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  • KABENGELE MUNANGA

    Algumas

    consideraces

    sobre raa,

    ao armativa

    e identidade

    negra no Brasil:

    fundamentos

    antropolgicos

    KABENGELE MUNANGA professor do Departamento de Antropologia da FFLCH-USP e autor de, entre outros, Estratgias e Poticas de Combate Discriminao Racial (Edusp/Estao Cincia).

  • Ahistria das sociedades e culturas modernas foi sempre acompa- nhada de uma certa idia de humanidade, de

    uma apreenso do ser humano pensado essen-

    cialmente atravs das noes de igualdade e de

    liberdade. medida que a signi cao e o alcan-

    ce dessa idia moderna de humanidade foram

    se aperfeioando, ela se viu atravessada por

    uma tenso muito forte entre duas exigncias

    comparativamente opostas (Mesure & Renaut,

    1999, p. 18).

    A primeira exigncia corresponde convico

    constitutiva de um primeiro humanismo mo-

    derno, conforme o qual a humanidade uma

    natureza ou uma essncia. Na lgica desse

    humanismo chamado essencialista (tal como se

    desenvolveu na loso a das Luzes), a humani-

    dade de ne-se pela posse de uma identidade

    espec ca ou genrica, por exemplo, a que faz

    do homem um animal racional. No horizonte

    dessa primeira exigncia a rmam-se com clareza

    os valores do universalismo ou do humanismo

    abstrato e democrtico, tal como foi concebi-

    do pela a rmao segundo a qual existe uma

    natureza comum a todos os homens, idntica

    em cada um deles, em virtude da qual eles tm

    os mesmos direitos, quaisquer que sejam suas

    caractersticas distintivas (de idade, de sexo,

    de etnia, etc.).

    A segunda exigncia se fez presente desde

    o m do sculo XVIII na Alemanha, depois na

    Frana e na Inglaterra, na medida em que al-

    guns efeitos perversos da primeira exigncia se

    deixaram perceber. Essencialmente, a represen-

    tao da humanidade em termos de identidade

    indiferenciada podia tambm desembocar na

    perspectiva de uma tirania do universal, e o

  • REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-200648

    conceito essencialista do homem podia

    igualmente servir de pretexto para discrimi-

    nar, do resto da humanidade, os indivduos

    ou grupos de indivduos no corresponden-

    do identidade especca e para exclu-los,

    em direitos e em fatos, da humanidade plena

    e inteira. O romantismo alemo colocou

    severamente em questo, em sua crtica con-

    tra a Revoluo Francesa, as virtualidades

    inquietantes de toda a poltica dos direitos

    do homem, acusado de abrir o caminho ao

    despotismo que se contenta com algumas

    mximas universais e sacrica totalmente

    a riqueza e a diversidade das tradies.

    armao universalista da identidade in-

    trnseca da humanidade veio se sobrepor

    uma nova convico: existe, certo, uma

    identidade humana, mas essa identidade

    sempre diversicada, segundo os modos de

    existncia ou de representao, as maneiras

    de pensar, de julgar, de sentir, prprias s

    comunidades culturais, de lngua, de sexo,

    s quais pertencem os indivduos e que so

    irredutveis s outras comunidades.

    V-se que os dois princpios, isto , o eu e

    o outro, o universal e o particular, a unidade

    e a diversidade, o ego e o alter, se combi-

    nam no corao da antropologia enquanto

    disciplina que pretende estudar o homem

    no mesmo momento em sua unidade e em

    sua diversidade. A questo da alteridade

    percorre todo o pensamento antropolgico,

    dos ancestrais fundadores aos contempor-

    neos; percorre todas as correntes e grandes

    paradigmas que contriburam na construo

    da disciplina, do evolucionismo ao chamado

    ps-modernismo. Mas a antropologia no

    unicamente lha do relativismo cultural,

    ela tambm herdeira do universalismo tal

    como se expressa de modo particularmente

    ntido na ideologia do direito natural, ou

    mais geralmente na ideologia dos direitos

    do homem (Amselle, 1996, p. 21). Com

    efeito, entre os maiores antroplogos, esses

    dois fatores aparecem concorrentemente,

    permitindo distinguir, por exemplo, um

    Lvi-Strauss estruturalista, portanto uni-

    versalista, no Estruturas Elementares de

    Parentesco, e um Lvi-Strauss culturalista,

    portanto relativista, no Raa e Histria,

    da mesma maneira que podemos opor um

    Sahlins universalista a um Sahlins relativis-

    ta, no Ilhas de Histria, em que ele adota

    respectivamente as duas posturas. A antro-

    ploga Margaret Mead ilustra ainda melhor

    essa oposio binria entre o universal e

    o diferente no pensamento antropolgico.

    Filha do culturalismo americano, ela pode

    ser vista como defensora do relativismo

    cultural. No entanto, torna-se universalista

    no famoso dilogo travado com o escritor

    afro-americano James Baldwin na dcada

    de 70 (Mead & Baldwin, 1973).

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    Prefaciando a traduo do livro nascido

    do dilogo em questo, Roger Bastide co-

    loca claramente o problema e identica as

    posies de ambos. Tanto Baldwin como

    Mead esto preocupados com a questo da

    integrao do negro na sociedade america-

    na, mas no a concebem da mesma maneira.

    Mead tenta encontrar fora das diferenas de

    cor um campo cultural comum entre brancos

    e negros, um campo cultural que ela con-

    cebe segundo o modelo de miscigenao.

    Baldwin, embora aceite ser americano e

    no africano, no defende simplesmente a

    integrao, porque ela unilateral e exige

    do negro tornar-se branco Bastide dene

    a posio de Mead como ideologia pros-

    sional do etnlogo liberal ou progressista,

    portanto uma viso universalista oposta

    perspectiva etnopluralista de Baldwin (apud

    Taguieff, 1988, pp. 16-8).

    Constata-se que todas as correntes e pa-

    radigmas que marcaram o desenvolvimento

    da antropologia, cada um sua maneira,

    trataram das questes de identidade sem

    utilizar essa palavra, atravs dos conceitos

    de unidade e de diversidade. Esquemati-

    zando grosseiramente, podemos dizer que

    o evolucionismo antropolgico pretendia,

    no seu projeto, reconstruir a histria cultural

    da humanidade a partir do estudo das socie-

    dades no-ocidentais, na poca chamadas

    primitivas. Nesse projeto, a oposio primi-

    tivo/civilizado pregura a posio binria

    ns e outros, que podemos considerar

    como o primeiro esboo da idia de diver-

    sidade e de identidade atual. Pela segunda

    vez, a todas as sociedades no-ocidentais,

    foi atribuda uma identidade coletiva de

    povos primitivos, substituindo a iden-

    tidade anterior de selvagens dada pelos

    ancestrais iluministas.

    Por seu lado, o funcionalismo britnico,

    cuja monograa pretendia superar o etno-

    centrismo vitoriano, que via nas sociedades

    no-europias apenas gneros de vida ul-

    trapassados pela evoluo, no descreveu

    apenas um gnero de vida, mas sim um

    verdadeiro mundo de existncia. Como

    disse Lucy Mary (1937, apud Leclerc, 1972,

    p. 119), a interpretao da cultura humana

    concebida como mecanismo de cooperao

    em vista da satisfao de necessidades so-

    ciais, no qual cada elemento ligado ao resto

    e permanece condicionado por ele, implica

    a necessidade de dar uma considerao mais

    sria a instituies indgenas dos povos no

    civilizados do que se tinha feito antes.

    Mas o que interessaria a nossa proposta

    relacionada problemtica da identidade

    a conivncia entre o funcionalismo e o

    indirect rule. Sabemos que, para assegurar

    a dominao, nenhum sistema colonial no

    continente africano contou apenas com a

    fora bruta e com o aparelho ideolgico

    apoiado em discursos justificativos da

    misso civilizadora. Outras estratgias

    inicialmente no previstas nos primeiros

    esboos dos sistemas ocialmente im-

    plantados em 1885, aps a conferncia de

    Berlim, que sacralizou a mundializao da

    colonizao do continente africano, foram

    se desenvolvendo e aperfeioando-se no

    decorrer do processo de administrao dos

    territrios coloniais. Entre elas, o direct

    e o indirect rule, dos quais resultaram os

    sistemas de assimilao e de associao,

    que, apesar das particularidades, tm um

    denominador comum e serviram para

    ns semelhantes. No entanto, se todos os

    pases lanaram mo do indirect rule, os

    britnicos foram os nicos a lhe dar uma

    forma terica precisa e a amplitude de uma

    teoria geral das sociedades colonizadas.

    Isso s foi possvel graas colaborao

    da antropologia social na sua fase de

    constituio da antropologia aplicada aos

    territrios africanos.

    A esse respeito, escreve Lucy Mary em

    1935 que a razo pela qual os especialistas

    da antropologia crem no sistema do indi-

    rect rule no o fato de que esse sistema

    preserve as sociedades indgenas em sua

    forma original. Para os antroplogos a

    questo permitir que as mudanas que

    modicam as condies das sociedades

    africanas possam operar sem deslocao

    desnecessria das estruturas (Lucy Mary,

    1937 apud Leclerc, 1972). Estamos diante

    de duas losoas coloniais aparentemente

    opostas, mas que visam aos mesmos re-

    sultados. Por um lado, o direct rule ou a

    administrao direta francesa, que visa

  • REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-200650

    assimilao dos povos colonizados dentro

    do modelo racista universalista destruidor

    das identidades no-ocidentais, por outro

    o indirect rule ou a administrao indireta

    britnica, que visa aculturao dos povos

    colonizados, num processo que declarada-

    mente pretendia conservar as identidades

    tradicionais para no criar choques desne-

    cessrios que poderiam prejudicar o proces-

    so aculturativo. A aculturao, que, segundo

    George Balandier, levaria a um processo

    inverso de dculturation, pois praticada no

    contexto colonial caracterizado pelas rela-

    es polticas assimtricas, e a assimilao

    constituem somente dois lados da mesma

    moeda colonial na qual tanto a antropologia

    francesa, quanto a antropologia britnica

    e outras que se inspiraram nelas tiveram

    politicamente uma grande conivncia.

    Num caminho totalmente divergente,

    a antropologia cultural americana, ou o

    culturalismo americano, vai desenvolver

    o relativismo cultural cujos representantes

    mais autnticos produziro teses antico-

    lonialistas defensoras das identidades dos

    povos oprimidos. Se, do ponto de vista

    de Malinowski e de Radcliffe-Brown, a

    universalidade e a identidade dos povos

    oprimidos forneciam a base de uma teoria

    comparativa, para Ruth Benedict as institui-

    es constituem apenas um quadro formal

    e vazio do qual fcil demonstrar em vo

    a universalidade quando se deixa escapar

    o sentido concreto e efetivo que elas tm

    para e numa dada cultura. Para ela, as ins-

    tituies so interpretadas em funo dos

    valores prprios e especcos (das escolhas)

    de uma dada sociedade e no mais como

    respostas a necessidades fundamentais, ou

    como expresso das estruturas universais

    da vida social (apud Leclerc, 1972, pp. 152-

    3). Foi dentro desse esprito que se forjou o

    conceito de relativismo cultural, que j se

    encontrava no estado de esboo entre nume-

    rosos antroplogos americanos. Indo mais

    longe que o funcionalismo, o relativismo

    cultural no apenas coloca entre parnteses a

    questo de saber se as sociedades estudadas

    pela antropologia so sociedades primiti-

    vas, como nega antropologia o direito

    de qualicar essas sociedades, de fazer

    sobre elas um julgamento que mais tarde

    se tornaria um julgamento de valor.

    O alcance prtico dessas teses ilustra-

    do pela tomada de posio pblica de uma

    parte dos antroplogos americanos sobre

    o problema colonial. Em 1947, o Bureau

    executivo da American Anthropological As-

    sociation submete Comisso dos Direitos

    do Homem das Naes Unidas um projeto de

    declarao, A Statement on Human Rights

    (in American Anthropologist, 1947):

    Considerando o grande nmero de socie-

    dades que entram em estreito contato no

    mundo moderno, e a diversidade de seus

    modos de vida, a tarefa encontrada pelos

    que desejam redigir uma Declarao dos

    Direitos do Homem consiste essencial-

    mente em resolver o seguinte problema:

    como a declarao proposta pode ser

    aplicvel a todos os seres humanos, se

    foi concebida unicamente nos termos dos

    valores dominantes nos pases da Euro-

    pa Ocidental e da Amrica? O texto em

    que se sente a presena determinante de

    Herskovits faz um apelo aos resultados

    das cincias humanas, isto , s teses da

    antropologia cultural, propondo a elabo-

    rao de uma Declarao dos Direitos

    do Homem nos seguintes termos: 1o) O

    indivduo realiza sua personalidade pela

    cultura; o respeito das diferenas indi-

    viduais conduz ento a um respeito das

    diferenas culturais; 2o) O respeito das

    diferenas entre culturas vlido pelo fato

    cientfico que mostra que nenhuma tcnica

    de avaliao das culturas foi descoberta.

    Por isso, os objetivos que guiam a vida de

    um povo so evidentes por si mesmos na

    sua significao para esse povo e no de-

    vem ser ultrapassados por um outro ponto

    de vista, includo o das pseudoverdades

    eternas; 3o) Os padres e os valores so

    relativos cultura da qual so resultados,

    de tal modo que todas as tentativas para

    formular postulados que derivam das

    crenas ou dos cdigos morais de uma

    cultura devem, nessa medida, ser retira-

    das da aplicao de toda Declarao dos

    Direitos do Homem humanidade inteira

    (Leclerc, 1972, pp. 162-3).

  • REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-2006 51

    Como se v, a ideologia veiculada pelo

    culturalismo americano condena o univer-

    salismo dos vitorianos que consideravam

    a cultura ocidental como instrumento de

    avaliao das outras culturas. Nesse sentido,

    a antropologia cultural, ou o culturalismo

    americano, foi uma das correntes antropo-

    lgicas a defender as identidades dos povos

    no-ocidentais, embora saibamos que a ques-

    to da integrao dos negros e dos ndios na

    sociedade americana sempre atual.

    Quando acontece um encontro entre

    culturas, as atitudes preconceituosas de uma

    em relao outra podem ser interpretadas

    como uma defesa global de uma sociedade

    contra qualquer intruso estrangeira ressen-

    tida como uma ameaa. Atitude essa que

    Claude Lvi-Strauss considera universal

    e necessria, embora represente o preo

    a pagar para que os sistemas de valores

    de cada comunidade sejam conservados.

    A desconana em relao ao outro at

    a sua rejeio condiciona a presumida so-

    brevivncia das comunidades. Os povos e

    as etnias teriam de escolher entre a morte

    cultural por excesso de abertura aos ou-

    tros e a preservao do seu ser distinto

    em oposio aos outros, comeando pelo

    fechamento em torno de si (Lvi-Strauss,

    apud Taguieff, 1988, pp. 246-7).

    Pierre-Andr Taguieff critica esse po-

    sicionamento de Lvi-Strauss e de outros

    etnlogos que, ao naturalizarem as atitudes

    preconceituosas, conferem um fundamento

    legtimo ao etnocentrismo e xenofobia.

    Taguieff se pergunta se Lvi-Strauss no

    estaria reforando hoje a posio dos de-

    fensores da funcionalidade do preconceito

    racial. Ele acha difcil no ver nessa posio

    do etnlogo um discurso legitimador do

    imperativo cultural de excluir o estrangei-

    ro e de evitar qualquer mistura com suas

    maneiras de ser e de pensar defendida hoje

    na Frana pelo nacional-populismo e pela

    nova direita (Taguieff, 1988, pp. 246-7).

    Apesar da crtica, Lvi-Strauss, como os

    melhores defensores das identidades cul-

    turais particulares, rejeita todo apelo a um

    sujeito humano universal.

    A defesa do ensino da diversidade nas

    escolas formais resulta do debate sobre as

    reivindicaes dos grupos nas sociedades

    politnicas. W. Kymlicka lembra que, de-

    pois da Segunda Guerra Mundial, muitos

    liberais esperavam que a nfase colocada

    sobre os direitos do homem (notadamente

    em 1948, pela Declarao Universal da

    ONU) resolveria por si os problemas das

    minorias. Pensavam eles que, em vez de

    proteger os grupos diretamente atravs dos

    direitos especiais dados a seus membros, as

    minorias culturais seriam numa certa medida

    protegidas indiretamente atravs das garan-

    tias dadas a todos os indivduos quanto a

    seus direitos civis e polticos fundamentais,

    sem considerao do seu pertencimento a

    qualquer grupo. Um raciocnio implcito

    sustentava essa esperana: os direitos fun-

    damentais reconhecidos pessoa humana,

    como a liberdade de expresso, a liberdade

    de associao, a liberdade de conscincia,

    embora atribudos a indivduos, so de fato

    sempre exercidos em comunidade com outros

    indivduos, e nesse sentido o reconhecimento

    de tais direitos individuais protege, ipso fac-

    to, a vida do grupo. Enquanto os direitos

    individuais forem rmemente protegidos,

    no ser necessrio atribuir outros direitos

    aos membros de uma comunidade qualquer

    (Kymlicka, apud Mesure & Renaut, 1999,

    pp. 211-2).

    Kymlicka defende a idia de que esse

    modelo, que havia permitido ao Estado

    moderno nascente regular os problemas

    das guerras de religio, no poderia mais

    ser aplicado hoje ao problema das minorias

    culturais. Pois, se o Estado se colocar como

    neutro perante as questes provocadas pela

    diversidade dos grupos tnico-culturais,

    ser estruturalmente incapaz de resolver

    as questes resultantes da controvrsia

    concernente s minorias (Kymlicka, apud

    Mesure & Renaut, 1999, pp. 212-3).

    A diculdade se deve ao fato de que

    as doutrinas tradicionais dos direitos do

    homem respondem mal s questes de

    prticas efetivas da democracia. Na maioria

    dos casos, por si mesmas, no fornecem

    respostas. Por exemplo, o direito de livre

    expresso nada diz quando se trata de saber

    o que deveria ser uma poltica lingstica

    adaptada a uma situao de coexistncia

  • REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-200652

    entre diversas lnguas num mesmo espao

    social. Da mesma maneira, o direito de ir

    e vir no responde s interrogaes sobre

    o que deve ser uma poltica de imigrao e

    de naturalizao. Dessa diculdade surge a

    necessidade de reconstruir a teoria liberal

    dos direitos do homem de modo a atender

    a um imperativo de justia em relao aos

    grupos culturais em si, aos quais os indiv-

    duos se identicam, ou seja, de buscar uma

    transformao complementar do liberalis-

    mo para integrar uma exigncia de justia

    que Kymlicka (apud Mesure & Renaut,

    1999, pp. 214-5) designa como justia

    etnocultural.

    O debate sobre polticas de ao ar-

    mativa e sobre o multiculturalismo na

    educao surge desse contexto universal e

    est na pauta de muitos pases do mundo

    contemporneo. O Brasil, um pas que

    justamente nasceu do encontro das cultu-

    ras e das civilizaes, no pode fugir dele.

    Paralelamente aos programas e projetos

    de mudanas desenvolvidos nas instncias

    governamentais como no Ministrio da Edu-

    cao, no Ministrio da Sade, na Secretaria

    Especial de Polticas de Promoo da Igual-

    dade Racial (Seppir), etc., e nas instncias

    no-governamentais, creio que devemos

    aprofundar o debate intelectual e crtico

    num duplo sentido, aproveitando a luz das

    prticas experimentadas e devolvendo a

    essas prticas um olhar crtico construtivo

    e renovador. O melhor debate, a meu ver,

    aquele que acompanha a dinmica da so-

    ciedade atravs das reivindicaes de seus

    segmentos e no aquele que se refugia numa

    teoria superada de mistura racial, que por

    dezenas de anos congelou o debate sobre a

    diversidade cultural no Brasil, que era visto

    como uma cultura sincrtica e como uma

    identidade unicamente mestia.

    Alguns indagam se as polticas de reco-

    nhecimento das identidades raciais, em

    especial da identidade negra, no ameaa-

    riam a unidade ou a identidade nacional, por

    um lado, e se no reforariam a exaltao

    da conscincia racial, por outro. Ou seja,

    se no teriam um efeito bumerangue,

    criando conflitos raciais que, segundo

    eles, no existem na sociedade brasileira.

    dentro dessa preocupao, entre outras,

    que as crticas vm sendo dirigidas contra

    as polticas de cotas rotuladas como raciais.

    Segundo o antroplogo Peter Fry, um dos

    protagonistas intelectuais dessas crticas

    no Brasil,

    [] a ao armativa no veio somente

    para compensar negros pelo passado de

    escravido e pelo presente da discrimina-

    o. Veio desfazer a mistura racial para

    produzir s duas raas. Antes uma sociedade

    de classes que recusa reconhecer as iden-

    tidades raciais, o Brasil agora imaginado

    como uma sociedade de raas e etnias

    distintas. As polticas de ao armativa

    racial tero a conseqncia de estimular os

    pertencimentos raciais, assim fortalecendo

    a crena em raas (Fry, 2005, p. 336).

    Em primeiro lugar, todos os brancos e

    negros no Brasil acreditam na mistura ra-

    cial como fundante da sociedade brasileira,

    geneticamente falada. A pesquisa do geneti-

    cista Srgio Danilo Pena mostra que todos os

    brasileiros, mesmo aqueles que aparentam

    fenotipia europia, tm em porcentagens

    variadas marcadores genticos africanos

    ou amerndios, conrmando o princpio j

    conhecido da inexistncia de raas puras

    ou estancas. No vejo como, salvo numa

    imaginao criativa, a ao armativa possa

    desfazer a mistura racial, desaando as

    leis da gentica humana e a ao voluntarista

    dos homens e das mulheres, que continua-

    ro a manter os intercursos sexuais inter-

    raciais. Se as leis e barreiras raciais contra

    relaes sexuais inter-raciais nos Estados

    Unidos e na frica do Sul (apartheid) no

    conseguiram desfazer a mistura racial,

    como que isso pode ser possvel somente

    no Brasil por causa das cotas? Isso seria

    atribuir ao armativa um poder mgico

    que na realidade no possui.

    Em segundo lugar, sabemos todos que o

    contedo da raa social e poltico. Se para

    o bilogo molecular ou o geneticista huma-

    no a raa no existe, ela existe na cabea

    dos racistas e de suas vtimas. Seria muito

    difcil convencer Peter Botha e um zulu da

    frica do Sul de que a raa negra e a raa

  • REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-2006 53

    branca no existem, pois existe um fosso

    scio-histrico que a gentica no preenche

    automaticamente. Os mestios dos Estados

    unidos so denidos como negros pela lei

    baseada numa nica gota de sangue. Eles

    aceitaram e assumiram essa identidade ra-

    cial que os une e os mobiliza politicamente

    em torno da luta comum para conquistar

    seus direitos civis na sociedade americana,

    embora conscientes da mistura que corre

    em seu sangue e tambm da negritude que

    os faz discriminados.

    Consciente de que a discriminao da

    qual negros e mestios so vtimas apesar

    da mistura do sangue no apenas uma

    questo econmica que atinge todos os

    pobres da sociedade, mas sim resultante

    de uma discriminao racial camuflada

    durante muitos anos, o Movimento Negro

    vem tentando conscientizar negros e mesti-

    os em torno da mesma identidade atravs

    do conceito negro inspirado no black

    norte-americano. Trata-se, sem dvida, de

    uma denio poltica embasada na diviso

    birracial ou bipolar norte-americana, e no

    biolgica. Essa diviso uma tentativa que

    j tem cerca de trinta anos e remonta fun-

    dao do Movimento Negro Unicado, que

    tem uma proposta poltica clara de construir

    a solidariedade e a identidade dos excludos

    pelo racismo brasileira. Ela anterior dis-

    cusso sobre as cotas ou ao armativa, que

    tem apenas uma dezena de anos. Mais do que

    isso, ela correu paralelamente classicao

    popular cromtica baseada justamente na

    multiplicidade de tons e nuanas da pele dos

    brasileiros, resultante de sculos de miscige-

    nao. Armar que a denio bipolar dos

    brasileiros em raas negra e branca nasce das

    polticas de ao armativa ainda em debate

    ignorar a histria do Movimento Negro

    brasileiro. Pensar que o Brasil sofre presses

    internacionais ou multilaterais para impor

    as polticas de cotas minimizar a prpria

    soberania nacional e ignorar as reivindica-

    es passadas e presentes do Movimento

    Negro, que, mesmo sem utilizar as palavras

    cota e ao armativa, sempre reivindicou

    polticas especcas que pudessem reduzir

    as desigualdades e colocar o negro em p de

    igualdade com o branco.

    O problema fundamental no est na

    raa, que uma classicao pseudocien-

    tca rejeitada pelos prprios cientistas da

    rea biolgica. O n do problema est no

    racismo que hierarquiza, desumaniza e jus-

    tica a discriminao existente. H cerca de

    40 anos geneticistas e bilogos moleculares

    armaram que as raas puras no existem

    cienticamente (cf. Jean Hiernaux, J. Ruf-

    , A. Jacquard, F. Jacob, etc.). Chegaram

    mesmo at a preconizar a eliminao do

    conceito de raa dos dicionrios, enciclo-

    pdias e livros cientcos como medida

    de combate ao racismo. No demoraram a

    concluir que essa proposta era uma inge-

    nuidade cientca, dando-se conta de que a

    ideologia racista no precisava do conceito

    de raa para se refazer e se reproduzir. O

    apartheid existia como demonstrao da

    radicalizao do racismo sem lanar mo da

    palavra raa. Com efeito, o apartheid uma

    palavra do afrikans e recebeu a denio

    ideolgica de um projeto de desenvolvimen-

    to separado, com a nalidade de preservar

    a riqueza cultural e as identidades tnicas

    dos povos da frica do Sul. Em nome do

    respeito s identidades e s diversidades

    culturais, foi implantado na frica do Sul

    um regime segregacionista que durante meio

    sculo conscou os direitos fundamentais,

    polticos e sociais da maioria da populao.

    Da mesma maneira que o Brasil criou seu

    racismo com base na negao do mesmo,

    os racismos contemporneos no precisam

    mais do conceito de raa. A maioria dos pa-

    ses ocidentais pratica o racismo antinegros

    e antirabes sem mais recorrer aos conceitos

    de raas superiores e inferiores, servindo-se

    apenas dos conceitos de diferenas culturais

    e identitrias.

    As propostas de combate ao racismo

    no esto mais no abandono ou na erradi-

    cao da raa, que apenas um conceito e

    no uma realidade, nem no uso dos lxicos

    cmodos como os de etnia, de identi-

    dade ou de diversidade cultural, pois o

    racismo uma ideologia capaz de parasitar

    em todos os conceitos. Benjamin Isaac,

    num livro recente baseado numa pesquisa

    de cerca de 15 anos, sustenta a existncia

    do proto-racismo entre os antigos gregos

  • REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-200654

    e romanos. Porm, os antigos no usavam

    o conceito moderno de raa. Eles usavam

    os conceitos de ethnos ou natio, que no

    so sinnimos de raa. A lei da pureza de

    sangue vigente em Portugal e na Espanha

    dos sculos XIV-XV, que deu origem ao

    anti-semitismo, que uma subvariante do

    racismo, no precisou da raa no sentido

    moderno da palavra. No entanto a lei da

    pureza de sangue na Pennsula Ibrica no

    era to diferente das leis de Nuremberg

    durante o regime nazista.

    No seu livro Race et Couleur au Pays

    dIslam, Bernard Lewis oferece um outro

    exemplo de construo do racismo sem

    recorrer ao uso da raa.

    Numa anlise magistral baseada em

    farta documentao (textos sagrados, insti-

    tuies, comportamentos sociais e prticas

    sexuais), ele amplia o espao geo-histrico

    do racismo, incluindo nele os pases do Isl

    e desfazendo o monoplio ocidental desse

    fenmeno (Lewis, 1982).

    Logo na introduo dessa obra, ele apre-

    senta duas imagens contraditrias sobre o

    racismo no mundo islmico. A primeira

    imagem provm da obra A Study of History

    de A. J. Toynbee (1939), que descreve o

    mundo do Isl como uma sociedade iguali-

    tria e desprovida de qualquer discriminao

    racial. A segunda imagem vem dos contos

    as Mil e Uma Noites e revela um quadro

    familiar de fantasmas sexuais, de discri-

    minao social, de diviso dos papis e de

    uma identicao inconsciente positiva com

    o que claro, e negativa com o que mais

    escuro. De fato, nos contos as Mil e Uma

    Noites, os negros aparecem freqentemente

    nas funes subalternas, como carregado-

    res, empregados domsticos, escravizados,

    cozinheiros, responsveis pelos banhos,

    etc., elevando-se raramente acima dessa

    condio social. Isso bem ilustrado pela

    histria de um bom escravizado negro que,

    depois de uma vida de f e virtude, foi re-

    compensado depois da morte ao tornar-se

    branco (Lewis, 1982, pp. 11-6).

    Tanto na poesia rabe antiga como no

    Alcoro aparece uma conscincia da dife-

    rena, ou seja, o sentimento de ser rabe

    por oposio ao grego ou outro. No entan-

    to, nada indica que esse sentimento fosse

    vivido como uma diferena racial ou que

    pudesse ir alm da distino normal que

    um grupo humano manifesta diante de um

    outro. Sobre o problema especco da cor,

    a literatura rabe antiga mais instrutiva.

    Os primeiros poetas utilizavam toda uma

    gama de termos diferentes para descrever as

    cores dos seres humanos, gama muito mais

    vasta que aquela utilizada habitualmente

    em nossos dias. Esses termos no corres-

    pondem exatamente aos que utilizamos

    hoje e revelam um sentido das cores mais

    ligado claridade, intensidade, e mais

    tonalidade do que cor. Os seres humanos

    so freqentemente descritos utilizando-se

    termos que podemos traduzir como preto,

    branco, vermelho, verde, amarelo e por dois

    tons de moreno, claro e escuro. Esses termos

    so geralmente empregados num sentido

    pessoal e no tnico e corresponderiam

    mais (no sentido ocidental) a termos tais

    como moreno (trigueiro), loiro ou corado,

    do que a preto ou branco. Algumas vezes

    so utilizados num sentido tnico, mas com

    conotao em valor relativo e no absoluto.

    Os rabes, por exemplo, diziam-se s vezes

    vermelhos ou brancos em relao aos afri-

    canos que so pretos. A cor caracterstica do

    beduno ora verde-azeitona, ora moreno.

    Mas quando os rabes passaram a dominar,

    os papis se inverteram, pois a expresso

    povo vermelho foi atribuda aos espa-

    nhis vencidos, aos gregos e outros povos

    mediterrneos de pele mais clara que a dos

    rabes (Lewis, 1982, pp. 18-9).

    Quanto s relaes entre rabes e afri-

    canos, a situao mais difcil de discer-

    nir. Existe um grande nmero de versos

    atribudos aos poetas pr-islmicos ou aos

    primeiros tempos do Isl sugerindo fortes

    sentimentos de dio e menosprezo em rela-

    o s pessoas de nascimento ou de origem

    africana. A maior parte, se no a totalidade

    desses versos, foi redigida com quase cer-

    teza em perodos posteriores e reexo de

    problemas, atitudes e preocupaes mais

    tardios. Durante o perodo que se seguiu

    imediatamente morte do profeta Maom,

    em 632 da nossa era, as grandes conquistas

    islmicas transportaram a nova f para a

  • REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-2006 55

    as vastas zonas da frica e da sia. Com

    essa situao, muitas mudanas podem

    ser observadas na literatura da poca. Em

    primeiro lugar, os termos descrevendo a

    cor dos seres humanos se tornaram menos

    numerosos, especcos ou especializados.

    Com o tempo, quase todos desapareciam,

    exceo do negro, do vermelho e do

    branco, que tomam uma conotao tnica,

    absoluta, em vez de pessoal e relativa. O ne-

    gro designa globalmente os nativos africanos

    do sul do Saara e seus descendentes; o branco

    e s vezes o vermelho (claro) designa

    os rabes, os persas, os gregos, os turcos,

    os eslavos e os povos vivendo ao norte e ao

    leste das terras habitadas pelos negros. s

    vezes, para opor esses povos aos rabes e

    persas brancos, atribuem-se-lhes os quali-

    cativos signicando alabastros, azul plido

    ou diversos tons de vermelho. Em alguns

    contextos, o adjetivo negro estendido

    de modo a incluir os indianos, mas no o

    seu uso habitual (Lewis, 1982, p. 26). A essa

    especializao e especicao dos termos

    descrevendo as cores da pele, acrescenta-se

    uma conotao muito ntida de inferioridade

    associada com peles mais escuras e mais

    particularmente com peles negras.

    A conquista e a criao de um vasto

    imprio rabe zeram aparecer distines

    inevitveis entre povo conquistador e povos

    conquistados. Com a converso dos povos

    conquistados ao Isl, uma distino de classe

    se estabeleceu entre muulmanos rabes e

    muulmanos no-rabes, numa situao bem

    semelhante dos autctones cristos nos

    imprios coloniais dos sculos XIX e XX.

    Apesar de a doutrina do Isl rearmar incan-

    savelmente que os convertidos no-rabes

    eram iguais aos rabes e podiam at pretender

    a um estatuto superior graas sua maior f,

    os rabes, como os conquistadores de todos

    os tempos, eram pouco dispostos a conceder

    a igualdade aos povos conquistados e man-

    tiveram sua posio privilegiada sempre que

    puderam. Os muulmanos no-rabes eram

    considerados como inferiores e sujeitos a uma

    srie de restries scais, sociais, polticas,

    militares e outras (Lewis, 1982, p. 46).

    Para os muulmanos como para todos

    os povos das outras civilizaes conhecidas

    da histria , o mundo civilizado era por

    denio o deles. Eles se consideravam

    como os nicos que possuam a iluminao

    divina e a verdadeira f; o mundo exterior

    a eles era povoado de brbaros e de inis.

    No mundo exterior, que se estendia alm

    das vastas fronteiras do universo islmico,

    os muulmanos faziam algumas distines.

    No leste se encontravam a ndia e a Chi-

    na, pases pagos, no entanto, respeitados

    porque possuam provas de alguns traos

    de civilizao. No oeste estendia-se a Cris-

    tandade, antes bizantina e depois europia,

    reconhecida como rival por sua religio,

    sua cultura e sua viso do mundo. Fora

    disso, havia os brbaros do norte e do sul

    brancos no norte (turcos, eslavos e outros)

    e negros no sul, na frica negra (Lewis,

    1982, p. 52).

    Essas sociedades eram principalmente

    consideradas como reserva de escravizados

    a serem importados no mundo islmico,

    e, como eles no dispunham tambm de

    nenhuma religio digna de nome, deveriam

    ser convertidos ao Isl.

    Nas Amricas (do Norte e do Sul), existe

    uma identicao absoluta entre a popula-

    o negra e a escravido. Mas no mundo

    muulmano houve sempre escravizados

    negros e escravizados brancos. No entanto,

    a diferena entre ambas as categorias se d

    na terminologia, no valor de compra e venda,

    no tipo de atividade e na mobilidade social

    atribudos aos dois tipos de escravizados

    (Lewis, 1982, pp. 63-4). Geralmente, na

    poca medieval, dava-se aos escravizados

    brancos o nome de Mamluk, termo rabe

    que signica possesso e aos escravizados

    negros dava-se o nome de Abd. Com o

    tempo, o termo Abd, que designava os

    escravizados negros, tomou, em numero-

    sos dialetos rabes, o sentido de homem

    negro, fosse ele escravizado ou no. Os

    escravizados brancos, em particular as

    mulheres, custavam mais caro; alm disso,

    os escravizados negros eram utilizados em

    certas atividades a eles especicamente re-

    servadas, e sua mobilidade social era mais

    limitada que a dos brancos.

    A naturalizao da escravido negra

    encontra sua fonte de legitimao na lenda

  • REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-200656

    muulmana segundo a qual Ham, lho de

    No, e ancestral dos negros, foi condena-

    do a ser negro por causa do seu pecado. A

    maldio do ser negro foi transmitida a

    todos os seus descendentes. Essa histria

    d um exemplo interessante dos objetivos e

    utilizao ideolgica dos mitos. A origem da

    maldio de Ham evidentemente bblica

    (Gen. IX, 1-27) e rabnica. Mas, na verso

    judaica, a maldio diz respeito escravido

    e no cor da pele, e se abate em Cana, o

    mais jovem lho de Cam e no sobre seus

    outros lhos, entre os quais Kush, presumi-

    do ancestral dos negros. A lgica da histria

    clara e transparente: os escravizados dos

    israelitas eram os cananitas, seus parentes

    prximos. Da a maldio de Cana, uma

    justicativa religiosa (de outro modo ideo-

    lgico) para legitimar sua escravizao. Os

    escravizados rabes no eram cananitas,

    mas sim negros cuja maldio compreendia

    tanto a cor da pele quanto a escravizao,

    que passou a ser um peso de sua heredita-

    riedade (Lewis, 1982, p. 67).

    Apesar dos argumentos e decretos favo-

    rveis emancipao, a escravizao dos

    negros e sua exportao nos pases medi-

    terrneos e do Oriente Mdio continuaram,

    justicadas pelo argumento discutvel de

    que eram idlatras e que a guerra contra

    eles era Jihad, guerra santa, e que os pri-

    sioneiros podiam ser escravizados (Lewis,

    1982, p. 71).

    Os escravizados brancos eram raramente

    destinados s tarefas penosas; eles ocupa-

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    vam funes mais elevadas, tanto no plano

    domstico quanto no administrativo. Negros

    e brancos eram utilizados como eunucos,

    mas os negros predominaram rapidamente.

    Uma descrio rabe da corte dos califas de

    Bagd, no incio do sculo X, fala de 7.000

    eunucos negros e 4.000 brancos. Depois os

    eunucos brancos se tornaram raros e mais

    caros (Lewis, 1982, p. 72).

    Como em outras sociedades onde os

    esteretipos existem, encontra-se, no mundo

    islmico, uma srie de acusaes clssicas

    dirigidas contra os negros. As mais fre-

    qentes so que os negros so estpidos,

    cheios de vcios, mentirosos, desonestos,

    sujos em sua maneira de viver, emitem um

    cheiro insuportvel; so descritos como

    feios, disformes e monstruosos (Lewis,

    1982, p. 114).

    Esse quadro racista no Imprio Islmico

    em relao ao mundo negro-africano, mi-

    nuciosamente documentado por Bernard

    Lewis e aqui sinteticamente esboado, exis-

    tiu sem dvida antes do uso do conceito de

    raa na modernidade ocidental. Ele oferece

    um contedo racista legitimador da domi-

    nao e da excluso idntico ao elaborado

    na modernidade ocidental. O que corrobora

    nosso ponto de vista de que a raa no cria

    problema, mas sim a diferena fenotpica

    por ela simbolizada. A soluo no est na

    negao das diferenas ou na erradicao

    da raa, mas sim na luta e numa educao

    que busquem a convivncia igualitria das

    diferenas.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.68, p. 46-57, dezembro/fevereiro 2005-2006 57

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