Letramentos de Reexistência

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  • 7/25/2019 Letramentos de Reexistncia

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    Revista EscritaRua Marqus de So Vicente, 225 Gvea/RJ CEP 22453-900 Brasil

    Ano 2012. Nmero 14. ISSN [email protected]

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    LETRAMENTOS DE REEXISTNCIAPOESIA, GRAFITE, MSICA, DANA: HIP-HOP

    Maurcio Silva doutor em Letras Clssicas e Vernculas pela Universidade de So Paulo e professor de mestrado e doutorado naUniversidade Nove de Julho/SP.

    Email: [email protected]

    Entre as muitas inovaes que o mundo contemporneo pde para o bem ou para

    o mal oferecer cincia, figuram com singular produtividade os estudos acerca da cultura

    popular, que, cada vez mais, adquirem uma at ento improvvel aura de pesquisa

    acadmica. E o estudo em muitos sentidos, exemplar de Ana Lcia Souza (Letramento

    da Reexistncia. Poesia, Grafite, Msica, Dana: Hip-Hop. So Paulo, Parbola, 2011) s

    vem confirmar essa assertiva...

    A autora comea lembrando que o termo hip-hopse refere a um movimento socialjuvenil urbano enraizado no segmento populacional de baixo poder aquisitivo, a maioria

    negra e jovem (p. 15), que ganha fora, primeiro, nos Estados Unidos a partir da dcada de

    1970, espalhando-se, em seguida, para outras partes do mundo, inclusive o Brasil. Marcado,

    sobretudo, pela reflexo e crtica que faz em relao s desigualdades sociais e raciais (p.

    15), utiliza-se dos gestos, escritas, imagens etc., apoiando-se em quatro figuras artsticas:

    o/a mestre/a de cerimnia (MC), o/a disc-jquei (DJ), o/a danarino/a (b.boy/b.girl) e o/a

    grafiteiro/a. Sua face mais expressiva, contudo, encontra-se no rap, poesia cantada que

    nasce a partir da juno do MC e do DJ. Alm disso, o hip-hoprevela-se como um espao

    de uso social da linguagem, envolvendo, portanto, prticas de letramento.O objetivo do livro, portanto, estudar como se do essas prticas de letramento no

    meio cultural do hip-hop e como se configuram as identidades sociais de seus agentes, na

    periferia de So Paulo, pesquisa feita tanto por meio de rodas de conversa (questionrios,

    entrevistas coletivas etc.), quanto por meio de escritas autobiogrficas e outros modos de

    apreenso da realidade observada. Apoiando-se nos estudos sobre os letramentos mltiplos

    e heterogneos que atribuem uma perspectiva sociocultural s prticas de letramento ,

    aliados s contribuies dos estudos culturais e da viso bakhtiniana da linguagem, a autora

    observa que tais perspectivas se expressam tanto nos meios escolarizados como em

    processos de espaos de aprendizagem em distintas esferas, alm do fato de o hip-hoprecombinar, sem hierarquizar, os multiletramentos, reinventando os usos sociais da

    linguagem. o que Ana Lcia Souza chama de letramentos de reexistncia:

    os letramentos de reexistncia mostram-se singulares, pois, ao capturarem a complexidadesocial e histrica que envolve as prticas cotidianas de uso da linguagem, contribuem para adesestabilizao do que pode ser considerado como discursos j cristalizados em que as

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    prticas validadas sociais de uso da lngua so apenas as ensinadas e aprendidas na escolaformal (p. 36).

    A autora lembra que, como resultado de um sistema educacional segregacionista, as

    prticas de letramento baseadas na oralidade so marginalizadas, em favor do modelo

    europeu do letramento escrito, o que atinge particularmente as comunidadesafrodescendentes, cuja cultura se apia, em grande parte, na oralidade:

    para ser leitor, dentro de um processo em que a palavra escrita europia e responde steorias racistas vigentes, preciso embranquecer. As leituras de negros e mestios,marcadamente influenciadas pela tradio oral desvalorizada, juntamente com seu corpo dedescendncia africana, no tm lugar, valor algum se comparadas aos valores da leitura e daescrita ensinados na escola, ou fora dela (p. 40).

    A autora destaca, portanto, a dimenso educativa do hip-hop comprometida em

    recriar, de maneira singular, as prticas culturais e educacionais que marcam o movimento

    social negro nas diferentes pocas, desde a chegada dos negros africanos no Brasil (p. 43).

    Analisando o hip-hop sob a perspectiva do movimento diasprico e como

    manifestao urbana cosmopolita, a autora trata das razes histricas do movimento,

    associando-o, inclusive, tradio oral dos griots africanos, como se pode perceber nas

    atividades desenvolvidas pelos rappers, que procuram em suas narrativas tematizar

    aspectos sociais, polticos e econmicos do cotidiano.

    Tendo ganhado dimenso universal nos Estados Unidos das dcadas de 1960 e

    1970, o movimento hip-hopdesenvolve-se no Brasil na passagem dos anos 70 aos 80, em

    meio s reivindicaes do movimento negro e da crtica ao racismo. Nos anos 90,

    explicitam-se as relaes do movimento com formas de luta e resistncia, relacionadas cultura e festividade, mas tambm se filiando noo de educao, em sentido amplo,

    ocupando inclusive espao de educao formal e no formal. So, em ltima instncia,

    manifestaes explcitas de letramento, na medida em que buscam, por meio da linguagem,

    apropriar-se de saberes socialmente construdos: participar do hip-hop tem significado

    aprender a inserir-se no universo letrado, alterando as imagens neutralizadas sobre as

    prticas de letramento dos jovens de periferia, dos jovens negros e pobres (p. 80). Da

    tambm, como se aludiu h pouco, seu vnculo com a educao em geral: o movimentohip-hop pode ser considerado como um espao de prticas que, sem ser fixo ou

    suficientemente institucionalizado, engendra possibilidades de usos da linguagem emprticas letradas (p. 82).

    A autora analisa, finalmente, as narrativas pessoais dos ativistas da cultura hip-hop

    (para muitos deles, como se verifica em seus relatos, a escola um espao de sociabilidade,

    e o movimento hip-hopdesempenhou um papel de combate violncia), sua constituio

    como agentes de letramento, sua vinculao com prticas prprias do movimento, que

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    podem ser associadas a prticas de letramento (fanzine, rap) etc. Para a autora, o hip-hop

    tomado por estes jovens como um

    engajamento significativo que faz emergir questes como a coletividade sustentando asformas de reexistir e o contato com diversas prticas de leitura. Isso possibilitou que as

    redes criadas se transformassem em fios que, de maneira heterognea, foram sendoentrelaados, para dar sentido s suas escolhas e para demarcar identificaes ediferenciaes com determinados grupos, constituindo suas identidades sociais (p. 99).

    Estendendo sua anlise, ainda, s manifestaes mais especficas do universo

    abordado, como o rap, ou discutindo controvertidos conceitos, como o de raa negra, Ana

    Lcia Souza nos oferece um competente painel de algumas das possveis relaes entre o

    hip-hop e as prticas educacionais, como o letramento, tornando-se leitura indispensvel

    aos interessados no assunto.

    Referncia

    SOUZA, Ana Lcia Silva. Letramentos de Reexistncia. Poesia, Grafite, Msica,Dana: Hip-Hop. So Paulo, Parbola, 2011.