LEITORES NA PRIMEIRA INFÂNCIA: UM RELATO DE...
Transcript of LEITORES NA PRIMEIRA INFÂNCIA: UM RELATO DE...
5002
LEITORES NA PRIMEIRA INFÂNCIA: UM RELATO DE PESQUISA
Kenia Adriana de Aquino MODESTO SILVA, UFG/Jataí e UNESP/Presidente Prudente/CELLIJRenata Junqueira de Souza, UNESP/Presidente Prudente/CELLIJ
Eixo temático 4: Formação de Professor da Educação InfantilAgência Financiadora: CNPq
1. Introdução
Este artigo tem como propósito responder à questão: Como realizar práticas de leitura
literária com bebês e crianças de até três anos? O texto apresenta um relato da pesquisa “Bebês
e literatura: uma bebeteca na formação de leitores”. Para tanto, apresenta o projeto e, na
sequência, discute sobre o desenvolvimento dos bebês e a linguagem, biblioteca para bebês,
apresenta a Bebeteca “Colunas do Saber”, aborda o letramento literário na primeira infância e
descreve e analisa uma mediação literária na Bebeteca, lócus da pesquisa.
Pela linguagem verbal nos comunicamos e interagimos com os demais, sendo assim, ela é
constitutiva do bebê e da criança como ser humano. Justamente por isso, as práticas de leitura e
a utilização da literatura infantil com crianças ainda pequenas são temas que permeiam inúmeros
estudos de pesquisadores das áreas de linguagem e de educação.
Sabemos que os bebês e as crianças pequenas da primeira infância ainda não leem
convencionalmente, mas também sabemos que a leitura consiste em uma complexa atividade de
interpretação e compreensão. Ler vai muito além da decodificação, é compreender o que foi lido;
pode-se dizer que quem não compreende, não lê, ou seja, “aprender a ler é aprender a construir
sentido” (CHARMEUX, 2000, p. 89), o que implica que o leitor é ativo nessa construção. Em
outras palavras, ao buscar sentidos e significados para o que lê, o leitor, independentemente de
sua idade, constrói e reconstrói a partir de suas próprias vivências e aprendizados. E desde muito
pequenos começamos a compreender e dar sentido ao que está em nosso entorno e essa
compreensão do mundo é o primeiro estágio para aprender a ler também o escrito.
Como exercício efetivo da linguagem incluem-se as experiências de audição de histórias
ou mesmo “leitura” individual realizada pelos pequenos, inclusive se ainda não alfabetizados.
Afinal, para aprender a compor significados, as crianças precisam experimentar os atos sociais e
cognitivos de leitura. Disso depende sua formação como leitores, pois mesmo quando não
alfabetizadas podem e devem compreender o que “leem”. E caso não tenham compreensão, é
função docente ensinar a construi-la por meio da mediação pedagógica.
Diante de tudo isso, sabe-se que a postura adotada pela criança perante o livro dependerá
de como os adultos (família e professores) permitem seu acesso a ele. Desse modo,
apresentamos este texto como subsídio aos mediadores docentes e como proposta pedagógica
para o desenvolvimento de práticas de leitura literária a partir de nossas experiências mediadoras
5003
e de estudos. Para tanto, o presente parte de pesquisa bibliográfica e possui natureza de
aplicação, sendo, assim, um texto que pode contribuir com a formação de professores, bem como
com suas práticas referentes à leitura literária na primeira infância.
Introduzido nosso tema, apresentamos, então, o projeto que originou esta comunicação.
2. O projeto de pesquisa em questão
“Bebês e literatura: uma Bebeteca na formação de leitores” é o nome do projeto que
fomenta a ação de duas acadêmicas de Pedagogia da UNESP, de Presidente Prudente, e
bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) na creche, lócus da
pesquisa.
A proposta nasceu de resultados de pesquisas realizadas pelo Centro de Estudos em
Leitura e Literatura Infantil e Juvenil (CELLIJ – UNESP, Presidente Prudente) e pelo Centro de
Estudos e Pesquisas em Leitura e Escrita (CEPLE – UNESP, Marília), por meio dos quais se
observou a necessidade de se selecionar metodologias para o ensino da leitura às crianças.
Acreditamos que atividades de leitura como o contar e o ler histórias, bem como as ações
e práticas delas resultantes podem colaborar para que as crianças utilizem suas capacidades
psíquicas, permitindo seu desenvolvimento intelectual de maneira prazerosa. Acreditamos
também que a literatura infantil exerce um papel influente na formação de bebês e crianças que
vivenciam a leitura ou a contação de textos como poemas, contos, parlendas, cantigas de roda,
dentre outros, pois podem realizar mecanismos de leitura, mesmo que ainda não sejam
alfabetizadas. Aliás, estudos demonstram que mesmo aqueles pequenos que ainda não dominam
convencionalmente a escrita são capazes de serem ativos nos processos de leitura ao escutarem
uma história ou verem um texto imagético (MUKHINA, 1996).
Assim nasceu o projeto em questão que tem como objetivo central verificar de que maneira
os livros de uma Bebeteca podem valer-se de uma metodologia e de um programa de leitura
distinto, articulados às especificidades das crianças de 0 a 3 anos, a fim de contribuir, desde a
mais tenra idade, em sua formação como leitoras autônomas.
Metodologicamente, esta pesquisa é de campo com abordagem qualitativa, sendo um
estudo de caso e tendo como universo a Bebeteca “Colunas do Saber”, na creche Anita Ferreira
Braga de Oliveira, em Presidente Prudente – SP. São seus sujeitos as gestoras, professoras e
educadoras da instituição, bem como as crianças frequentadoras do espaço. Em relação a seus
objetivos, a investigação pode ser classificada como exploratória, pois pretende auxiliar a
formação das professoras de educação infantil atuantes na creche estudada e colaborar na
formação leitora das crianças ali atendidas, oportunizando uma adequada utilização do espaço e
de estratégias que favoreçam a vivência lúdica e prazerosa de leitura pelos bebês.
Após apresentarmos o motivo deste relato, explicitamos uma breve discussão teórica
acerca do desenvolvimento dos bebês e sua linguagem.
5004
3. Livros e leitura para bebês: sinônimo de desenvolvimento da linguagem
Em relação à aprendizagem e ao desenvolvimento dos bebês, a Pediatric Academic
Societies, dos Estados Unidos, defende que quanto mais prematuramente eles tiverem contato
com a leitura, muito mais se desenvolverão as conexões neurais relacionadas à compreensão da
linguagem em seus cérebros. Além disso, quanto mais cedo se aproximar as crianças pequeninas
dos livros, aumenta-se a probabilidade delas transformarem-se amantes das palavras e da leitura.
Parreiras (2012) afirma que quando o bebê nasce, ele está pronto para aprender, crescer e
conhecer. Cabrejo-Parra (2011) vai além e defende que ao nascer, o pequeno possui uma enorme
capacidade de percepção auditiva. Diz também que rapidamente o recém-nascido aprende a ler e
a interpretar a voz humana, sendo muito sensível às nuances da fala e, justamente por isso,
devemos conversar bastante com ele, dialogar como se compreendesse, pois o neném apresenta
uma capacidade de “armazenar” o que escuta e, em algum momento, reutilizará o que escutou ao
se transformar em sujeito enunciador.
E é nesse período da vida, que o bebê mais aprende e de maneira surpreendente. De uma
semana para outra, são perceptíveis consideráveis mudanças no desenvolvimento físico,
emocional, cognitivo e linguístico dos pequenos. Por isso, nos três primeiros anos de vida, os
adultos que convivem com o bebê devem ler para ele, cantar, recitar e contar muitas histórias.
Fundamentamos a relevância dessas práticas em Vigotski (1996), quando ele considera
que:
[...] a relação da criança com a realidade circundante é social desde o princípio. Desteponto de vista podemos definir o bebê como um ser maximamente social. Toda relação dacriança com o mundo exterior, inclusive a mais simples, é a relação refratada por meio darelação com outra pessoa. A vida do bebê está organizada de tal modo que em todas assituações se faz presente de maneira visível ou invisível outra pessoa. (p. 285)
Em outras palavras, no início de sua vida, o bebê não pode ser considerado como um ser
apenas biológico e que precisa unicamente do contentamento de suas necessidades vitais. Além
disso, o mundo exterior desperta bastante interesse dos pequenos: os lugares que conhecem, os
objetos que são avistados, as pessoas que se aproximam, tudo é atraente e deve dispor da
apresentação de um adulto mediador.
Nesta fase das crianças miúdas, o oferecimento de ações que estimulem a observação
mediada de situações, objetos e pessoas é substancial. E compete aos adultos, a partir da
expressão e da comunicação oral, explicar o que acontece nessas ocasiões, esclarecer o que são
os objetos e apresentar as pessoas a sua volta, ponderando os contextos sociais em que estão
inseridos, bem como quais suas características. Como bem defendeu Cabrejo-Parra (2011),
crescer, e aqui acrescentamos desenvolver-se, é constituir-se sujeito linguístico de uma
comunidade.
Tais mediação e intervenção dos adultos não podem ficar restritas aos momentos de fala
5005
cotidianos, elas devem ser estendidas à oferta de literatura na primeira infância. Nesse ponto, são
cruciais as ações de recitação de poesias e parlendas, entoação de cantigas de roda e canções
de ninar, leitura e contação de histórias, uma vez que os bebês apresentam necessidades afetivas
que devemos alimentar com tudo o que é rítmico, pois isso favorecerá seu desenvolvimento não
só emocional e psicológico, mas também linguístico e cognitivo. Afinal, o suporte livro para os
bebês é um estímulo importante, no entanto, não substitui a influência da fala e da voz do adulto.
É na primeira infância, que as crianças aprendem a simbolizar, “e simbolizar é a base da
experiência de pensamento” (LÓPEZ, 2013, p. 42). Se não brincarem, escutarem histórias e
“lerem” os livros literários, os pequenos não conseguirão exercer sua capacidade de pensar. Por
isso, precisamos observar que atenção é dada à leitura e à apresentação dos livros literários aos
pequenos infantes.
No primeiro ano de vida, os pequenos aprendem a sorrir intencionalmente; estabelecem
diálogo comunicativo com outros, exercitando seu aparelho fonador e treinando sua expressão
corporal; e começam nessa fase a expressar suas necessidades. O adulto mediador aqui,
segundo Rigolet (1998), precisa fomentar tais aquisições de forma consciente, permitindo às
crianças e favorecendo que elas aprendam a: nomear coisas, situações e pessoas; repetir
palavras e ações; imitar; observar o contexto; esperar; escutar; estabelecer e manter o contato
visual; trabalhar os cinco sentidos; e expandir sua comunicação não verbal e verbal. Ao longo
desse primeiro ano, o educador precisa, além de estimular a linguagem oral, permitir o contato
com a escrita também. E em todas essas situações, a leitura literária faz-se representativa.
No segundo ano de vida, do ponto de vista linguístico, os pequenos intervêm por meio de
uma única palavra que produzida em contexto funcional pode adquirir inúmeros sentidos e,
posteriormente, começam a produzir pequenos enunciados compostos em sua maioria por
substantivos e verbos comuns, quase nunca utilizam adjetivos ou advérbios e é quase nulo o
emprego de artigos, pronomes, conjunções ou preposições (RIGOLET, 1998). Nesta época, há
uma espécie de “explosão” em seu vocabulário e começam a surgem novas palavras diariamente
que o bebê produz com prazer, mesmo que de certa forma constituam um linguajar próprio e
onomatopaico dos pequenos. Além disso, a partir dos 18 meses, o infante inicia a vivência da
função simbólica por meio do jogo.
Na leitura, conforme o mediador nomeia as ilustrações e situações das páginas que são
passadas, sua voz ensina que as imagens se juntam e formam uma história (REYES, 2010).
Como se percebe, neste ano da vida, a leitura literária também se faz imperativa, pois não é só o
vocabulário do adulto que serve de modelo a ser imitado, sua postura social e suas práticas
culturais como o ler também contribuem para a formação integral da criança, ao favorecer os
jogos simbólicos seja por meio de brincadeiras, brinquedos ou livros.
Tendo discutido sobre o desenvolvimento da linguagem nos bebês, no próximo item,
falaremos sobre a Bebeteca, espaço onde podem ser vivenciados esses momentos de
experimentação literária entre adultos e crianças, favorecendo o desenvolvimento da linguagem
5006
dos pequenos.
4. Bebeteca: biblioteca para bebês
O estímulo à leitura na primeira infância pode ser promovido nos mais diversos ambientes,
principalmente se estimularem os cinco sentidos dos miúdos e atenderem suas necessidades
físicas e emocionais. Entre esses espaços, temos o lar, que pode oferecer momentos prazerosos
no quarto, na sala, na cozinha, no quintal, na varanda etc.; outros lugares sociais como praças e
parques; e a escola, que pode propiciar vivências literárias na sala de aula, no parquinho, no
pátio, na biblioteca ou mesmo na Bebeteca, isto é, uma biblioteca para bebês.
Senhorini e Bortolin (2008) resgatam o conceito de Bebeteca proposto por Escardó (2003)
como sendo um serviço de atenção especial à primeira infância, que inclui, além de um local e
livros escolhidos para satisfazer as necessidades dos menores e seus responsáveis, empréstimo
destes e palestras que falem sobre a importância da convivência neste ambiente. Em outras
palavras, a escritora espanhola Escardó, conceitua Bebeteca como um gênero de biblioteca que
se atenta ao bebê e sua prática de leitura, diferenciando-o de outros espaços.
As Bebetecas são bem presentes em países como Argentina, Colômbia, Espanha e
Portugal. No Brasil, porém, ainda são poucas e as que existem nem sempre têm como principal
objetivo a presença dos responsáveis durante as práticas de leitura. Mesmo assim, as Bebetecas
brasileiras constituem-se em um ambiente onde são estabelecidos vínculos afetivos por meio de
recontos, de leitura de imagens, de escuta e de partilha de sensações entre bebês, crianças e
mediadores adultos, algumas vezes pais, mas na maioria delas, professores.
Seu acervo deve ser diversificado, pois atenderá desde bebês com meses de vida a pais e
professores. Deve ser composto por: livros de papel; de papel cartonado; de banho; de pano; de
espuma; livros-brinquedo; de imagem; ilustrados; bem como possuir materiais de apoio para as
leituras e contações ou outras atividades lúdicas como: fantoches, fantasias, chapéus, aparelho
de cd, brinquedos entre outros.
Em relação aos objetivos da Bebeteca, Senhorini e Bortolin (2008) elencam: oportunizar
um espaço adequado e agradável para o incentivo à leitura de crianças de até 5 anos; estimular a
imaginação e a criatividade dos pequenos e seus mediadores, a partir de um ambiente divertido e
alegre; aumentar a interação entre bebês e seus pais, bem como com outros mediadores, como
os professores; auxiliar no desenvolvimento social e psicológico das crianças, por meio da
convivência com outros bebês, ampliando seu círculo de relacionamentos interpessoais; e
demonstrar aos familiares responsáveis a influência e a importância da leitura na vida dos
pequenos desde a mais tenra idade.
Souza e Bortolanza (2012) argumentam que a organização física deve ser aconchegante e
possibilitar tranquilidade no momento da leitura e o livre acesso dos bebês aos materiais; deve
conservar livros em locais que os pequenos usuários consigam pegar e fazer as escolhas,
5007
explorando-os sozinhos; precisa ter mesas adequadas ao tamanho das crianças; favorecer a
acessibilidade às obras infantis em estantes de tamanho proporcional ou em outros meios como
cestas e baús; além disso, deve dispor de cantos decorados de acordo com o gênero textual ou a
temática da obra, com o apoio de fantoches e outros adereços em locais inusitados como tapetes
com almofadas e diversas formas de organização que sejam acolhedoras e que possibilitem
mobilidade, escolha e conforto aos que buscam a leitura.
A decoração do espaço também é importante para acolher os usuários. Silva (2009)
orienta que as tonalidades que irão compor o ambiente devem ser escolhidas para dar
continuidade à tendência de acolher os visitantes e convidá-los a apreciação das obras, portanto,
as paredes da parte interna podem ser pintadas de cores diferentes das que compõem as salas
de aula com matizes claros e alegres, mas sem poluição visual, pois os livros são as “estrelas”
da Bebeteca.
Tendo esclarecido o conceito e os objetivos de uma Bebeteca, apresentamos a seguir o
lócus desta pesquisa.
5. A Bebeteca “Colunas do Saber”
Em Presidente Prudente – SP, em maio de 2015, foi inaugurada a primeira Bebeteca do
município, que foi batizada de “Colunas do Saber”, com o apoio do Poder Público e da
Organização Não-Governamental (ONG) Saúde Global, sendo estes os fornecedores da verba
necessária à reforma e à adaptação do recinto e à compra do acervo. A inauguração contou com a
parceria do CELLIJ com a oferta dos contadores de histórias que atuam semanalmente no espaço
e a formação para os professores da creche fazerem uso do acervo e do lugar; além disso, o
Centro de Estudos também realiza pesquisas naquele ambiente com as crianças e professoras,
como a relatada nesta comunicação.
Foto 1 – Bebeteca “Colunas do Saber”Fonte: As autoras
Esclarecidas as possíveis dúvidas a respeito do que consiste uma Bebeteca, e
5008
apresentado o lócus de nossa pesquisa, discorreremos sobre o letramento literário na educação
infantil com os bebês e as crianças de até três anos.
6. Letramento literário na primeira infância
Ter claro o conceito de letramento literário é fundamental por que como este estudo se
propõe a trabalhar com crianças ainda não alfabetizadas, o professor, que exerce papel de
mediador, precisa estar ciente que a formação dos leitores se dará a partir do momento em que as
crianças e os bebês adquirirem letramento literário e, posteriormente, após alfabetizadas,
inserirem-se efetivamente no universo da leitura.
Ao se falar de letramento, tem-se que, na contemporaneidade, o mais correto fosse se
falar de letramentos ou multiletramentos, pois, assim, o termo abrangeria a complexidade das
diversificadas práticas sociais de escrita (SOUZA e COSSON, 2011).
Dentre essas possibilidades de letramento, interessa a esta investigação o literário,
diferente dos demais porque necessita da literatura, ou seja, o letramento literário consiste na
“construção literária dos sentidos” (SOUZA e COSSON, 2011, p. 103). De acordo com Cosson
(2014), a experiência literária além de nos permitir saber a respeito de nossa própria vida a partir
do que o outro viveu, também nos oportuniza dizer o que não sabemos expor de maneira mais
precisa, por comunicar em forma de narrativa ficcional. Além disso, o texto literário oferece, aos
bebês e às crianças pequenas, material simbólico para que descubram não apenas quem são,
mas também quem podem ser. O letramento literário faz-nos descobrir que nossa imaginação nos
permite ser nós mesmos e ainda outras pessoas, e isso é o que atribui sentido à experiência
literária (REYES, 2010).
Para construir o letramento literário, o professor precisa selecionar o livro de literatura
infantil a ser utilizado e aqui há a importância do suporte original e não apenas fragmentos de
livros didáticos ou publicações com prejuízo de conteúdo para as crianças. A experimentação de
textos literários na vida dos bebês e das crianças, por intermédio de seu principal suporte, o livro,
exerce uma “função humanizadora insubstituível e indispensável para o desenvolvimento integral
de sua personalidade” (SOUZA e BORTOLANZA, 2012, p. 69).
Vygotsky (1996) defende que o desenvolvimento da linguagem na criança desempenha o
norte do seu progresso como um todo, pois é a partir da tentativa de dominar linguagem que a
criança pequena inicia relações com as pessoas e as coisas em seu entorno. Por isso, o
letramento literário nesse período da vida contribui para o alargamento não só das experiências
linguísticas como também do desenvolvimento integral da criança.
Após esta explanação sobre letramento literário na primeira infância, a seguir, apresentamos
a mediação literária ocorrida na Bebeteca “Colunas do Saber”.
7. Relato da pesquisa
5009
Quando se fala em leitura com os bebês e os pequenos de até três anos, ela seria,
inicialmente, um ato de ouvir, ver, cheirar e pegar. “Durante o ato de ouvir, ele vê o mediador e,
por sua proximidade, sente seu cheiro, toca e é tocado, transformando o ato de audição num
processo neurofisiológico” (TUSSI; RÖSING, 2009, p. 48), ou seja, os pequenos passam a ter a
possibilidade de “ler” ao pegar, olhar e imaginar a partir dos livros literários infantis.
As primeiras leituras realizadas para os recém-nascidos e as crianças de até três anos
propõem-se a oferecer o desenvolvimento inicial da linguagem e acostumá-los com a voz do
mediador; posteriormente, no entanto, isso favorecerá a compreensão. Todavia, é imprescindível
descobrir como fazer essa mediação entre o bebê e a literatura. Assim, nesse tópico,
apresentamos como vem acontecendo a pesquisa na Bebeteca “Colunas do Saber”.
Após leituras e discussões acerca do desenvolvimento infantil e de sua comunicação
verbal, bem como sobre a importância da leitura literária nesta etapa, duas bolsistas do PIBIC
foram até a creche para observar, entrevistar as professoras e intervir, mediando a leitura com os
bebês de 4 meses até 2 anos. Assinalamos que uma doutoranda, vinculada ao CELLIJ por suas
pesquisas, participa das discussões teóricas e metodológicas das pesquisadoras PIBIC e observa
a aplicação das intervenções na creche. Além disso, colabora na orientação das acadêmicas de
Pedagogia, auxiliando, assim, a Profa. Dra. Renata Junqueira de Souza, na realização do trabalho
de Iniciação Científica na UNESP.
Ao iriem para a creche, as bolsistas observaram o cotidiano dos bebês, deixando de serem
corpos estranhos para eles e, depois de um período de observação participante, iniciaram as
mediações literárias uma vez por semana, sempre no ambiente da Bebeteca.
Os momentos de leitura têm sido realizados, a maior parte do tempo, individualmente com
cada bebê. As bolsistas vão até as salas de aula e, de acordo com a rotina da turma, levam para a
Bebeteca as crianças que estão acordadas ou alimentadas, a ordem da seleção é feita com o
auxílio das docentes da creche.
Nos atendimentos, são estabelecidos dois polos de contação em cada extremidade da sala
para que uma leitura não atrapalhe a outra. Posicionadas confortável e adequadamente no tatame
emborrachado, e apoiadas em Bajard (2014), com os pequenos de até um ano, as pesquisadoras
colocam as crianças em seu colo. De maneira que o corpo do bebê fique aconchegado no do
adulto. Assim, a comunicação é feita pela voz e pelo contato físico entre mediador e infante. Além
disso, os dois possuem o mesmo ponto de vista sobre o livro e a criança percebe as imagens e o
texto escrito. De maneira que se abrem os acessos da visão e da escuta.
Com os bebês de até 2 anos, o aspecto de fusão entre criança e mediador se rompe e
sentam-se lado a lado. Isso porque, de acordo com Bajard (2014), ainda se mantém o mesmo
ponto de vista em relação ao livro, mas nessa posição, pode-se atender mais de uma criança ao
mesmo tempo, muito embora, seja preciso atenção, pois um número elevado de pequenos
ouvintes pode dificultar a visão do livro e sua consequente compreensão.
5010
Quando as crianças estão entre o segundo e o terceiro ano, a mediação já pode ser
realizada como Bajard (2014) chama de “face a face”. Assim, os ouvintes ficam em frente ao
mediador e podem ser atendidos vários pequenos simultaneamente, pois esta posição permite o
observar as imagens. Da primeira posição, no colo, a esta, aumenta-se a distância física, porém
amplia-se a autonomia e a capacidade de estabelecimento de representação simbólica com o
livro.
Nesses momentos de aconchego literário, as pesquisadoras bolsistas realizam ora leitura
dos textos, ora contação. O tipo de livro, o gênero da narrativa ou a própria criança indicarão se a
situação pede o ler ou o contar.
Do início da pesquisa até o momento, observamos alguns ganhos: o receio inicial dos
bebês já não existe mais, o que confirma a importância da afetividade, pois ao “ler ou contar uma
história e segurar o bebê ao colo, criamos um vínculo amoroso, de acolhimento” (PARREIRAS,
2012).
Além disso, apesar de falarem pouco, os pequenos interagem com o livro, inclusive,
colocando-o na boca e sentindo vontade de mordê-lo. A este respeito, Parreiras (2012) assinala
que a aproximação entre os pequenos e os livros não pode esperar efeitos instantâneos. Porque é
manuseando e tocando os livros, pouco a pouco, que a criança é introduzida no universo mágico
da literatura, pois assim ela conhecerá outras experiências que apurarão o olhar, o observar, o
ouvir, importantes para a apreciação artística e estética.
A mediação que acontece na Bebeteca é planejada, pensando-se em momentos que
privilegiem uma conversa antes da leitura; leitura em voz alta de forma compartilhada com os
pequenos e depois disso um diálogo sobre o lido e o ouvido (SOLÉ, 1998). Mesmo que esse
diálogo seja constituído por balbucios, movimentação de perninhas e bracinhos eufóricos que
tentam, com o corpo, expressar seu imaginário.
As mediadoras de leitura aproveitam toda a cultura oral: acalantos, cantigas de roda e
outras brincadeiras, parlendas, trava-línguas, contos de fada, que possuem valor afetivo, musical,
cultural, e podem ser educativos, colaborando no desenvolvimento cognitivo dos infantes, além de
aprimorar a linguagem; mas também apoiam suas práticas de mediação em textos escritos,
valendo-se, às vezes, da leitura de narrativas curtas, ou até convidam a criança a “ler” junto a
partir dos livros de imagem, estimulando sua imaginação, cognição e a expressividade.
Nessas mediações, as pesquisadoras preocupam-se com a adequação do texto à idade e
aos interesses dos leitores-ouvintes. Elas também trabalham com situações que educam até o
virar das páginas em uma direção e não em outra (PRADES, 2012).
As mediadoras procuram favorecer o envolvimento das crianças, seja imitando sons, com
brincadeiras, indo além da narrativa, ampliando-a ou apresentando alguma ideia nova trazida pelo
livro, este, por sua vez, pode ser manuseado juntamente com o bebê e não há necessidade de lê-
lo todo de uma vez, em outro momento continua-se a leitura ou se repete o que chamou atenção.
Primeiramente, uma relação lúdica, de brincadeira mesmo. A criança precisa sentir e gostar do
5011
livro” (PARREIRAS, 2009); além de ler ou contar uma história, e aqui não há uma ação mais
importante do que a outra, pois atingem objetivos diferentes (GIROTTO e SILVEIRA, 2013).
Em outras ocasiões, os livros já lidos aos pequenos são disponibilizados pelo chão, ficando
acessíveis a grupos de três crianças por vez. Nestas ocasiões, todos eles demonstraram iniciativa
para explorar os livros e suas texturas. Apresentaram, principalmente, entusiasmo pelas obras de
animais, confirmando o que Coelho (2004) expõe sobre a fase pré-mágica das crianças de até
três anos que preferem histórias de bichos, objetos e seres da natureza animados.
Também demonstraram desejo de explorar o espaço, as estantes, os livros e os fantoches
da Bebeteca. E mesmo aqueles menores que ainda não conseguem articular as palavras,
apontavam para as ilustrações dos livros, balbuciavam ao folhear as páginas e procuravam os
olhos das mediadoras como que para dizer “- Veja, que bacana! Veja, o cachorro!”.
Os resultados também indicam que algumas das professoras/educadoras ainda não
solidificaram a importância do trabalho de leitura literária e contação de histórias para os bebês,
alegando que os pequenos ainda não compreendem a narrativa e não aparentam condições de
interação com o texto. Por outro lado, a gestão tem demonstrado abertura às pesquisadoras e
desejo de apreender as diversas possibilidades de se oportunizar a leitura e a contação de
histórias aos pequenos.
Além disso, alguns casos constatam os benefícios da leitura desde a mais tenra idade:
criança que repetia toda a história e se surpreendia a cada página virada; outra que ao chegar na
Bebeteca não demonstrava interesse, mas após o início da narração, entusiasmou-se e começou
a balbuciar; bebê de 8 meses que imitava os animais do livro, explorava-o, segurando e tentando
folhear e ao ser levado para a sala de aula, chorou pois queria continuar na Bebeteca; outro que
chorou ao ser retirado da sala, mas ao chegar na Bebeteca e receber a mediação da
pesquisadora em relação ao espaço, acalmou-se e quis explorar as obras nas estantes; outras
crianças que ao verem as bolsistas chegando na sala corriam para junto delas, pois sabiam que
iria para a Bebeteca.
Foto 2 – Bolsista com bebê no coloFonte: As autoras
5012
Em resumo, os bebês têm interagido bastante e, de modo geral, estão adquirindo o
comportamento leitor com menos choro, mais interação com os livros e prazer pelos momentos de
contação e leitura. Tais ações estão servindo como base para compreender o trabalho com os
bebês que não dominam a leitura sistematizada, mas são capazes de desenvolver outros modos
de leitura e de expressão.
A pesquisa vem mostrando, portanto, que a intervenção tem possibilitado a aquisição de
atos leitores embrionários por parte dos bebês que balbuciam, pegam os livros, levam-no à boca,
tentam folheá-los, voltam à capa, atentam-se por mais tempo em uma página do que em outra,
passam as mãozinhas para sentir a textura da folha, ou seja, a mediação planejada, realmente,
pode colaborar para a formação de “leitores” mesmo na primeira infância.
8. Conclusões
Para além da função mágica da literatura e da leitura realizada em voz alta pelo mediador
e a contação de histórias, práticas que usam o livro são muito importantes para a formação leitora
de bebês e crianças de até três anos, pois o suporte é um objeto cultural e favorece o
desenvolvimento da percepção visual e do cognitivo, pois, em uma “leitura” individualizada ou
mesmo numa leitura compartilhada, as crianças podem criar hipóteses a respeito: do conteúdo,
fazendo relações com outras histórias ou fatos de seu cotidiano; da compreensão linguística; da
expressão oral, ao recontar a história; da socialização; e da demonstração de seus sentimentos.
Diante desse panorama, é possível ratificar que durante o contato estabelecido entre os
bebês e os livros, no espaço da Bebeteca “Colunas do Saber”, o desenvolvimento cognitivo
desses sujeitos está se ampliando gradativamente, com melhoria na postura de leitor de seus
pequenos usuários como sentar para ouvir a história ou manusear os livros nas estantes; a
qualidade da atenção que direcionam para as atividades de leitura e escuta de textos também tem
se ampliado; há o estabelecimento de conexões entre o que foi lido e suas vivências; o
vocabulário também está sendo enriquecido e a função social da leitura vem ganhando significado
na vida desses bebês a partir de um contato prazeroso com o objeto livro e suas narrativas.
Desse modo, os resultados até agora reunidos são assertivos e promissores. O estímulo
agora se constitui em ampliar essa experiência para outros espaços e traçar considerações
teóricas concretas sobre as características das relações que os bebês estabelecem com os livros,
a contação de histórias e o espaço da bebeteca.
Referências Bibliográficas
BAJARD, E. Da escuta de textos à leitura. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2014.
CABREJO-PARRA, E. Evélio Cabrejo-Parra: música literária na primeira infância: entrevista [set. 2011]. Revista Emília: leitura e livros para crianças e jovens. Entrevista concedida a Gabriela
5013
Romeu. Disponível em: http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=2 Acesso em: 30 de abr.2015.
CHARMEUX, E. Aprender a ler: vencendo o fracasso. Trad. de Maria José do Amaral Ferreira. 5 ed. São Paulo: Cortez, 2000.
COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2014.
GIROTTO, C. G. G. Simões. SILVEIRA, R. C.. A relação dos pequeninos com a literatura infantil: de ouvintes a leitores. In: SOUZA, R. J. de. FEBA, B. L. T. (orgs.). Ações para a formação do leitorliterário: da teoría à prática. Assis: Storbem Gráfica e Editora, 2013.
LÓPEZ, M. E. Cultura e primeira infância. Bogotá: CERLALC, 2013. Disponível em: http://cerlalc.org/wp-content/uploads/2013/11/NOVOCultura_y_Primera_Infancia-PORT.pdf Acessoem: 01 jun 2015.
MUKHINA, V. Psicologia da idade pré-escolar. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
PARREIRAS, N. Confusão de línguas na literatura: o que o adulto escreve, a criança lê. Belo Horizonte: RHJ, 2009.
PARREIRAS, N. Do ventre ao colo, do som à literatura: libros para bebês e crianças. Belo Horizonte: RHJ, 2012.
PRADES, D. Uma biblioteca na primeira infância. In: Coluna: Pequenos grandes leitores. 19 set. 2012. Disponível em: http://www.publishnews.com.br/telas/colunas/detalhes.aspx?id=70146 Acesso em: 30 mai 2015.
REYES, Y. A casa imaginária: leitura e literatura na primeira infância. São Paulo: Global, 2010.
SENHORINI, M.; BORTOLIN, S. Bebeteca: uma maternidade de leitores. Informação & Informação, [S.l.], v. 13, n. 1, p. 123-139, jul. 2008. ISSN 1981-8920. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/informacao/article/view/1819. Acesso em: 31 jul 2015
SILVA, R. J. de. Biblioteca escolar: organização e funcionamento. In: SOUZA, R. J. (org.). Biblioteca escolar e práticas educativas: o mediador em formação. Campinas: Mercado das Letras, 2009.
SOLÉ, I. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.
SOUZA, R. J., BORTOLANZA, A. M. E. Leitura e Literatura para Crianças de meses a 5 anos: livros, poesias e outras ideias. In: Leitura e Cidadania. Campinas: Mercado de Letras, 2012.
SOUZA, R. J.; COSSON, R. Letramento literário: uma proposta para a sala de aula. São José do Rio Preto: Objetos educacionais do acervo digital da Unesp: 2011. Disponível em: http://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/40143/1/01d16t08.pdf Acesso em: 26 de maio de 2014.
TUSSI, R. de C. RÖSING, T. M. K. Programa Bebelendo: uma intervenção precoce da leitura. SãoPaulo: Global, 2009.
VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. São Paulo, Martins Fontes, 1996.
VYGOTSKY, L. S. Obras escogidas. 2.ed. Madri: Visor, 1996.