O “GOLPE DE AGOSTO” DE 1954 COM A PALAVRA: AS … · O Sr. Getúlio Vargas não fez mais que um...

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O “GOLPE DE AGOSTO” DE 1954 COM A PALAVRA: AS “CLASSES INTERESSADAS”. Juliana Martins Alves * Getúlio Vargas (Mundo Trabalhista, Janeiro- Fevereiro, 1951: 3) O processo de oposição à política estatal que culminou no golpe de 1954 e no suicídio do presidente Getúlio Vargas em agosto daquele ano – exatamente em uma época em que a luta pela distribuição de benefícios econômicos e sociais vinculava-se às próprias disputas em torno da democracia e do que * Doutora em História Social pela USP.

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O “GOLPE DE AGOSTO” DE 1954 COM A PALAVRA: AS “CLASSES INTERESSADAS”.

Juliana Martins Alves∗

Getúlio Vargas

(Mundo Trabalhista, Janeiro-Fevereiro, 1951: 3)

O processo de oposição à política estatal que culminou no golpe de 1954 e

no suicídio do presidente Getúlio Vargas em agosto daquele ano – exatamente

em uma época em que a luta pela distribuição de benefícios econômicos e

sociais vinculava-se às próprias disputas em torno da democracia e do que

∗ Doutora em História Social pela USP.

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esta representava para os diferentes grupos – foi, tradicionalmente,

interpretado com base nas teorias sobre o “populismo”.

A “personalização” e a “relativa autonomia do poder”, “encarnado” pelo

presidente (situado “acima” das instituições e do próprio Estado) – com a

liberdade de inclinar-se ora sobre o moralismo burguês, ora sobre o moralismo

popular – em um contexto de “crise de hegemonia” (“incapacidade” das elites

em conferir legitimidade ao Estado); combinados aos perigos de uma “quinada

à esquerda”, representados pela “política de massas”, traçaram um modelo de

explicação da crise de 1954, aplicado a conjunturas históricas diversas.

(WEFFORT, 1978; DULCI, 1986; BOITO, 1982).

Nessa perspectiva, a teoria de “radicalização” da política estatal voltada

para as classes populares (que não encontra base real nas medidas, nem na

orientação governamental) 1 teria justificado a “aversão das elites em geral” e a

intervenção militar em 1954, cujos desdobramentos alcançariam, inclusive, o

golpe militar de 1964 – estando João Goulart (considerado herdeiro do

“populismo” varguista e segundo ministro do Trabalho do segundo governo

Vargas) na presidência da República.

Tomando por empréstimo a proposição de Francisco Carlos Palomanes

Martinho, parafraseando Castoriades: seja interpretado como “manipulação”,

(qual manipulação ?), “demagogia”, controle/ameaça de descontrole das

massas operárias pelo Estado após 1930; “latente ameaça” à ordem e à

hierarquia do poder econômico (que, em última instância, representaria), o

populismo converteu-se em “uma instituição imaginária da sociedade brasileira”

(MARTINHO, 1996: 30). As imagens forjadas pelo conjunto da teoria manter-

se-iam inabaláveis durante décadas e até recentemente (FERREIRA, 2001).

Partindo desse breve quadro de referências, o presente texto tem dois

objetivos principais. Primeiro, refletir sobre os aspectos obscurecedores do

conceito de “populismo”, que: a) além de não elucidar a natureza dos conflitos

1 - A esse respeito consultar Maria Celina D’araújo (1992), Maria Antonieta Leopoldi (1994) e Juliana Martins Alves (2010). Esses trabalhos mostraram que atribuir à política estatal, atualizada pelo trabalhismo entre 1951-54, ou à orientação governamental uma radicalização ou “guinada à esquerda”, não procede.

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e interesses existentes na conjuntura de crise de 1954, b) descaracterizar a

presença e a atuação dos diferentes atores sociais, c) patenteou a

“inevitabilidade” da crise que conduziu ao desfecho o segundo período

governamental de Vargas – cujo suicídio completa em 2014 sessenta anos.

Segundo, indicar os interesses e questões não somente políticos, mas também

econômicos e sociais, expressos pelo discurso antigovernamental, através das

principais publicações das Associações de Classe de segmentos das elites

agrário-exportadoras, comerciais e industriais – as chamadas “classes

interessadas” – entre os anos 1953-54.

Trazendo para a reflexão fontes documentais ainda pouco investigadas

pela historiografia, a análise busca contribuir para novas possibilidades de

interpretação sobre o “golpe de agosto” de 1954.

A crise de 1954 e o “populismo”

No auge das manifestações pró-aumento salarial em 1954, referindo-se ao

reajuste do salário mínimo em 100% (com base nos índices definidos pelas

Comissões estaduais de Salário Mínimo e pelo Censo de Níveis Salariais,

realizado pelo Ministério do Trabalho desde as greves de 1953) 2 e ao pacote

de medidas previdenciárias, anunciados pelo presidente, afirmava o jornal

Correio da Manhã:

O Sr. Getúlio Vargas não fez mais que um inventário de suas realizações. A Legislação Trabalhista está superada como Estatuto do Trabalho por haver se tornado um incentivo negativo à produtividade, ao conceber as garantias do emprego em termos de personalidade contra o empregador, em vez de coordenar seus interesses de êxito da empresa. Como Sistema de Previdência, por conceder benefícios irrisórios ante as necessidades do trabalhador. Como ideologia, por se basear num paternalismo que impede a formação do senso de responsabilidade, em vez de educar para a

2 - As Comissões estaduais de Salário Mínimo constituíam órgãos técnicos e de pesquisa, subordinadas ao Ministério do Trabalho. Ao assumir a Pasta do Trabalho em junho de 1953 (em substituição a Segadas Vianna), João Goulart foi incumbido da realização de um Censo de Níveis Salariais no país, com a colaboração de vários órgãos estatais. De um prolongado estudo é que partiria a proposta do Ministério do Trabalho de reajuste do salário mínimo em 100 %, face à alta do custo de vida desde o último reajuste salarial em 1951. O que, evidentemente, não condiz com o teor, exclusivamente, “populista” atribuído à medida, segundo algumas interpretações.

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liberdade disciplinada (05/05/1954: 3).

Embora interpretada, sob a ótica do populismo, como um dos fatores

determinantes para o golpe de agosto de 1954 e para a intervenção militar

(BOITO Jr., 1982) a “questão salarial” envolveu questões mais amplas e

complexas relacionadas à distribuição de benefícios econômicos e sociais, não

se restringindo ao aumento circunstancial do salário mínimo.

Na área militar, a oposição era liderada por oficiais conservadores

ligados ao general Juarez Távora, Oswaldo Cordeiro de Farias e brigadeiro

Eduardo Gomes (UDN) opondo-se ao reajuste salarial. Porém, no mesmo

período, eram divulgadas notícias de um movimento de protesto no interior do

Exército, reivindicando melhores salários. Apesar dos debates em torno da

questão salarial, ainda em maio de 1954, o Congresso Nacional aprova o

projeto de Lei 4.342, que estende aos servidores civis e militares, ativos e

inativos, os níveis de salário mínimo (decreto 35.450, 01/05/1954).3

Dessa forma, concordo com Maria Celina D’araújo, a crise de 1954 teve

lugar e espaço definidos: “situada no âmbito das próprias elites, que disputam

entre si uma parcela maior de poder, sem saber, contudo, legitimar os meios

através dos quais esse poder possa ser alcançado democraticamente”

(D’ARAÚJO, 1994: 134, 162). Ou, no contexto em que as greves, demandas

trabalhadoras, reivindicações na Justiça do Trabalho, lutas pela ampliação e

aplicação dos direitos sociais conquistados assumiriam grande visibilidade na

cena política – segundo afirmou Florestan Fernandes: tratava-se, para as

elites, de tentar “[reduzir] o ‘espaço democrático’ necessário ao equilíbrio da

ordem e às classes possuidoras” (FERNANDES, 1979: 41).

Muito embora o funcionamento da engenharia institucional do pós-1946

(tributária do período estadonovista) os mecanismos de contenção do

operariado, reforçados no segundo governo Vargas, atualizados pelo

trabalhismo, e a sua outra face, o corporativismo, operassem perfeitamente

3 - Um mês após o suicídio de Vargas, o decreto 36.224, de 24/09/1954, assinado pelo presidente Café Filho dispõe sobre a aplicação do salário mínimo aos empregados das empresas ferroviárias e outras, incorporadas ao patrimônio da União (ALVES, 2010: 369).

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adequados ao truísmo comum das classes dominantes, isto é, o de se

manterem dominantes.

A meu ver, os problemas das abordagens sobre o populismo são:

1o.) reduzir as explicações da crise de 1954 a um modelo político. Em

outros termos, se o populismo definiu posições de alinhamento ou confronto à

política estatal ou galvanizou a frente de antagonismos contra o governo

Vargas, não é só.

Nesse ponto, entendo que utilizar o populismo (seja como instrumental

teórico-metodológico ou categoria política de inspiração em Getúlio Vargas)

como fator explicativo da crise e do processo oposição à política estatal no

período, é dizer muito pouco.

2o.) O perigo de fragmentar e atomizar a interveniência e ação dos

militares nas diferentes conjunturas, tornando o processo histórico contingente.

Maria Yeda Linhares ao referir-se à intervenção militar nos vários

momentos do período republicano, como a derrubada do Estado Novo pelas

Forças Armadas e as “movimentações militares eminentemente conservadoras

como os golpes de 1954 e 1964”, observa agudamente:

O que parece evidente, é o absurdo de atribuir à intervenção

militar – com destaque maior ou menor de certas personalidades mais ou menos simpáticas, mais ou menos prepotentes, ora à direita ora à esquerda – a mudança do rumo da história, sem uma reflexão prévia sobre o que se entende por mudança. A intervenção militar é um fato, explicável pelas circunstâncias históricas de um país... . [Mas] objetivamente, ele só explica quando analisado no conjunto dos fatores estruturais determinantes da sociedade brasileira (LINHARES, 1989: 112).

Elites e oposição em 1954. Com a palavra: as “classes interessadas”.

As questões debatidas por segmentos das elites econômicas – as chamadas

“classes produtoras” ou “interessadas” – não se coadunam com as interpretações

sobre o “populismo”. A presença e atuação desses atores na conjuntura 1953-54

não aparecem reduzidas apenas à oposição a um modelo político representado pelo

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presidente Vargas. Mas envolveram demandas, interesses frente à política estatal,

disputas intra-elites relativas à distribuição de benefícios econômicos e sociais;

fissuras no bloco que se constituiu junto ao poder com o governo Vargas, além de

interesses e questões não somente políticos, mas também econômicos e sociais.

Entre esses segmentos das elites estavam as classes agrárias, com núcleo

de articulação na Sociedade Rural Brasileira, sediada em São Paulo, e na

Confederação Rural Brasileira; setores da burguesia comercial vinculados à

Confederação Nacional do Comércio, empenhada no esforço de reunir as demandas

de classe nos vários estados do país, apresentando-se como “porta-voz” dos

interesses comerciais em nível nacional; e o empresariado industrial, representado

pela Fiesp, Ciesp e CNI (Confederação Nacional das Indústrias).

Em julho de 1954, publicava em editorial a Revista Rural Brasileira:

“Salvemos a democracia, em defesa de nosso patrimônio – base econômica do

Brasil”. Conforme suas palavras:

A agricultura o que é, o que foi em todos os tempos, no conceito de eminentes estadistas e sociólogos: é o esteio da ordem, a reserva da moralidade, o sustentáculo da nacionalidade, a coluna mestra da democracia.

Eis porque contra a agricultura, contra os fazendeiros, os lavradores, vociferam raivosos os inimigos da democracia.

É nosso dever enfrentá-los com coragem, combatê-los com energia.

Um ano antes da crise de agosto de 1954, ameaçavam os representantes das

Associações de classe rurais uma “Revolução contra a política do governo”:

“PEGAREMOS EM ARMAS PARA DEFENDER NOSSA LAVOURA” (Sic. Última

Hora, 03/08/1953: 4).

As críticas ao protecionismo estatal à indústria, em detrimento das demais

“classes interessadas”, iniciam-se desde os anos finais do Estado Novo, ganhando

novos desdobramentos no segundo governo Vargas (ALVES, 2002, 2010).

No que diz respeito ao posicionamento desses grupos face à política estatal –

em linhas muito amplas – para os setores agrário-exportadores ou da chamada

“civilização agrária” do país, as discussões giravam em torno de pontos como: a) as

perdas impostas pela política industrialista do governo, baseada no binômio

trabalhismo/desenvolvimento econômico. b) A “ingerência” do Estado na

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regulamentação das formas de organização social do trabalho no campo, através do

sindicalismo corporativista; principalmente, quando aquele se achava comprometido

com o fortalecimento do sistema capitalista e da burguesia industrial, em detrimento

dos demais setores produtivos.

Em julho de 1954, as classes rurais foram radicalmente contrárias à iniciativa

da política trabalhista de extensão da CLT ao campo, defendendo a sua

“inaplicabilidade ao mundo rural”. Nas palavras de Francisco Malta Cardozo,

presidente da Sociedade Rural: “Somos fazendeiros e não milagreiros”. Somente se

“tivéssemos trabalho escravo” no Brasil, “talvez, pudéssemos produzir café como no

tempo de D. Pedro II !”. O que “precisamos [é] de uma verdadeira política ruralista”,

transformada em “consciência nacional” do que as atividades agrárias representam

para “para o bem-estar coletivo”.4

No contexto em que o projeto governamental começa a ser combatido por

setores significativos da sociedade, incluía-se na pauta de discussão desses grupos:

os chamados “confiscos cambiais” – tributos cobrados sobre a comercialização do

produto – o “autofinanciamento” com o qual o governo se “furtava a colaborar” com

os “custos de uma produção” que era o próprio “sustentáculo” da economia do país.

Além destes, o repasse de verbas a outros setores como, por exemplo, à indústria

(considerada uma atividade “artificial”) através de uma política creditícia

“descompensatória da economia nacional”. O que se traduzia no privilégio daqueles

que eram categorizados como os “NABABOS DA INDÚSTRIA [sic], os amantes dos

lucros fáceis”, cuja expansão e ameaça de hegemonia só podia ocorrer na “Era da

Graça do presidente Getúlio Vargas”, dadas as “benesses” que obtinham do

governo, em “prejuízo das demais classes produtoras” – as verdadeiras

responsáveis pela “riqueza nacional, fulcro da tranquilidade social”.5 Em fins de

1953, estampava a Revista Rural:

4 - (Revista da Sociedade Rural Brasileira, Agosto de 1954: 38; A Lavoura, Julho/Agosto de 1954: 1). 5 - (Revista da Sociedade Rural Brasileira, Novembro de 1951: 2; Idem. Março e Julho de 1953: 14, 1). Nos anos 1950, a Sociedade Rural institui um prêmio entregue, anualmente, aos “mais antigos e devotados cafeicultores”, escolhidos nos estados pelos fazendeiros através das prefeituras municipais: era a “MEDALHA DA PERSEVERANÇA”. Este “prêmio de perseverança” foi entregue em 1953 pelo ministro da Fazenda Horácio Lafer.

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Como é de geral conhecimento, as classes produtoras brasileiras gravitam ao redor dos governos e das Classes Armadas, numa desigual disputa de vantagens e de proteções. Canta cada qual a sua ladainha e aguarda as benesses.

Nenhuma, porém, tem sido mais hábil e, portanto, mais feliz nessa arte de enternecer os duros corações dos potentados políticos do que a indústria... .

Um novo sol se desloca para chefia do nosso sistema planetário industrial, precedido pelas fanfarras de treinados pelotões de turibulários e de escribas. E todos os que confiam no êxito de sua ascensão correm-lhe à frente com ramalhetes de flores, antes que lhes perturbem a adesão as confusões da 24a hora.

Rezava um ditado antigo, atribuído por Plínio a Apeles, que 'o sapateiro não deve subir além das chinelas', mas esse e outros ditados semelhantes foram revogados na Era da graça do Presidente Getúlio Vargas.

Esta Era não está, todavia, muito segura, quando os generais tentam demitir os Jangos e condicionam as diretrizes do poder civil. É com eles... que as classes conservadoras devem acertar os seus relógios. (REVISTA RURAL BRASILERA. Nov./Dez. de 1953: 82).

Por seu turno, defendiam os industriais: há um “entrelaçamento profundo”

entre “a indústria e a segurança nacional. [É a] indústria a Espinha dorsal de uma

Nação”. Um país “mede seu grau de civilização pelas atividades industriais”.6

Já os seguimentos comerciais, solidários, por diversas vezes, aos grupos

agrário-exportadores, enalteciam a livre iniciativa e o “livre comércio” contra os

“malefícios do intervencionismo de Estado” e do “desenfreado estatismo”, atribuídos

ao governo Vargas. O “Estado comerciante”, afirmavam, foi sempre, “di-lo a história,

o Calvário de um povo”. Alegavam ainda danos “morais [e materiais] irreparáveis”

infligidos aos comerciantes por órgãos de tabelamento de gêneros e controle de

preços, além das Delegacias de Economia Popular (ligadas ao setor específico do

DEOPS) – considerados “nocivos à produção nacional”. No auge da crise de 1954,

os dirigentes das Associações Comerciais do RJ. e da Confederação Nacional do

Comércio se engajariam em uma “campanha de redenção das classes

mercantis”.7

Esses elementos terão, do ponto de vista deste estudo, implicações decisivas

para a configuração da crise e do processo de oposição que culminaria em agosto 6 - Editorial assinado por Antônio Devisate, presidente do Ciesp-Fiesp. A Indústria e a Segurança Nacional. (Boletim Informativo. Ciesp. Fiesp, 15 de fev. de 1954: 186). 7 - (Revista da Associação Comercial, 25 de Abril de 1954: 38-39. Idem, 25 de Julho de 1954: 1-2, 4; MACHADO NETO, 1957).

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de 1954. Em outros termos, as posições político-ideológicas defendidas por esses

grupos, além dos interesses específicos de classe, tiveram clara presença no

“arranjo de forças” contrárias ao governo Vargas.

Já para os segmentos industriais tratava-se da própria distribuição de

benefícios econômicos e sociais. Questões como o “atraso econômico” do país que

os empresários buscavam mitigar em sua “cruzada civilizatória”, ao lado das

iniciativas do governo, e a necessidade de submeter as políticas sociais às

“políticas de apoio ao desenvolvimento econômico”, para que a Legislação não

caminhasse em “desacordo com a realidade econômica” e com o “progresso

industrial”, indispensável à “soberania” do país – foram temas recorrentes no

discurso dos industriais (LEOPOLDI, 2000; Anais da Confederação Nacional da

Indústria, 1953-1954).

A questão das greves e a instabilidade na cena política, tornando-se mais

competitiva à presença dos trabalhadores e suas demandas, marcariam também

as tensões desses grupos face ao Executivo Federal. Assim, embora amplamente

beneficiados pelas medidas de favorecimento do governo e francamente adeptos

do formato sindical-corporativo (reforçado nos anos 1950) como forma de controle

e contenção das reivindicações operárias, os industriais se mostrariam

recalcitrantes a algumas iniciativas governamentais.8

Quanto à questão salarial, embora algumas análises reforçaram a crise em

torno do reajuste do salário mínimo em 1954, apesar de os industriais (caso da

Fiesp e de outras entidades de classe) estarem irritados com algumas políticas do

governo Vargas, “não viam nesse atrito razão suficiente para abrir mão dos

ganhos” obtidos com o “protecionismo governamental e o rápido crescimento da

indústria no período” (LEOPOLDI, 1994: 171).9

Em face do exposto, concluo considerando que uma análise sistematizada

sobre a conjuntura de crise e o “golpe de agosto” de 1954, que levou ao fim o

segundo governo Vargas, com a morte do presidente – ensejando uma comoção

8 - Em fins de 1953 divulgava o Boletim do Ciesp-Fiesp: “Enérgico repúdio das classes produtoras ao projeto sobre lucros extraordinários”; “Dirigem-se os industriais paulistas às altas autoridades da República”. (Boletim Informativo. Ciesp-Fiesp, 30 de nov. de 1953: 333-334). 9 - Ver também Revista Paulista de Indústria, Maio de 1954: 2. “O Salário Mínimo”. Por A. J. Renner.

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popular, possivelmente, sem precedentes na história do país (FERREIRA, 1994) –

implica, necessariamente, rastrear o variado leque de demandas, interesses e a

atuação dos diferentes atores sociais. Entre eles: segmentos das elites, suas

relações com os militares (marcados por divisões internas e clivagens ideológicas),

partidos políticos, em particular, a UDN, cuja atuação se desdobra no Congresso

nacional;10 além da imprensa, tendo em vista o seu papel como lócus estratégico na

construção e representação de um imaginário de crise. O que escaparia aos limites

dessa exposição. Porém, acredito que as questões aqui colocadas abrem

possibilidades para novas interpretações sobre o período.

Para além das explicações sobre o “populismo”, as escolhas e divergências

políticas dirigidas à política estatal envolviam profundamente propostas de

reformulações econômicas e sociais, além de medidas governamentais concretas,

consideradas lesivas aos interesses de classe. Assim, não obstante a dimensão

estritamente ideológica assumida pela crise política há muitos interesses em jogo no

contexto que culminaria com o fim do segundo governo Vargas. Nesse ponto, pode-

se refletir com Roger Chartier, quando o autor observa: “As representações do

mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um

diagnóstico... [da realidade histórica e social] são sempre determinadas pelos

interesses dos grupos que as forjam”. (CHARTIER, 1990: 17,18).

Por fim, cabe salientar, não se trata de descaracterizar a dimensão político-

ideológica da crise de 1954 ou a “autonomia” do político, a exemplo da ação

parlamentar contra o governo no Congresso Nacional. Análises como a de Paulo

Roberto Neves da Costa (1998) mostraram como seguimentos da burguesia

comercial nos anos 1950, por exemplo, utilizaram-se de suas organizações de

classe corporativas para se fazer presente no âmbito da ação parlamentar. E

influenciar, por essas duas vias ou canais, a política de Estado, impondo-lhe suas

demandas e “vetos”.

10 - Referindo-se às denúncias sobre a corrupção e o “mar de lama”, atribuídos pela UDN ao governo Vargas em 1954 é significativa a observação de Maria Victoria Benevides. Segundo a autora, vinculada a uma classe “estamentalmente colorida de elitismo” e com a “tradição do controle do poder, vinda da República Velha”, estaria a UDN: “em desajuste com a ascensão de outras classes, que se tornam poderosas (...). Daí se explicaria, em parte, o combate à corrupção, pois ela veria no enriquecimento de outros, por outros meios, a corrupção”. (BENEVIDES, 1981: 275).

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Também não se trata de reduzir a crise de 1954 à ótica do economicismo

fácil, considerando a instabilidade política decorrência automática das condições e

efeitos do desenvolvimento econômico. Trata-se, sim, de entendê-la: em suas

características próprias – nem autônomas, nem determinadas – em interação com

as diferentes instâncias da realidade histórica, econômica, política e social, em cujas

dimensões atuam atores sociais de carne e osso.

No mesmo dia do suicídio de Vargas, em 24 de agosto (quando o país,

literalmente, parou e a população desesperada saia às ruas, LACERDA, 1994) Café

Filho assumiu a presidência da República. Posteriormente, o economista Eugênio

Güdin – conhecido partidário dos princípios monetaristas, contrário ao

intervencionismo econômico e social do Estado, defensor de uma orientação

ortodoxa tradicional para a economia e da “vocação agrária” do país (com largo

apoio da Sociedade Rural Brasileira) – tomou posse no Ministério da Fazenda, em

substituição a Oswaldo Aranha. Nesta feita, a divulgação da tese de Güdin, em

entrevista coletiva à imprensa norte-americana: de que o “industrialismo” e a

“industrialização” haviam “causado a inflação” no país, provocaria fortes reações dos

seguimentos industriais.11

Referências Bibliográficas

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11 - (Boletim Informativo. Ciesp-Fiesp, 13 de setembro de1954: 369; Estudos Econômicos. Departamento Econômico da Confederação Nacional da Indústria, Rio de Janeiro, julho-dezembro de 1954: 105).

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