legítimas e as outras Lisboa, Sá da 2008 Universidade ...
Transcript of legítimas e as outras Lisboa, Sá da 2008 Universidade ...
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) — ISSN: 0874‐5498
Ana Lúcia Curado, Mulheres em Atenas: as mulheres legítimas e as outras, Lisboa, Sá da Costa Editora, 2008 (Colecção Nova Universidade). ISBN: 978‐972‐562‐368‐8.
CARLOS MORAIS, Centro de Línguas e Culturas, Universidade de Aveiro1
Publicado pela Sá da Costa Editora, este livro aborda uma temática muito em voga e, por isso, do agrado de um qualquer leitor curioso por questões de cultura antiga — a análise do estatuto da mulher na Atenas clássica2.
Por terem ousado editar esta obra, em tempos algo avessos à divulgação e recepção de assuntos relativos à Antiguidade, são merecedoras de aplauso quer a Sá da Costa Editora quer a Fundação Agostinho Fernandes. Nesta área do saber, a qualidade do estudo, inquestionável neste caso, como tentaremos evidenciar, e o tema tratado, por mais actual que seja, não bastam muitas vezes para convencer editoras de natureza comercial a arriscar. Os receios são sempre muitos e, não raras vezes, suplantam o gosto e o dever de divulgar a cultura. Dignos de elogio são igual‐mente a qualidade da apresentação gráfica, simples mas agra‐dável, e a cuidada revisão da responsabilidade de António Esteves. Mas os maiores encómios vão, como é natural, para a autora, pela escrita deste estudo rigoroso e ponderado, que evita generalizações fáceis ou conclusões precipitadas sobre um tema tão complexo e sensível.
Ana Lúcia Curado é docente e investigadora na Universidade do Minho, na área de Estudos Clássicos, tendo publicado, ao longo da sua carreira académica diversos ensaios e livros, dos quais destacamos Antiguidade e Nós. Herança e Identidade Cultural e Cartas Italianas de Verney, saídos do prelo,
1 [email protected] 2 Texto apresentado no lançamento do livro em Aveiro, na Livraria
Buchholz, a 29 de Maio de 2009.
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
136 Recensões e Notícias Bibliográficas
respectivamente, em 2006 e 2008. Posterior, este extenso ensaio toca áreas tão díspares como a religião e a moral, a sociologia e a história do direito privado na Grécia antiga. Integrado na colecção ʺNova Universidade”, tem por base a tese de doutoramento da autora, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 2004, sob a orientação da Prof. Doutora Maria Helena da Rocha Pereira, que assina um breve mas esclarecedor prefácio que sublinha os méritos do estudo.
A fim de tornar o conteúdo desta sua investigação académica mais acessível a um público não‐helenista, a autora cuidou de reelaborar e aligeirar o texto inicial, dando‐lhe a forma de ensaio. Assim, expurgou‐o de todos as citações dos originais gregos, mantendo apenas as excelentes traduções de sua autoria ou transliterando conceitos e expressões da língua de Homero; retirou‐lhe as discussões excessivamente técnicas e a grande maioria das notas de rodapé, incluindo muitas das citações no corpo do texto; e reduziu a bibliografia consultada ao essencial. O resultado foi um livro que consegue o equilíbrio, nem sempre fácil, mas necessário em obras de divulgação, entre a erudição e um estilo simples e escorreito que instiga à leitura quem se interessa por estes assuntos, seja especialista ou não.
Mas o estímulo à leitura começa, desde logo, no sugestivo e apelativo título — Mulheres em Atenas — que substitui o mais académico que figurava no texto da dissertação — A mulher segundo os oradores áticos — e prossegue nas criteriosas sínteses escolhidas para a contracapa e respectiva badana, que apresentam e delimitam o tema no tempo e nos textos tratados.
O título é sugestivo e apelativo, insisto, porque traz à memória dos potenciais leitores, sobretudo dos da minha geração, esse belíssimo texto de Augusto Boal e de Chico Buarque de Holanda — Mulheres de Atenas —, musicado e cantado pelo segundo para uma peça teatral com o mesmo nome, escrita pelo primeiro. Numa toada repetitiva e cíclica, típica de ladainha, que
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
Recensões e Notícias Bibliográficas
137
sublinha ritmicamente o sentido do texto, Chico Buarque, com a sua voz inconfundível, canta a vida desafortunada, rotineira e sub‐serviente das atenienses de antanho que não tinham gosto ou vontade, nem defeito, nem qualidade, nem sonhos: só presságios e medo. Ora amadas, ora fustigadas e substituídas pelas outras — as falenas —, essas mulheres de Atenas (expressão que se repete como um refrão) viviam, esperavam, sofriam, amavam, geravam, temiam e, já em fim de ciclo, secavam pelos seus maridos, os heróis e amantes, o orgulho e a raça, o poder e a força de Atenas.
Esta música e letra que ouvi, vezes sem conta, na minha juventude, apresenta a visão estereotipada da vida das atenienses, construída ao longo de séculos e comummente aceite, que não coincide totalmente com a perspectiva crítica, despida de precon‐ceitos e de paradigmas, que Ana Lúcia Curado apresenta nas mais de 500 páginas do seu estudo, que se lêem de um fôlego. É inquestionável que as mulheres eram seres débeis, que viviam confinadas ao seu oikos, na dependência do seu pai, enquanto solteiras, e sujeitas ao marido, depois de casadas. É também indis‐cutível que não possuíam nem força política nem voz pública, já que não podiam falar nem votar na ekklesia, ou seja, não eram cidadãs no pleno sentido da palavra. Mas isso não significa que devamos ficar‐nos por estas afirmações genéricas e fixar‐nos, assim, nesta perspectiva multissecular cristalizada, que a autora sugestivamente apelida de “paradigma vitoriano da mulher grega porque valoriza apenas os seus aspectos mais morais e conser‐vadores” (p. 13). O papel da mulher na sociedade ateniense, nem sempre fácil de avaliar, porque envolto em muitos silêncios e distorcido por uma visão masculina da sociedade, é bem mais complexo, como atestam alguns testemunhos iconográficos da cerâmica ática. Referidos pela autora, estas pinturas (algumas delas reproduzidas na obra) ilustram o quotidiano da mulher a cruzar‐se com o do homem na praça pública ou na rua, contra‐riando assim a ideia de que a vida feminina se circunscrevia às
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
138 Recensões e Notícias Bibliográficas
quatro paredes do gineceu. Mas outras fontes, quando analisadas com rigor e sem esquemas ou ideias preconcebidos, confirmam igualmente que há mais mulher no oikos e fora dele. É o caso dos discursos dos oradores áticos, aos quais a autora vai buscar os principais dados, nem sempre fáceis de analisar, para fazer um retrato audacioso da vida das atenienses entre o último quartel do séc. V a.C. e o dealbar da época helenística. São 106 os discursos, criteriosamente seleccionados de acordo com as temáticas a abordar, que estão na base das sábias e ponderadas conclusões deste estudo. Pertencem aos dez oradores que constam do cânone alexandrino — Antifonte, Andócides, Ésquines, Licurgo, Hiperides, Dinarco e, sobretudo, Lísias, Isócrates, Iseu e Demóstenes, leque de autores que se alarga ainda a Apolodoro, considerado por Pearson “o décimo primeiro orador ático” (p. 17). Ao representarem a sociedade grega “sem o verniz do normativo, seja ele literário, filosófico ou político” (p. 22), estes textos de argu‐mentação jurídica, através da apreciação crítica de casos concretos da vida privada, dentro e fora de portas, consentem que se conclua que as mulheres afinal tinham opinião e um poder efectivo de influência, exercido a maior parte das vezes no silêncio do oikos (p. 23), que é a expressão e a afirmação do seu modo de vida.
Mas, dada a ausência de registos, quer dos argumentos contrários, quer das decisões do tribunal, esta análise, baseando‐se na versão parcial de uma das partes em litígio, que tinha como objectivo ganhar o processo judicial, exige uma abordagem prudente, nem sempre fácil. Assim, no respeito por este princípio básico, numa investigação em que as fontes são escassas ou até omissas, a autora faz preceder sempre o estudo dos diferentes casos de uma minuciosa e bem fundamentada exposição teórica, muitas vezes acompanhada de stemmata ou árvores genealógicas que ajudam à melhor compreensão das relações familiares dos envolvidos nos processos judiciais. E para aclarar muitos dos factos com exemplos, recorre com frequência ao seu confronto com
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
Recensões e Notícias Bibliográficas
139
representações da vida diária na cerâmica pintada e em textos de tragédia (Eurípides), de comédia (Aristófanes e Menandro), de prosa (Xenofonte) e de filosofia (Platão e Aristóteles).
Através de uma visão essencialmente masculina, propor‐cionada pelo elenco de autores atrás referidos, a vida da mulher na Atenas clássica é analisada pela autora dentro e fora do casamento. Duas perspectivas que justificam a divisão da obra em igual número de partes, sintetizadas no adequado subtítulo: As Mulheres legítimas e as Outras — aquelas que Chico Buarque, no poema atrás referido, sugestivamente apelida de “falenas” e às quais os homens costumam “buscar carinho quando se entopem de vinho”.
Na primeira parte, dedicada às relações conjugais, a mulher é apresentada como responsável pela gestão da economia do lar e pela distribuição de tarefas domésticas, tendo como principal missão conferir legitimidade ao casamento e à descendência e ainda apoiar o homem em todas as suas tarefas.
Capítulo a capítulo, e seguindo sempre uma mesma estrutura, com uma introdução teórica seguida de estudos de casos jurídicos, podemos acompanhar todas as etapas do processo de negociação do casamento, tido como uma norma de vida social, que fortalecia os laços entre famílias, valorizava a mulher aos olhos da sociedade e consolidava a sua condição e legitimidade. Não obstante o casamento ser o resultado de um negócio, a mulher, ao contrário do que normalmente se pensa, podia ser consultada, como se pode verificar pela leitura dos discursos de Iseu sobre as heranças de Diceógenes e de Ménecles. Aspecto fundamental desta negociação era o dote. Sendo um importante contributo para o património e para a economia doméstica, o dote constitui uma garantia de união, que impede muitas vezes o divórcio, porque, no caso de o homem solicitar a separação conjugal, isso implicaria a imediata restituição dos bens doados.
Mas a dissolução do casamento era possível e acontecia, tendo como causa o adultério (caso de Alcibíades e de Hipareta,
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
140 Recensões e Notícias Bibliográficas
relatado por Andócides, 4. 13‐14) ou a infertilidade (caso de Ménecles e da filha mais nova de Epónimo de Acarnas, referido por Isócrates, 2.7‐9), resultando estas situações normalmente num segundo matrimónio e no consequente estabelecimento de novos laços familiares. Em qualquer dos casos, a perspectiva feminina sobre o divórcio é sempre filtrada pela visão masculina dos aconte‐cimentos. Outra coisa não seria de esperar em discursos de teor jurídico escritos por homens, numa comunidade e num espaço forense dominado também por homens.
A par destas temáticas, devidamente fundamentadas com exemplos concretos da sociedade ateniense, a autora aborda ainda, nesta primeira metade do livro, questões relacionadas com as heranças e o direito sucessório e com as obrigações e deveres das mulheres, que viviam uma vida de silêncio na dependência continuada de um kyrios, ou seja, de um tutor, fosse ele o pai ou o marido.
Na segunda parte do ensaio, dedicada às relações extra‐conjugais, a mulher descrita é a adúltera, passível de ser repudiada pelo marido (capítulo 2), mas é também e sobretudo a “outra”, a habitual companheira do homem, alvo da crítica e da descon‐fiança da legítima (gyne) — a esposa, a mãe, a guardiã do lar (capítulo 3). Esta “outra mulher” podia ser ou concubina (pallake), habitualmente de baixo estatuto social, mas geralmente aceite do ponto de vista jurídico, ou cortesã (hetaira), geralmente culta e de nível social elevado, vocacionada para proporcionar sedução, paixão e erotismo, ou ainda prostituta (porne, pornidion), de cos‐tumes e práticas dissolutas. Era normalmente estrangeira, liberta ou escrava, gozava de uma maior liberdade e vivia numa união não conjugal com o homem — duradoura no primeiro caso; mais ou menos fortuita nos outros dois. Nestes relacionamentos, esta companheira dava o prazer que o homem procurava fora de casa e, em troca, obtinha uma relativa estabilidade que, em certos casos, se aproximava da que tinha a mulher de família (cf. pp. 370 sqq.).
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
Recensões e Notícias Bibliográficas
141
Exemplo máximo de licenciosidade, de luxúria e de liber‐dade abusiva é Neera, retratada no discurso “Contra Neera”, atribuído a Apolodoro. Numa análise perspicaz, com constantes remissões para textos de outros autores e de outras épocas, feita no capítulo IV, intitulado “A mais velha profissão do mundo: um caso singular”, a autora conclui que “a imagem pública de Neera atravessa o decorrer dos séculos e o seu nome próprio toma o conteúdo semântico da sua prática de vida”. E prosseguindo o seu raciocínio, afirma ainda, na mesma p. 418:
mencionar o seu nome passa a designar a cortesã e a concubina, a mulher que vive usufruindo do prazer do seu corpo. Identificado com o seu modo de vida, o nome de Neera passou a ser sinónimo de desejo de liberdade, de sensualidade e de sedução femininas, mas ao mesmo tempo a sua forma de vida é utilizada para a condenação pública da luxúria.
Igualmente alvo de censura é o comportamento do prostituto Timarco, no discurso Contra Timarco, de Ésquines, exaustivamente analisado no capítulo seguinte (V: O discurso contra Timarco e a presença do feminino). A razão para a inclusão desta figura masculina num estudo sobre mulheres prende‐se com o facto de a prática da homossexualidade por Timarco “corresponder essencialmente a um tipo de relacionamento extra‐conjugal, com constantes referências ao parceiro heterossexual traído em benefício do homossexual” (p. 461). Além disso, a sua relação homossexual é caracterizada através de práticas funda‐mentalmente femininas, podendo o seu modo de vida ser compa‐rável ao de Neera. É que Timarco é acusado de ter um comporta‐mento sexual desviante, que o aproxima de prostitutas femininas: vida promíscua, desejo intenso de riqueza e de vida luxuosa e desempenho de papéis que imitam a vida dos casais legítimos” (p. 466). Ou seja, a representação do comportamento homossexual, com um elemento activo e outro passivo, é feita tomando como modelo as relações heterossexuais. Deste modo, a análise deste discurso revela‐se pertinente neste ensaio que, não só neste
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
142 Recensões e Notícias Bibliográficas
capítulo, como em outros, faz adequadas e ponderadas aproxi‐mações à actualidade literária e fílmica.
A esta actualidade junta‐se ainda a interessante e recorrente ideia de que os homens com quem as atenienses se relacionavam e de quem dependiam “tinham consciência de que coabitavam com seres semelhantes a eles, dotados de opinião e demasiado impor‐tantes nas suas vidas para poderem ser esquecidas, embora as leis e o costume as fizessem ficar muitas vezes olvidadas no silêncio do oikos” (p. 495)
A actualidade e a novidade de algumas conclusões deste ensaio de Ana Lúcia Curado, deduzidas da análise fundamentada de mais de uma centena de discursos dos oradores áticos, fazem‐‐me, assim, recomendar a sua leitura, sobretudo, a quem se interesse por assuntos da Antiguidade e por um tema tão sedutor como é o da posição social da mulher na Atenas Clássica.
Cataldo Parísio Sículo, Epístolas. I Parte. Fixação do texto latino, tradução, prefácio e notas de Américo da Costa Ramalho e de Augusta Fernanda Oliveira e Silva. Lisboa, Imprensa Nacional‐‐Casa da Moeda, 2010, 699 pp. [ISBN: 978‐972‐27‐1785‐4].
ANTÓNIO ANDARDE, Centro de Línguas e Culturas, Universidade de Aveiro3
Esta primeira parte das Epístolas de Cataldo Parísio Sículo, que contém o núcleo mais antigo, dado à estampa em 1500, conclui a publicação integral da correspondência deste insigne humanista siciliano, porquanto foi antecedida pela segunda parte, no ano de 2005.
Não é por demais acentuar que a conclusão desta obra notável representa o corolário de uma longa e profícua carreira de investigação dedicada pelo Doutor Américo da Costa Ramalho ao
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
Recensões e Notícias Bibliográficas
143
serviço dos estudos do Humanismo em Portugal, em que a obra de Cataldo ocupa, inegavelmente, um lugar cimeiro.
Ao longo de mais de quatro décadas, o Doutor Américo da Costa Ramalho (e os seus discípulos, onde se inclui a co‐autora deste livro) muito fez para dar a conhecer a figura e a obra deste ilustre humanista, em cujas cartas sentimos, com particular intensidade, o pulsar de um reino que vivia, então, os anos áureos da expansão e dos descobrimentos sob a mão de D. João II e de D. Manuel I.
O humanista siciliano veio para Portugal precisamente a convite do Príncipe Perfeito, para exercer as funções de secretário latino e de orador oficial. Pouco depois da sua chegada, em 1485, instalou‐se em Aveiro na qualidade de preceptor de D. Jorge, filho bastardo do monarca, partilhando esta tarefa com a infanta D. Joana.
A Cataldo, dedicou o autor do presente livro inúmeros estudos, de entre os quais nos permitimos destacar, aqui, a magnífica edição fac‐‐similada das Epistolae et Orationes (Coimbra, 1988), comemorativa da introdução da imprensa em Portugal, a cuja preparação tivemos o grato prazer de assistir na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.
À imagem do que havia sucedido no volume da Parte II, sublinhamos a cuidada apresentação das cartas, seja do texto latino original, seja da excelente tradução portuguesa, tantas vezes acompanhada de proveitosas notas para o leitor. A consulta e a pesquisa das referências feitas nas cartas, que se encontram devidamente numeradas e identificadas, estão muito facilitadas pela existência de três índices de grande utilidade — onomástico, toponímico e geral. Encontra‐se, ainda, na parte final do volume, uma reprodução fac‐similada do precioso incunábulo das Epistolae et Orationes de Cataldo.
Saudamos, portanto, com muito agrado a publicação desta obra valiosa, sob a chancela prestigiada da Imprensa Nacional‐
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
144 Recensões e Notícias Bibliográficas
Casa da Moeda, na certeza de que os seus autores prestaram um enorme serviço à cultura portuguesa.
José Vicente Bañuls Oller & Patricia Crespo Alcalá, Antígona(s): mito y personaje. Un recorrido desde los orígenes, Bari, Levante Editori, 2008, 662 pp.
CARLA SOFIA OLIVEIRA SILVA, Centro de Línguas e Culturas, Universidade de Aveiro4
Antígona é uma figura reconhecidamente profícua, verda‐deiramente dotada de grandeza moral, assim como o mito em que se insere e as personagens que, contracenando com ela, confi‐guram a trágica saga Labdácida. Conhecida pela atitude obstinada com que enfrentou Creonte, esta jovem resoluta encarnou ao longo dos tempos diversos significados políticos e socais, novos a cada contexto em que emergiu, o que explica o seu uso recorrente em todas as literaturas de todas as épocas e de variadíssimas latitudes.
Conscientes dessa riqueza e apaixonados pelo trabalho que vinham desenvolvendo no GRATUV (Grupo de Recerca i Acció Teatral de la Universitat de València), José Vicente Bañuls Oller e Patricia Crespo Alcalà (professor e discípula, respectivamente) decidiram abraçar a colossal tarefa de reunir no livro que agora recenseamos o resultado de vários anos de sólido trabalho em redor da heroína, dos autores que a (re)criaram, dos conflitos em que lutou e da influência da sua acção ora através das encenações ora através do estudo das obras em que aparece, contemplando não só a dramaturgia, mas também a poesia e a narrativa, sem esquecer outras artes. Quase um quarto de século depois, esta dupla de investigadores vem, desta forma, dar continuidade ao estudo iniciado por George Steiner em Antígonas. La travesía de un mito universal por la historia de Occidente.
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
Recensões e Notícias Bibliográficas
145
Este trabalho é, na verdade, um valiosíssimo tesouro para os estudiosos e interessados na temática da recepção literária das narrativas mitológicas clássicas, em geral, e do mito de Antígona, em particular, tal é a sua riqueza em referências a obras, datas, autores, reflexões e contextualizações. Os persistentes autores quiseram perseguir com rigor o seu objecto de estudo, a saga dos Labdácidas, até aos seus antecedentes na literatura grega, ainda antes de Sófocles lhe dar os contornos com que a conhecemos hoje na sua tragédia Antígona, obra dramática que sintomaticamente merece especial atenção neste volume por se tratar do primeiro tratamento conhecido do mito. Para além disso, analisaram diversas obras posteriores que contribuíram para consolidar a figura da jovem irmã de Polinices e o conflito que a opõe ao soberano Creonte, assim como outras composições greco‐latinas antigas que se serviram do assunto e cujo tratamento serve de chave para compreender o processo de consolidação, transmissão e recepção do mito ao longo dos tempos.
Ao todo, este aturado estudo analisa 258 recriações (drama‐ticas, poéticas ou narrativas) da Antígona sofocliana (organizadas cronologicamente num oportuno índice, no fim da obra). Umas são nomeadas por claramente recuperarem elementos da tradição, outras porque assentam em divergências oriundas do sincretismo com outras figuras ou da inovação dos autores, mas onde o referente literário de Sófocles é identificável por relação com as circunstâncias concretas da sociedade em que se produzem as novas obras. O notável Prólogo da autoria de Carmen Morenilla é um excelente guia para a compreensão da forma como os autores decidiram organizar o extenso fruto do seu trabalho.
Devido ao seu ambicioso alcance cronológico, este livro está organizado em dois grandes blocos metodologicamente distintos: um primeiro, dedicado à Antiguidade; e um segundo, que inclui o extenso período da Idade Média até à actualidade. Assim, na primeira parte (subdividida nos capítulos “Grécia” e “Roma”),
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
146 Recensões e Notícias Bibliográficas
baseados em investigações anteriores, os autores, pretendendo verificar até que ponto e a partir de que fontes os diferentes compositores seguiram este mito, apresentam um estudo aprofun‐dado das fontes gregas e latinas (Píndaro, Corina, Baquílides e Sófocles, para citarmos alguns) onde se pode resgatar a génese do mito e, especialmente, a configuração de Antígona como heroína trágica, para seguirem o tratamento que a personagem recebeu na restante literatura grega (em Eurípides e Astidamante II, entre outros) e latina (com Séneca, Ovídio ou Higino, por exemplo), mostrando relações de dependência e de divergência, consoante a obra, sem obliterarem as limitações de análise que as perdas textuais impõem a um estudo deste género. Em qualquer dos casos, a tónica permaneceu sempre no conteúdo ético e sócio‐político de cada obra concreta, revelando a chave para a sua compreensão e denotando uma coerência merecedora de nota.
Devido à sua amplitude cronológica e geográfica, a metodo‐logia da segunda parte do trabalho teve, forçosa e inteligente‐mente, de ser distinta. Surgem, portanto, grandes divisões em períodos históricos, universalmente reconhecidos, cuja sociedade é brevemente caracterizada, a fim de melhor contextualizar as recriações (por composição ou representação) de Antígona, reite‐radamente recuperada como personagem de elevado significado político. É no interior de cada um dos marcos previamente definidos que os autores estudam as adaptações deste mito, descrevendo resumidamente as linhas essenciais de cada argu‐mento e caracterizando as personagens, de forma a estabelecerem pertinentes e sólidas relações com os clássicos, particularmente com a tragédia sofocliana. É notório, à medida que vamos avançando temporalmente no estudo, o aumento exponencial de obras que remetem para esta matriz mitológica, porém é de salientar a clareza e a perseverança que os autores mantêm diante de tantos dados recolhidos.
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
Recensões e Notícias Bibliográficas
147
Precisamente por contarem com um vastíssimo corpus textual (os autores salientam que, por diversas razões alheias à sua vontade, não é possível conhecer todas as obras que abordam esta temática), que inclui não só a presença de Antígona mas também a de Creonte, figura essencial à configuração contrastiva do mito, é de elogiar o facto de praticamente todas as obras citadas terem sido lidas e estudadas, ainda que não se possa esperar um tratamento igualmente aprofundado de todas elas. De qualquer das maneiras, torna‐se fácil distinguir aquelas que mereceram de José Oller e de Patricia Crespo uma atenção especial, ou porque foram alvo de ampla repercussão ou reiteradas vezes encenadas ou influenciadoras de criações posteriores, como são os casos de Antigone, de Jean Anouilh, Antigonemodell 48, de Bertolt Brecht, ou La tumba de Antígona, de María Zambrano. Outras obras mais demoradamente analisadas no livro assumiram‐se como o expoente de um tipo específico de literatura, representando movimentos culturais concretos, como Antígona Vélez (Leopoldo Marechal), The Island (Athol Fugard) e Antígona… ¡Cerda! (Luis de Riaza).
Sem querermos alongar‐nos muito, é imperioso que forne‐çamos uma panorâmica desta segunda parte do livro, esclare‐cedoramente intitulada “As adaptações. Creonte e Antígona depois da Antiguidade”. Numa primeira fase deste momento, são estudadas as recriações surgidas desde a Idade Média até meados do século XVIII. Assim, sem esquecer o importantíssimo trabalho de permanência e transmissão dos copistas da época bizantina, é dada atenção à Idade Média Latina, quando o referente literário sofocliano se perde em favor da versão mitológica de Estácio, e onde se destacam os trabalhos de Dante Alighieri (Divina Comedia) ou de Boccaccio (De claris mulieribus). As épocas renascentista (mais fiel a Sófocles) e barroca (mais afastada deste modelo) foram bastante produtivas. De Inglaterra a Itália, entre muitas outras, os autores do livro analisaram Antigone,
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
148 Recensões e Notícias Bibliográficas
de Giovanni Paulo Trapolini, a obra Antigone ou le piété, do francês Robert Garnier, amplamente traduzida e adaptada, ou The fatal legacy, da escritora britânica de inícios do século XVIII Jane Robe.
A segunda etapa desta parte do estudo intitula‐se genericamente “Da Revolução Francesa à contemporaneidade” e oferece‐nos uma visão bastante metódica da presença do mito nas literaturas mundiais. O início do século XIX trouxe consigo o Romantismo e projectou a figura de Antígona sobre dois eixos: um de carácter mais político, outro mais literário e filosófico. Os autores destacam, nesta fase, entre outros, os trabalhos de tradução e adaptação dos mestres alemães Hegel, Hölderlin, Goethe e Schelling. Depois destes e até à I Guerra Mundial, as recriações desta narrativa multiplicaram‐se em várias línguas e em diversos géneros. Por entre os muitos títulos referenciados, encontramos Antígona y Hemón, uma primeira adaptação ibérica do mito da autoria de Pedro Montengón y Paret, uma peça de Edward Fitzball não publicada, mas que conquistou bastante êxito, Antigone or the theban sister, e um ensaio do dinamarquês Kierkegaard. Durante a Guerra Mundial, a produção literária foi compreensivelmente menor, mas merece dos investigadores nota a novela Au‐dessus de la mêlée do Prémio Nobel Romain Rolland. Entre as grandes guerras, Jean Cocteau (com Antígona) e Marguerite Yourcenar (com Feux), por exemplo, redescobriram os clássicos, revitalizando‐os, e este livro dá‐nos conta desse aspecto. Curiosamente, José Oller e a sua discípula consideraram importante dedicar um capítulo à realidade da recepção literária deste mito em Portugal, e esse é mais um aspecto de interesse e pertinência neste livro. Com efeito, o contexto ditatorial favoreceu o aparecimento dos trabalhos do exilado António Sérgio, de Júlio Dantas ou de António Pedro em torno da figura revolucionária da jovem. A II Guerra e o seu rescaldo deixaram‐nos a herança brechtiana já destacada e um mundo dividido em dois blocos, uma dicotomia que se reviu facilmente na oposição Antígona/Creonte,
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
Recensões e Notícias Bibliográficas
149
como o provam os trabalhos de Bach na ópera, da eslovena Dominik Smolé ou dos americanos Malina e Beck.
A permeabilidade desta narrativa mitológica às mais diversas circunstâncias sociais e políticas e o rigor do trabalho dos autores deste estudo levaram‐nos até à literatura africana, onde encontraram Tegonni: An african Antigone, de Femi Osofisan, ou ao centro do conflito de Ulster, onde Seamus Heaney preparou The burial of Thebes. A version of Sophocles Antigone. Longamente estudada neste volume é a pervivência do mito em Espanha, particularmente na transição para a democracia, época durante a qual as Antígonas espanholas falaram essencialmente da guerra civil, da ditadura e do pós‐guerra, da democracia e da sua consoli‐dação. Para além de alguns nomes já citados, tornou‐se inevitável encontrarmos neste livro ibéricos como Miguel de Unamuno, Carlos de la Rica, Maria Xosé Queizán, entre muitos outros. Lutadora por definição desde Sófocles, a jovem filha de Édipo emprestou também a sua força a todo um leque de autores ibero‐americanos, que reviram na sua actuação o carácter revolucionário que desejavam para as suas letras e os seus povos. São assim apresentadas, num interessante capítulo, recriações de Antígona, em diferentes géneros, oriundas do Haiti, da Colômbia, do Brasil, do México, do Peru e da Argentina, uma das mais produtivas nações do sul da América neste domínio. O último marco desta viagem sem dúvida cronológica mas também amplamente geo‐gráfica situa‐se junto ao muro de Berlim e no momento da sua queda, facto que teve conhecidas repercussões mundiais, dando lugar às adaptações mais ou menos livres de Wendy Greenhill (Antigone Project), de Victor Loew, da Holanda (Antigone), da portuguesa Hélia Correia (Perdição. Exercício sobre Antígona), do influente Henry Bauchau (novela Antigone) e dos autores deste livro, em colaboração com Carmen Morenilla (Antígona o la tragédia de Creonte), entre várias outras estudadas. Esta segunda parte é completada com um apontamento relativo a algumas encenações
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
150 Recensões e Notícias Bibliográficas
da Antígona sofocliana, merecedoras de especial menção pela sua singularidade cénica, pela invulgaridade da tradução ou pela inegável actualidade.
Se o que vem sendo dito, por si só, já é catalisador do excepcional valor de que este estudo se reveste, a terceira parte complementa fortemente o seu carácter inovador e abrangente, uma vez que disponibiliza uma aproximação panorâmica às restantes adaptações artísticas do mito de Antígona, na ópera e na música, na dança (onde a narrativa serviu a elegância do ballet mas também a versatilidade da dança contemporânea), nas artes plásticas (área em que este mito se impôs a partir do neoclassicismo francês), ou no cinema e na televisão (arte em que se destaca a interpretação de Irene Papas no filme Antígona, de 1961).
Para além de todos os argumentos já longamente expostos, há, sem dúvida, mais alguns aspectos paralelos ao estudo principal que nos fazem dirigir rasgados elogios a este livro e que facilmente obscurecem pequeníssimas gralhas tipográficas pontualmente detectadas. Os primeiro e segundo, e que já foram referidos neste texto, são o magnífico Prólogo e o laborioso Índice de Adaptações; o terceiro é o facto de os nomes dos autores e das obras estudadas, à medida que vão sendo introduzidos no texto, surgirem a negrito. Parece um mero preciosismo gráfico, mas revela‐se bastante útil, quando estamos diante de um livro tão volumoso e de um corpus textual tão extenso. O quarto, mas não menos importante, diz respeito às oportuníssimas e valiosas notas de rodapé, por vezes ocupando quase toda uma página, mas que se revelam uma ajuda preciosa para o acompanhamento do estudo. O quinto prende‐se com a extensa e completa Bibliografia, organizada em dois grandes domínios, de acordo com a própria grande divisão do livro — obras de e sobre a Antiguidade Clássica e os autores greco‐latinos, e adaptações e estudos sobre as mesmas. Por fim, o leitor tem ainda à sua disposição um sempre útil Índice Remissivo.
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
Recensões e Notícias Bibliográficas
151
Resta‐nos, portanto, dar os parabéns aos autores deste ines‐timável estudo, que, apesar da enorme quantidade de textos anali‐sados, nunca se afastaram do tema central do trabalho; ao GRATUV, berço desta equipa e desta ideia; e à Levante Editori, que assegurou a publicação, colocando à disposição dos interessados, em geral, e dos investigadores, em particular, um trabalho, digno de admiração e pautado por grande erudição, que nos revela obras não publicadas e nos sugere pistas para estudos parcelares em torno do mito de Antígona.
Rose Duroux et Stéphanie Urdician (coord.), Les Antigones Contemporaines (de 1945 à nos jours), Clermont‐Ferrand, Presses Universitaires Blaise Pascal, 2010, 474 pp. [ISBN 978‐2‐84516‐407‐9]
CARLA SOFIA OLIVEIRA SILVA, Centro de Línguas e Culturas, Universidade de Aveiro5
A figura da jovem Antígona tem exercido um enorme fascínio sobre os criadores de todos os tempos, nunca tendo aban‐donado o imaginário literário universal. Sófocles rendera‐se ao poder desta personagem mitológica muito antes de os escritores contemporâneos terem descoberto a sua plasticidade. São diversas e incontáveis as versões deste mito, que resultam do carácter simbólico actualizável, reinterpretável e adaptável da actuação da jovem filha de Édipo perante a decisão arbitrária de Creonte. Os retratos de Antígona são, assim, tão múltiplos quanto as perso‐nalidades e as ideologias dos autores que revisitaram a narrativa mítica e tão diversas quanto os tempos da escrita.
Se, por um lado, esta personagem singular representa valores individuais dotados de elevado poder dramático — a resistência individual ao poder arbitrário do Estado —, por outro simboliza ideais e conceitos sociais intemporais, como a revolta,
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
152 Recensões e Notícias Bibliográficas
a emancipação, a rebeldia ou o castigo. Efectivamente, para além de figura estética, Antígona assumiu‐se, na perspectiva de vários autores, como uma personagem com um forte significado ético.
Pelos valores que simboliza, esta jovem obstinada tem assu‐mido particular destaque nas produções literárias do século XX, ultrapassando largamente o enquadramento mítico inicial e despertando curiosidade entre os teóricos acerca da capacidade de articulação (plena de especificidade) entre a história de Antígona e a contemporaneidade.
Conscientes da profusão de Antígonas contemporâneas e de leituras deste fenómeno de recriação literária, Rose Duroux e Stéphanie Urdician, igualmente seduzidas por esta magnética figura, decidiram tomar em mãos a tarefa de reunir num só volume análises críticas de diferentes recriações do mito, em especial na literatura ibero‐americana, sistematicamente ignorada nos estudos que se têm produzido sobre este mito (cf., e.g., G. Steiner ou S. Fraisse). Os ensaios coligidos neste volume (resultantes, maioritariamente, de dois encontros sobre este tema, realizados no Instituto Cervantes de Paris e na Casa das Ciências do Homem de Clermont‐Ferrand) convocam os (re)criadores e os destinatários literários para um diálogo no seio da diversidade de Antígonas da segunda metade do século XX, provando que as reconfigurações múltiplas do mito não conduziram à sua banalização ou grotesca deformação.
Com uma introdução que é bastante elucidativa quanto aos fundamentos da iniciativa das coordenadoras e que apresenta uma oportuna síntese das características que fazem de Antígona uma figura tantas vezes (e de tantas maneiras) reinterpretada, o livro, dividido em oito capítulos, é extremamente rico, principalmente pela diversidade de autores e de títulos que aborda, ainda que essencialmente de raízes europeias, mas também pelas visões multifacetadas (políticas, culturais, éticas, dramáticas, poéticas,
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
Recensões e Notícias Bibliográficas
153
narrativas…) da figura e das reconfigurações e encenações que consegue oferecer.
Assim, na primeira parte da obra, Françoise Duroux, num ensaio intitulado “Antigone dans le noeud des lois”, estuda a Antígona de Sófocles e as múltiplas leituras sociais e culturais que suscita, abrindo caminho às considerações de Michèle Ramond, em “Antigone ou l’inscription symbolique des femmes”, sobre o poder tirânico dos homens face ao poder ético da mulher, representado na figura da jovem Antígona, que encerra em si o ideal democrático, tópico que é retomado como bandeira simbólica por várias escritoras ibéricas contemporâneas. Por sua vez, Ariane Eissen, debruçando‐se sobre uma dezena de peças de origem inglesa, francesa e italiana dos últimos vinte anos, oferece‐nos, no seu estudo intitulado “Antigone sur la scène contemporaine: analyse d’un changement de paradigme”, uma ambiciosa visão da mudança de paradigma nas reescritas de Antígona pós‐Brecht, norteada pelas profundas alterações sociais e político‐económicas. No último trabalho desta parte, Marifé Santiago Bolaños dedica a sua atenção à recriação feita por María Zambrano, em La tumba de Antígona.
Na senda das representações deste mito no século XX, o primeiro capítulo da segunda parte “Mises en scène contem‐poraines d’Antigone”, da autoria de Eleni Papalexiou, analisa três encenações contemporâneas da peça sofocliana, cada uma delas apresentando uma visão diferente da tragédia grega: uma abor‐dagem extrema e exigente do texto pela mão de Marcel Bozonnett e Jean Bollack; uma encenação multicultural sob a orientação de Sotigui Kouyaté; um olhar antropológico do mito por Théodoros Terzopoulos. De seguida, Annie Pibarot, num interessante estudo intitulado “Antigone de Bauchau, un roman sur la transmission théâtrale” reflecte sobre a divergente Antígona de Bauchau, e Mattia Scarpulla aborda a inovadora obra de Katy Deville, Le Journal d’Antigone, destinada a um público adolescente.
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
154 Recensões e Notícias Bibliográficas
Composta a partir de textos do mestre Bauchau, esta peça reúne em palco várias disciplinas artísticas.
A terceira parte, ainda que curta, é particularmente interessante, porque diferente das demais, já que nos coloca frente‐a‐frente com os intérpretes/recriadores do mito nos palcos da contemporaneidade. Annick Allaigre conversa com Jeanne Champagne, a propósito de Antigone, encore, e Ariane Eissen entrevista Anne Théron sobre a peça Antigone, Hors‐la‐loi.
O estudo que inaugura a quarta parte, da autoria de Nadia Mekouar‐Hertzberg, introduz‐nos no universo das Antígonas narrativas e poéticas, bem como no das Antígonas “ibéricas”, através da atenta abordagem do romance de Rosa Montero, El corazón del Tártaro, onde a jovem figura mitológica povoa o imaginário narrativo no anonimato. O ensaio de Béatrice Rodriguez sobre Melocotones helados, romance da jovem escritora espanhola Espido Freire, procura astuciosamente evidenciar a presença de Antígona numa versão simbolicamente invertida do mito. De seguida, dois capítulos, respectivamente da autoria de Jean‐Pierre Thomas e de Hélène Amrit, são dedicados à recriação da figura mitológica nas narrativas do Quebeque, ora nos romances de Réjean Ducharme, ora em Ça va aller, de Catherine Mavrikakis. Um estudo sobre a presença do mito de Antígona na obra de Juan Gil‐Albert é o penúltimo desta parte, que encerra com uma análise da vertente política de uma obra típica do exílio espanhol durante a Guerra Civil, La sangre de Antígona (1954), de José Bergamín.
Na quinta parte, subordinada ao tema “Morts sans sépulture”, Agnieszka Stobierska, Cécile Braillon‐Chantraine e Maria Beatrice Lenzi analisam a transposição do mito de Antígona para situações contemporâneas de conflito, de guerra e de injustiça social, localizadas espacialmente no campo de batalha de uma Nova Iorque povoada por sem‐abrigo insepultados (em Antigone à New York, de Janusz Glowacki), num Uruguai oprimido por uma
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
Recensões e Notícias Bibliográficas
155
ditadura militar que não sepulta os seus mortos (em Soñar con Ceci trae cola, de Carlos Denis Molina) e na aterrorizada Argentina, vítima do poder político repressor (em Antígona furiosa, de Griselda Gambaro).
A sexta parte desta riquíssima obra é dedicada às reinter‐pretações do mito de Antígona no século XX, mostrando a diver‐sidade de adaptações, subordinadas ao tema “Un mythe politique et identitaire”. Primeiro, no teatro flamengo, através do texto de Klaas Tindemans, que aprecia algum radicalismo nos trabalhos de adaptação em detrimento das produções ditas “ortodoxas”; depois, na dramaturgia portuguesa, através das considerações de Maria de Fátima Silva acerca do papel desempenhado por autores influenciados pela evolução histórica e cultural do país, como António Sérgio, Júlio Dantas e António Pedro, na recriação do mito em território nacional. A António Sérgio torna Carlos Morais ao debruçar‐se sobre o trabalho de actualização do autor em redor da sua Antígona, num texto intitulado “Un exercice d’actualisation et d’exégèse du mythe d’Antigone (A. Sérgio, Jornada Sexta do Pátio das Comédias, 1958)”. A literatura alemã não foi esquecida e o artigo “L’Automne d’Antigone. Le mythe grec et le deutscher Herbst (1977)” de Isabel Capeloa Gil discute a produtividade cultural deste mito numa época perturbada por acções terroristas (1976‐1977). Acresce à panóplia de reinterpretações estudadas a de María Xosé Queizán, autora de Antígona, a forza do sangue, que, de acordo com Mélissa Fox‐Muraton, nos oferece uma visão marginal do mito, mais devotada ao combate da globalização e da modernidade, numa língua minoritária como a galega. Esta parte do livro encerra com o estudo de Monica Fiorini sobre a figura de Antígona na obra de María Zambrano (autora já abordada noutro passo deste volume), que reflecte acerca da agonia da Europa.
Finalmente, as sétima e oitava partes são dedicadas à peça Perdição. Exercício sobre Antígona, de Hélia Correia, autora convidada, que apresenta também uma belíssima intervenção
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010)
156 Recensões e Notícias Bibliográficas
intitulada “La poussière dorée”. Sobre esta dramaturga portuguesa e a sua recriação do mito escrevem Inês Alves Mendes que, em “Perdição de Hélia Correia: ambiguïtés, ironies et espoirs d’une Antigone contemporaine” sublinha a ruptura do texto português com o modelo sofocliano, e Cidália Ventura, que reflecte acerca da presença do coro na reinterpretação dramática de Hélia Correia. A encerrar o volume, Eugénia Pereira (Parte 8) oferece‐nos uma cuidada e rigorosa tradução para o francês (a primeira) do texto de Hélia (Perdition. Exercice sur Antigone), ilustrada com fotogafias da encenação desta obra em palcos portugueses.
Saúde‐se a magnífica iniciativa quer das coordenadoras do volume, Rose Duroux e Stéphanie Urdician, quer da Universidade Blaise Pascal, que decidiu apoiar a publicação deste volume, bastante agradável no seu aspecto gráfico e fácil de consultar, a partir dos resumos dos artigos, apresentados no final do livro, e do índice, organizado de forma simples mas eficaz.