma obra de tese: a economia de mercado, isto é, o sistema econômico no qual o mercado constitui o supremo mecanismo regulador representa uma utopia anti-social imposta com a violência que subordina a própria sociedade ao mercado. Mas o corpo social se defende criando as instituições necessá-rias e acaba por sair vitorioso, e o seu êxito é uma situação de crise profunda e dramática da própria sociedade. Isto é suficiente para esclarecer que Polanyi não é um revolucionário no sentido em que era Marx, cuja dialética lhe é

profundamente estranha, voltado como é a considerar a sociedade como um "inteiro-total" cuja crise ou o nascimento são diagnosticados nos termos ana-líticos da "social change" e não da revolução.65

O tema do curso de Grendi explorava esse quadro de referências, das inter-pretações conflitantes da história e do sentido do capitalismo às diferentes perspectivas sobre as sociedades pré-capitalistas por intermédio de Marx, Polanyi e da história econômica. Do mesmo modo, discutia as contribuições de Kula, Chaianov, Slicher Van Bath, a teoria econômica e a antropologia.

É claro que o curso universitário em Turim era apenas um episódio de uma longa interlocução que vale a pena olhar com atenção. Citei Polanyi e a antropologia, e isso não é fortuito. O caminho de Polanyi à antropologia (ou vice-versa) teve uma importância central na constituição dos fundamentos da proposta microanalítica de Grendi.

Como a antropologia, Polanyi era com certeza parte da bagagem que Grendi trouxe da temporada londrina. A grande transformação, publicado em 1944, havia atravessado sem muito alarde os anos 1940 e 1950. Foi, sobretudo, durante os 1960 que o livro passou a influenciar mais consisten-temente as interpretações das ciências sociais (e da própria antropologia): um destino coerente, de todo modo, com a crítica geral que as teses marxis-tas sofreram junto com o modelo soviético (que era supostamente sua apli-cação) no pós-56, e para as quais as teses de Polanyi surgiam como uma alternativa.

As idéias de Polanyi podem ser lidas nas entrelinhas das discussões de Grendi sobre o século XIX e o significado do movimento operário e do socialismo. Mesmo a atenção de Grendi em Owen e no owenismo nas tradi-ções socialistas britânicas pode ser lida como uma influência direta das pró-prias indicações de Polanyi sobre o reformador social inglês.

Para Polanyi, o encontro com a intuição de Owen66 sobre o significado moralmente destrutivo do advento da sociedade de mercado parece ter tido um peso importante nas suas próprias formulações. De acordo com Polanyi, Owen havia compreendido os resultados de longo alcance que resultariam na "organização de toda a sociedade a partir do princípio do ganho e do lucro" e pensava esses resultados a partir do seu caráter humano. "O efeito

mais óbvio do novo sistema institucional era", para Owen, "a destruição do caráter tradicional das populações organizadas e sua transformação em um novo tipo de gente, migratório, nômade, sem respeito próprio e disciplina — seres rudes e brutais dos quais eram exemplo tanto o trabalhador quanto o capitalista."67

Para Polanyi, Owen (e não Marx) havia de fato entendido o significado profundo da implantação da "utopia anti-social" do mercado, e o impacto que essa produziu na organização social na Inglaterra. O tributo que Marx pagava à economia política (em especial a David Ricardo) fazia-o colocar em primeiro lugar as relações econômicas e a enxergar a mudança antes de tudo em termos econômicos. Para Polanyi (e para Owen), a economia não expli-cava o que estava acontecendo, assim como não poderia ser compreendida senão em relação aos aspectos sociais que estavam em jogo. A calamidade era, antes de tudo, social e cultural.

[Owen] entendia o fato de que aquilo que parecia primariamente como um problema econômico era, essencialmente, um problema social. Em termos econômicos, o trabalhador era certamente explorado: ele não recebia o que lhe era devido. Mas, embora importante, isso estava longe de ser tudo que importava. Apesar da exploração, ele poderia estar financeiramente melhor do que antes. Mas um princípio muito desfavorável para a felicidade individual e geral estava acabando com o seu ambiente social, sua vizinhan-ça, sua posição na comunidade, seu ofício; em poucas palavras, com aquelas relações com a natureza e o homem nas quais sua existência econômica esta-va formalmente encapsulada. A Revolução Industrial estava causando um deslocamento social de estupendas proporções, e o problema da pobreza era apenas o aspecto econômico desse evento.68

A atenção de Grendi às conclusões de Polanyi não se justificava apenas pelo seu caráter "antieconomicista", mas principalmente pelo alcance "antro-pológico" presente na sua argumentação. A "novidade" que representava encontrar em um trabalho sobre a Inglaterra do século XIX (como era A grande transformação) um argumento fundado sobre a pesquisa antropológica — com extensas referências a B. Malinowski, R. C. Thurnwald, R. Firth — não escapava a Grendi.69

É significativa, nesse sentido, a comparação que Polanyi estabelecia en-tre a experiência das tribos africanas — que ele recolhia na antropologia inglesa dos anos 1930 e 1940 — e aquela das poorer classes inglesas do início do Oitocentos, "os nativos destribalizados e degradados do seu tempo".70

Intrinsecamente, as condições são as mesmas. A diferença principal é que uma classe social faz parte de uma sociedade que habita a mesma área geo-gráfica, enquanto o contato cultural ocorre usualmente entre sociedades estabelecidas em diferentes regiões geográficas. Em ambos os casos, o conta-to pode ter um efeito devastador sobre a parte mais fraca. Não é a explora-ção econômica, como muitas vezes se considera, mas a desintegração do ambiente cultural da vítima que é a causa da devastação(...). Para o estudioso do início do capitalismo esse paralelo é altamente significativo. A condição de algumas tribos nativas na África hoje carrega uma semelhança inequívoca com aquela das classes trabalhadoras inglesas no início do século XIX.71

O confronto entre diferentes culturas — os brancos.no caso africano, a utopia do mercado auto-regulável no caso inglês — era o elemento central da comparação. O contato cultural destrutivo produzia um fenômeno cujo caráter principal não era de natureza econômica, mas social.

Quando A grande transformação é traduzido na Itália, em 1974, Grendi publica uma resenha na Rivista Storica Italiana. Tentando reapresentar ao leitor o sentido que o livro de Polanyi ainda possuía — depois dos mais de trinta anos que o separavam da sua edição original —, Grendi enfatizava a atualidade da sua aproximação com a antropologia e a sua conseqüente crí-tica ao etnocentrismo.

(...) a valorização das "civilizações diversas" é o princípio de uma crítica radical da nossa civilização, uma subversão dos seus presumidos "fundamen-tos naturais", sobre os quais se fundou a economia política, o verdadeiro vilain de la pièce. Complementar ao assunto é igualmente a redescoberta (...) de Owen e do seu gênio solitário. Deste modo, o autor reencontra no estudo das sociedades primitivas e no assim chamado "socialismo utópico" a inspi-ração fundamental necessária para conquistar a "distância" do drama da so-ciedade presente (...).71

A necessidade, afirmada por Grendi, de "tomar distância" da sociedade pre-sente era coerente com a crítica à aplicação direta dos conceitos "modernos" da sociedade industrial naquelas realidades históricas que lhe eram estranhas. Se o estudo da estrutura da sociedade burguesa "revelava" categorias capazes de abordá-la, para Grendi era discutível que se intuísse a universalidade ou a adequação destas mesmas categorias para a compreensão de outras sociedades: isso era igualmente válido para as sociedades européias do passado.73

Daí a conseqüente referência a Owen e às sociedades não-européias es-tudadas pela antropologia. Para entender o sentido das propostas de Owen era preciso devolvê-lo ao universo cultural e ético da sociedade inglesa tal como era estruturada antes da ascensão da sociedade de mercado: seu "so-cialismo utópico" — cuja tradição havia sido considerada por Grendi a mais influente na história do socialismo inglês74 — traduzia a tentativa de defesa dos modos de existir e de organizar a vida (sua ética ou sua "economia mo-ral") de uma sociedade que era desagregada pela imposição da sociedade de mercado. Se a compreensão das origens do movimento operário passava necessariamente por um reencontro com a sociedade pré-industrial, para a qual as categorias de análise próprias à sociedade burguesa eram insuficien-tes, era preciso encontrar outros instrumentos e outras categorias para en-frentar esse objetivo. Para Grendi, o trabalho de Polanyi mostrava que o sucesso no entendimento da sociedade pré-industrial dependia da possibili-dade de compreendê-la a partir dos seus próprios termos.

Os parâmetros de sua análise eram claros: o estudo das sociedades não-européias (não-industriais e não-capitalistas) trazia analogias evidentes com o estudo das sociedades da Europa do Antigo Regime. Pensadas a partir da ótica das comunidades e dos povoados, ambas se caracterizavam pelo fato de terem suas economias fortemente baseadas na agricultura. Os termos da comparação partiam da consideração de que a "economia camponesa" (um termo "altamente indeterminado", mas de forte caráter heurístico) era o "verdadeiro fenômeno universal da história".75 Portanto, se a antropologia estudava o mundo camponês do subdesenvolvimento, ela poderia — ana-logicamente — lançar luz sobre as sociedades camponesas do passado. Essa era de fato a constatação inicial exposta por Grendi na longa introdução a uma coletânea sobre a antropologia econômica, organizada por ele em Í972.76

Nessa coletânea, Grendi atualizava o interesse de Polanyi pela antropo-logia: enquanto o autor de A grande transformação havia buscado seus mate-riais comparativos na antropologia funcionalista inglesa da primeira metade do século, o historiador genovês buscava na produção posterior a Polanyi (e mesmo influenciada por ele), crítica aos modelos de equilíbrio, elementos para um diálogo. Essa diferença, como veremos, é muito importante.

O termo "econômica" afixado ao lado de "antropologia" estava ali não para apontar uma setorização da disciplina, mas como uma adjetivação que dizia respeito antes de tudo à "escolha do campo de análise".77 De todo modo, a escolha do campo de investigação era por si só significativa: a ten-tativa de tomar distância da interpretação contemporânea da sociedade de mercado indicava a possibilidade de compreender as sociedades pré-indus-triais a partir desse elemento diferencial, da alteridade das suas formas de organizar o mundo econômico.

Na leitura proposta por Grendi, a antropologia econômica abria uma possibilidade de fugir ao etnocentrismo das análises que partiam do modelo europeu industrial para compreender as sociedades diferentes dele. O estu-do antropológico das sociedades camponesas não-européias em seus pró-prios termos abria a possibilidade de fazer o caminho inverso: não mais "constringir a história mundial dentro de categorias da história européia ocidental", mas "considerar a experiência européia segundo categorias da história mundial".78 A hipótese central era que o estudo das sociedades não-européias empreendido pela antropologia revelasse instrumentos conceituais novos que pudessem ser também utilizados para estudar a realidade do pas-sado pré-industrial europeu.

Diferentemente de grande parte da teoria econômica, a antropologia não postulava as relações econômicas como uma esfera autônoma, mas par-tia, ao contrário, da constatação de que a economia está no centro das interações entre os indivíduos e o ambiente e depende, portanto, das suas formas de organização social.7' Mesmo quando se valia dos conceitos e mo-delos da teoria econômica, a antropologia econômica os subordinava a uma abordagem necessariamente "microdescritiva". Uma perspectiva que era, segundo Grendi, "fundamentalmente indutiva", onde "comportamentos sociais constantes e regulares são elaborados em termos de estruturas e mo-

delos, não em dimensões quantificáveis — e estas elaborações são constante-mente confrontadas com as realidades sociais observadas no campo".80 A antropologia voltava-se para a análise das relações econômicas em conjunto com as relações sociais, políticas e culturais, a partir da referência empírica recolhida na observação direta. As possibilidades abertas por essa perspecti-va constituíam talvez o parâmetro principal que dirigia a escolha dos textos da coletânea, que abordava a diversidade do debate econômico no campo da antropologia dos anos 1960: tanto a abordagem "formalista" de Raymond Firth e seus alunos, quanto a abordagem "substantivista", na mesma trilha que havia sido percorrida por Polanyi.81

A grande tradição da antropologia econômica (Malinowski, Thurnwald, mas também Mauss) já havia apontado para a necessidade de explicar a eco-nomia não apenas a partir daquilo que é propriamente "econômico", mas por meio das dimensões culturais, simbólicas — e, a partir daí, abordando o religioso, o mágico, o cerimonial etc. Esse caráter "holístico" e antiespecialista da disciplina era enfatizado na análise de Grendi, como antídoto à tendência de pensar a economia como uma esfera autônoma.

A abordagem "holística" da antropologia ligava-se diretamente à centralidade do fieldwork (trabalho de campo) no método da antropologia social. A análise intensiva sobre a comunidade, baseada na observação direta da organização de suas relações sociais,82 colocava, por analogia, problemas interessantes para a história, onde o fieldwork propriamente dito costuma ser — por razões óbvias — pouco praticável.

A tradição de "estudo de campo" da antropologia social vinha de longa data e tinha representantes ilustres (Malinowski, Firth, Evans-Pritchard). O problema de muitos desses estudos de comunidade estava (como Grendi criticava em Evans-Pritchard) na tendência em considerar a comunidade uma "variação estrutural coerente" dentro de uma sociedade mais ampla. Essa era uma perspectiva que prestava contas à convicção funcionalista da coesão interna dos sistemas pesquisados: cada "componente de um sistema pode ser explicado nos termos do sistema". Isso implicaria pensar a comunidade como um microcosmo que repete a sociedade global. Uma postura que — na crítica de Grendi — "exclui o conflito, exclui a dinâmica, exclui a histó-ria".83 Essa crítica era de todo modo coerente com suas preocupações de

historiador; os modelos estrutural-funcionalistas partiam de uma concepção estática da sociedade, que impedia a compreensão do fenômeno da transfor-mação social de outro modo que não em termos evolucionistas ou difusionistas. A superação desses modelos de equilíbrio era também o que Grendi procurava em uma antropologia que precisava lidar, por sua conta, com o problema da mudança e que finalmente reconquistava a dimensão temporal do seu objeto, como era a antropologia social dos anos 1960. Nas palavras de Grendi:

O componente funcionalista da antropologia social entrava em crise por uma razão bastante óbvia: de fato, em um período de recessão das formas sociais primitivas, o pesquisador em campo enfrentava diariamente a realidade da transformação social, a evidência dinâmica por excelência. A sociedade "tra-dicional" não desmoronava, não se dissolvia por encanto como um castelo de cartas, como era esperado pelo funcionalismo, mas revelava insuspeitadas capacidades de adaptação seletiva. O modelo de equilíbrio não dava conta: o elemento conflitual "disfuncional" encontrava novas oportunidades no am-biente socioeconómico renovado.84

Problemas comuns se colocavam para a antropologia e a história quando ambas tinham que lidar com o fenômeno da mudança. Mais uma vez apa-reciam as analogias entre as duas disciplinas quando o objetivo era recuperar o passado de sociedades que não tinham deixado registros escritos próprios: as sociedades agrárias do passado (as áreas rurais européias, mas também os incas) ou as sociedades africanas contemporâneas. Uma aproximação que, de todo modo, sugeria a articulação de várias competências (arqueologia, geografia, lingüística etc.). De acordo com a reflexão de Grendi, a ambição da história social em ser pensada como "história total" (que integra a demografia e a economia, mas também se interessa pela cultura material, o espaço, a história oral, a língua) era inteiramente coerente com estas ambições holísticas da antropologia.85

Grendi apontava como lugar do encontro entre as duas disciplinas aque-la "comum realidade universal e genérica do mundo camponês", cuja coe-rência estrutural poderia ser, de certo modo, generalizável. A questão era,

antes de tudo, identificar as analogias possíveis e os problemas comuns: a importância da economia doméstica e da família como unidade econômica de base, a pluralidade das culturas de aldeia, a necessidade do "estudo de área" para dar conta da "base ecológica de cada economia e de cada socieda-de camponesa".86

A sua realidade econômica de base é constituída de unidades produtivas fa-miliares e não por empresas de negócios: a sua é fundamentalmente uma economia doméstica, seja qual for o grau de autoconsumo e a sua integração em um contexto econômico mais amplo. Desse ponto de vista a distinção entre sociedades camponesas e sociedades primitivas não é muito relevante. Epistemologicamente, aquilo que é de fato relevante é o estudo da comuni-dade em pequena escala.87

Na coletânea de Grendi, a antropologia econômica era ilustrada a partir de diferentes perspectivas: a abordagem "substantivista" era claramente prio-rizada, como Polanyi (e muitas vezes com ele) ela negava qualquer utilidade às categorias da teoria econômica para o estudo das sociedades camponesas (essa perspectiva era representada de modo mais claro na coletânea pelos artigos de Paul Bohannan, George Dalton, Marshall Sahlins e Fredrik Barth);88

mas mesmo a abordagem "formalista" de um Raymond Firth apresentava elementos que Grendi julgava heuristicamente importantes para o trabalho dos historiadores: sua tentativa de explorar o valor de categorias como "capital", "poupança" e "crédito" na compreensão de economias primitivas e camponesas lançava luz sobre alguns elementos importantes do problema histórico do desenvolvimento econômico.85

Tentando concluir a longa introdução, onde procurava expor "o corpo de pensamento" da antropologia econômica do ponto de vista da sua uti-lidade para a reflexão histórica, Grendi estabelecia alguns dos parâmetros que estavam guiando não apenas a sua reflexão imediata sobre a relação entre história e antropologia, mas sua perspectiva em relação à história tout court:

Não há dúvida de que a perspectiva substantivista tem condições de provo-car uma mais ampla solidariedade entre antropólogos, historiadores e soció-logos rurais. Mas é claro que os historiadores não abandonaram de fato a confiança na qualidade interpretativa dos esquemas e das categorias da ciên-cia econômica. E o mesmo vale para os antropólogos. Em todo caso, esses últimos nos parecem em condições de sugerir de modo mais pertinente a necessidade complementar daquela perspectiva microanalítica que para os historiadores comporta o máximo esforço de "imaginação concreta". Conse-guirão os historiadores colher aqueles movimentos no tempo breve que eu considero essenciais para resolver o problema interpretativo da social change, da transformação social? Ou a história está condenada, no melhor dos casos, a um confronto de sucessivos "sistemas-modelos de relações sociais", provi-dos de diversas durações, sem poder precisar em detalhe como se passou de um sistema ao outro?

Porque este é, na minha opinião, o duplo dever da historiografia: cons-truir morfologias sociais coerentes, fracionar o tempo histórico da socieda-de em uma série de sistemas, que é a verdadeira periodização, e depois interpretar, além disso, os mecanismos sociais da transformação. A história — ciência da mudança, a antropologia — ciência da imobilidade, da estru-tura. Mas estamos assim tão seguros sobre isso? Pela tradição antropológica é verdade que a história representou a dimensão diacrônica — assim como, para a história, a antropologia e a sociologia representam a dimensão estru-tural, tipológica, morfológica. Mas se essa versão corrente representa, como acredito, uma mistificação recíproca, isso não significa que estamos mais próximos de alguma solução? E certo, entretanto, que essa visão não pode ser encontrada na suspensão de juízo epistemológica, mas antes no traba-lho concreto.90

A coletânea de Grendi sobre a antropologia econômica é antes de t u d o u m documento sobre as leituras antropológicas de um historiador durante os anos 1960. Era um balanço do seu diálogo extremamente singular com a an t ro-pologia e apontava para as indagações e propostas que esse diálogo sugeria para a pesquisa histórica. Pensada em paralelo com sua investigação sobre a Gênova pré-industrial , ou com suas considerações sobre a história social e a história do movimento operário, tal como articuladas no pr incípio dos anos

1970, ela acaba por compor um quadro ao mesmo tempo de coerência e de marcada originalidade.

Ao reler o seu trabalho de pesquisa histórica no início da década, encon-tramos claramente os elementos de uma integração crescente entre a discus-são teórica que vinha amadurecendo e os temas de investigação empírica. Exemplo marcante disso é o seu pequeno livro intitulado Introduzione alia storia moderna delia Repubblica di Gênova, de 1973."

Este não era tanto um estudo monográfico sobre Gênova quanto uma sorte de guia de investigação que se apresentava simultaneamente como uma introdução didática aos temas genoveses e uma orientação sobre os objetos de pesquisa e os tópicos da discussão historiográfica. Do mesmo modo, apre-sentava um inventário das fontes disponíveis para esses estudos. Sobretudo a preocupação didática (definida, de resto, no assumido confronto com a "manualística corrente")'2 não se colocava de modo óbvio: o objetivo explí-cito era desafiar recortes e perspectivas consagradas pela historiografia lígure em nome da preocupação com a pesquisa empírica e com problemas de investigação definidos historiograficamente. A franca polêmica se dirigia aos parâmetros de uma história "feita de batalhas e matrimônios, guerra e paz, datas e frases históricas":93 uma contraposição aparentemente banal no âm-bito da história acadêmica, mas importante e certeira em confronto aos tó-picos clássicos da história regional e institucional de Gênova e da Ligúria, toda concentrada em torno da imagem da grande República marinara e de seus sucessos comerciais, deixando de lado não apenas a pesquisa sobre a diversidade das comunidades, mas ignorando igualmente a história social do território.94

No livro, Grendi definia com clareza as grandes questões a atacar no âmbito da história moderna da república. Seus "caracteres originais" eram definidos nos termos da demografia, da história social (estratificação da so-ciedade e grupos sociais) e econômica (produção, subsistência, preços, mer-cados, a microeconomia dos negócios), da referência concreta sobre o território (a ocupação, a distribuição dos cultivos, a civilização material).

Introduzione apresentava-se assim como um estudo metodológico e um detalhado programa de investigação histórica. Também era exposição de um projeto pessoal, de algum modo, que apenas começava a apresentar

seus primeiros frutos no trabalho de pesquisa do próprio Grendi. Assim, no seu conjunto, esse livro testemunhava o estado embrionário das discus-sões que produziriam, nos anos seguintes, a proposta da microanálise. Pro-gramaticamente, apontava, ainda que de modo fragmentário, boa parte das questões que seriam mobilizadas em seguida, apontando uma consci-ência clara da dimensão teórica do trabalho, bem como dos caminhos de investigação a trilhar. Como escrevi e reiterei, um "programa de pesqui-sa", mas que precisava ainda passar pela prova de fogo da sua aplicação empírica. É na direção desse amadurecimento que se empenha Grendi nos anos seguintes.

4. MICROANÁLISE: CONTORNOS DE U M PROGRAMA DE PESQUISA

O debate em torno da microanálise corria acesamente nas páginas dos Quaderni Storici em meados da década de 1970. De algum modo, as ques-tões levantadas por Grendi parecem ter servido como aglutinadoras das in-quietações de vários historiadores que estavam também tentando, a seu modo, reprocessar a inflexão em sentido antropológico que a história social vinha sentindo naqueles anos.

No âmbito da revista, não apenas Grendi, mas Giovanni Levi, Carlo Poni, Gerard Delille e outros discutiam o tema do estudo das comunidades e do mundo pré-industrial italiano à luz de problemas que se complementavam: as relações centro/periferia na constituição do Estado moderno, o prota-gonismo das comunidades nesse processo, a diversidade e os significados das suas formas de organização social, demográfica e econômica. Esse era, de resto, um debate que se articulava também em outros contextos his-toriográficos, mas foi na Itália que essa configuração tomou o rumo de uma radicalização no sentido de uma microanálise histórica do social. Para isso a mediação de Grendi foi, claramente, essencial.

É preciso admitir, no entanto, que estas mesmas cartas, embaralhadas de outro modo, poderiam produzir um jogo bastante diferente. As preocupa-ções e indagações das quais Grendi partia não levavam, por sua própria con-ta, necessariamente à proposta microanalítica. A desconfiança manifestada

em relação aos conceitos sociológicos abstratos (como o conceito de "clas-se" ou o de "mercado") era partilhada por muitos cientistas sociais contem-porâneos; o caminho do conceito de classe ao de grupo social não foi entretanto a lógica seguida pela maior parte deles.95 Além disso, a ênfase sobre a necessidade de recompor a estratificação social tinha um sabor deci-didamente quantitativo e macro-histórico, sobretudo em sua versão france-sa (Labrousse, Daumard), e a análise microanalítica da composição social não era o desenvolvimento necessário dessa perspectiva. A tradição do fieldwork antropológico não era também automaticamente transportável para o campo analítico da história, especialmente no que diz respeito ao trata-mento das fontes indiretas do Antigo Regime. A proposta microanalítica formulada por Grendi, de modo fortemente original, era constituída assim, dinâmica e seletivamente, sobre materiais bastante heterogêneos.

Grendi consolida de fato uma discussão teórica explícita em torno da noção de microanálise em algumas das suas intervenções entre 1976 e 1978. Nas páginas dos Quaderni Storici ela está expressa com todas as palavras na introdução ao número da revista dedicado à "família e comunidade", em 1976. Ali a microanálise era o termo de ligação que Grendi propunha para a leitura do fascículo. No ano seguinte, outro artigo — "Microanalisi e storia sociale" — articulava a proposta quase na forma de um manifesto, no con-texto de uma polêmica sobre a história social no âmbito da revista. Para além dos Quaderni, há dois empreendimentos paralelos de Grendi que ex-põem claramente o estado do desenvolvimento teórico e empírico da pro-posta microanalítica no seu trabalho.

Em primeiro lugar, uma coletânea de artigos organizada por ele e publicada em 1977 como um número da revista Miscellanea Storica Ligure, cujo título era precisamente "Estudos de microanálise histórica".96 Em se-gundo lugar, mas não menos importante, um livro sobre Polanyi publicado em 1978, e no qual Grendi retomava a discussão central no seu trabalho sobre a relação entre história e antropologia em chave teórica. Lidos em paralelo, esses dois empreendimentos formam claramente os dois pólos de uma reflexão que pretendia dar consistência teórica e empírica à proposta microanalítica. Invertendo a seqüência temporal, mas mantendo a prece-dência da discussão teórica de Grendi, examinarei em seguida o trabalho

sobre o economista-antropólogo húngaro, para depois retomar o fio do tra-balho de pesquisa histórica sobre a Ligúria.

O livro se chamava, significativamente, Polanyi, dali'antropologia econômica alia microanalisi storica. Não se trata de uma apresentação da obra de Polanyi, mas a exposição dos parâmetros a partir dos quais Grendi gerou sua proposta de microanálise. Para isso, as reflexões de Polanyi eram revisitadas à luz tanto dos estudos recentes no campo antropológico quanto dos estudos de história social que interpelavam a relação história/antropolo-gia naqueles anos.

De saída, Grendi afirmava o valor heurístico da proposta de Polanyi nos caminhos abertos, nas sugestões de pesquisa que o seu trabalho possibilita-va. O modelo geral de mudança proposto em A grande transformação era apontado, no entanto, como o maior problema do livro. Polanyi havia construído um mecanismo onde se confrontavam duas forças antagônicas: por um lado a economia de mercado, que tinha como principal "instrumen-to conceituai" a economia política;97 por outro lado, a reação defensiva da sociedade. A tensão entre essas duas forças era o motor para a mudança que explicava "as origens políticas e econômicas do nosso tempo" (subtítulo do livro de Polanyi). Nesse modelo quase mecânico ("morfológico institucional"), Grendi reconhecia o maior limite de Polanyi, sua "epistemologia mecanicista" que era incapaz de articular de fato um modelo explicativo para a dinâmica histórica.98

Essa avaliação geral não impedia que Grendi enxergasse novas pers-pectivas teóricas abertas por Polanyi (mas não resolvidas por ele). Na sua avaliação, era preciso avançar no caminho da aproximação entre história e antropologia, atualizando seus termos. A ponte que Polanyi havia avança-do entre a compreensão das sociedades ditas "etnológicas" e aquelas cha-madas "históricas" não havia sido de fato atravessada: a proposta de uma microanálise histórica se propunha, no juízo de Grendi, a fazer exatamen-te isto.9'

Significativamente, não era apenas em A grande transformação que os principais subsídios para essa proposta eram encontrados. Também os traba-lhos posteriores de Polanyi e de sua equipe, sobre as sociedades antigas e sobre o Daomé dos séculos XVII e XVIII, interessavam a Grendi de um

modo especial. São pesquisas nas quais Polanyi operava como historiador, ao mesmo tempo em que confrontava os dados da antropologia — "os prin-cípios e comportamentos humanos na realidade social" — com as categorias etnocêntricas da teoria econômica. Mas Polanyi não havia utilizado todos os recursos disponíveis da antropologia na realização de seu projeto: a aborda-gem microanalítica era um deles e constituía, na perspectiva sustentada por Grendi, o terreno privilegiado para o qual as abordagens histórica e antro-pológica poderiam de fato convergir.100

É esse o sentido dos desenvolvimentos que se tenta dar aqui às posições de Polanyi: a proposta de uma radical perspectiva indutiva passível de organiza-ção nos termos de uma estratégia de pesquisa mais ampla que se ponha paci-entemente a reconstruir os nexos interpessoais e dinâmicos entre indivíduos, famílias, comunidades e sociedade, dedicando uma particular atenção às rela-ções fundamentais de intermediação. Trata-se de um caminho fortemente estimulado e condicionado (por meio do uso de categorias ou esquemas generalizadores) pelo trabalho antropológico.

Na raiz está, portanto, uma concepção diferente dos processos sociais: não o produto anônimo do confronto "objetivo" da oferta e da demanda, mas o fruto do jogo complexo e articulado de confrontos e mediações sem-pre caracteristicamente personalizados e, nesse sentido, capazes de serem tra-duzidos em termos de "cultura".101

O objetivo era então o de "radicalizar" Polanyi, aprofundando o diálogo com a antropologia, direção que, na leitura de Grendi, o seu trabalho sugeria. Essa apropriação da "intuição" de Polanyi na direção da microanálise era certamente mediada, no caso de Grendi, pelas discussões em torno da história social e pela antropologia social posterior a Polanyi que operava, na Inglaterra, a crítica aos limites dos modelos estrutural-funcionalistas.

Algumas questões abordadas por Polanyi eram essenciais no argumento de Grendi. Em primeiro lugar, sua interpretação sobre as origens da socie-dade de mercado construía-se sobre algumas questões históricas importan-tes. A primeira delas era a própria origem do mercado.

Para a economia clássica, o mercado tinha origem nas transações entre indivíduos, movidos por uma suposta tendência natural para a barganha. A

partir daí, por meio de uma complexificação sucessiva, passava-se da troca ao comércio local, desse para o comércio nacional e por fim o comércio de longa distância e à instância do "mercado" global — cada uma das fases sendo a sucessão lógica e necessária da anterior. Ora, a visão de Polanyi era quase o inverso desta proposição — para ele, o mercado não é uma institui-ção nascida de desenvolvimento natural das trocas em uma dada sociedade, mas que, ao contrário, surge como um "lugar de comércio de longa distân-cia", o produto da relação entre as economias de sociedades distantes:

(...) o verdadeiro ponto de partida é o comércio de longa distância, um resul-tado da localização geográfica dos bens, e da "divisão de trabalho" produzi-da pela localização. O comércio de longa distância muitas vezes cria mercados, uma instituição que envolve ações de negociação e, se o dinheiro é usado, comprar e vender, e então, eventualmente, mas de forma alguma necessaria-mente, oferece a alguns indivíduos a ocasião de satisfazer a sua suposta pro-pensão para a barganha e a pechincha.102

Historicamente, o mercado não era uma instituição necessária, nem universal. Em Trade and Market in the Early Empires, Polanyi e seus colaboradores haviam mostrado a existência de complexas instâncias da economia em vários dos grandes impérios da Antiguidade nos quais — apesar da amplidão geográfica envolvida e da conseqüente complexidade administrativa — a instituição do mercado muitas vezes nunca chegou a existir, como na Babilônia de Hammurabi, ou onde era fortemente controlada pela autoridade, como no comércio administrativo iport of trade) praticado na Grécia antiga (onde os preços praticados não eram livres, mas determinados politicamente). De acordo com a interpretação de Polanyi, o mercado ocupava uma posição decididamente marginal nas sociedades antigas. Essa era, obviamente, uma posição que contrariava frontalmente a interpretação da teoria econômica clássica que, anacronicamente, enxergava nas grandes civilizações mercantis greco-orientais os antepassados ilustres (e lógicos) do mercado auto-regulador das sociedades contemporâneas. Na proposta de Polanyi, deslocava-se a atenção do estudo da qualidade da economia para o estudo do funcionamento das instituições.103

A sociedade européia do Ancien Régime era, por outro lado, claramente mercantil, na qual o comércio de longa distância tinha um lugar fundamen-tal. Uma sociedade mercantil, mas não uma sociedade de mercado: mesmo ali — antes do aparecimento da industrialização — a lógica da negociação, a lógica do mercado, funcionava apenas nas relações comerciais externas e não constituía a lógica econômica (interna) da sociedade. Outras lógicas, distintas daquela do "livre" jogo da oferta e da procura, operavam em sua organização econômica e social. A desagregação dessa sociedade estava liga-da à transformação dessa lógica econômica: o fator decisivo foi o nascimen-to da máquina e da indústria. A introdução dessa "novidade produtiva" em uma sociedade mercantil acabava por implicar a "subordinação do comércio à produção e à conseqüente mercantilização, em escala mundial" não apenas dos produtos, mas "da terra, do trabalho e da moeda" cuja "substância" escapava à lógica da mercadoria.104 A extensão da lógica do mercado a essas instâncias da sociedade havia sido central para sua desarticulação.

A compreensão desse fenômeno estava na origem da lógica elaborada por Polanyi para classificar as diversas sociedades a partir do lugar ocupado pela economia em cada uma delas. O parâmetro central dessa classificação estava na constatação de que, nas economias "arcaicas" e "primitivas" (e do mesmo modo naquelas da Europa pré-industrial), a economia era "encap-sulada" (embedded) pela sociedade, ou seja, não era constituída como uma instância autônoma, mas dependia fundamentalmente do conjunto das rela-ções sociais. Com o advento da sociedade de mercado, com a mercantilização progressiva da terra, do dinheiro e do trabalho (e a extensão da lógica do mercado às relações sociais), assim como a conseqüente desagregação dos equilíbrios comunitários, a economia era sistematicamente "desencapsulada" (idisembedded) da sociedade. Isso na medida em que aquela não respondia mais às regras das relações sociais (as leis humanas), mas às "leis naturais" do mercado.

Esse par de conceitos (embedded/disembedded),105 utilizados para "classi-ficar" as economias, apesar da sua "crueza terminológica", iluminavam — no julgamento de Grendi — aspectos fundamentais da organização social das sociedades pré-industriais, que eram o interesse principal de sua leitura de Polanyi. Em primeiro lugar, se as relações econômicas não eram coman-

dadas pelo princípio da maximização, era preciso se interrogar sobre os parâmetros que dirigiam as relações econômicas dessas sociedades. Esses pa-râmetros eram a "reciprocidade", a "redistribuição", a "domesticidade" que, ao lado do princípio da "barganha" (próprio da sociedade de mercado), se articulavam como parâmetros (alternativos ou complementares) de ação e organização social e econômica nas sociedades pré-industriais.106

O estudo das sociedades não-capitalistas produzia assim novas categori-as de análise que iluminavam a compreensão da lógica das trocas econômi-cas em sociedades que não eram governadas pela lógica do mercado. Segundo o juízo de Grendi, a abordagem substantivista de Polanyi fundava desse modo os comportamentos econômicos sobre as "interações ou relações sociais":

E, deste ponto de vista, lhe interessavam sobretudo aqueles fenômenos eco-nômicos que fundam a integração da sociedade, ou seja, o fluxo dos bens, trocas, aqueles fluxos que estão de modo paralelo no centro da atenção dos economistas voltados a definir o modelo de equilíbrio. Redefinir o caráter social dos fluxos, requalificar e distinguir os bens interessados, relativizar o sentido e o alcance daquelas operações: esta é a proposta e a exegese de Polanyi contra a pretensa universalidade do modelo e das proposições dos neoclássicos.107

A perspectiva "comparativista" de Polanyi se voltava antes de tudo para as formas econômicas (trocas, fluxos de bens) e enfatizava as características "integrativas" que essas apresentavam. Mas Polanyi também acabava por sobrevalorizar, na avaliação de Grendi, os caracteres de estabilidade das sociedades estudadas, deixando de lado elementos importantes de análise, como as assimetrias e desequilíbrios que estavam presentes nos sistemas.108

Reconhecidos os limites das análises do pensador húngaro, o tributo pago por ele aos modelos estrutural-funcionalistas, restava levar adiante os caminhos originais que apontava, buscando na antropologia outros ins-trumentos e perspectivas que Polanyi não havia incorporado em suas investigações.

No âmbito da antropologia, sobretudo, o sentido da "troca" era central na análise da estruturação da sociedade. A interação entre as pessoas pode-

ria ser lida em termos de trocas: "troca de bens, materiais e imateriais, isto é, como transação",109 Se a organização social se constrói sobre a regularidade das relações sociais (e, portanto, sobre a interação entre indivíduos e gru-pos) a análise microssociológica dessas relações é a contribuição principal da abordagem antropológica.110

Também da antropologia vinha a idéia de pensar a história social das sociedades camponesas de Antigo Regime a partir do nexo família/comuni-dade. Uma sugestão derivada tanto dos estudos antropológicos de campo sobre as sociedades "primitivas", quanto pelos estudos de sociologia rural ("antropologia das sociedades complexas").111 Os estudos sobre os ciclos familiares e o "modo de produção camponês" localizavam a família no cen-tro da economia das sociedades camponesas. A unidade doméstica, conside-rada nos seus papéis complementares de reprodução, produção e consumo, tinha um lugar fundamental na estruturação social das comunidades. Na análise de Grendi, a família constituía assim — tanto na antropologia quan-to na história social das sociedades camponesas — o ponto de partida mais evidente, fornecendo também um espaço social concreto e definido para a análise.

Polanyi: dali'antropologia economica alia microanalisi storica era divi-dido em duas partes. Enquanto a primeira era uma discussão sobretudo conceituai e teórica sobre a relação entre o pensamento de Polanyi e a antropologia — e a tentativa explícita de atualizar o seu argumento — a segunda parte, intitulada "Microanálise: entre antropologia e história", tentava discutir em termos práticos as conseqüências da uma intensifica-ção em sentido microanalítico da relação entre as duas disciplinas, partindo da discussão de três dimensões agregadas de análise: a família, a comuni-dade e o mercado.

O diálogo com a historiografia é aí mais intenso, entremeado com a discussão dos modelos antropológicos. A definição de Thompson da histó-ria como "disciplina do contexto" era resgatada de saída como uma confir-mação da intuição original de uma "abordagem total" que tinha a pretensão de reconstituir com o máximo de realismo não apenas a "comunidade", mas o universo das suas relações de agregação com a sociedade mais ampla.

A família como dimensão de partida da microanálise era considerada em

seguida. A referência cruzada da reflexão histórica sobre o tema da família aparecia claramente: a demografia histórica, sem dúvida (Peter Laslett, por exemplo), e a literatura histórica mais recente também inspirada pela antro-pologia. Grendi procedia a um exame dos pressupostos e modelos dos estu-dos sobre a família, apontando a presença comum tanto de modelos de "casualidade estatística" que insistiam na força constritiva seja da ecologia (isto é, da escassez dos recursos), seja dos mercados, assim como de "mode-los culturais normativos" que pretendiam ter força explicativa. Entretanto, Grendi afirmava a necessidade de considerar que nenhum desses modelos poderia cancelar a importância das "estratégias e escolhas individuais [mas também de grupos e da própria comunidade] operantes em um quadro de situações concretas" que poderiam introduzir elementos importantes de ino-vação nesses quadros.112 A polêmica era, mais uma vez, contra a considera-ção do "paradigma da racionalidade econômica" como "meta-historicamente" (isto é, universalmente) válido.113

A consideração que partia da família como unidade de produção, repro-dução e consumo era antes de tudo uma estratégia para ganhar a perspectiva de uma "máxima concretude" que era o ponto de partida para uma conside-ração mais densa das "variáveis culturais e situacionais, as alternativas e os valores que são pressupostos da ação".114 Essa consideração valia do mesmo modo para a análise das relações que integravam a família à comunidade e às esferas mais amplas da sociedade.

Em economias encapsuladas (embedded), como eram aquelas das socie-dades européias do Ancien Régime, e nas quais o papel-chave integrativo exercido pela distribuição e pela troca passava necessariamente pela relação entre as famílias e a comunidade, a orientação da análise parecia para Grendi bastante evidente: "desde o 'micro' da unidade doméstica ao 'macro' da sociedade mais ampla, por meio da comunidade entendida como forma de agregação socioespacial intermediária, assimilável a modelos morfológicos diversos."115

Na microanálise proposta por Grendi, espaço e escala eram temas de fundamental importância, da família à comunidade e dessa às formas agregativas mais amplas. A interrogação sobre as "formas de integração" entre as diferentes esferas tornava-se central na análise. As relações entre as

unidades produtivas ligavam-se às trocas e aos fluxos de bens dentro da co-munidade: trocas verticais e horizontais, interações que "exprimiam fun-damentalmente uma série de relações interpessoais mais ou menos institucionalizadas" e que poderiam, portanto, ser cartografadas.116

A antropologia econômica nos orienta em direção a uma perspectiva que coloca em foco de modo crucial as relações interpessoais, e é óbvio que a escolha microanalítica nasce desta exigência. Os estudos sobre comunidades camponesas nos oferecem exemplos e ilustrações dos modos pelos quais es-tas relações podem ser documentadas e reconstruídas como estruturas e com-portamentos: enquanto isso, alarga-se o campo das nossas atenções, conforme a perspectiva etnológica assumida. Com as exemplificações dos estudos so-bre o mercado, terreno mais rico do que aquele das integrações administrati-vas estatais, introduzimos o princípio fundamental de que a história de uma comunidade não pode ser explicada sem transcendê-la, desenvolvendo assim a problemática das suas relações de mediação com a sociedade mais ampla, isto é, a unidade simbiótica: mesmo elas, essas relações, tematizadas como conexões pessoais, de grupos sociais.117

Se as relações econômicas são integrativas, ligando a economia doméstica à economia da comunidade e a partir daí a instâncias mais amplas e à sociedade global, é possível cartografar essas formas e os seus protagonistas. Não por acaso a ênfase recai sobre os "mediadores" (brokers) que funcionavam, antes de tudo, como conexões (mediações culturais e mediações econômicas) entre a sociedade local e a sociedade global e que eram indivíduos ou grupos sociais perfeitamente identificáveis na sociedade.118 Pensar as formas de integração significava, portanto, pensar a forma pela qual se trama o tecido social. A antropologia havia tematizado isto por meio da metáfora da "rede social", que fornecia uma imagem ao mesmo tempo coerente e manejável desse tecido.119

As relações econômicas e sociais poderiam ser pensadas sempre como relações interpessoais. Do ponto de vista da história social, o caminho da microanálise dessas relações para compreender a estruturação real da socie-dade e suas formas de integração era inteiramente coerente com essa

constatação geral. Não se tratava, na opinião de Grendi, de partir dos gru-pos e comunidades isoladas, mas de tentar recuperar a espessura da socieda-de por meio do estudo dos agrupamentos que a constituem.

Aquilo que normalmente se objeta à microanálise histórica é que não se pode explicar o comportamento do grupo isolando-o. Recordo que a instância da microanálise parte exatamente da tendência triunfante de explicar o com-portamento dos grupos sociais, ignorando-os. A hipótese alternativa é aquela de uma reconstrução das configurações da sociedade como um todo a partir do grupo-comunidade, isto é, da reconstrução analítica de experiências co-letivas: os próprios mediadores se configuram como grupo social e, sob o perfil politológico, a classe dirigente se apresenta como composição e de-composição dos grupos.120

O interesse principal de Grendi permanecia sendo o estudo da transformação social: não apenas a compreensão de como se estrutura a sociedade, mas também os processos por intermédio dos quais ela muda. Esse interesse estava na origem da atenção de Grendi tanto ao modelo de "análise configuracional" de Norbert Elias,12,quanto aquele de "análise processual" de Fredrik Barth. A proposta de Barth de pensar as formas da sociedade por meio dos processos que as geram e, a partir disso, construir modelos "generativos" — isto é, que dessem conta de compreender e descrever como esses processos eram produzidos dinamicamente a partir de uma situação dada —, é um exemplo claro desta perspectiva.122 Para Barth, o comportamento médio, costumeiro, que podemos encontrar na sociedade resulta da interação de diferentes escolhas individuais, condicionadas pelas situações, mas antes de tudo impossíveis de serem previstas segundo um modelo preestabelecido de conduta. O "individualismo metodológico" das análises de Barth propunha uma forma de compreender também a mudança: se a estabilidade da sociedade podia ser compreendida a partir da regularidade dos comportamentos dos indivíduos, o comportamento desviante tinha um papel claro de propor inovações que abriam possibilidades de mudança social, bloqueando ou canalizando tensões latentes ou explícitas no interior da comunidade.123 O problema da mudança social era abordado, portanto, não a partir do seu

quadro estrutural, mas de "análises circunstanciadas do funcionamento e da mudança de um quadro social singular", isto é, sobre contextos socioespaciais definidos, recuperando a contextualização das relações interpessoais.124

Para Grendi, a analogia entre a microanálise histórica e a pesquisa de campo era central na realização prática dessa proposta. Seria possível desse modo estabelecer uma ponte entre a lógica da pesquisa de campo e a carto-grafia da documentação. Como o fieldwork — a verificação direta, in loco do cotidiano e das relações correntes em uma dada comunidade — é vedado aos historiadores da Europa camponesa da Idade Moderna, a idéia era a de transferir a sua lógica "holística" para o universo de fontes disponíveis. Daí o sentido de cruzar sistematicamente a documentação que testemunhava indiretamente as relações sociais e as transações nessas sociedades — as fon-tes da demografia e da economia, como registros paroquiais, atos notariais, cadastros, censos, processos jurídicos etc. Documentos indiretos, como se disse, e muitas vezes excepcionais, mas mesmo essa excepcionalidade deve-ria ser colocada a serviço da compreensão do cotidiano "normal" das rela-ções correntes.125 No julgamento de Grendi, o levantamento e o cruzamento sistemático desses registros em um espaço delimitável de inter-relações soci-ais — uma comunidade ou povoado—permitiriam, analogicamente, um acesso tão eficaz e uma possibilidade de análise tão concreta quanto aquela permi-tida pela antropologia social em seus estudos.

Eis, portanto, o percurso proposto por Grendi: da antropologia econô-mica à microanálise histórica. Antes de tudo uma analogia de procedimento — o fieldwork como abordagem holística/total das relações sociais de uma comunidade, pensado por meio das possibilidades e dos limites da análise documental —cruzamento intensivo de fontes nominais dentro de um con-texto espacial circunscrito.

Fundamentalmente, de fato [esse estudo] expressa uma proposta historiográfica realmente problemática, na medida em que se trata de pro-posta: em uníssono com a corrente dilatação dos objetos da história; com as indicações, avançadas em várias partes e até agora pouco experimenta-das, para uma prosopografia generalizada e, portanto, com as exigências de

uma história a partir de baixo; com as ilustrações antropológicas de uma abordagem totalizante de uma sociedade em escala reduzida-, com a proble-mática correlativa de reconstruir contextualmente os processos de mudança social.126

Daí o sentido daquela "passagem analítica do conceito de classe ao conceito de grupo social" de que falava Grendi em Microanalisi e storia sociale:127

enquanto o primeiro termo, na opinião de Grendi, supunha as relações interpessoais sem de fato analisá-las, o segundo permitiria enfrentar de modo mais realista o sentido das solidariedades e das interações que fundam o movimento político e, portanto, estão na origem das transformações sociais, a partir precisamente da análise das interações e inter-relações que formam a base da mudança.128

5. ALCANCE E LIMITES DE U M A ABORDAGEM MICROANALÍTICA

No livro sobre Polanyi, Grendi apresentava os termos de uma proposta de pesquisa que se apoiava também na referência direta a uma historiografia que — como no caso de E. E Thompson, Natalie Davis, John Bossy, e ou-tros, mas também de historiadores mais próximos, como Gérard Delille, Maurice Aymard e Giovanni Levi — começava a enfrentar, a partir de um conjunto de referências teóricas cada vez mais aberto para o diálogo com outras disciplinas, as qilestões referentes à relação entre a cultura e a socie-dade na Europa pré-industrial.

O programa de pesquisa formulado por Grendi havia sido também testa-do empiricamente, em paralelo com a discussão teórica, em uma investiga-ção histórica sobre as comunidades no território lígure. Esse era precisamente o tema da coletânea publicada em 1977, em Miscellanea Storica Ligure.

A apresentação da coletânea dizia certamente algo sobre o estado da discussão e os resultados coletivos daquilo que Grendi identificava como "estudos de microanálise histórica". A indicação imediata é evidentemente a de um trabalho científico e acadêmico que apenas dava seus primeiros pas-sos. Os estudos publicados junto ao do próprio Grendi eram resultado de

pesquisas de estudantes ligados a Giovanni Levi, professor então na Univer-sidade de Turim (a quem, de resto, Grendi agradecia na introdução ao volu-me). Alguns desses estudos resultariam, mais tarde, em trabalhos importantes de micro-história.129

O próprio artigo de Grendi era apresentado com uma ressalva impor-tante: "um estudo que indica mais das perspectivas do que dos resultados analíticos."130 Isso era de fato já sugerido no título "Introdução à análise histórica das comunidades lígures: Cervo na época moderna".131 Um estudo preliminar das comunidades que tinha em Cervo-Ligure um "caso" exem-plar. O ponto de partida era a busca — motivada teoricamente — de uma comunidade como campo de testes para uma interrogação que parte da su-gestão "antropológica" de um estudo holístico de uma sociedade circunscri-ta. O aspecto experimental é apenas intensificado pela aleatoriedade da escolha: Cervo é uma comunidade qualquer,132 e é também uma comunida-de lígure — isto é, pode ser interpelada diretamente a partir de um quadro de referências historiográficas que Grendi já havia delimitado e que vinha enfrentando em suas pesquisas.

O título sugere diretamente o caráter "exemplar" da empreitada: o trabalho sobre Cervo é um experimento para o estudo das "comunidades lígures". A primeira questão historiográfica a enfrentar era precisamente a relação das comunidades e aldeias com o poder central. "A literatura historiográfica de ontem e de hoje privilegiou e privilegia a sociedade e as vicissitudes do centro metropolitano, em conformidade com o estereó-tipo cultural da República-cidade marítima."133 Partindo de uma franca oposição a esse quadro, o que se coloca em seguida, portanto, é a relação centro-periferia que se articula tanto no campo historiográfico quanto no campo das fontes: um Estado enfraquecido (ou ainda débil) nas suas relações com a periferia não favorece uma pesquisa sobre as fontes admi-nistrativas. Em contraste, entretanto, a abundância das fontes locais, materiais primários, sobretudo notariais e judiciários. As fontes de saída são essas.

A hipótese de partida é tirada, uma vez mais, dos estudos antropológicos sobre a comunidade e da sociedade camponesa em particular: sua definição como "sociedade parcial" (termo retirado da obra do antropólogo Alfred

Kroeber) era interpretada por Grendi "nos termos de uma fundamental dialética entre [a] sociedade local e a sociedade mais ampla". Impossível privilegiar um dos pólos da investigação: centro e periferia, Estado e comu-nidade, tinham que ser estudados de modo complementar. Assim, Grendi estabelecia os eixos de pesquisa. Por um lado, partindo do problema da integração entre a comunidade e a sociedade mais ampla, três "perspectivas analíticas": demográfica, econômica (mercado) e político-administrativa. Por outro lado, partindo do estudo da estruturação interna da comunidade, ou-tras três perspectivas: a unidade política, a unidade cultural (definida como a "estratificação social") e a sociedade econômica. A enunciação dos eixos tentava abarcar, abstratamente, mais uma organização de temas do que pro-priamente os passos tomados na pesquisa.134

No artigo sobre Cervo, Grendi retomava algumas das características que haviam delimitado, alguns anos antes, os "caracteres originais" que deve-riam informar os estudos sobre o território lígure,135 dessa vez definidos de modo particular sobre o estudo dessa comunidade. Um território caracteri-zado pela insuficiência crônica de grãos, que por isso era profundamente dependente da comercialização de algumas culturas (vinho e, sobretudo, azeite) e da venda do trabalho (e, no caso de Cervo, pelo menos até o início do século XVIII, da importância fundamental da pesca do coral como ativi-dade compensatória). Uma mobilidade demográfica característica (primeiro aspecto tomado em consideração no artigo), ligada à sazonalidade do traba-lho na pesca (que implicava a ausência regular de aproximadamente 65% dos homens aptos para o trabalho)136 e que poderia ser identificada e estuda-da por meio do levantamento onomástico das fichas familiares, construídas sobre a pesquisa nas fontes paroquiais.

Assim se, por um lado, azeite, coral e grão ("bens de troca por excelên-cia") "exprimem a dependência da comunidade da sociedade mais ampla", conectando a comunidade ao mercado regional e internacional, por outro lado, há uma dependência complexa de ordem jurídica e administrativa com relação ao Estado genovês.

A definição dos aspectos centrais da relação entre a comunidade e o Estado genovês e suas transformações ao longo do período moderno — o estudo concentrava-se sobretudo entre o início do século XVII e a primeira

metade do XVIII — revelava todo um universo de tensões e negociações que envolviam desde a política dos impostos à presença dos agentes do Estado na comunidade, bem como sua função "mediadora" (o podestà, os operado-res jurídicos, os notários). A análise político-administrativa propunha, so-bretudo, uma atenção fina às sutilezas administrativas que ligavam e contrapunham os interesses da comunidade e da sociedade ampla à qual ela estava ligada por inúmeros laços, que iam desde a natural dependência com relação ao abastecimento, até o funcionamento da justiça e o pagamento de impostos. A relação com os administradores locais — figuras que ao mesmo tempo representavam o poder central junto às comunidades e as demandas das comunidades no âmbito dessas relações centro-periferia — também era carregada de importância no argumento de Grendi.

A "modernização" de Cervo — e das comunidades lígures — não se dava, portanto, de modo unidirecional. A política financeira ligava-se à po-lítica administrativa, jurídica e cultural: as relações entre centro e periferia eram tensas e não se resolviam em uma simples imposição das novas e "mo-dernas" instituições às comunidades. A tentativa de introdução dessas novas instituições dava-se como uma "ofensiva cultural do Estado" que tentava fazer penetrar os estatutos judiciais genoveses contra os antigos estatutos locais, bem como por meio da tentativa de "disciplinar normativamente a praxe política local em matéria de assembléias e eleições", implicando, do mesmo modo, enfrentar poderes políticos concorrentes, como a autoridade episcopal.137 A dinâmica política desse processo, com todo o potencial de conflito que trazia, era também indicada nos litígios entre a comunidade e as autoridades, nas microconflitualidades no interior das comunidades e entre elas, no papel dos mediadores políticos, nas relações de patronage etc. As-sim, por exemplo, a análise da ascensão do poder'dos notários era coerente com a extensão do comércio e com o aumento da litigiosidade judiciária, "dois aspectos [que se reforçam mutuamente] de formalização contratual e legal das relações interpessoais na comunidade".138

A identificação da "dialética entre a política oficial e a sociedade políti-ca" como o verdadeiro problema a ser enfrentado na discussão sobre a uni-dade política das comunidades implicava indagar analiticamente as instituições e o seu funcionamento.

Particularismo, conflitos sociais, controle da maioria, corrupção de governo: estas são as características, de resto óbvias, de um organismo político cuja natureza se revela clamorosamente apenas em algumas circunstâncias críti-cas, mas que postula uma particular estrutura de relações sociais a qual cons-titui, como se disse, o verdadeiro objetivo analítico. Aqui podemos prosseguir a análise no nível institucional, colocando o problema amplo do sucesso e da capacidade do organismo político comunitário em realizar uma síntese dos interesses e dos conflitos de uma área de mais paróquias, caracterizadas por sua vez por uma pluralidade de centros de assentamento.139

Assim, também a pluralidade de estruturas sociopolíticas e as "formas asso-ciativas e políticas complementares ou alternativas" eram objeto da análise morfológica e institucional de Cervo: a vila, as parentelas, o "oratório" e as irmandades, a universitas, a igreja, a comunidade, entendidos aí como os "cadres da ação política individual", "produto real e simbólico (...) das inte-rações individuais""0 eram apontados como objetos de análise preferencial da unidade política da comunidade. Sua "unidade cultural", por outro lado, era interrogada nos termos de uma análise da estratificação social que articulava simultaneamente as dimensões material e simbólica.

Aqui, a análise de Grendi se desprendia claramente de qualquer tentati-va de resolver o problema da estratificação social por meio dos indicadores exclusivamente "materiais" da fortuna ou da posição. Não por acaso, a inda-gação era colocada nos termos de uma "análise culturalista" que abordava o problema da estratificação a partir da definição simbólica do poder, expres-so no conceito de "honra" ou "honradez". Termos que traduziam as assi-metrias sociais e lhes davam sentido. As relações de clientela e de patronage, com seus elementos de distinção, dependência e reciprocidade relativa, cons-truíam um quadro complexo de estratificação, que se manifestava na crôni-ca política e judicial, na qual a honra, a violência social, o costume e o procedimento desviante definiam e revelavam limites e possibilidades da ação e da posição na comunidade.

Emerge daí um quadro de estratificação social "operante" que é muito mais fluido e heterogêneo do que a simplificação que opõe antes de tudo "mercadores" e "povo": há os notários, os artesãos, os patrões dos barcos, e

"abaixo disso o indistinto de uma massa de agricultores/pescadores (ou ma-rinheiros)",141 e os que poderiâm ser considerados pobres (como eram defi-nidos pela opinião corrente "aqueles que não fazem o azeite").

Enfim, o último aspecto da estruturação interna da comunidade, as definições da "sociedade econômica", apresentavam-se como confessamente "problemáticas".142 Se a questão central na comunidade de Cervo era sua incapacidade estrutural de conseguir a auto-suficiência, o problema da eco-nomia doméstica se impunha, revelando, entre outras coisas, a necessida-de de "etnografar" as atividades ligadas ao sustento agrícola, colocando em relevo as características do trabalho feminino e jovem (contrapartida de uma força de trabalho masculina e adulta pouco presente). Além disso, havia a vocação marítima de Cervo," que se evidenciava na sua principal atividade complementar: pescadores, primeiro, mais tarde marinheiros e navegantes.143

A discussão sobre o mercado assumia relevância particular: era também o lugar de assimetrias e litígios, sobretudo em torno das exigências conflitantes do Estado genovês, dos camponeses (produtores, consumidores, eventuais vendedores), dos mercadores, enfim, dos protagonistas da economia cervese. Sobretudo em torno da aquisição do grão (questão que atravessava o coti-diano de todos) as relações econômicas demonstravam toda a sua comple-xidade: o "regime subjetivo das transações", a não-objetividade dos preços e trocas, o caráter interpessoal do mercado, a importância central do crédito e das políticas de crédito.144 O crédito, em especial, era considerado o "pro-tagonista da sociedade econômica". Sua importância era dupla: por um lado seu papel "protetor" revelava-se nas negociações da comunidade e nos con-flitos políticos que opunham alguns dos seus setores (principalmente os po-pulares) contra as iniciativas legais de disciplinar e restringir o crédito, a partir de meados do século XVII.145 Por outro lado, as operações envolven-do o crédito, com acesso fácil ao registro do cartório, produziam uma docu-mentação sólida para a cartografia da vida econômica de Cervo e suas transformações, tornando-se uma das fontes centrais para a microanálise projetada por Grendi. Dali também brotavam algumas das conclusões do artigo:

Assim, em vez das leis férreas e omni-explicativas do mercado e das forças da oferta e da procura, inteiramente irreais, podemos reencontrar as razões so-ciais e econômicas que são o fundamento de uma cultura camponesa nos seus nexos aparentemente contraditórios de egoísmo individualista e de solidarie-dade, uma cultura que conhece a limitação de todo bem, seja a comida, a riqueza, o afeto ou a honra.'46

O estudo de Cervo abarcava a identificação dos protagonistas dos processos sociais da comunidade, a definição dos quadros estruturais no qual a ação dos indivíduos e grupos podia ser compreendida. Algumas questões a res-ponder eram certamente identificadas, como a "conversão" operada no século XVIII na economia cervese, da pesca do coral para o comércio marítimo. Antes de mais nada, era o protagonismo das comunidades no contexto da "implantação" do Estado e da economia "modernos" que interessava a Grendi no quadro geral.

O artigo sobre Cervo era, antes de tudo, um programa de pesquisa detalhado, construído sobre uma investigação extensa das fontes disponí-veis, mas ainda preliminar com relação aos objetivos almejados. As conclu-sões provisórias do trabalho (como o caráter "problemático" das hipóteses sobre a sociedade econômica) revelavam uma operação em curso. A refe-rência à cultura camponesa e os valores que informam a ação coletiva fa-ziam sentido sobretudo como uma indicação do campo por investigar. Do mesmo modo, a menção ao estudo microanalítico das relações interpessoais, repetida — como reconhecia o próprio — "obsessivamente, como uma sorte de aposta sobre o futuro da análise histórica",147 era também uma promessa para a continuidade do trabalho. A saída do "impressionismo descritivo" era apontada e reiterada no recurso à antropologia e à mi-croanálise. Uma aposta que prometia — como as 86 páginas daquela "in-trodução" ao estudo de Cervo certamente sugeria — um trabalho longo e difícil pela frente.

O fato é que essa contrapromessa se cumpre inteiramente: o trabalho sobre Cervo não vai receber o ponto final por pelo menos toda a década seguinte. É apenas em 1993 que o seu resultado é publicado em livro, na coleção einaudiana que absorveu os títulos da recém-extinta Microstorie.148

Os motivos dessa longa gestação — que contrasta com o trabalho prolí-fico de Grendi — podem ajudar a entender um pouco melhor o quanto a própria micro-história se transformou e se repropôs na medida em que o debate historiográfico do qual ela fazia parte amadureceu durante os anos 1980. Assim, e nesse caso em especial, elementos importantes da trajetória de pesquisa de um historiador não podem ser explicados apenas por meio das vicissitudes pessoais ou da dinâmica da pesquisa. Algumas das escolhas teóricas e metodológicas feitas por Grendi têm que ser compreendidas tam-bém à luz daquelas transformações no cenário do debate internacional no campo da história e das ciências sociais, que Grendi nunca deixou, de resto, de acompanhar.

Em primeiro lugar, é certo que a inflexão em sentido antropológico da história social vinha se consolidando fortemente nesse período. A própria micro-história colaborava com isso, e não apenas na Itália.149 Mas é verdade também que essa inflexão acontecia, sobretudo, em direção à antropologia cultural e simbólica, cujos resultados passaram a influenciar de modo cres-cente a discussão histórica em geral. A aproximação com a antropologia social e econômica, para cuja direção o trabalho de Grendi apontava, certa-mente não aconteceu com a mesma intensidade.

Em paralelo a isso, algumas categorias de análise, como "prática" e "re-presentação", são alçadas ao centro das discussões teóricas no campo historiogáfico.150 Em segundo lugar, e ainda que não necessariamente em sincronia teórica com isso, o chamado "linguistic turri" dava seus primeiros passos nas ciências sociais e na história. Ele apontava, por exemplo (de modo contíguo às discussões da filosofia e da lingüística pós-estruturalista), para a centralidade das noções de "texto" e "discurso", assim como para a metáfo-ra da sociedade como um "texto" a ser interpretado.151 De todo modo, abriu-se caminho para uma discussão e uma polêmica crescentes sobre o lugar da história como uma disciplina "interpretativa". As referências são, natural-mente, muitas e diversas. Para citar uma, fundamental, valeria lembrar Clifford Geertz e a sua "descrição densa" como paradigma do método interpretativo para a antropologia e, por analogia, para a história. Uma referência impor-tante, nesse contexto, na medida em que foram estabelecidas, mais de uma vez, afinidades reais e supostas entre as suas reflexões e a micro-história.152

A relação de Grendi com todo esse debate — violentamente resumido nos dois parágrafos anteriores — se desdobra em várias direções.

Naquilo que diz respeito à inflexão na direção da antropologia cultural e simbólica, não há dúvida de que a mediação fundamental é aquela da historiografia "culturalista" que o interessava vivamente. A despeito de cer-ta distância com relação à tendência a discutir as questões da transformação cultural abstraindo muitas vezes a referência densa a um "nexo concreto das relações sociais",153 não há dúvida de que os resultados obtidos por esses estudos colocavam desafios de ordem epistemológica e metodológica que não escapavam a Grendi. Sobretudo os trabalhos de Edward Thompson e de Natalie Davis, publicados em meados dos anos 1970, revelavam uma abor-dagem histórica heuristicamente poderosa que partia, entretanto, de refe-rências intelectuais distantes daquelas sobre as quais Grendi fundava sua própria abordagem microanalítica.

Já mencionei antes a atenção continuada ao trabalho de Thompson, em especial a seus estudos densos sobre as relações entre a lei, o costume e o protagonismo da cultura popular na Inglaterra setecentista. Mas o interesse por Davis, ainda que menos evidente, não é menor. Basta citar o impacto do seu livro, Sociedade e cultura no início da França moderna, que Grendi rese-nhara em 1976: a "sabedoria historiográfica incrivelmente moderna" da autora transparecia em todas as páginas de uma obra que era considerada por ele "modelo de ensaística histórica" e "obra-prima da historiografia con-temporânea".154 Um julgamento absolutamente positivo e, de resto, incomum em alguém certamente não pródigo em elogios.

Sua relação com a "história interpretativa" em geral e o "linguistic turn" passa por caminhos bastante diferentes. O contato direto com o ambiente acadêmico americano em uma temporada no Institute for Advanced Study em Princeton (Nova Jersey), em 1983-1984, foi provavelmente importante para a aculturação nesse novo panorama de estudos e discussões. Um pano-rama que ele vê com forte desconfiança e crítica.

A "história cultural" que se desenhava na confluência dessas várias dis-cussões foi objeto de uma atenção "tensa e atormentada" por parte de Grendi durante os anos 1980.155 No próprio coração do debate sobre a micro-histó-ria se desenvolvia, de todo modo, uma tensão entre formas distintas de se

pensar o problema da contextualização: por um lado, a proposta de micro-ánálise das relações interpessoais como terreno mais sólido para uma contextualização mais realista da investigação histórica; por outro, uma abor-dagem que, partindo da análise do episódio e do detalhe significativo, pre-tendia reconstruir um contexto de natureza histórico-cultural inacessível de outra forma. Uma atitude que remetia então mais diretamente aos trabalhos desenvolvidos naqueles anos por Carlo Ginzburg.

Ora, como reconheceu mais tarde o próprio Grendi, aquela era uma "linha divisória" bastante fugidia e imprecisa.156 Mais do que isso, a tentati-va de cancelar a distância entre essas distintas "abordagens" já era então, e continuou a ser, um dos aspectos mais importantes do desenvolvimento da própria micro-história.157 Para Grendi, cuja preocupação com a cultura e com o significado cultural da ação coletiva sempre acompanhou sua discus-são sobre a história social, os desafios colocados pelo problema da con-textualização cultural não eram negligenciáveis. Entretanto, o risco estava em aceitar resultados que não se preocupavam em colocar o problema, para ele essencial, da própria definição e construção de contextos pertinentes, contentando-se com quadros interpretativos prontos e adaptados à "leitura" das situações, ou contextos construídos unicamente sobre bases "textuais" e "discursivas". A desconfiança com relação à capacidade de contextualização da história cultural era acompanhada do reconhecimento de que, ainda que as respostas nem sempre fossem convincentes, havia certamente uma intui-ção correta nas perguntas.

Grendi certamente reage a essa transformação no panorama da discus-são histórica, sobretudo por meio de um novo impulso de pesquisa. Trata-se do início de um reexame profundo dos fundamentos da contextualização do seu próprio trabalho.158 Dessa vez, a reflexão crítica e metodológica não se faz pelo caminho da discussão teórica (que é, na verdade, praticamente aban-donada), mas por meio da investigação empírica e da interpretação. Ele des-loca, progressivamente, a abordagem etnográfico-descritiva e a ênfase na modelização do centro da sua proposta microanalítica. Não se trata de um abandono ou uma reviravolta teórica, mas uma ampliação de algumas das perspectivas presentes tanto na pesquisa quanto da discussão teórica ante-rior.159 Uma ampliação que faz sentido não apenas por meio do diálogo com

a historiografia corrente, mas também em relação aos desafios que a própria pesquisa o fazia enfrentar.

A busca pela ampliação da base documental da sua pesquisa sobre Cer-vo e as comunidades lígures teve como conseqüência o encontro com aquelas fontes da "crônica" cotidiana, cujo tratamento havia lhe interessado tanto em trabalhos como os de Thompson e Natalie Davis. A documentação qualitativamente rica sobre a qual ele se debruçava cada vez mais intensa-mente a partir dos anos 1980 eram antes de tudo as fontes judiciais, civis e criminais, os documentos cartográficos e aqueles "discursivos", como as cartas anônimas (as lettere orbe), encontrados no Archivio di Stato di Gê-nova.

Há aqui dois movimentos importantes: por um lado, a promoção da análise das "práticas sociais" ao centro da atenção; por outro — e mais im-portante — a crescente consciência e valorização da dimensão topográfica do seu objeto de investigação.

A presença nos estudos de Grendi em torno das comunidades lígures da referência ao espaço e à consciência dos atores sociais sobre o territó-rio, sua construção, aquilo que ele definiu como a "consciência social do espaço",160 vai tomando lugar expressivo em seu trabalho de investigação e análise. Todos os trabalhos publicados durante a década de 1980 mostram isso de um modo claro. Assim, alguns temas de pesquisa são revisitados a partir dessa perspectiva — como os estudos sobre as irmandades, os albergui e as sociedades juvenis genoveses —, ou propostos a partir dessa intuição, como os estudos sobre as "práticas dos confins", tematizando a construção da consciência do território por meio das disputas territoriais entre comu-nidades contíguas.161

É possível, na verdade, discutir essa inflexão na pesquisa e nas refle-xões teóricas e metodológicas de Grendi por meio de um olhar atento sobre seu único trabalho efetivamente publicado sob o título de "micro-história" e resultado, enfim, de sua longa pesquisa intensa sobre uma co-munidade lígure: Cervo.

O livro de 1993 retoma não apenas o projeto original exposto no seu "estudo de microanálise histórica" de 15 anos antes, mas contempla toda a ampliação do questionário produzida durante a década anterior. Assim, não

se trata de um livro cujos resultados ou a pretensão possam ser simplesmen-te esgotados descritivamente em alguns parágrafos. A referência modesta a uma comunidade singular no título não engana. O subtítulo reclama um "modelo lígure de antigo regime". Mas as pretensões do livro são maiores do que isso.

Comparado com os outros livros de "micro-história", publicados antes e depois, esse é certamente o mais difícil de abarcar sinteticamente: não é um problema de investigação circunscrito que é abordado, mas sim um conjun-to notável de problemas entrelaçados. Na verdade, é ao mesmo tempo (e a despeito da afirmação em contrário)162 um trabalho de história "total" de Cervo, com evidentes pretensões holísticas, e uma sondagem experimental (e um estudo de caso, ou um exemplo) sobre a constituição das comunidades mediterrâneas do Antigo Regime em sua relação tensa e extremamente com-plexa com as instituições "modernas" que se construíam então. É um estudo que investiga a construção do Estado ao mesmo tempo em que recusa termi-nantemente a pensar o problema do advento das instituições e dos valores "modernos" a partir da história do Estado. Um estudo sobre as transforma-ções das instituições do Antigo Regime que nega ao próprio conceito de "modernização" qualquer valor explicativo (denunciando-lhe, de resto, o caráter teleológico próprio àquilo que chamava de "senso comum his-toriográfico"). Ao mesmo tempo, é um trabalho que aspira ao caráter analógico e heurístico de um "modelo", com pretensões explicativas e com-parativas mesmo para além da Ligúria.

O primeiro problema enfrentado no livro é a própria idéia de "comuni-dade" e sua pertinência como conceito. De saída, o primeiro indício de uma mudança de perspectiva: a pergunta sobre a contextualização mais concreta se desloca desde a comunidade para a própria configuração do espaço e da ocupação, sintetizados na categoria "território". A "comunidade" não desa-parece, mas é recolocada a partir do quadro de referência topográfico. Tra-ta-se de pensar a organização política do território e a própria pergunta sobre os limites da comunidade e sua constituição como unidade territorial dotada de uma "identidade" própria. As relações entre centro e periferia a partir da configuração territorial articulam a questão de como a República, de resto dificilmente classificável como um "exemplo avançado de 'Estado

Regional'",163 articulava sua soberania sobre o território e sobre o conjunto das comunidades lígures.

Essa configuração é investigada e compreendida no livro, exatamente em confronto com as pretensões de soberania que o Estado genovês começa a estabelecer mais claramente entre os séculos XVI e XVII. A extensão do poder da República sobre o território tem que se dar necessariamente por meio de negociações, que ajudam a articular, como contraponto, as próprias comunidades como unidades administrativas com caráter próprio. Assim, por exemplo, a dinâmica fiscal no início do Seiscentos: enquanto a criação de novas taxas (como o imposto.sobre a moagem) ou o redimensionamento das taxas tradicionais (como a averia, o imposto imobiliário) era certamente parte de uma investida do governo sobre a comunidade, era também verda-de que os encargos sobre a administração e divisão dessas taxas ficava a seu próprio cargo. Desse modo, as próprias "instâncias de governo" da comuni-dade eram reforçadas pela nova partição imposta pelo centro.164 A perspec-tiva "a partir da periferia" é explorada por Grendi com maior intensidade, inicialmente com uma descrição "morfológica" das formas de ocupação e assentamento. Aqui as categorias de análise são recuperadas da própria do-cumentação, que permite construir uma "tipologia de agregações": burgos, vilas e formas intermediárias (capelle, terzeri, consolati), e as paróquias. Uma tipologia que serve, entre outras coisas, para investigar de que modo se tra-duzem localmente as obrigações em relação ao Estado e às margens de "au-tonomia operativa" das comunidades.165 A análise se desdobra: a consciência de uma "identidade coletiva" da comunidade — que passa pela articulação de instâncias políticas e administrativas próprias (assim, o significado político da parentela, das irmandades ou das paróquias) — é lida em suas dimensões prático-administrativas, mas também simbólicas (expostas, por exemplo, no ritual político) e espaciais (como nas disputas em torno da delimitação dos confins do território).

A identificação da pluralidade dos protagonistas da sociedade política regional (a metrópole, as cidades ou burgos periféricos, as comunidades) é acompanhada pela reconstrução da "escala de assimetrias" que articulavam centro e periferia.166

O processo por meio do qual o Estado que se constitui articula sua

presença na comunidade é explorado em detalhe: assim como a esfera fis-cal, também a administração da justiça é considerada "elemento chave da relação metrópole-comunidade".167 No plano da justiça, tanto a gestão quanto a normativa se articulam, nessa relação, como parte importante do "processo estatal-territorial". Entretanto, este não acontece unidi-recionalmente: o conflito e a negociação em torno da construção desse mundo jurídico produzem resultados que não podem ser lidos simples-mente na chave da constituição unilateral de uma "hegemonia judiciário-fiscal" da metrópole. No caso de Cervo e do Estado lígure, o protagonismo das comunidades é evidente, na medida em que têm espaço para, por exem-plo, reformar seus próprios estatutos, conferindo-lhes uma parcial, mas importante, autonomia judiciária.168

As diversas escalas de conflito são olhadas com cuidado: as controvérsias entre as vilas, entre os centros de paróquia e as vilas, dentro das próprias vilas, entre as diversas instâncias de poder que perseguem objetivos diversos e lutam pelo status paroquial. Enfim, uma série de níveis administrativos que constituem a complexidade da sociedade regional:

Podemos assim configurar uma série de níveis, uma escala que vai da infor-mal assembléia dos cabeças de casa que se reúnem no oratório ou na praça, à universitas da paróquia, ao parlamento mais ou menos aberto: com freqüên-cia, o nível sucessivo representa agregações territoriais diversas, cada uma mais incisiva que a anterior. Deriva daí um sistema de microconflitualidades territoriais que se apoiam sobre identidades plurais e, em certa medida, con-correntes. A identidade superior e inclusiva, de todo modo, é sempre uma construção, e como tal é submetida a tensões e cisões.169

Assim, não se trata de um palco de conflitos, mas de vários. Do mesmo modo, não apenas um protagonista, mas uma pluralidade deles. A própria "comu-nidade administrativa" é vista como produzida historicamente, "fruto de uma conquista, mais freqüentemente negociada".170 O "modelo de conflitualidade interna" é, ele mesmo, distinto de acordo com os interesses das comunidades que estão também concorrendo entre si. Mesmo as formas locais de arti-culação desses conflitos não é homogênea: o campo de forças se altera,

dependendo também dos protagonistas locais e dos seus interesses, nem sempre coerentes.

O quadro construído por Grendi nesse capítulo é antes de tudo uma decomposição do "diagnóstico" de anacronismo e atraso da constituição do Estado lígure. A análise miúda dos conflitos, construída por meio de episó-dios e case studies, ao longo do eixo centro/periferia, serve para complicar o jogo, acrescentando cartas e jogadores. A imagem de um projeto estatal coe-rente que se "implanta" fica bastante corroída, e o desenho que emerge é de uma sociedade regional que se constitui a partir de um campo de forças no qual o protagonismo e a possibilidade de inovação dos diversos atores so-ciais não podem ser ignorados. A conclusão aponta para um raciocínio que, reconhecendo o "trend" do processo estatal (que aparece, por exemplo, na homogeneização da linguagem política), desconfia da sua capacidade explicativa: "Aquilo que para a nossa cabeça é um anacronismo, corresponde na realidade a um processo político."171

Enquanto o primeiro capítulo explora os antagonismos a partir da rela-ção centro-periferia, o seguinte volta-se para o interior da comunidade. A investigação do seu jogo político identifica os papéis sociais de influência e de poder: não apenas os "principais" (como eram chamados os notáveis locais), mas os patrões e, especialmente, os notários e os padres, "persona-gens que definem, nos seus papéis característicos de mediação, a natureza jurídica e sacra das comunidades" e cuja concorrência interna era notável.172

Uma consideração que se apóia na identificação dos corpos políticos atuan-tes no território. A atenção sobre o aspecto cerimonial da política revela como a organização política e a organização do sagrado se entrelaçam e se estabelecem a partir da referência ao território. Assim, por exemplo, a iden-tificação — por meio das menções e benefícios legados nos testamentos dos cerveses — das igrejas, irmandades e oratórios como referências de "pertencimento" a uma área comum.173 A própria paróquia (ou a unidade universidade/paróquia) aparece como "corpo político com pleno direito", isto é, como corpo institucional operante tanto no nível fiscal, quanto em relação à instrução e ao recrutamento de funcionários e oficiais de milícia.174

O estudo do cerimonial permite recompor, ou ao menos investigar, a estrutura política da comunidade. "A territorialidade explicitada nas formas

rituais de ativa participação social — procissões, associação de cadáveres, transporte dos santos óleos, rogações — pode exprimir fortes rivalidades intercomunitárias, nem mais nem menos do que acontece no caso dos con-flitos seculares pela exploração dos bosques e das terras comuns em situação de usufruto promíscuo ou de confins incertos."175

A "crônica" da política é recuperada também nos ricos registros notariais, os Atti civili, que registravam desde os débitos até as vendas de azeite e as contratações para a pesca do coral. O recurso ao notário sugeria a expecta-tiva do contencioso judiciário, que revelava por sua vez algo dos esquemas operantes das assimetrias sociais da comunidade.176

A descrição "estrutural" da política cervese identifica os papéis-chave da comunidade na evolução política do território entre os séculos XVI e XVIII. Essa identificação das forças políticas permite assim delimitar, por exemplo, os conflitos de interesses — como as disputas entre o "partido dos notários" e os comerciantes, em torno das taxas, do controle do comércio etc. — e suas transformações, mas também a "linguagem política" da comunidade, que articula as referências às obrigações externas (taxas, justiça, soberania) aos temas internos que "derivam da colocação territorial no interior da co-munidade".177 A análise da evolução dos conflitos políticos ilumina também as transformações da "situação socioeconómica" do território.

Esse entrelaçamento entre o político e o econômico é analisado dia-cronicamente no terceiro capítulo, que aborda a "sociedade econômica re-gional". Ali, os elementos centrais, identificados no estudo sobre Cervo de 1977, retornam em cheio: uma comunidade com insuficiência crônica de grãos, em regime de comercialização forçada, que tem no azeite e no vinho os "recursos parciais de troca". A "emigração sazonal como forma estrutural de investimento-trabalho" — voltada, sobretudo, para a pesca do coral — é considerada o fenômeno central a investigar, junto com a importância de um outro recurso ambíguo: o crédito.

A análise se movimenta em um terreno bem distante do reconhecimento das "leis do mercado". O jogo das tensões políticas e o contencioso envol-vendo as trocas e as divisões, as assimetrias territoriais (uma "multipolaridade econômica que não se exaure [...] no pólo metropolitano")178 que implica-vam recursos diferenciados e interesses distintos, constroem um sistema de

trocas muito mais complexo, impedindo, de resto, uma interpretação "mer-cantil unilateral" do funcionamento da economia territorial.

A reconstrução da "ideologia das políticas econômicas comunitárias"'79

permitia a Grendi a identificação de três grandes questões implicadas na gestão econômica do território, e por meio das quais se manifestavam tanto os focos de tensão com o centro, quanto entre as próprias comunidades: 1) a defesa dos recursos do trabalho; 2) "as tentativas de disciplina administra-tiva do comércio e da venda"; 3) "a produção dos recursos primários".180

Esses pólos de tensão estavam implicados nas escolhas políticas e adminis-trativas operadas por todos os protagonistas da política e da economia cervese.

Na análise da "estrutura morfológica" do movimento das mercadorias, identificavam-se dois fluxos distintos, que correspondiam a princípios conflitantes de comércio: o armazém e o mercado. O primeiro, mais próxi-mo das necessidades próprias ao abastecimento administrado e comissionado, e o segundo respondendo mais de perto à idéia de um "fluxo livre". Entre-tanto, esses dois recursos apresentavam-se ora em conflito, ora em ambígua concatenação. Mais do que isso, nem sempre se comportavam coerentemen-te. Os seus princípios reguladores (cujos fluxos são objeto de uma atuante tentativa de disciplina pela administração territorial) são muitas vezes flui-dos. A tentativa de reconstruir esses princípios e o seu funcionamento é sem dúvida um elemento central na análise de Grendi.

Mas Grendi não reconstrói esses termos e princípios segundo alguma idéia reguladora unificada. Se os dois princípios — armazém e mercado — correspondem a dois fluxos distintos, com regras diferenciadas, eles não podem ser pensados simplesmente por meio de um "modelo" coerente, como o princípio funcionalista da "redistribuição". O quadro é mais complexo e contraditório; do ponto de vista administrativo, "de árdua gestão".181 Mais uma vez, um campo de forças que expõe como a "gestão da política econô-mica local" se torna uma ocasião importante para toda a sorte de conflitos dentro da comunidade, bem como na integração com as esferas mais amplas da sociedade. Um processo no qual as comunidades têm um protagonismo inegável, tentando defender seus recursos, ao mesmo tempo em que defen-dem sua organização social: utilizando-se da política fiscal, mas também dis-ciplinando os recursos, fixando calendários, definindo uma hierarquia de

valores dos bens etc. Um conjunto de ações que exprime, "em nível microterritorial, uma vontade política coletiva", uma "política econômica", uma "forma de planificação territorial".182

A análise de Grendi não constrói assim um princípio unitário no qual poderia ser enquadrada a ação coletiva das comunidades (uma "economia moral" ou outra), mas cartografa os vários princípios concorrentes, carrega-dos de paradoxo e ambigüidade. O "modelo lígure" aparece assim como um conjunto de respostas nem sempre coerentes às grandes questões que inter-pelam a comunidade.

Uma dessas questões é certamente a da sazonalidade do trabalho com respeito ao caráter "estrutural" do abastecimento, marcado pela deficiência da produção local (o que implicava, de resto, uma complexa rede de sedes administrativas, tanto locais quanto centrais, que tentavam administrar os contratos e os créditos). Seguindo essa pista, a análise econômica se adensa, no capítulo seguinte, por meio da investigação da pesca do coral como em-preendimento comunitário, cujas características são reconstruídas de-talhadamente: "a composição das expedições de pesca (número de marinheiros e da equipe, tamanho dos barcos, tempo), a forma da divisão dos ganhos, a moral social de uma articulada transação que configura a pesca do coral como co-adventure."m

A pesca coletiva do coral, "aventurosa e heróica" nos bancos de coral da Córsega e da Sardenha, vem qualificada por Grendi como uma "empresa social" de mar, de caráter "individual-coletivo", isto é, definida não apenas como uma operação comunitária, mas capaz de ser lida também como um empreendimento de indivíduos singulares. A análise da pesca, desse modo, exigia reconhecer a "proliferação de cálculos econômicos" que ela implica-va. Essa análise era realizada, marcadamente, sob uma luz antropológica: não se tratava apenas de interpretar as entradas, saídas e os riscos envolvidos em termos de uma escolha militarista. Era preciso interrogar o significado dessas escolhas e da própria pesca como atividade marítima que implicava habilidades específicas, empresa masculina e viril, dotada de uma própria "cultura de honra" e que, desse modo, possuía um sentido de "superiorida-de cultural" que a distinguia de outras formas de emprego do trabalho como recurso complementar em Cervo.

Ocasião de mobilidade social e de acúmulo individual, era também ativi-dade arriscada, não raro marcada pela tragédia (morte, naufrágio, captura e escravização): daí a importância, em terra, das viúvas e esposas "depositárias daquela informação que é necessária para muitos negócios locais".184 A pes-ca de coral ocupava toda a comunidade e, por suas próprias características, ligava as suas vicissitudes àquelas de um espaço geopolítico e econômico muito mais amplo. Isso na medida em. que se integrava em um mercado de longo curso, por meio dos mercadores de Gênova e Livorno, até a Espanha e as Américas, Portugal e a Ásia. As transformações dessa atividade eram também elemento central para o entendimento das mudanças operadas no próprio destino de Cervo.

No último capítulo, as transformações da economia e da sociedade cervese entre os séculos XVII e XVIII são investigadas: por um lado, a sazonalidade do crédito; por outro, a "conversão econômica" operada no início do século XVIII. A análise se debruça sobre os registros notariais referentes à pesca e ao comércio (as "antecipações, os investimentos na pesca, os dotes [quietanze dotali], créditos e vendas de terra). É, sobretu-do, sobre as transformações da economia cervese e a "conversão" da co-munidade desde a pesca do coral até o comércio marítimo que se volta a análise. Faz isso, por um lado, reinserindo a pesca "no seu real contexto, local, regional, mediterrâneo, mundial", na tentativa de "explorar o pro-cesso econômico-cultural" da mudança.185

O que a interpretação de Grendi desenha é uma atividade tradicional (cujos procedimentos e técnicas permaneceram basicamente os mesmos des-de tempos remotos até o século XIX) que, como empreendimento, era antes de tudo uma estratégia de uma comunidade com poucos recursos. As peque-nas embarcações de cinqüenta toneladas armadas para pesca eram "função de uma comunidade pobre e com uma acentuada dependência dos mercado-res genoveses".186

As transformações que se operam nas várias escalas nas quais a pesca e a comunidade se integravam devolvem a "conversão" a um contexto com uma pluralidade de níveis. Daí se antevê que, do ponto de vista da comu-nidade, a pesca "democrática" do coral — característica do médio Ponente lígure — se torna cada vez mais uma atividade menos recompensadora

para a maior parte dos envolvidos nela como pequeno empreendimento. Em parte, porque o comércio mundial do coral se torna mais importante, com o conseqüente incremento da escala de operações, e a pesca acaba por atrair recursos e empreendimentos cada vez maiores, ligados igualmente à lucrativa indústria do coral. O negócio é estimulado, sobretudo, pela com-petição crescente entre Livorno e Gênova, bem como pela importância crescente de todo o empreendimento e da organização industrial das ativi-dades ligadas ao coral (que deve ser escolhido, polido etc.). Como resulta-do, a pesca do coral se torna pouco viável para os pequenos empreendedores de comunidades litorâneas como Cervo. A pesca do coral como operação marcada pela co-participação, que dividia riscos e investimentos, vai per-dendo sua importância lentamente. O valor dos homens e dos seus traba-lhos, que era fundamental, diminui. O que muda também é que, de muitos modos, o ônus da armação da pesca deixa de ser do tipo que pode ser dividido, e é cada vez mais o empreendimento de alguns poucos. O traba-lho da pesca vai se tornando, assim, mais um dos possíveis trabalhos marí-timos (e não o mais lucrativo deles). Os comerciantes bem-sucedidos de Cervo, por outro lado, começam a mudar-se para Gênova na medida em que se voltam para o grande comércio, ligando cada vez mais seus próprios interesses aos interesses da República.

A transformação de uma atividade subsidiária — o comércio marítimo — em atividade principal durante o século XVIII torna-se compreensível nesse entrelaçamento de motivações diversas, de cálculos econômicos, de estratégias. É parte integrante, do mesmo modo, de um conjunto de trans-formações socioculturais que iluminam a dinâmica da comunidade em suas relações com a sociedade regional.

Indubitavelmente, o significado amplo do processo é aquele de uma relativa perda do referente comunitário, uma queda da autonomia, da corporatedness da comunidade cervese. Com o comércio marítimo, a sociedade econômica cervese adquire uma dimensão extraterritorial mais clara e explícita, e, con-seqüentemente, os destinos da comunidade se ligam mais coerentemente com a sociedade econômica regional.187

As transformações da pesca ligam-se assim às transformações no próprio território e às ligações entre centro e periferia. Não se trata de uma simples incorporação da comunidade a um Estado que se constitui modernamente: a história de Cervo mostra como suas próprias dinâmicas internas tiveram um caráter constituinte em relação à maneira pela qual essa configuração político-institucional se articulou. Os conflitos miúdos, as estratégias indi-viduais e coletivas, a diversidade das "políticas comunitárias": todas exercem um protagonismo importante, cujo reconhecimento permite entender melhor o funcionamento dessa sociedade de Antigo Regime.

O estudo sobre Cervo conclui-se então como uma descrição minuciosa das transformações da vida econômica de uma comunidade litorânea por cerca de três séculos. Grendi reconhece que era possível indicar, na Ligúria, outra comunidade com uma "estrutura de trocas" muito diferente.188 Qual, então, a "validade geral", a "representatividade" de uma história-caso que se pretende não apenas como um estudo exemplar da sociedade lígure, mas de uma sociedade de antigo regime tout court?

Não é, claramente, um modelo estatístico, "estrutural". No caso da Ligúria e seu território, trata-se de dar densidade interpretativa às indagações, por um lado, sobre o diagnóstico do "atraso" da constituição de um Estado regio-nal; e por outro, "analisar as respostas de qual situação geral da obrigação à comercialização a carência granária impõe".189 As respostas poderiam suge-rir, e o fizeram, fundamentos para uma análise comparativa das comunida-des do Antigo Regime. Mas não são as respostas, parece-me, a oferecer aquele caráter generalizador que a idéia de "modelo" afirma. A força analógica está em outro lugar.

E exatamente no potencial cognitivo da abordagem microanalítica que o caráter generalizável dos resultados se revela. Que a microanálise não possa mais ser definida aqui nos termos de uma "cartografia" das relações interpessoais, apenas atesta sobre as transformações impostas pela amplia-ção do questionário e o enfrentamento dos desafios historiográficos de que falei mais cedo. Permanece e, de certo modo, se intensifica o "olhar históri-co ao microscópio" que permite, como Grendi afirmava de passagem na introdução, "esclarecer aquelas relações contextuais que a história por seto-res remove".1'0 A contextualização realista da vida social é potencializada

por uma multiplicação de perspectivas e de percursos analíticos, que revela-va a pluralidade dos atores sociais e das oportunidades de ação e pro-tagonismo, a diversidade de linguagens políticas e das práticas sociais, assim como de categorias de análise que escapavam e confrontavam diretamente as conclusões da historiografia corrente. É uma sondagem, ou um experi-mento, no campo de uma história da sociedade política e econômica que procura abandonar de vez a perspectiva anacrônica da história do Estado, desafiando suas hierarquias de relevância e reintroduzindo os elementos de indeterminação do próprio processo histórico.

O trabalho sobre Cervo dá substância a todo um novo conjunto de ques-tões que Grendi vinha tratando desde o final da década de 1980. A nova direção do seu trabalho pode ser seguramente sintetizada na conquista da dimensão espacial e topográfica — o conceito-chave aqui é certamente o de "território" — como ângulo de observação privilegiado. Essa nova consciência desenvolvia e radicalizava uma intuição poderosa, presente desde o início do seu trabalho, da importância da perspectiva "local". É importante aí, como não deixa de apontar o próprio Grendi, o encontro com a tradição inglesa da local history, que apresentava para ele um "paradigma forte da história local, tanto no sentido analítico quanto civil", isto é, um modelo de análise que, partindo de uma forte consciência topográfica, permitia articu-lar um conjunto de saberes múltiplos que tem o território como referência, desde a arqueologia e a geografia à agronomia, à botânica e à ecologia, inextricavelmente entrelaçadas com a história social e a análise das práticas e das culturas.191 A polêmica, mais uma vez, é contra a "cegueira" espacial dos historiadores, com a conclusão coerente de que, na Itália, não existia de fato uma tradição de história local digna desse nome.192

Não há dúvida de que era um projeto central para Grendi, em plena execução quando a morte prematura o captura em maio de 1999. Prova disso é o "Seminário permanente de história local", que liderava em Gênova desde 1989, juntamente com Osvaldo Raggio, Angelo Torre, Diego Moreno e Massimo Quaini. O seminário, conduzido por professores e estudantes do Departamento de História Moderna e Contemporânea da Universidade de Gênova, entrelaçava, de fato, o engajamento didático e a pesquisa empírica. Seu primeiro encontro discutia Mare Bloch e a história rural francesa, junta-

mente com a local history britânica. As fontes de inspiração e os temas-chave se manifestavam já na escolha do seu tema inicial: "a pretensão era a de ler as propostas de pesquisa sobre objetos-chave — os confins, o espaço, o território — como fenômenos sociais e culturais, desenvolvendo a discus-são, por exemplo, sobre as referências simbólicas, das unida,des de assenta-mento, a articulação da sociedade econômica regional, a relação entre estatutos e costumes."193 A Ligúria se tornava assim um laboratório onde uma reflexão histórica era conduzida sob uma inspiração comparativa e interdisciplinar. Um desenvolvimento decididamente imprevisível daquela inspiração microanalítica, mas que já produzia resultados sugestivos no pró-prio trabalho de Grendi. Seus últimos anos viram ainda aparecer o resultado de uma intensa pesquisa sobre uma família de comerciantes genoveses, os Balbi, assim como artigos que começavam a descortinar novos temas de pes-quisa (como a cartografia e a arqueologia, ou ainda os viajantes na Ligúria) ou a retomada de temas que nunca deixaram de lhe interessar, como a histó-ria da cidade e dos trabalhadores.194

* * *

Resta articular com todas as letras a pergunta que atravessa este capítulo: o que a trajetória intelectual de Grendi revela sobre a micro-história? De saí-da, não há dúvida que há um entrelaçamento profundo entre os interesses marcadamente singulares do historiador genovês e os caminhos trilhados pelo debate. A inflexão é, obviamente, recíproca.

Falar em uma transformação radical ou no abandono dos seus interesses e perspectivas ligados ao projeto microanalítico no correr dos anos me pare-ce francamente pouco apropriado. Todas as mudanças e rearticulações que se expressam em seu trabalho e em suas discussões teóricas mantêm, na ver-dade, uma forte coerência com as questões abertas sob aquele endereço. Sua redescoberta da história local fundamentada sobre o paradigma do territó-rio é marcadamente conexo com o seu interesse de longa data pela dimensão local, definida de resto por uma consciência clara da necessidade de colocar a investigação histórica sobre o terreno mais concreto. A polêmica incansá-vel contra o "senso comum historiográfico", e, portanto, contra os modelos

anacrônicos e teleológicos do mercado e do Estado, expressava-se em duas direções. Por um lado, a tentativa sistemática de reivindicar, contra uma "hierarquia de relevância" preestabelecida e o uso acrítico de categorias reificadas, a pluralidade de objetos e de relevâncias. Por outro lado, o esfor-ço continuado de explorar a pertinência de novas categorias de análise, a partir da própria experiência e linguagem dos sujeitos, considerando o signi-ficado da sua experiência histórica nos seus próprios termos. Toda a atenção sobre as singularidades, o uso consciente do "olhar ao microscópio", nunca deixa de ser seu principal instrumento investigativo.

A própria resposta formulada por Grendi aos desafios da história inter-pretativa alimentou-se daquele impulso constante em repensar, em termos teóricos e instrumentais, a prática histórica que estava, de resto, no cora-ção de todo o projeto da micro-história. Sua conclusão era a de que não se pode proteger a pesquisa histórica do relativismo deixando de encarar as questões que ele coloca, isto é, "ignorando as formas expressivas e os pro-blemas de interpretação histórica". Em nome da "defesa analítica da reali-dade histórica", Grendi insiste na necessidade de integrar "ações e expressões" — práticas e representações, portanto — na análise densa dos processos sociais.195

Enfim, não por acaso, lado a lado com esses tópicos essenciais que mar-caram a micro-história, desde as proposições teóricas da proposta micro-analítica a té os seus desenvolvimentos posteriores no teste de fogo da pesquisa empírica, o que surge como elemento unificador da sua trajetória está afir-mado no breve prefácio inacabado do seu último livro, escrito poucos meses antes de morrer. Ali, instado a identificar um elemento unificador de sua longa aventura pela história, escrevia:

Talvez eu nunca tenha gostado muito de Lucien Febvre, cujo nível retórico me pareceu sempre excessivo. Isso não impede que seja precisamente uma expressão sua que tenha entrado em mim em um nível subliminar na juventu-de e não tenha jamais me abandonado. Não sei se conseguirei um dia encon-trar a citação exata: dizia algo como a história deverá ser a dos grupos sociais, ou não será.196

É preciso, acredito, levar a sério essas últimas palavras. Essa reivindicação da história social me parece profundamente articulada com a própria motivação de toda a empresa da microanálise e da micro-história: uma reflexão cons-tante, politicamente motivada por um interesse genuíno e teoricamente articulado pelo problema da transformação social, as oportunidades do protagonismo social, e a própria definição mais concreta do próprio "sujeito" da história. Que os desdobramentos que a proposta microanalítica sofreu no seu percurso não tenham jamais abandonado essas intuições originais e essas preocupações, apenas demonstram a impossibilidade de ignorar que está aí um dos eixos principais que lhe dão sentido.