legítimas e as outras Lisboa, Sá da 2008 Universidade ...

22
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) — ISSN: 08745498 Ana Lúcia Curado, Mulheres em Atenas: as mulheres legítimas e as outras, Lisboa, Sá da Costa Editora, 2008 (Colecção Nova Universidade). ISBN: 9789725623688. CARLOS MORAIS, Centro de Línguas e Culturas, Universidade de Aveiro 1 Publicado pela Sá da Costa Editora, este livro aborda uma temática muito em voga e, por isso, do agrado de um qualquer leitor curioso por questões de cultura antiga — a análise do estatuto da mulher na Atenas clássica 2 . Por terem ousado editar esta obra, em tempos algo avessos à divulgação e recepção de assuntos relativos à Antiguidade, são merecedoras de aplauso quer a Sá da Costa Editora quer a Fundação Agostinho Fernandes. Nesta área do saber, a qualidade do estudo, inquestionável neste caso, como tentaremos evidenciar, e o tema tratado, por mais actual que seja, não bastam muitas vezes para convencer editoras de natureza comercial a arriscar. Os receios são sempre muitos e, não raras vezes, suplantam o gosto e o dever de divulgar a cultura. Dignos de elogio são igualmente a qualidade da apresentação gráfica, simples mas agradável, e a cuidada revisão da responsabilidade de António Esteves. Mas os maiores encómios vão, como é natural, para a autora, pela escrita deste estudo rigoroso e ponderado, que evita generalizações fáceis ou conclusões precipitadas sobre um tema tão complexo e sensível. Ana Lúcia Curado é docente e investigadora na Universidade do Minho, na área de Estudos Clássicos, tendo publicado, ao longo da sua carreira académica diversos ensaios e livros, dos quais destacamos Antiguidade e Nós. Herança e Identidade Cultural e Cartas Italianas de Verney, saídos do prelo, 1 [email protected] 2 Texto apresentado no lançamento do livro em Aveiro, na Livraria Buchholz, a 29 de Maio de 2009.

Transcript of legítimas e as outras Lisboa, Sá da 2008 Universidade ...

 

 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) — ISSN: 0874‐5498  

Ana Lúcia Curado, Mulheres em Atenas: as mulheres  legítimas e as  outras,  Lisboa,  Sá  da  Costa  Editora,  2008  (Colecção  Nova Universidade). ISBN: 978‐972‐562‐368‐8. 

CARLOS MORAIS, Centro de Línguas e Culturas, Universidade de Aveiro1 

Publicado pela Sá da Costa Editora,  este  livro aborda uma temática muito  em  voga  e, por  isso, do  agrado de um  qualquer leitor  curioso  por  questões  de  cultura  antiga  —  a  análise  do estatuto da mulher na Atenas clássica2. 

Por terem ousado editar esta obra, em tempos algo avessos à divulgação  e  recepção  de  assuntos  relativos  à Antiguidade,  são merecedoras  de  aplauso  quer  a  Sá  da  Costa  Editora  quer  a Fundação Agostinho Fernandes. Nesta área do saber, a qualidade do estudo, inquestionável neste caso, como tentaremos evidenciar, e  o  tema  tratado,  por mais  actual  que  seja,  não  bastam muitas vezes  para  convencer  editoras  de  natureza  comercial  a  arriscar. Os receios  são  sempre  muitos  e,  não  raras  vezes,  suplantam  o gosto e o dever de divulgar a cultura. Dignos de elogio são igual‐mente  a  qualidade  da  apresentação  gráfica,  simples  mas  agra‐dável,  e  a  cuidada  revisão  da  responsabilidade  de  António Esteves. Mas  os maiores  encómios  vão,  como  é  natural,  para  a autora, pela escrita deste estudo  rigoroso e ponderado, que evita generalizações  fáceis  ou  conclusões  precipitadas  sobre  um  tema tão complexo e sensível.  

Ana  Lúcia  Curado  é  docente  e  investigadora  na Universidade  do  Minho,  na  área  de  Estudos  Clássicos,  tendo publicado, ao  longo da sua carreira académica diversos ensaios e livros, dos quais destacamos Antiguidade e Nós. Herança e Identidade Cultural  e  Cartas  Italianas  de  Verney,  saídos  do  prelo, 

                                                        1 [email protected] 2  Texto  apresentado  no  lançamento  do  livro  em Aveiro,  na  Livraria 

Buchholz, a 29 de Maio de 2009. 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 

136  Recensões e Notícias Bibliográficas  

 

respectivamente,  em  2006  e  2008.  Posterior,  este  extenso  ensaio toca áreas tão díspares como a religião e a moral, a sociologia e a história do direito privado na Grécia antiga. Integrado na colecção ʺNova Universidade”,  tem  por  base  a  tese  de  doutoramento  da autora,  apresentada  à  Faculdade  de  Letras  da  Universidade  de Coimbra, em 2004, sob a orientação da Prof. Doutora Maria Helena da Rocha Pereira, que assina um breve mas esclarecedor prefácio que sublinha os méritos do estudo. 

A  fim  de  tornar  o  conteúdo  desta  sua  investigação académica mais  acessível  a  um  público  não‐helenista,  a  autora cuidou de reelaborar e aligeirar o texto inicial, dando‐lhe a forma de  ensaio. Assim,  expurgou‐o  de  todos  as  citações  dos  originais gregos, mantendo  apenas  as  excelentes  traduções de  sua  autoria ou  transliterando  conceitos  e  expressões  da  língua  de Homero; retirou‐lhe  as  discussões  excessivamente  técnicas  e  a  grande maioria  das  notas  de  rodapé,  incluindo muitas  das  citações  no corpo  do  texto;  e  reduziu  a  bibliografia  consultada  ao  essencial. O resultado  foi um  livro que  consegue o  equilíbrio, nem  sempre fácil, mas necessário  em obras de divulgação,  entre  a  erudição  e um  estilo  simples  e  escorreito  que  instiga  à  leitura  quem  se interessa por estes assuntos, seja especialista ou não.  

Mas o estímulo à leitura começa, desde logo, no sugestivo e apelativo  título — Mulheres  em  Atenas —  que  substitui  o mais académico  que  figurava  no  texto  da  dissertação  —  A  mulher segundo  os  oradores  áticos —  e  prossegue  nas  criteriosas  sínteses escolhidas para a contracapa e respectiva badana, que apresentam e delimitam o tema no tempo e nos textos tratados.  

O  título  é  sugestivo  e  apelativo,  insisto,  porque  traz  à memória dos potenciais leitores, sobretudo dos da minha geração, esse  belíssimo  texto  de  Augusto  Boal  e  de  Chico  Buarque  de Holanda  —  Mulheres  de  Atenas  —,  musicado  e  cantado  pelo segundo para uma peça  teatral  com o mesmo nome, escrita pelo primeiro. Numa  toada repetitiva e cíclica,  típica de  ladainha, que 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 Recensões e Notícias Bibliográficas 

 137 

 

sublinha  ritmicamente o  sentido do  texto, Chico Buarque,  com a sua voz inconfundível, canta a vida desafortunada, rotineira e sub‐serviente  das  atenienses  de  antanho  que  não  tinham  gosto  ou vontade, nem defeito, nem qualidade, nem sonhos: só presságios e medo. Ora amadas, ora fustigadas e substituídas pelas outras — as falenas —,  essas  mulheres  de  Atenas  (expressão  que  se  repete como um refrão) viviam, esperavam, sofriam, amavam, geravam, temiam  e,  já  em  fim  de  ciclo,  secavam  pelos  seus maridos,  os heróis e amantes, o orgulho e a raça, o poder e a força de Atenas. 

Esta música  e  letra  que  ouvi,  vezes  sem  conta,  na minha juventude, apresenta a visão estereotipada da vida das atenienses, construída  ao  longo  de  séculos  e  comummente  aceite,  que  não coincide  totalmente com a perspectiva crítica, despida de precon‐ceitos e de paradigmas, que Ana Lúcia Curado apresenta nas mais de  500  páginas  do  seu  estudo,  que  se  lêem  de  um  fôlego. É inquestionável que  as mulheres  eram  seres débeis, que viviam confinadas  ao  seu  oikos,  na  dependência  do  seu  pai,  enquanto solteiras, e sujeitas ao marido, depois de casadas. É também indis‐cutível que não possuíam nem  força política nem voz pública,  já que  não  podiam  falar  nem  votar  na  ekklesia,  ou  seja,  não  eram cidadãs no pleno  sentido da palavra. Mas  isso não  significa que devamos  ficar‐nos  por  estas  afirmações  genéricas  e  fixar‐nos, assim,  nesta  perspectiva multissecular  cristalizada,  que  a  autora sugestivamente apelida de “paradigma vitoriano da mulher grega porque  valoriza  apenas  os  seus  aspectos mais morais  e  conser‐vadores” (p. 13). O papel da mulher na sociedade ateniense, nem sempre  fácil  de  avaliar,  porque  envolto  em  muitos  silêncios  e distorcido  por  uma  visão masculina  da  sociedade,  é  bem mais complexo,  como  atestam  alguns  testemunhos  iconográficos  da cerâmica  ática.  Referidos  pela  autora,  estas  pinturas  (algumas delas  reproduzidas  na  obra)  ilustram  o  quotidiano  da mulher  a cruzar‐se  com  o do  homem  na praça pública  ou  na  rua,  contra‐riando  assim  a  ideia de  que  a  vida  feminina  se  circunscrevia  às 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 

138  Recensões e Notícias Bibliográficas  

 

quatro paredes do gineceu. Mas outras fontes, quando analisadas com  rigor  e  sem  esquemas  ou  ideias  preconcebidos,  confirmam igualmente que há mais mulher no oikos e fora dele. É o caso dos discursos  dos  oradores  áticos,  aos  quais  a  autora  vai  buscar  os principais  dados,  nem  sempre  fáceis  de  analisar,  para  fazer  um retrato audacioso da vida das atenienses entre o último quartel do séc. V a.C. e o dealbar da época helenística. São 106 os discursos, criteriosamente  seleccionados  de  acordo  com  as  temáticas  a abordar,  que  estão  na  base  das  sábias  e  ponderadas  conclusões deste estudo. Pertencem aos dez oradores que constam do cânone alexandrino  —  Antifonte,  Andócides,  Ésquines,  Licurgo, Hiperides,  Dinarco  e,  sobretudo,  Lísias,  Isócrates,  Iseu  e Demóstenes,  leque de  autores  que  se  alarga  ainda  a Apolodoro, considerado por Pearson “o décimo primeiro orador ático” (p. 17). Ao representarem a sociedade grega “sem o verniz do normativo, seja ele literário, filosófico ou político” (p. 22), estes textos de argu‐mentação jurídica, através da apreciação crítica de casos concretos da vida privada, dentro e fora de portas, consentem que se conclua que  as mulheres  afinal  tinham  opinião  e  um  poder  efectivo  de influência,  exercido  a maior parte das  vezes no  silêncio do  oikos (p. 23), que é a expressão e a afirmação do seu modo de vida.  

Mas,  dada  a  ausência  de  registos,  quer  dos  argumentos contrários, quer das decisões do tribunal, esta análise, baseando‐se na  versão  parcial  de  uma  das  partes  em  litígio,  que  tinha  como objectivo  ganhar  o  processo  judicial,  exige  uma  abordagem prudente, nem sempre fácil. Assim, no respeito por este princípio básico,  numa  investigação  em  que  as  fontes  são  escassas  ou  até omissas,  a  autora  faz  preceder  sempre  o  estudo  dos  diferentes casos de uma minuciosa  e bem  fundamentada  exposição  teórica, muitas vezes  acompanhada de  stemmata ou  árvores genealógicas que  ajudam  à melhor  compreensão  das  relações  familiares  dos envolvidos  nos  processos  judiciais.  E  para  aclarar  muitos  dos factos com exemplos, recorre com frequência ao seu confronto com 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 Recensões e Notícias Bibliográficas 

 139 

 

representações da vida diária na cerâmica pintada e em  textos de tragédia  (Eurípides),  de  comédia  (Aristófanes  e Menandro),  de prosa (Xenofonte) e de filosofia (Platão e Aristóteles).  

Através  de  uma  visão  essencialmente  masculina,  propor‐cionada pelo elenco de autores atrás referidos, a vida da mulher na Atenas clássica é analisada pela autora dentro e fora do casamento. Duas  perspectivas  que  justificam  a  divisão  da  obra  em  igual número de partes, sintetizadas no adequado subtítulo: As Mulheres legítimas e as Outras — aquelas que Chico Buarque, no poema atrás referido,  sugestivamente  apelida  de  “falenas”  e  às  quais  os homens costumam “buscar carinho quando se entopem de vinho”. 

Na primeira parte, dedicada às relações conjugais, a mulher é apresentada como responsável pela gestão da economia do lar e pela  distribuição  de  tarefas  domésticas,  tendo  como  principal missão  conferir  legitimidade  ao  casamento  e  à  descendência  e ainda apoiar o homem em todas as suas tarefas. 

Capítulo  a  capítulo,  e  seguindo  sempre  uma  mesma estrutura, com uma introdução teórica seguida de estudos de casos jurídicos,  podemos  acompanhar  todas  as  etapas  do  processo  de negociação do  casamento,  tido  como uma norma de  vida  social, que  fortalecia  os  laços  entre  famílias,  valorizava  a  mulher  aos olhos da  sociedade  e  consolidava  a  sua  condição  e  legitimidade. Não  obstante  o  casamento  ser  o  resultado  de  um  negócio, a mulher,  ao  contrário  do  que  normalmente  se  pensa,  podia  ser consultada,  como  se pode verificar pela  leitura dos discursos de Iseu  sobre  as  heranças  de  Diceógenes  e  de  Ménecles.  Aspecto fundamental  desta  negociação  era  o dote.  Sendo um  importante contributo para o património e para a economia doméstica, o dote constitui  uma  garantia  de  união,  que  impede  muitas  vezes  o divórcio,  porque,  no  caso  de  o  homem  solicitar  a  separação conjugal, isso implicaria a imediata restituição dos bens doados.  

Mas  a  dissolução  do  casamento  era  possível  e  acontecia, tendo  como causa o adultério  (caso de Alcibíades e de Hipareta, 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 

140  Recensões e Notícias Bibliográficas  

 

relatado  por  Andócides,  4.  13‐14)  ou  a  infertilidade  (caso  de Ménecles  e da  filha mais nova de Epónimo de Acarnas,  referido por Isócrates, 2.7‐9), resultando estas situações normalmente num segundo matrimónio e no consequente estabelecimento de novos laços  familiares.  Em  qualquer  dos  casos,  a  perspectiva  feminina sobre o divórcio é sempre filtrada pela visão masculina dos aconte‐cimentos. Outra  coisa não  seria de  esperar  em discursos de  teor jurídico  escritos  por  homens,  numa  comunidade  e  num  espaço forense dominado também por homens.  

A  par  destas  temáticas,  devidamente  fundamentadas  com exemplos concretos da sociedade ateniense, a autora aborda ainda, nesta  primeira  metade  do  livro,  questões  relacionadas  com  as heranças e o direito sucessório e com as obrigações e deveres das mulheres,  que  viviam  uma  vida  de  silêncio  na  dependência continuada de um kyrios, ou seja, de um tutor, fosse ele o pai ou o marido. 

Na  segunda  parte  do  ensaio,  dedicada  às  relações  extra‐conjugais, a mulher descrita é a adúltera, passível de ser repudiada pelo marido  (capítulo  2), mas  é  também  e  sobretudo  a  “outra”, a habitual  companheira  do  homem,  alvo  da  crítica  e  da  descon‐fiança  da  legítima  (gyne) —  a  esposa,  a mãe,  a  guardiã  do  lar (capítulo 3). Esta “outra mulher” podia ser ou concubina (pallake), habitualmente de baixo estatuto  social, mas geralmente aceite do ponto de vista  jurídico, ou cortesã  (hetaira), geralmente culta e de nível  social  elevado,  vocacionada  para  proporcionar  sedução, paixão  e  erotismo,  ou  ainda  prostituta  (porne,  pornidion),  de  cos‐tumes  e práticas dissolutas. Era normalmente  estrangeira,  liberta ou  escrava, gozava de uma maior  liberdade  e vivia numa união não conjugal com o homem — duradoura no primeiro caso; mais ou menos  fortuita  nos  outros  dois. Nestes  relacionamentos,  esta companheira dava o prazer que o homem procurava fora de casa e, em troca, obtinha uma relativa estabilidade que, em certos casos, se aproximava da que tinha a mulher de família (cf. pp. 370 sqq.).  

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 Recensões e Notícias Bibliográficas 

 141 

 

Exemplo máximo  de  licenciosidade,  de  luxúria  e  de  liber‐dade  abusiva  é  Neera,  retratada  no  discurso  “Contra  Neera”, atribuído  a Apolodoro. Numa  análise  perspicaz,  com  constantes remissões para textos de outros autores e de outras épocas, feita no capítulo IV, intitulado “A mais velha profissão do mundo: um caso singular”,  a  autora  conclui  que  “a  imagem  pública  de  Neera atravessa  o  decorrer  dos  séculos  e  o  seu  nome  próprio  toma  o conteúdo semântico da sua prática de vida”. E prosseguindo o seu raciocínio, afirma ainda, na mesma p. 418:  

mencionar o seu nome passa a designar a cortesã e a concubina, a mulher que vive usufruindo do prazer do seu corpo. Identificado com o seu modo de vida, o nome de Neera passou a ser sinónimo de desejo de liberdade, de sensualidade e de sedução femininas, mas ao mesmo tempo a sua forma de vida é utilizada para a condenação pública da luxúria.  

Igualmente  alvo  de  censura  é  o  comportamento  do prostituto  Timarco,  no  discurso  Contra  Timarco,  de  Ésquines, exaustivamente  analisado  no  capítulo  seguinte  (V:  O  discurso contra Timarco e a presença do feminino). A razão para a inclusão desta figura masculina num estudo sobre mulheres prende‐se com o  facto  de  a  prática  da  homossexualidade  por  Timarco “corresponder essencialmente a um tipo de relacionamento extra‐conjugal,  com  constantes  referências  ao  parceiro  heterossexual traído em benefício do homossexual”  (p. 461). Além disso, a  sua relação  homossexual  é  caracterizada  através  de  práticas  funda‐mentalmente femininas, podendo o seu modo de vida ser compa‐rável ao de Neera. É que Timarco é acusado de ter um comporta‐mento sexual desviante, que o aproxima de prostitutas femininas: vida  promíscua,  desejo  intenso  de  riqueza  e  de  vida  luxuosa  e desempenho  de  papéis  que  imitam  a  vida  dos  casais  legítimos” (p. 466). Ou seja, a representação do comportamento homossexual, com um  elemento  activo  e  outro passivo,  é  feita  tomando  como modelo  as  relações  heterossexuais. Deste modo,  a  análise  deste discurso  revela‐se  pertinente  neste  ensaio  que,  não  só  neste 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 

142  Recensões e Notícias Bibliográficas  

 

capítulo,  como  em  outros,  faz  adequadas  e  ponderadas  aproxi‐mações à actualidade literária e fílmica.  

A esta actualidade junta‐se ainda a interessante e recorrente ideia de que os homens com quem as atenienses se relacionavam e de quem dependiam “tinham consciência de que coabitavam com seres semelhantes a eles, dotados de opinião e demasiado  impor‐tantes nas suas vidas para poderem ser esquecidas, embora as leis e o costume as fizessem ficar muitas vezes olvidadas no silêncio do oikos” (p. 495) 

A  actualidade  e  a  novidade  de  algumas  conclusões  deste ensaio de Ana Lúcia Curado, deduzidas da análise fundamentada de mais de uma centena de discursos dos oradores áticos, fazem‐‐me,  assim,  recomendar  a  sua  leitura,  sobretudo,  a  quem  se interesse por assuntos da Antiguidade e por um tema tão sedutor como é o da posição social da mulher na Atenas Clássica. 

Cataldo Parísio Sículo, Epístolas. I Parte. Fixação do texto latino, tradução,  prefácio  e  notas  de Américo  da Costa Ramalho  e  de Augusta Fernanda Oliveira e Silva. Lisboa,  Imprensa Nacional‐‐Casa da Moeda, 2010, 699 pp. [ISBN: 978‐972‐27‐1785‐4]. 

ANTÓNIO ANDARDE, Centro de Línguas e Culturas, Universidade de Aveiro3 

Esta primeira parte das Epístolas de Cataldo Parísio Sículo, que contém o núcleo mais antigo, dado à estampa em 1500, conclui a publicação integral da correspondência deste insigne humanista siciliano, porquanto foi antecedida pela segunda parte, no ano de 2005. 

Não  é  por  demais  acentuar  que  a  conclusão  desta  obra notável representa o corolário de uma longa e profícua carreira de investigação dedicada pelo Doutor Américo da Costa Ramalho ao 

                                                        3 [email protected] 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 Recensões e Notícias Bibliográficas 

 143 

 

serviço dos estudos do Humanismo em Portugal, em que a obra de Cataldo ocupa, inegavelmente, um lugar cimeiro. 

Ao  longo de mais de quatro décadas, o Doutor Américo da Costa Ramalho  (e  os  seus  discípulos,  onde  se  inclui  a  co‐autora deste  livro) muito fez para dar a conhecer a figura e a obra deste ilustre  humanista,  em  cujas  cartas  sentimos,  com  particular intensidade, o pulsar de um reino que vivia, então, os anos áureos da  expansão  e dos descobrimentos  sob a mão de D.  João  II  e de D. Manuel I. 

O  humanista  siciliano  veio  para  Portugal  precisamente  a convite do Príncipe Perfeito, para exercer as funções de secretário latino e de orador oficial. Pouco depois da sua chegada, em 1485, instalou‐se em Aveiro na qualidade de preceptor de D. Jorge, filho bastardo  do  monarca,  partilhando  esta  tarefa  com  a  infanta D. Joana. 

A  Cataldo,  dedicou  o  autor  do  presente  livro  inúmeros estudos,  de  entre  os  quais  nos  permitimos  destacar,  aqui,  a magnífica edição fac‐‐similada das Epistolae et Orationes (Coimbra, 1988),  comemorativa  da  introdução  da  imprensa  em  Portugal,  a cuja  preparação  tivemos  o  grato  prazer  de  assistir  na  Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. 

À  imagem  do  que  havia  sucedido  no  volume  da  Parte  II, sublinhamos a cuidada apresentação das cartas, seja do texto latino original,  seja  da  excelente  tradução  portuguesa,  tantas  vezes acompanhada de proveitosas notas para  o  leitor. A  consulta  e  a pesquisa  das  referências  feitas  nas  cartas,  que  se  encontram devidamente  numeradas  e  identificadas,  estão muito  facilitadas pela existência de três  índices de grande utilidade — onomástico, toponímico e geral. Encontra‐se, ainda, na parte  final do volume, uma reprodução fac‐similada do precioso incunábulo das Epistolae et Orationes de Cataldo. 

Saudamos, portanto,  com muito  agrado  a publicação desta obra  valiosa,  sob  a  chancela  prestigiada  da  Imprensa Nacional‐

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 

144  Recensões e Notícias Bibliográficas  

 

Casa da Moeda, na certeza de que os seus autores prestaram um enorme serviço à cultura portuguesa. 

José Vicente Bañuls Oller & Patricia Crespo Alcalá, Antígona(s): mito y personaje. Un  recorrido desde  los orígenes, Bari, Levante Editori, 2008, 662 pp. 

CARLA SOFIA OLIVEIRA SILVA, Centro de Línguas e Culturas, Universidade de Aveiro4 

Antígona  é  uma  figura  reconhecidamente  profícua,  verda‐deiramente dotada de grandeza moral, assim como o mito em que se  insere  e  as  personagens  que,  contracenando  com  ela,  confi‐guram a trágica saga Labdácida. Conhecida pela atitude obstinada com que enfrentou Creonte, esta jovem resoluta encarnou ao longo dos  tempos diversos  significados políticos e  socais, novos a cada contexto em que emergiu, o que explica o seu uso  recorrente em todas as literaturas de todas as épocas e de variadíssimas latitudes. 

Conscientes dessa  riqueza e apaixonados pelo  trabalho que vinham  desenvolvendo  no GRATUV  (Grupo  de Recerca  i Acció Teatral de  la Universitat de València), José Vicente Bañuls Oller e Patricia  Crespo  Alcalà  (professor  e  discípula,  respectivamente) decidiram  abraçar  a  colossal  tarefa de  reunir no  livro que  agora recenseamos  o  resultado  de  vários  anos  de  sólido  trabalho  em redor da heroína, dos autores que a  (re)criaram, dos conflitos em que lutou e da influência da sua acção ora através das encenações ora  através do  estudo  das  obras  em  que  aparece,  contemplando não  só  a  dramaturgia, mas  também  a  poesia  e  a  narrativa,  sem esquecer  outras  artes.  Quase  um  quarto  de  século  depois,  esta dupla  de  investigadores  vem,  desta  forma,  dar  continuidade  ao estudo iniciado por George Steiner em Antígonas. La travesía de un mito universal por la historia de Occidente. 

                                                        4 [email protected] 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 Recensões e Notícias Bibliográficas 

 145 

 

Este trabalho é, na verdade, um valiosíssimo tesouro para os estudiosos  e  interessados  na  temática  da  recepção  literária  das narrativas mitológicas clássicas, em geral, e do mito de Antígona, em  particular,  tal  é  a  sua  riqueza  em  referências  a  obras,  datas, autores,  reflexões  e  contextualizações.  Os  persistentes  autores quiseram perseguir com rigor o seu objecto de estudo, a saga dos Labdácidas,  até  aos  seus  antecedentes  na  literatura  grega,  ainda antes de Sófocles lhe dar os contornos com que a conhecemos hoje na  sua  tragédia  Antígona,  obra  dramática  que  sintomaticamente merece  especial  atenção  neste  volume  por  se  tratar  do  primeiro tratamento  conhecido  do  mito.  Para  além  disso,  analisaram diversas  obras  posteriores  que  contribuíram  para  consolidar  a figura  da  jovem  irmã  de  Polinices  e  o  conflito  que  a  opõe  ao soberano  Creonte,  assim  como  outras  composições  greco‐latinas antigas  que  se  serviram  do  assunto  e  cujo  tratamento  serve  de chave para compreender o processo de consolidação,  transmissão e recepção do mito ao longo dos tempos. 

Ao todo, este aturado estudo analisa 258 recriações (drama‐ticas, poéticas ou narrativas) da Antígona  sofocliana  (organizadas cronologicamente  num  oportuno  índice,  no  fim  da  obra). Umas são nomeadas por claramente recuperarem elementos da tradição, outras porque assentam em divergências oriundas do sincretismo com  outras  figuras  ou  da  inovação  dos  autores,  mas  onde  o referente  literário  de  Sófocles  é  identificável  por  relação  com  as circunstâncias  concretas  da  sociedade  em  que  se  produzem  as novas obras. O notável Prólogo da autoria de Carmen Morenilla é um excelente guia para a compreensão da forma como os autores decidiram organizar o extenso fruto do seu trabalho. 

Devido ao seu ambicioso alcance cronológico, este livro está organizado em dois grandes blocos metodologicamente distintos: um primeiro, dedicado à Antiguidade; e um segundo, que inclui o extenso  período  da  Idade  Média  até  à  actualidade.  Assim,  na primeira  parte  (subdividida  nos  capítulos  “Grécia”  e  “Roma”), 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 

146  Recensões e Notícias Bibliográficas  

 

baseados  em  investigações  anteriores,  os  autores,  pretendendo verificar  até  que  ponto  e  a  partir  de  que  fontes  os  diferentes compositores seguiram este mito, apresentam um estudo aprofun‐dado  das  fontes  gregas  e  latinas  (Píndaro,  Corina,  Baquílides  e Sófocles, para citarmos alguns) onde se pode resgatar a génese do mito e, especialmente, a configuração de Antígona  como heroína trágica, para seguirem o tratamento que a personagem recebeu na restante  literatura  grega  (em  Eurípides  e  Astidamante  II,  entre outros)  e  latina  (com  Séneca,  Ovídio  ou  Higino,  por  exemplo), mostrando relações de dependência e de divergência, consoante a obra,  sem  obliterarem  as  limitações  de  análise  que  as  perdas textuais  impõem  a  um  estudo  deste  género.  Em  qualquer  dos casos,  a  tónica  permaneceu  sempre  no  conteúdo  ético  e  sócio‐político  de  cada  obra  concreta,  revelando  a  chave  para  a  sua compreensão e denotando uma coerência merecedora de nota. 

Devido à sua amplitude cronológica e geográfica, a metodo‐logia  da  segunda  parte  do  trabalho  teve,  forçosa  e  inteligente‐mente,  de  ser  distinta.  Surgem,  portanto,  grandes  divisões  em períodos históricos, universalmente reconhecidos, cuja sociedade é brevemente  caracterizada,  a  fim  de  melhor  contextualizar  as recriações  (por  composição ou  representação) de Antígona,  reite‐radamente  recuperada  como  personagem  de  elevado  significado político.  É  no  interior  de  cada  um  dos  marcos  previamente definidos  que  os  autores  estudam  as  adaptações  deste  mito, descrevendo  resumidamente  as  linhas  essenciais  de  cada  argu‐mento e caracterizando as personagens, de forma a estabelecerem pertinentes  e  sólidas  relações  com  os  clássicos,  particularmente com  a  tragédia  sofocliana.  É  notório,  à  medida  que  vamos avançando  temporalmente no  estudo, o aumento  exponencial de obras  que  remetem  para  esta  matriz  mitológica,  porém  é  de salientar a clareza e a perseverança que os autores mantêm diante de tantos dados recolhidos. 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 Recensões e Notícias Bibliográficas 

 147 

 

Precisamente  por  contarem  com  um  vastíssimo  corpus textual (os autores salientam que, por diversas razões alheias à sua vontade, não é possível conhecer todas as obras que abordam esta temática), que inclui não só a presença de Antígona mas também a de Creonte,  figura  essencial  à  configuração  contrastiva  do mito, é de elogiar o  facto de praticamente  todas as obras citadas  terem sido  lidas  e  estudadas,  ainda  que  não  se  possa  esperar  um tratamento  igualmente  aprofundado  de  todas  elas. De  qualquer das maneiras,  torna‐se  fácil distinguir aquelas que mereceram de José Oller  e de Patricia Crespo uma  atenção  especial, ou porque foram  alvo de  ampla  repercussão  ou  reiteradas vezes  encenadas ou  influenciadoras de  criações posteriores,  como  são os  casos de Antigone, de Jean Anouilh, Antigonemodell 48, de Bertolt Brecht, ou La  tumba  de  Antígona,  de  María  Zambrano.  Outras  obras  mais demoradamente  analisadas  no  livro  assumiram‐se  como  o expoente  de  um  tipo  específico  de  literatura,  representando movimentos  culturais  concretos,  como  Antígona  Vélez  (Leopoldo Marechal), The Island (Athol Fugard) e Antígona… ¡Cerda! (Luis de Riaza). 

Sem  querermos  alongar‐nos muito,  é  imperioso que  forne‐çamos  uma  panorâmica  desta  segunda  parte  do  livro,  esclare‐cedoramente  intitulada  “As  adaptações.  Creonte  e  Antígona depois da Antiguidade”. Numa primeira fase deste momento, são estudadas as recriações surgidas desde a Idade Média até meados do século XVIII. Assim, sem esquecer o  importantíssimo  trabalho de  permanência  e  transmissão  dos  copistas  da  época  bizantina, é dada atenção à Idade Média Latina, quando o referente literário sofocliano  se  perde  em  favor  da  versão  mitológica  de  Estácio, e onde  se  destacam  os  trabalhos  de  Dante  Alighieri  (Divina Comedia)  ou  de  Boccaccio  (De  claris  mulieribus).  As  épocas renascentista  (mais  fiel a Sófocles) e barroca  (mais afastada deste modelo)  foram  bastante  produtivas. De  Inglaterra  a  Itália,  entre muitas  outras,  os  autores  do  livro  analisaram  Antigone, 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 

148  Recensões e Notícias Bibliográficas  

 

de Giovanni Paulo Trapolini, a obra Antigone ou le piété, do francês Robert  Garnier,  amplamente  traduzida  e  adaptada,  ou  The  fatal legacy, da escritora britânica de inícios do século XVIII Jane Robe. 

A  segunda  etapa  desta  parte  do  estudo  intitula‐se genericamente  “Da Revolução  Francesa  à  contemporaneidade”  e oferece‐nos uma visão bastante metódica da presença do mito nas literaturas  mundiais.  O  início  do  século  XIX  trouxe  consigo  o Romantismo e projectou a figura de Antígona sobre dois eixos: um de  carácter  mais  político,  outro  mais  literário  e  filosófico. Os autores  destacam,  nesta  fase,  entre  outros,  os  trabalhos  de tradução  e  adaptação  dos  mestres  alemães  Hegel,  Hölderlin, Goethe  e  Schelling. Depois  destes  e  até  à  I Guerra Mundial,  as recriações desta narrativa multiplicaram‐se em várias línguas e em diversos  géneros.  Por  entre  os  muitos  títulos  referenciados, encontramos Antígona  y Hemón,  uma  primeira  adaptação  ibérica do mito  da  autoria  de  Pedro Montengón  y  Paret,  uma  peça  de Edward Fitzball não publicada, mas que conquistou bastante êxito, Antigone  or  the  theban  sister,  e  um  ensaio  do  dinamarquês Kierkegaard. Durante a Guerra Mundial, a produção  literária  foi compreensivelmente menor, mas merece dos investigadores nota a novela  Au‐dessus  de  la  mêlée  do  Prémio Nobel  Romain  Rolland. Entre  as  grandes  guerras,  Jean  Cocteau  (com  Antígona)  e Marguerite Yourcenar (com Feux), por exemplo, redescobriram os clássicos, revitalizando‐os, e este livro dá‐nos conta desse aspecto. Curiosamente,  José  Oller  e  a  sua  discípula  consideraram importante dedicar um  capítulo à  realidade da  recepção  literária deste mito  em Portugal, e  esse  é mais um aspecto de  interesse  e pertinência neste livro. Com efeito, o contexto ditatorial favoreceu o aparecimento dos  trabalhos do exilado António Sérgio, de Júlio Dantas ou de António Pedro em torno da figura revolucionária da jovem.  A  II  Guerra  e  o  seu  rescaldo  deixaram‐nos  a  herança brechtiana já destacada e um mundo dividido em dois blocos, uma dicotomia que se reviu  facilmente na oposição Antígona/Creonte, 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 Recensões e Notícias Bibliográficas 

 149 

 

como  o  provam  os  trabalhos  de  Bach  na  ópera,  da  eslovena Dominik Smolé ou dos americanos Malina e Beck.  

A  permeabilidade  desta  narrativa  mitológica  às  mais diversas circunstâncias sociais e políticas e o rigor do trabalho dos autores  deste  estudo  levaram‐nos  até  à  literatura  africana,  onde encontraram Tegonni: An african Antigone, de Femi Osofisan, ou ao centro  do  conflito  de  Ulster,  onde  Seamus  Heaney  preparou The burial  of  Thebes.  A  version  of  Sophocles  Antigone.  Longamente estudada  neste  volume  é  a  pervivência  do  mito  em  Espanha, particularmente na  transição para a democracia, época durante a qual  as Antígonas  espanholas  falaram  essencialmente  da  guerra civil, da ditadura e do pós‐guerra, da democracia e da sua consoli‐dação. Para além de alguns nomes  já citados, tornou‐se inevitável encontrarmos  neste  livro  ibéricos  como  Miguel  de  Unamuno, Carlos  de  la  Rica,  Maria  Xosé  Queizán,  entre  muitos  outros. Lutadora  por  definição  desde  Sófocles,  a  jovem  filha  de  Édipo emprestou também a sua força a todo um leque de autores ibero‐americanos, que reviram na sua actuação o carácter revolucionário que  desejavam  para  as  suas  letras  e  os  seus  povos.  São  assim apresentadas, num  interessante  capítulo,  recriações de Antígona, em diferentes géneros, oriundas do Haiti, da Colômbia, do Brasil, do México,  do  Peru  e  da  Argentina,  uma  das mais  produtivas nações do  sul da América neste domínio. O último marco desta viagem  sem  dúvida  cronológica mas  também  amplamente  geo‐gráfica  situa‐se  junto  ao muro  de  Berlim  e  no momento  da  sua queda,  facto  que  teve  conhecidas  repercussões mundiais,  dando lugar  às  adaptações mais  ou menos  livres  de Wendy  Greenhill (Antigone  Project),  de  Victor  Loew,  da  Holanda  (Antigone), da portuguesa  Hélia  Correia  (Perdição.  Exercício  sobre  Antígona), do influente Henry Bauchau (novela Antigone) e dos autores deste livro, em colaboração com Carmen Morenilla (Antígona o la tragédia de  Creonte),  entre  várias  outras  estudadas.  Esta  segunda  parte  é completada com um apontamento  relativo a algumas encenações 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 

150  Recensões e Notícias Bibliográficas  

 

da Antígona sofocliana, merecedoras de especial menção pela sua singularidade  cénica,  pela  invulgaridade  da  tradução  ou  pela inegável actualidade.  

Se  o  que  vem  sendo  dito,  por  si  só,  já  é  catalisador  do excepcional  valor  de  que  este  estudo  se  reveste,  a  terceira  parte complementa  fortemente  o  seu  carácter  inovador  e  abrangente, uma  vez  que  disponibiliza  uma  aproximação  panorâmica  às restantes adaptações artísticas do mito de Antígona, na ópera e na música,  na  dança  (onde  a  narrativa  serviu  a  elegância  do  ballet mas  também a versatilidade da dança  contemporânea), nas artes plásticas  (área  em  que  este  mito  se  impôs  a  partir  do neoclassicismo francês), ou no cinema e na televisão (arte em que se  destaca  a  interpretação  de  Irene  Papas  no  filme  Antígona, de 1961). 

Para além de  todos os argumentos  já  longamente expostos, há, sem dúvida, mais alguns aspectos paralelos ao estudo principal que nos fazem dirigir rasgados elogios a este livro e que facilmente obscurecem  pequeníssimas  gralhas  tipográficas  pontualmente detectadas. Os primeiro e segundo, e que  já foram referidos neste texto, são o magnífico Prólogo e o laborioso Índice de Adaptações; o terceiro é o facto de os nomes dos autores e das obras estudadas, à medida que vão sendo introduzidos no texto, surgirem a negrito. Parece um mero preciosismo gráfico, mas  revela‐se bastante útil, quando estamos diante de um livro tão volumoso e de um corpus textual  tão  extenso.  O  quarto,  mas  não  menos  importante,  diz respeito às oportuníssimas e valiosas notas de  rodapé, por vezes ocupando quase toda uma página, mas que se revelam uma ajuda preciosa para o acompanhamento do estudo. O quinto prende‐se com a extensa e completa Bibliografia, organizada em dois grandes domínios,  de  acordo  com  a  própria  grande  divisão  do  livro — obras de e sobre a Antiguidade Clássica e os autores greco‐latinos, e  adaptações  e  estudos  sobre  as mesmas.  Por  fim,  o  leitor  tem ainda à sua disposição um sempre útil Índice Remissivo. 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 Recensões e Notícias Bibliográficas 

 151 

 

Resta‐nos, portanto, dar os parabéns aos autores deste ines‐timável estudo, que, apesar da enorme quantidade de textos anali‐sados,  nunca  se  afastaram  do  tema  central  do  trabalho;  ao GRATUV,  berço desta  equipa  e desta  ideia;  e  à Levante Editori, que  assegurou  a  publicação,  colocando  à  disposição  dos interessados,  em  geral,  e  dos  investigadores,  em  particular,  um trabalho, digno de admiração e pautado por grande erudição, que nos revela obras não publicadas e nos sugere pistas para estudos parcelares em torno do mito de Antígona. 

Rose  Duroux  et  Stéphanie  Urdician  (coord.),  Les  Antigones Contemporaines (de 1945 à nos jours), Clermont‐Ferrand, Presses Universitaires Blaise Pascal, 2010, 474 pp. [ISBN 978‐2‐84516‐407‐9] 

CARLA SOFIA OLIVEIRA SILVA, Centro de Línguas e Culturas, Universidade de Aveiro5 

A  figura  da  jovem  Antígona  tem  exercido  um  enorme fascínio sobre os criadores de todos os tempos, nunca tendo aban‐donado  o  imaginário  literário  universal.  Sófocles  rendera‐se  ao poder desta personagem mitológica muito  antes de  os  escritores contemporâneos terem descoberto a sua plasticidade. São diversas e  incontáveis  as  versões  deste  mito,  que  resultam  do  carácter simbólico actualizável, reinterpretável e adaptável da actuação da jovem  filha  de  Édipo  perante  a  decisão  arbitrária  de  Creonte. Os retratos de Antígona são, assim, tão múltiplos quanto as perso‐nalidades e as  ideologias dos autores que  revisitaram a narrativa mítica e tão diversas quanto os tempos da escrita. 

Se,  por  um  lado,  esta  personagem  singular  representa valores  individuais  dotados  de  elevado  poder  dramático  — a resistência individual ao poder arbitrário do Estado —, por outro simboliza  ideais  e  conceitos  sociais  intemporais,  como  a  revolta, 

                                                        5 [email protected] 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 

152  Recensões e Notícias Bibliográficas  

 

a emancipação, a  rebeldia ou o castigo. Efectivamente, para além de  figura estética, Antígona assumiu‐se, na perspectiva de vários autores, como uma personagem com um forte significado ético. 

Pelos valores que simboliza, esta jovem obstinada tem assu‐mido particular destaque  nas produções  literárias do  século XX, ultrapassando  largamente  o  enquadramento  mítico  inicial  e despertando curiosidade entre os teóricos acerca da capacidade de articulação (plena de especificidade) entre a história de Antígona e a contemporaneidade. 

Conscientes da profusão de Antígonas contemporâneas e de leituras  deste  fenómeno  de  recriação  literária,  Rose  Duroux  e Stéphanie  Urdician,  igualmente  seduzidas  por  esta  magnética figura,  decidiram  tomar  em  mãos  a  tarefa  de  reunir  num  só volume  análises  críticas  de  diferentes  recriações  do  mito,  em especial na  literatura  ibero‐americana,  sistematicamente  ignorada nos  estudos  que  se  têm  produzido  sobre  este  mito  (cf.,  e.g., G. Steiner  ou  S.  Fraisse).  Os  ensaios  coligidos  neste  volume (resultantes, maioritariamente, de dois encontros sobre este  tema, realizados no  Instituto Cervantes de Paris e na Casa das Ciências do Homem de Clermont‐Ferrand) convocam os  (re)criadores e os destinatários literários para um diálogo no seio da diversidade de Antígonas  da  segunda metade  do  século  XX,  provando  que  as reconfigurações  múltiplas  do  mito  não  conduziram  à  sua banalização ou grotesca deformação. 

Com uma  introdução que é bastante elucidativa quanto aos fundamentos da iniciativa das coordenadoras e que apresenta uma oportuna  síntese das  características que  fazem de Antígona uma figura  tantas vezes  (e de  tantas maneiras)  reinterpretada, o  livro, dividido  em  oito  capítulos,  é  extremamente  rico,  principalmente pela  diversidade  de  autores  e  de  títulos  que  aborda,  ainda  que essencialmente  de  raízes  europeias,  mas  também  pelas  visões multifacetadas  (políticas,  culturais,  éticas,  dramáticas,  poéticas, 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 Recensões e Notícias Bibliográficas 

 153 

 

narrativas…)  da  figura  e  das  reconfigurações  e  encenações  que consegue oferecer.  

Assim, na primeira parte da  obra,  Françoise Duroux, num ensaio  intitulado  “Antigone  dans  le  noeud  des  lois”,  estuda  a Antígona de Sófocles e as múltiplas leituras sociais e culturais que suscita,  abrindo  caminho  às  considerações  de Michèle  Ramond, em “Antigone  ou  l’inscription  symbolique  des  femmes”,  sobre  o poder  tirânico  dos  homens  face  ao  poder  ético  da  mulher, representado  na  figura  da  jovem Antígona,  que  encerra  em  si  o ideal democrático, tópico que é retomado como bandeira simbólica por várias escritoras ibéricas contemporâneas. Por sua vez, Ariane Eissen,  debruçando‐se  sobre  uma  dezena  de  peças  de  origem inglesa,  francesa  e  italiana  dos  últimos  vinte  anos,  oferece‐nos, no seu  estudo  intitulado  “Antigone  sur  la  scène  contemporaine: analyse d’un changement de paradigme”, uma ambiciosa visão da mudança  de  paradigma  nas  reescritas  de  Antígona  pós‐Brecht, norteada pelas profundas alterações sociais e político‐económicas. No último trabalho desta parte, Marifé Santiago Bolaños dedica a sua atenção à recriação feita por María Zambrano, em La tumba de Antígona.

Na  senda  das  representações  deste  mito  no  século  XX, o primeiro  capítulo  da  segunda  parte  “Mises  en  scène  contem‐poraines d’Antigone”, da autoria de Eleni Papalexiou, analisa  três encenações  contemporâneas  da  peça  sofocliana,  cada  uma  delas apresentando  uma  visão  diferente  da  tragédia  grega:  uma  abor‐dagem extrema e exigente do texto pela mão de Marcel Bozonnett e  Jean Bollack; uma  encenação multicultural  sob  a orientação de Sotigui Kouyaté; um olhar antropológico do mito por Théodoros Terzopoulos. De seguida, Annie Pibarot, num  interessante estudo intitulado  “Antigone  de  Bauchau,  un  roman  sur  la  transmission théâtrale”  reflecte  sobre  a  divergente  Antígona  de  Bauchau, e Mattia  Scarpulla  aborda  a  inovadora  obra  de  Katy  Deville, Le Journal  d’Antigone,  destinada  a  um  público  adolescente. 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 

154  Recensões e Notícias Bibliográficas  

 

Composta a partir de  textos do mestre Bauchau, esta peça  reúne em palco várias disciplinas artísticas.

A  terceira  parte,  ainda  que  curta,  é  particularmente interessante, porque diferente das demais, já que nos coloca frente‐a‐frente  com  os  intérpretes/recriadores  do  mito  nos  palcos  da contemporaneidade.  Annick  Allaigre  conversa  com  Jeanne Champagne,  a  propósito  de  Antigone,  encore,  e  Ariane  Eissen entrevista Anne Théron sobre a peça Antigone, Hors‐la‐loi. 

O estudo que  inaugura a quarta parte, da autoria de Nadia Mekouar‐Hertzberg,  introduz‐nos  no  universo  das  Antígonas narrativas  e  poéticas,  bem  como  no  das  Antígonas  “ibéricas”, através  da  atenta  abordagem  do  romance  de  Rosa  Montero, El corazón  del  Tártaro,  onde  a  jovem  figura  mitológica  povoa  o imaginário  narrativo  no  anonimato.  O  ensaio  de  Béatrice Rodriguez  sobre Melocotones  helados,  romance da  jovem  escritora espanhola  Espido  Freire,  procura  astuciosamente  evidenciar  a presença de Antígona numa versão  simbolicamente  invertida do mito. De  seguida,  dois  capítulos,  respectivamente  da  autoria  de Jean‐Pierre Thomas e de Hélène Amrit, são dedicados à recriação da  figura  mitológica  nas  narrativas  do  Quebeque,  ora  nos romances de Réjean Ducharme,  ora  em Ça  va  aller, de Catherine Mavrikakis. Um estudo sobre a presença do mito de Antígona na obra de Juan Gil‐Albert é o penúltimo desta parte, que encerra com uma  análise  da  vertente  política  de  uma  obra  típica  do  exílio espanhol  durante  a  Guerra  Civil,  La  sangre  de  Antígona  (1954), de José Bergamín.

Na  quinta  parte,  subordinada  ao  tema  “Morts  sans sépulture”,  Agnieszka  Stobierska,  Cécile  Braillon‐Chantraine  e Maria Beatrice Lenzi analisam a transposição do mito de Antígona para situações contemporâneas de conflito, de guerra e de injustiça social,  localizadas  espacialmente  no  campo  de  batalha  de  uma Nova Iorque povoada por sem‐abrigo insepultados (em Antigone à New York, de  Janusz Glowacki), num Uruguai oprimido por uma 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 Recensões e Notícias Bibliográficas 

 155 

 

ditadura militar que não sepulta os seus mortos (em Soñar con Ceci trae  cola,  de  Carlos  Denis Molina)  e  na  aterrorizada  Argentina, vítima  do  poder  político  repressor  (em  Antígona  furiosa,  de Griselda Gambaro).

A  sexta  parte  desta  riquíssima  obra  é  dedicada  às  reinter‐pretações do mito de Antígona no século XX, mostrando a diver‐sidade de adaptações, subordinadas ao tema “Un mythe politique et  identitaire”. Primeiro, no  teatro  flamengo,  através do  texto de Klaas Tindemans, que aprecia algum radicalismo nos trabalhos de adaptação  em  detrimento  das  produções  ditas  “ortodoxas”; depois, na dramaturgia portuguesa, através das considerações de Maria de Fátima Silva acerca do papel desempenhado por autores influenciados  pela  evolução  histórica  e  cultural  do  país,  como António Sérgio, Júlio Dantas e António Pedro, na recriação do mito em  território nacional. A António  Sérgio  torna Carlos Morais  ao debruçar‐se sobre o trabalho de actualização do autor em redor da sua Antígona, num texto intitulado “Un exercice d’actualisation et d’exégèse du mythe d’Antigone  (A. Sérgio,  Jornada Sexta do Pátio das  Comédias,  1958)”.  A  literatura  alemã  não  foi  esquecida  e  o artigo  “L’Automne  d’Antigone.  Le  mythe  grec  et  le  deutscher Herbst  (1977)”  de  Isabel  Capeloa  Gil  discute  a  produtividade cultural deste mito numa época perturbada por acções  terroristas (1976‐1977). Acresce à panóplia de reinterpretações estudadas a de María Xosé Queizán, autora de Antígona, a forza do sangue, que, de acordo com Mélissa Fox‐Muraton, nos oferece uma visão marginal do  mito,  mais  devotada  ao  combate  da  globalização  e  da modernidade, numa  língua minoritária como a galega. Esta parte do livro encerra com o estudo de Monica Fiorini sobre a figura de Antígona na obra de María Zambrano (autora  já abordada noutro passo deste volume), que reflecte acerca da agonia da Europa.

Finalmente, as  sétima  e oitava partes  são dedicadas à peça Perdição.  Exercício  sobre  Antígona,  de  Hélia  Correia,  autora convidada,  que  apresenta  também  uma  belíssima  intervenção 

Ágora. Estudos Clássicos em Debate 12 (2010) 

 

156  Recensões e Notícias Bibliográficas  

 

intitulada  “La  poussière  dorée”.  Sobre  esta  dramaturga portuguesa e a sua recriação do mito escrevem Inês Alves Mendes que, em “Perdição de Hélia Correia: ambiguïtés,  ironies et espoirs d’une  Antigone  contemporaine”  sublinha  a  ruptura  do  texto português  com  o  modelo  sofocliano,  e  Cidália  Ventura,  que reflecte  acerca da presença do  coro na  reinterpretação dramática de Hélia Correia. A  encerrar o volume, Eugénia Pereira  (Parte  8) oferece‐nos  uma  cuidada  e  rigorosa  tradução  para  o  francês (a primeira)  do  texto  de  Hélia  (Perdition.  Exercice  sur  Antigone), ilustrada  com  fotogafias  da  encenação  desta  obra  em  palcos portugueses. 

Saúde‐se a magnífica  iniciativa quer das  coordenadoras do volume, Rose Duroux e Stéphanie Urdician, quer da Universidade Blaise  Pascal,  que  decidiu  apoiar  a  publicação  deste  volume, bastante  agradável  no  seu  aspecto  gráfico  e  fácil de  consultar,  a partir dos resumos dos artigos, apresentados no final do livro, e do índice, organizado de forma simples mas eficaz.