Jusnaturalismo ou Positivismo Jurídico

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1 Jusnaturalismo ou Positivismo Jurdico:Uma breve aproximao Clodoveo Ghidolin1

Um tema de constante debate na histria do direito a caracterizao e distino entre jusnaturalismo e positivismo jurdico. Tradicionalmente essas doutrinas sempre foram concebidas como opostas, isto , ou aceitamos os argumentos da escola positivista ou ento somos partidrios da concepo jusnaturalista. No entanto, veremos a seguir que essa compreenso, segundo Norberto Bobbio, parecer ser equivocada. Para demonstrar isso elaboramos o presente artigo com fins estritamente didtico com o propsito de promover um maior entendimento e uma caracterizao mais precisa acerca dessas concepes, permitindo identificar e/ou situar autores ou como jusnaturalistas ou positivistas2. Para isso utilizamos a obra O Problema do Positivismo Jurdico3 de Norberto Bobbio, em especial o captulo III (Jusnaturalismo y Positivismo), em que ele prope alm da caracterizao usual, aproximar em pelo menos dois aspectos essas concepes pensadas pela maioria como antagnicas. Sendo assim, ao longo do texto faremos a apresentao dos argumentos contidos na terceira seo da obra e que permitem aproximar essas doutrinas, a fim de destacar a importncia e relevncia do propsito. A tradio do direito no ocidente realizava uma distino entre dois tipos de direito, a saber, a existncia de uma classe de princpios gerais (ticos, racionais) que no eram caracterizadas como normas, as chamadas, leis naturais (direito natural). Alm disso, havia outra classe de direito denominada direito positivo que era considerada como conjunto das normas efetivamente de mbito prtico, ou seja, aquelas normas que eram diretamente aplicadas conduta humana. Neste sentido,Prof. FADISMA / UCS Positivismo ou Positivismo jurdico a expresso que no sculo XIX admitia somente o direito positivo contrapondo-se a escola jusnaturalista que admitia a dualidade direito natural/direito positivo. 3 BOBBIO, Norberto. El Problema del Positivismo Jurdico. Mxico: BEFDP, 1999.2 1

2toda concepo de direito at o incio do sculo XIX sustentava uma concepo dualista de direito, isto , a existncia de um conjunto de leis naturais e leis positivas. Alm disso, estas ltimas derivavam das primeiras ou por um processo racional ou por vontade do legislador. Esta concepo dualista de direito pode ser encontrada desde Aristteles, o qual realizava a distino entre direito natural e direito positivo, estabelecendo as diferenas especficas de cada classe. No entanto, cabe salientar que em sua concepo a dualidade no implicava em uma hierarquia ou superioridade de uma forma sobre a outra, isto , existia uma relao de independncia. Ademais, ele considerava o direito natural como universal e imutvel cujas aes teriam valor geral independente do sujeito, e as aes determinadas seriam boas em si mesmas, enquanto que, o direito positivo era o conjunto de normas cuja eficcia dependia da comunidade em que o mesmo estaria inserido e, portanto, tendo validade particular e mutvel. J Santo Toms de Aquino admitia a mesma concepo dualista de direito, a saber, direito natural e direito positivo, mas sustentava que a segunda classe de direito derivava da primeira por obra do legislador, e no momento em que o direito positivo posto pelo legislador o contedo passa a valer. importante destacar que esse filsofo admitia a superioridade do direito natural sobre o direito positivo. Esta tese defendida por Santo Toms foi tambm concebida pelos jusnaturalistas dos sculos XVII e XVIII, conhecida como a teoria da superioridade do direito natural sobre o positivo. J a concepo positivista define o direito como o conjunto de normas positivas, tambm conhecida como a teoria da excluso do direito natural. Segundo Bobbio positivismo aquela doutrina segundo a qual no existe outro direito seno o positivo4. Em outras palavras, podemos caracterizar o positivismo como a teoria

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Idem. O Positivismo Jurdico. So Paulo: cone, 1995, p. 26.

3exclusiva, ou seja, a reduo de todo o direito ao positivo, excluindo a categoria de direito natural. Admitir essa polarizao, destacada acima, implicaria no comprometimento de elementos ainda mais radicais, a saber, que os jusnaturalistas teriam uma preocupao com aspectos valorativos do direito, enquanto que os positivistas fariam uma anlise estritamente formal do direito desconsiderando o aspecto valorativo. No entanto, a proposta no artigo do Bobbio mostrar que essas afirmaes so totalmente equivocadas. Para isso, ele observa a necessidade de redefinir o conceito de direito a partir de trs dimenses: como ideologia, teoria do direito e metodologia. Com essa distino ser possvel mostrar que algum poder concordar com os positivistas jurdicos em algum dos aspectos e com os jusnaturalistas em outro, no haver uma total polarizao ou ausncia de dilogo entre as concepes. Em sntese, o jusnaturalismo concebe o direito dualisticamente, ou seja, ele composto por duas formas, a saber, o direito natural e o direito positivo. Alm disso, defende a superioridade do direito natural sobre o direito positivo. J o positivismo admite apenas uma forma de direito, por isso uma concepo monista, isto , existe somente o direito positivo. Essa tese tambm chamada de teoria da exclusividade do direito positivo. No entanto, essas duas concepes so insuficientes para obter um panorama completo do direito, porque, segundo Bobbio no esgotam completamente as possibilidades de definir o direito. Poderamos ainda concebe-lo de outras trs maneiras, simplesmente utilizando as combinaes das teorias expostas. Na primeira delas direito haveria a unio do direito positivo com o direito natural sem hierarquizlos; ou uma segunda concepo em que haveria somente o direito natural; ou finalmente, uma terceira alternativa em que direito composto pela conjuno do direito positivo e direito natural, mas o primeiro superior ao segundo. Essas definies sofreram algumas criticas, tanto pelo positivismo quanto pelo jusnaturalismo, a partir dos argumentos que seguem.

4Em relao primeira definio (direito natural e direito positivo coexistindo sem sua hierarquizao) podemos afirmar que se contrape tanto ao jusnaturalismo quanto ao positivismo porque, embora admita a dualidade, nega a superioridade do direito natural sobre o positivo. Em relao ao positivismo porque admite a existncia do direito natural, ou seja, nega a tese da exclusividade do direito positivo. J a segunda alternativa (existncia somente do direito natural) se contrape ao positivismo porque, embora admita a exclusividade de uma forma de direito, trata somente do direito natural. Em relao ao jusnaturalismo porque no admite a dualidade. Na terceira possibilidade (direito positivo superior ao direito natural) h uma diferena porque embora conceba a dualidade, sustenta a supremacia inversa ao

jusnaturalismo, isto , o direito positivo superior ao direito natural. No que se refere ao positivismo a crtica ocorre porque no admite a exclusividade do direito positivo. Como podemos observar o jusnaturalismo sustenta necessariamente a dualidade e a superioridade do direito natural sobre o positivo. Essa superioridade tem sido defendida de vrias maneiras. Nesse sentido se faz necessrio uma caracterizao das trs maneiras tradicionalmente aceitas de jusnaturalismo procurando definir direito positivo a partir do direito natural. A primeira delas conhecida como escolstica, a qual define o direito natural como um conjunto de princpios gerais ticos que servem ao legislador, de inspirao para elaborar o direito positivo. Segundo Bobbio (1995) as leis positivas derivam dos princpios ticos naturais por obra do legislador de duas maneiras; ou por concluso ou por determinao. Na primeira situao a lei positiva deriva de um processo lgico semelhante concluso de um silogismo. Na segunda situao a lei positiva deriva por determinao, isto , quando a lei natural muito geral exigindo do direito positivo o modo concreto de aplicao desse princpio geral. J a segunda forma de jusnaturalismo, conhecida como racionalista, define o direito natural como um conjunto de dictamina rectae rationis que fornecem o contedo para a regulamentao das normas. Isso significa que o direito natural fornece o

5contedo para a formao das normas do direito positivo e, este ltimo, trata dos meios prticos para que as normas possam se tornar efetivas. Dessa maneira, direito positivo nada mais do que todo contedo do direito natural somado a coao. O direito positivo entendido como direito natural mais coao5. Portanto, o que muda com a formao do direito positivo a forma (por coao) no o contedo da norma. Assim, Bobbio admite em sua exposio que o direito positivo possibilita a aplicao do direito natural e o direto todo natural exceto a legitimao. Segundo ele:

O estado civil nasce no para anular o direito natural, mas para possibilitar seu exerccio atravs da coao. O direito estatal e o direito natural no esto numa relao de anttese, mas de integrao. O que muda na passagem no a substncia, mas a forma; no , portanto, 6 o contedo da regra, mas o modo de faz-la valer .

Por ltimo, a terceira forma de jusnaturalismo conhecida como concepo Hobbesiana aponta que o direto natural cumpre somente a funo de fornecer o fundamento ao poder do legislador para elaborar o direito positivo. Em outras palavras, garante a legitimidade do poder ao legislador para que este possa criar a ordem positiva e obrigando os sditos a obedecer ao pacto. Dessa maneira, o direito natural se caracteriza a partir da norma que obriga cumprir as promessas do pacto. Alm disso, as regras derivam da vontade do legislador e no de instncia superior como ocorre nas formas anteriores. Assim, o direito natural todo positivo, exceto, a legitimao. Mas, diante dessas trs concepes de jusnaturalismo, Bobbio procura demonstrar que possvel apontar algumas crticas a partir da perspectiva positivista. A crtica, em relao a primeira forma, se deve ao fato dos positivistas no aceitarem princpios ticos universais ou absolutos, ou leis imutveis porque elas sofrem alteraes em vistas das mudanas que ocorrem na sociedade e, conseqentemente, nos valores. Em relao segunda tese, o que torna uma conduta em regra no o5 6

Idem. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. So Paulo: Mandarim, 2000, p. 193. Ibidem, p.192.

6contedo, pois nenhum deles privilegiado, mas o modo de criao ou execuo. Em relao terceira forma, os positivistas no admitem que o fundamento esteja em outra forma de direito, mas sim no chamado princpio de efetividade. O que deve ser entendido por efetividade no corresponde ao conceito de eficcia porque nem todos os positivistas aceitariam. Efetividade significa o princpio concreto do ordenamento jurdico, que garante a legitimidade do direito. As normas so obedecidas por ordem positiva emanada diretamente do ordenamento e no por um princpio ou elemento exterior ao ordenamento jurdico. O motivo para o cumprimento de uma norma no deve ser por obedincia emanada de fora exterior ou superior ao direito positivo, mas obedecida pela maioria por ordem positiva. Diante dessas caracterizaes possvel definirmos trs formas de positivismo: como ideologia, como teoria do direito e como metodologia ou experincia jurdica. Essa classificao adotada por Bobbio permitir a aproximao destacada no incio desse trabalho. Em relao primeira caracterizao, podemos afirmar que as leis vlidas devem ser obedecidas incondicionalmente, independentes do contedo das normas. Neste sentido, justo tudo aquilo que vlido. Essa a tese do formalismo tico7. Na segunda tese, procura reduzir o direito ao direito estatal, ou seja, todo produto de conduta humana produzida pelo estado. O estado detentor da forma de criao das leis pelo legislador. Essa a tese do formalismo cientfico8. Como terceira concepo, o positivismo sustenta que a finalidade da cincia jurdica considerar o direito como realmente no como ele deve ser. Procura realizar uma distino clara entre validade do direito, (o ser), e a parte valorativa, (o dever ser). Isso acaba produzindo a afirmao de que uma norma pode ser vlida e, no entanto, no ser justa. O objeto de estudo passa a ser o fundamento do direito. Essa a tese do formalismo jurdico9.

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BOBBIO, op cit, 1995, p. 146. Ibidem, p. 146. 9 Ibidem, p. 145.

7Como podemos observar Bobbio realiza uma distino clara entre essas correntes a fim de que seja possvel a aproximao. Mas para isso, ser necessria uma exposio de ambas a teorias (jusnaturalista e positivista) partir dos trs conceitos j salientados acima, a saber, quanto ideologia, teoria geral e metodologia. Em relao ideologia, o jusnaturalismo e o positivismo podem ser definidos da seguinte forma: A mxima do jusnaturalismo admite que preciso obedecer somente as leis justas. J o positivismo sustenta que preciso obedecer as leis enquanto tal. No caso do positivismo as leis so o critrio de justia; e para os jusnaturalistas as leis so submetidas a um critrio exterior de justia. A partir dessas mximas possvel construirmos quatro formas de ideologias da justia referente a cada uma das citadas acima: a) A posio positivista extrema admite que as regras devem ser obedecidas porque so justas (denominada obedincia ativa). b) A posio positivista moderada admite que as leis devem ser obedecidas porque a legalidade garante certos valores especficos, tais como, ordem, paz, etc (denominada obedincia condicionada). c) J a posio jusnaturalista extrema admite que as leis devem ser obedecidas somente se forem justas, caso contrrio devem ser desobedecidas (resistncia). d) E na concepo jusnaturalista moderada as leis podem ser injustas, porm devem ser obedecidas, salvo em casos extremos. (obedincia passiva).10. O que se observa com essa classificao que as posies extremas so completamente opostas exigindo uma escolha, diferentemente das verses

moderadas que podem se aproximar, ou seja, ambas induzem a obedecer na maioria das vezes. Nesse caso especfico, a chamada obedincia condicionada e desobedincia condicionada possuem um elemento em comum, a saber, induzem o

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BOBBIO, op cit, 1999, p. 79.

8cidado a guiar-se na maioria das vezes de acordo com as leis e pelas leis, mesmo sabendo que esse ideal obtido atravs de meios distintos. Em relao a teoria do direito, o jusnaturalista procura fundamentar o direito em pressupostos metafsicos (direito natural), enquanto que o positivismo realiza uma operao lgico-semntica das regras e elas so derivadas do legislativo de maneira tal que a parte do contedo das normas relegado a segundo plano. Assim, as regras no derivam de contedo, mas da criao legislativa autorizada no prprio ordenamento. Neste caso, as concepes (jusnaturalista e positivista) so posies completamente diferentes. Ou aceitamos a tese monista ou aceitamos a dualista. Por ltimo, numa anlise do direito a partir da sua metodologia ambas as posies buscam disciplinar condutas humanas possveis, embora o jusnaturalismo procure apontar uma crtica proposta do positivista do direito por no fazer referncia ao contedo das normas. Mas ambas as teses procuram destacar um tpico fundamental na definio de direito, a saber, como ele produzido e aplicado. Neste sentido, possvel considerar que essas teses no so antagnicas, pois entre elas possvel atravs da crtica, embora por diferentes planos - os jusnaturalistas atravs da valorao e os positivistas atravs da interpretao - realizar uma reforma, atualizao e evoluo do direito a fim de que ele possa corresponder aos objetivos pelos quais foi edificado, que so eles: resolver conflitos humanos. Portanto, quando estamos diante da questo se somos jusnaturalistas ou positivistas, necessrio antes de qualquer posicionamento, especificarmos em que sentido estamos tratando o assunto; qual o ponto de vista que est em jogo durante a escolha ou classificao. Do ponto de vista ideal do direito possvel aproximar as vertentes quando tratamos das posies moderadas. No entanto, as posies extremas so concebidas como antagnicas. Em relao teoria geral, ambas posies so incompatveis, porque ou sustentamos uma posio dualista ou monista. Mas quando tratamos da experincia jurdica possvel apontar um elemento em comum s teses. Como j foi salientado acima, o tpico em comum diz respeito a

9reforma e atualizao do direito, tarefa fundamental para que o direito possa acompanhar o desenvolvimento, transformao, modificao da sociedade na qual est inserido. importante enfatizar que essa atividade realizada atravs de mtodos distintos, ou seja, enquanto os jusnaturalistas faro uso da valorao, os positivistas utilizaro a interpretao como ferramenta para essa mudana. Dessa maneira, ao final do captulo III (Jusnaturalismo y Positivismo) o autor apresenta sua posio frente a possibilidade de se considerar ou como positivista ou jusnaturalista. Quando o direito for tratado como ideologia ele se qualifica como jusnaturalista; no que se refere a teoria do direito no nem jusnaturalista nem positivista; finalmente, na parte metodolgica do direito, situa-se com convico, como positivista11, certamente pelo grau de certeza que um ordenamento jurdico positivista proporciona, ou seja, existem critrios estabelecidos e claros que garantem que os resultados dos argumentos jurdicos sejam seguros, impedindo margem para discusses ou dvidas.

Referncias Bibliogrficas

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurdico. So Paulo: cone, 1995. ______. El problema del positivismo jurdico. 6. ed. Mxico: BEFDP, 1999. ______. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. So Paulo: Mandarim, 2000.

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BOBBIO, op cit, 1999, p. 89.