Lendas e Fatos. xoklengs

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Descreve aluta do povo xokleng do sul de Santa Catarina contra os bugreiros, e os colonos. conta como foi se dando o massacre e o que resta hoje desse povo.

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  • Lendas e fatos de um caador de ndios

    Sanguinrio, perigoso, Martinho Marcelino de Jesus Martins - o Martinho Bugreiro - ganhou a vida expulsando e exterminando

    xoklengs das frentes de colonizao em Santa Catarina

    Joel Gehlen

    - Era tudo home escodo, bom de brao, muito 'quebra', valente mesmo, que sabia atirar e lutar de espada.

    Assim Ademir descreve os "caadores de ndios", uma estirpe que teve em seu av, Martinho Marcelino de Jesus Martins, o mais notrio representante. Eram pessoas sanguinrias, perigosas e matadoras que, a mando de particulares ou do governo, ganhavam a vida expulsando e exterminando os ndios xokleng das frentes de colonizao em Santa Catarina. Estes "batedores do mato" agiram da metade do sculo passado at por volta da dcada de 30, nesse sculo, principalmente ao longo do vale do rio Itaja.

    Ademir mais o mano Alcindo so netos do clebre Martinho Bugreiro, moram em Vidal Ramos, cidade onde o av trabalhou alguns anos dando proteo ao engenheiro Walter Rohden, que fazia a medio das terras que, na poca, pertenciam ao municpio de Brusque. Em toda a regio, serra acima e vale abaixo, ficaram histrias e multiplicaram-se lendas que muitos guardam e tm de cor.

    Os bugres

    O povo xokleng viveu durante sculos como nmade nas vastas florestas que cobriam os vales litorneos, subindo pelo leito dos rios at as bordas do planalto serrano. Formavam pequenos bandos independentes e hostis entre si, que perambulavam por toda a extenso de seu territrio, vivendo da caa e da coleta. A mata atlntica e os pinheirais provinham-lhes tudo de que necessitavam para sobreviver: animais e aves, mel, frutos e razes silvestres, conforme assinala o antroplogo Slvio Coelho dos Santos. Acuados pela ocupao branca por todos os lados, os ndios concentraram-se na regio serrana catarinense, onde travaram a ltima e fatdica batalha com os bugreiros.

    O fim dos xokleng comeou na segunda metade do sculo passado, quando levas de alemes, italianos e eslavos imigrados passaram a ocupar suas terras. A manuteno da mata virgem era fundamental para a sobrevivncia dos indgenas e sua derrubada era justamente a

  • primeira providncia dos colonos uma vez instalados nos ranchos; o resultado desse conflito de interesses foi o choque e o extermnio dos ndios.

    Para defenderem suas matas, os xokleng faziam ataques espordicos, pilhando e matando alguns colonos. Em represlia, o grupo inteiro era perseguido e exterminado pelos bugreiros que, em bandos armados, faziam-se ao mato em "expedies de vinganas", para perseguir e dar cabo dos ndios. Assim, fora de arma, a colonizao se fez.

    O homem

    O processo de colonizao das terras localizadas entre o litoral e o planalto catarinense no levou em considerao a presena de povos indgenas. Estas reas consideradas desabitadas foram sendo loteadas e ocupadas por imigrantes europeus. Os novos camponeses ocupavam seu lote no meio da mata, onde permaneciam isolados com sua famlia, a merc de ataques. Ilhados, desprotegidos e com pouco ou nenhum conhecimento a respeito dos ndios com os quais manteriam contato, eles se armavam para receber as "feras" a bala, o que s aumentava as animosidades.

    A aproximao dos silvculas no mais das vezes no se consumava em ataque, permaneciam na floresta donde vigiavam todos os passos do homem branco. Mesmo assim, armados de flechas e tacapes, inspiravam terror nos colonos. Em "Os ndios e a Civilizao", o antroplogo Darcy Ribeiro conta que os ndios eram vistos como uma fera perigosa e que, ao v-los como animais ferozes, os imigrantes se viam liberados para ca-los com a conscincia tranqila. A opinio corrente, expressa em jornais e discursos oficiais da poca, era que os bugres tinham mesmo que ser exterminados, pois impediam o avano da raa superior que construiria a civilizao.

    Para dar cabo dos grupos indgenas que eram descobertos nas frentes de colonizao, eram contratados bugreiros profissionais. Estes perseguiam e matavam os ndios, e aprisionavam mulheres e crianas, uma prtica que no somente ficava impune como era estimulada, louvada e, muitas vezes, paga com verbas governamentais. Martinho Bugreiro foi o maior deles, agiu em Bom Retiro, sua terra natal, Alfredo Wagner, Ituporanga, Barraco, Anitpolis, Esteves Jnior, Angelina e Brusque, conforme relata o antroplogo Slvio Coelho dos Santos no livro "Os ndios Xokleng - Memria Visual".

    Um sobrenatural

    Na conta dos netos, Martinho era um homem de dons: perseguia bugres no meio do mato, durante vrios dias, guiando-se apenas pelos astros e nunca perdia a pista. Martinho tinha astcias de caador, sabia

  • como se acantonar, chegar direitinho, quieto, na hora certa de passar a bugrada na espada, sem lhe dar tempo de reao. O homem que tinha Jesus no nome parecia ter parte com o co, tantos eram os ardis que possua para derrubar ndio. Alm do mais era afamado caador de tigres.

    Ningum tinha tanta prtica na lide com a bugrada, por isso Martinho ficou conhecido por toda uma grande regio, por onde era convocado a "bater" ndios que faziam malvadeza. Quando era requerido, largava sua fazendola de gado em Bom Retiro, juntava seu bando e embrenhava-se na mata atrs dos "bichos". Na conversa com o neto, assim, ao rs da manh dominical, no conforto da sala, a impresso que fica de um homem que se sacrificava para fazer o bem aos outros. No fundo, era um altrusta, esse Martinho!

    - No, no ganhava nada, nunca ganhou. Do governo s vinha o telegrama com a permisso para espantar. O despacho no falava que era para matar, mas tambm no proibia e, na hora da briga j viu - conta o neto e busca aprovao na platia. Era s para afugentar mas, como se v, desde ento no era difcil defender a tese de que os ndios estavam armados e atiraram primeiro.

    - Ali em cima - continua Ademir - ele andou batendo um grupo que atacou uns colonos l em Angelina. Depois, ali para baixo, perseguiu os bichos por um bom tempo, at pegar. Eh! Se fosse falar tudo no tinha tempo que acabasse.

    O neto vai narrando sem fazer outro juzo dos casos que o de serem histrias muito antigas, ouvidas do pai e dos tios. So relatos de bravura, coragem, brabeza impiedosa e uma capacidade sobrenatural de enfrentar e vencer o perigo.

    O outro neto, Alcindo, pinta as faanhas do av com traos de herosmo e tragdia. Entre velhos aparelhos de tev de sua oficina eletrnica, d um parecer cabal:

    - Esse homem, ningum nunca viu dar uma risada sequer.

    Cuidar de baile

    Aos 18 anos comeou a matar ndio. Os motivos que o levaram prtica so caminhos que se bifurcam. Pode ser pelo dever de ofcio, j que era inspetor de quarteiro e os ndios eram considerados foras-da-lei. Mas h histrias lendrias em que tudo teria comeado por vingana: quando criana, o menino Martinho teria sido raptado pelos bugres e vivido entre eles por alguns anos. Da nasceu sua sanha e os conhecimentos que lhe seriam to teis no seu futuro ofcio. Ironicamente o que h de certo que sua me teria sido ndia.

  • Na condio de inspetor de quarteiro, uma de suas tarefas era "cuidar baile", como autoridade constituda passava a noite no salo e, apenas sua presena garantia o sossego. As lembranas destas noitadas cuidando bailes povoam a memria dos netos e do conta de quanto o av era respeitado e brabo:

    - J era um homem velho, sentava numa cadeira, num canto do salo, com seu chapelo de tecido cado nos olhos, dois revlveres na cinta e a espada atravessada no colo. Ali ele ficava. Quando precisava sair, deixava o chapu pendurado em um prego, s aquilo impunha respeito e ningum se aventurava em arruaa.

    Tirando de dentro da carteira, Ademir mostra uma foto que carrega consigo. um retrato cinco por cinco, preto-e-branco, todo vincado. como um santinho, destes de devoo, sagrado, do qual s se separa para dormir. A imagem no toco de papel amassado est bastante sumida, engolida pelas

    brumas do tempo que lhe ri os contornos e o contraste. Apesar de desfigurada, d bem para montar quem aquela figura: os cabelos negros e fartos, revoltos para cima, deixando-lhe em descoberto a testa grande. Os olhos penetrantes, escuros, encimados por pestanas grossas e

    sinuosas, a boca serrada numa sinuosidade que lhe desenha laivos de escrnio. H um leve esgar que perpassa toda a expresso do rosto, da esquerda para a direita, num misto de desdm e frieza.

    Como que adivinhando a impresso que a foto provoca, o neto volta carga:

    - Era um homem muito brabo. Tinha fama de domar redomo a cabo de soitera.

    Uma cpia do retrato pode ser encontrada no acervo do Museu Universitrio da UFSC e foi publicada - com toda nitidez - no j citado livro "Os ndios

    Xokleng", do antroplogo Slvio Coelho dos Santos. Nesta obra, encontram-se outras imagens do bugreiro pousando com seus homens ao lado de suas vtimas, mulheres e crianas ostentados como trofus.

    Martinho tinha em seu bando dois irmos, Manoel e Jacinto e, reza a lenda, os trs estranharam-se algumas vezes para medir quem era o mais valente, mais rpido no gatilho e faco. Numa destes vezes, conta o neto, estavam no

  • meio do mato e Manoel, que era o mais violento, reclamou o direito de liderar a turma de volta de uma caada, para provar que tambm sabia orientar-se no seio da floresta. Depois de um dia inteiro andando, o grupo deu com uma picada.

    - Olha, andou gente por aqui - disse Manoel para a turma. - No te admire que teu prprio rastro est a -, retrucou Martinho.

    E estava. Haviam caminhado em crculo e estavam perdidos. Por estas e outras os bugreiros garravam cada vez mais confiana na liderana de Martinho.

    Cena triste

    O ataque aos ndios pelo bando de Martinho seguia sempre um mesmo ritual. Perseguia-se o grupo a que se desejava dar cabo, depois de encontr-lo, os mateiros ficavam acantonados durante horas, sem conversar ou fumar, esperando o momento exato para surpreender os ndios em um ataque fulminante. quando o dia est para nascer, enquanto os indgenas esto

    entregues a seu sono mais pesado, que do o assalto. Primeiro cortam as cordas dos arcos, depois iniciam a matana. Acordados a tiros e golpe de faco, os ndios no tm qualquer chance de defesa. D at para escolher o

    corte que lhe atende melhor o gosto pessoal: degola, evisceramento, cortes transversais no peito, pontaos no corao, pois a carne macia e a lmina cega.

    Aps matar todos os adultos, as mulheres e crianas eram presas e levadas para a civilizao. Cortava-se as orelhas dos mortos - pois a recompensa era paga por cada par de orelhas. O trabalho s terminava depois de derrubar o rancho, empilhar e tocar fogo em tudo. Para que queimassem

    melhor, a sola grossa dos ps dos ndios era aberta a faco. Os despojos - arcos, flechas, artesanatos - eram divididos entre os homens, que depois vendiam.

    - No era fcil a luta deles - conta o neto. - Passavam trabaio no mato. S levavam sal, armamento e munio. Espada na cinta, espingarda pica-pau, de carregar pelo cano, e um bornal com munio. Para se protegerem nos dias de

    chuva, cobriam as costas com um pedao de couro. O que encaranga o homem no mato molhar o lombo. noite, tinha sempre dois de

  • atalaia, enquanto os outros dormiam. Nas caminhadas, o companheiro que ia na frente, abrindo a

    picada com faco, corria muito perigo. Em dez anos de bugragem o grupo perdeu s dois homens, os dois estavam na frente - relata o homem.

    Uma coisa parece certa, mesmo que Martinho matasse por preciso, tinha muito gosto no que fazia. s vezes, quando as crianas estavam dando muito trabalho, jogava o curumim pro alto e aparava na ponta da espada. Diante da exemplar crueldade, as mes tratavam logo de aquietar seus filhos e seguir viagem sem dar canseira aos adultos. H outros relatos tristes.

    Jangoia era um ndio alto, pra mais de dois metros. Quando o pequeno grupo que liderava foi atacado, s ele conseguiu escapar com vida, a mulher Jandira e os filhos foram feitos prisioneiros e usados como isca para atrair Jangoia. Por mais que fosse ladino, foi derrubado do alto de uma gabiroveira, por uma nica bala certeira, e depois esquartejado.

    - Quando reconheceu a morte do marido - conta o neto -, Jandira repeliu os filhos, no que foi intimada: ou fica com eles ou morrem todos. A ela se acocorou, abraou os dois e comearam a chorar. Coisa triste. Ihh, se for

    contar tudo... teve uma vez que o cabra rasgou a barriga do ndio a espada, as tripas saram tudo pra fora, ele se agachou, foi se afastando de costas e recolhendo as vsceras no colo, at morrer. coisa muito triste, at arrepio.

    Alcindo e Ademir tambm relatam a crueldade dos indgenas quando pegavam os colonos. Quando encontravam um rancho, ficavam dias negaciando do mato, at decidirem atacar. Ento, matavam todos e deixavam seus corpos estacados, depois cortavam o garo de animais como cavalos e burros, roubavam tudo que podiam levar, principalmente faces, machados, serrotes e cachorros, e fugiam.

    - Ali em cima, pegaram uma famlia inteira. S sobrou uma menina pequena que se embrenhou no mato. Atacaram de tardezinha, colocavam a cabea entre as pernas e vinham rolando morro a baixo, quando se via estavam dentro de casa. Ento deitavam o porrete, no deixando um nico osso inteiro no vivente. Bugre que nem cachorro, vem pelo faro, eles se comunicam entre eles imitando todo tipo de passarinho.

    Mas o pior ataque de ndios que se tem notcias tanto serra acima como abaixo foi a dos irmos Pires.

  • - Os Pires eram em cinco irmos e trabalhavam todos juntos na mesma roa. Eram brasileiros brabos, todos casados com moas muito bonitas, alems e italianas imigradas. Enquanto trabalhavam no eito, as mulheres ficavam nas lides de casa e, meio-dia, levavam almoo para os maridos. Um dia se atrasaram, deu uma hora da tarde e nada de chegarem. Ento os Pires resolveram ir ver o que estava acontecendo. De longe j sabiam: era ataque de bugres. Encontraram as cinco mulheres mortas, estaqueadas na cerca e com o peito aberto do pescoo at em baixo.

    Em represlia ao ataque, os cinco irmos largaram tudo e se juntaram ao bando de Marcelino para caar os ndios. Foi a maior caada j empreendida, conta Ademir. Os bugreiros saram de Bom Retiro, foram at a regio de Campo de Mouro, no serto paranaense, no encalo dos indgenas que s foram pegos quando estavam de volta regio serrana de Santa Catarina.

    - A foi duro, foi feio o negcio, fizeram muita judiaria, coisa triste, bateram sem d matando mais de 200 ndios. No sobrou ningum - conta o neto, numa fala de lamento, mostrando uma foto do bando em que cada um dos irmos Pires est marcado com um "xis". a marca da tragdia.