Laznik - Rumo a Palavra

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LAZNIK - PENOT, M-C. RUMO À PALAVRA São Paulo, Escuta 1997 M onica Seincman Marie-Christine Laznik-Penot teve publicado, recentemente, seu primeiro livro: Vers la parole. Trois enfants autistes en psycha- nalyse. É um livro eminentemente clínico no qual encontramos o relato das análises de três crianças autistas acompanhadas pela au- tora. A publicação de casos clínicos em psicanálise está nitidamente relacionada com a sua evolução. Segundo Widlõcher (1996), esta é sempre uma das formas mais importantes de demonstrar novas perspectivas técnicas e teóricas. Ao longo de Vers la parole, há alguns diálogos que vão se entre tecendo. O primeiro diálogo se dá com o leitor. A partir de três casos - Mourad, Halil e Louise -, os relatos clínicos de Marie- Christine e sua teorização vêm com um tom quase que coloquial, um tom que não procura o rococó ou o her- metismo, tom sempre presente, aliás, em suas falas. O que é, diga- se de passagem, a meu ver, intencional, casando com bastante le- veza uma clínica difícil e complexa com a teoria que lhe serve de suporte. Nesse diálogo com o leitor - mais especificamente, neste caso, o leitor sendo eu -, surgiu um efeito muito interessante: da primeira à última palavra do livro, não consegui me desvencilhar da voz da autora. Vers la parole foi-me, dessa forma, como que lido, contado com as entonações e cortes que são peculiares a Marie-Christine, adquirindo o estatuto de uma fala, passando, assim, do registro da escrita para o registro oral. A princípio, pen- sei que essa sensação passaria, que fosse, talvez, devida ao fato de ser o relato de um caso. Apesar das explicações que procurei e de algumas hipóteses que levantei, não cheguei a uma conclusão. O segundo diálogo se dá numa triangulação: Kanner, Marie- Christine e Lacan. O livro começa assim: Kanner, em seu texto princeps de 1943, declarava que no autista a linguagem não foi feita para comunicar: não via nenhuma diferença, nos autistas, entre os que falam e os que não falam. A quantidade de salmos e poemas que alguns pais lhes ensinam não seria, pergunta-se ele, uma das causas de seus problemas de comu- nicação? Psicanalista, mesfranda do Programa de Psicologia Clínica da PUC-SP, pesquisadora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP.

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Laznik - Rumo a Palavra

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  • L A Z N I K - P E N O T , M - C .

    RUMO PALAVRA S o P a u l o , E s c u t a 1997

    M onica S e i n c m a n

    Marie-Christine Laznik-Penot teve publicado, recentemente, seu primeiro livro: Vers la parole. Trois enfants autistes en psycha-nalyse. um livro eminentemente clnico no qual encontramos o relato das anlises de trs crianas autistas acompanhadas pela au-tora. A publicao de casos clnicos em psicanlise est nitidamente relacionada com a sua evoluo. Segundo Widlcher (1996), esta sempre uma das formas mais importantes de demonstrar novas perspectivas tcnicas e tericas.

    Ao longo de Vers la parole, h alguns dilogos que vo se entre tecendo. O primeiro dilogo se d com o leitor.

    A partir de trs casos - Mourad, Halil e Louise -, os relatos clnicos de Marie- Christine e sua teorizao vm com um tom quase que coloquial, um tom que no procura o rococ ou o her-metismo, tom sempre presente, alis, em suas falas. O que , diga-se de passagem, a meu ver, intencional, casando com bastante le-veza uma clnica difcil e complexa com a teoria que lhe serve de suporte. Nesse dilogo com o leitor - mais especificamente, neste caso, o leitor sendo eu -, surgiu um efeito muito interessante: da primeira ltima palavra do livro, no consegui me desvencilhar da voz da autora. Vers la parole foi-me, dessa forma, como que lido, contado com as entonaes e cortes que so peculiares a Marie-Christine, adquirindo o estatuto de uma fala, passando, assim, do registro da escrita para o registro oral. A princpio, pen-sei que essa sensao passaria, que fosse, talvez, devida ao fato de ser o relato de um caso. Apesar das explicaes que procurei e de algumas hipteses que levantei, no cheguei a uma concluso.

    O segundo dilogo se d numa triangulao: Kanner, Marie-Christine e Lacan. O livro comea assim:

    Kanner, em seu texto princeps de 1943, declarava que no autista a linguagem no foi feita para comunicar: no via nenhuma diferena, nos autistas, entre os que falam e os que no falam. A quantidade de salmos e poemas que alguns pais lhes ensinam no seria, pergunta-se ele, uma das causas de seus problemas de comu-nicao?

    Psicanalista, mesfranda do Programa de Psicologia Clnica da PUC-SP, pesquisadora do Laboratrio de

    Psicopatologia Fundamental da PUC-SP.

  • Em uma pesquisa que conduziu trinta anos mais tarde, ele observa que, paradoxalmente, as crianas embebidas de linguagem so as que conheceram as evolues mais favorveis. difcil deixar de pensar que essas palavras, mesmo que decoradas, pro-duziram neles efeitos de mutao estrutural. No entanto, a partir de 1946, Kanner falava de sua surpresa diante da capacidade potica e criadora da linguagem das crianas autistas. Ora, somente o antema que estabeleceu sobre essa linguagem passou para a pos-teridade, marcando com sua influncia vrias geraes de edu-cadores e terapeutas (p. 13).

    A sndrome que Kanner nomeou em 1943 caracterizada atualmente pela Associao Psiquitrica Americana (1980) pelos seguintes critrios:

    a. incio dos sintomas antes da idade de 30 meses; b. ausncia constante de reao em relao ao ambiente; c. grande dficit do desenvolvimento da linguagem; d. se a linguagem existe, apresenta formas particulares, como

    linguagem metafrica, inverso pronominal e ecolalia diferida;

    e. respostas bizarras a diferentes aspectos do ambiente como, por exemplo, resistncia mudana, interesse ou apego particular a objetos animados ou inanimados;

    f. ausncia de fantasmas, alucinao, perdas de associaes e incoerncia, contrariamente esquizofrenia.

    Ainda esse, majoritariamente, o quadro considerado carac-terstico do autismo pelo saber mdico, quadro que d lugar fixa-o do autismo como uma patologia sem sada, sem possibilidade de trabalho que pressuponha uma mudana de posio psquica.

    Mesmo tendo sido advertida, logo de incio, a respeito do segundo Kanner, no pude deixar de esquec-lo durante a "escu-ta" do livro, indo recuper-lo somente no ltimo tero. Esse segun-do Kanner, o de 1946, mostra, em seu artigo "Irrelevant and metaphorical language in early infantile autism", "como ele se deixou ensinar pela clnica das crianas autistas at descobrir a insuspeita riqueza dessa mesma linguagem que tanto havia ataca-do trs anos antes" (p. 192).

    Assim, atravs do relato clnico dos casos de Halil, Louise e Mourad, e tendo como suporte a fundamentao terica de Lacan, Marie-Christine vai fazendo um acerto de contas apaixonado com Kanner e relatando ao leitor o que ela mesma aprendeu com esses pacientes. A paixo da autora, que contagia e de certa forma mara-vilha o leitor, j se faz presente desde a dedicatria do livro que est endereada quelas trs crianas, paixo esta que perpassa o restante dos relatos e do trabalho realizados. O leitor no precisa, necessariamente, ser psicanalista para tirar proveito destes relatos, mas, se assim o for, e se tiver uma clnica com crianas autistas, cer-tamente compartilhar desse maravilhamento, trazendo um alento

  • Resenha

    e a possibilidade de um olhar outro pa-ra essa clnica muitas vezes frustrante, devido nossa onipotncia, impossibi-lidade, ou mesmo ansiedade.

    Mas destaquemos, aqui, a questo da paixo, que no pode de forma algu-ma ser descuidada. Se chegamos ao relato de um caso clnico, ao meu ver, temos de necessariamente estar apaixo-nados pelas questes que esse caso traz. Mas, como assinalou Widlcher (1996), o grande perigo dos relatos de caso a "seduo pela qual o leitor pas-sa a se relacionar com o trabalho ps-quico do analista." Quem relata um caso espera poder ilustrar um ponto de vista tcnico ou terico e, com isso, provocar um debate.

    O leitor encontra prazer em se relacionar com o trabalho psquico do psicanalista, mas no est interessado na tese proposta. Ao ler o caso, o leitor "se sente como um psicanalista" sem ter de sofrer as dificuldades reais do trata-mento - a resistncia do paciente e a do prprio analista, as trivialidades e repeties das quais se tiram os traos significativos. Em suma, todo o trabalho que deve ser feito , na verdade, evita-do, e somente o atalho entre as palavras do paciente e a demonstrao do autor permanece.

    Esta observao aguada de Widlcher serve de advertncia sedu-o proposta pelo texto de Marie-Chris-tine aos leitores desavisados. Na verda-de, o trabalho com autistas e "ps-autis-tas" um trabalho duro, complexo, pe-noso e demorado (sendo que nada dis-so retira-lhe o carter instigante), e, por vezes, leva-se muito tempo para que os avanos sejam vistos. Se o leitor con-seguir no ceder tentao de maravi-lhamento desses relatos, poder encon-trar um frtil campo de discusso enla-ando teoria, tcnica e clnica.

    Se o primeiro dilogo do livro fora com o leitor, e o segundo com Kanner,

  • j o terceiro coloca a autora como uma interlocutora de si prpria. Em outubro de 1995, quando apresentou, em Sal-vador, no Encontro O Sculo da Psica-nlise, um caso que acompanha de uma criana autista que faz cortes cinemato-grficos, dizia que esse caso lhe coloca-va uma questo: como poderia esse me-nino fazer uso da linguagem cinema-togrfica, se o autista no tendo ainda se constitudo como sujeito no tem lin-guagem, no acedeu ao simblico? Essa questo, como o atesta o caso de Louise publicado no Boletim de Novidades^ de dezembro de 1992, j estava pre-sente anteriormente e trazia cena a questo da subjetivao. Quando que o infans se torna sujeito, e quais so as caractersticas desse sujeito, sujeito do inconsciente, sujeito alienado, sujeito desejante? Surgem, ento, para Marie-Christine dois tempos, um da alienao e o outro da separao.

    Logo na introduo ela escreve o que deveria ser bvio, mas que de maneira alguma o :

    Quando o analista assume o trata-mento de uma criana autista, faz uma aposta que, ao reconhecer em qualquer produo da criana, gestual ou lingua-geira, um valor significante e ao se con-stituir, ele mesmo, como lugar de ende-reamento do que considera desde en-to como mensagem, a criana vai poder se reconhecer a posteriori como fonte dessa mensagem. O analista toma, ento, por momentos, o lugar do Outro primordial. Mas ele antecipa tambm o sujeito a vir, ao interpretar toda a pro-duo como um ato colocado pela cri-ana como tentativa de advir a uma ordem simblica que lhe preexiste.

    O trabalho com uma criana au-tista se efetua inversamente cura ana-ltica clssica: o objetivo do analista no interpretar os fantasmas de um sujeito inconsciente j constitudo, mas permi-tir a um determinado sujeito advir. Ele

    se faz aqui intrprete, no sentido de tradutor de lngua estrangeira, ao mes-mo tempo em relao criana e em relao aos pais. [...] Esse primeiro tra-balho de tradutor vai permitir aos pais olhar a criana em seu brilho de chama l onde no viam, por vezes, mais do que um dejeto. Dessa forma, a me poder reencontrar sua capacidade de iluso antecipatria; ou seja, sua apti-do para escutar uma significao l onde talvez s haja massa sonora - o que Winnicott chama a loucura neces-sria das mes. (pp. 14-15)

    E, baseada nesse princpio, vai empreender os seus tratamentos com autistas, ocupando vrias vezes essa posio de Outro primordial que possi-bilita o nascimento do sujeito. Mas ela lembra tambm que somente a subjeti-vao no suficiente, ou seja, s a alienao no basta, necessrio haver a posterior separao entre dois sujeitos j constitudos, para da haver a possi-bilidade de fantasmatizao. Ampla-mente exemplificados pelos fragmentos de sesses e seus comentrios, estes e outros conceitos so discutidos.

    E, lembrando mais uma vez Widlcher, se o leitor no for levado pela seduo, as questes colocadas nesse livro serviro como fonte para uma rica reflexo daqueles que, em sua clnica, trabalham com autistas, com cri-anas e, por que no, daqueles que tra-balham na clnica psicanaltica.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    WIDLCHER, Daniel. (1996) Um caso no es um hecho. Libro Anual de Psicoanalisis, v . l l , p. 229 - 240.

    LAZNIK-PENOT., M. Christine. (1992) O espanto do Outro materno. In: Boletim de novidades da Livraria Pulsional, n.44.