NORMATIVISMO JURÍDICO - A CONTRIBUIÇÃO DE HANS KELSEN PARA A CONSOLIDAÇÃO DO POSITIVISMO...

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1 Normativismo Jurídico: A contribuição de Hans Kelsen para a consolidação do Positivismo Jurídico. Bruno Camilloto Arantes 1 Texto apresentado à revista de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito de Lafayete Resumo: O presente trabalho trata do desenvolvimento do positivismo jurídico na perspectiva teórica de Hans Kelsen. Palavras chaves: Teoria do Direito, Positivismo Jurídico e Hans Kelsen. Abstract: In this article, we focus of the development of the positivism (juridical) on perspective abstract of Hans Kelsen. Key words: Theory of Law, Positivism and Hans Kelsen. SUMÁRIO. I) Apresentação. II) Introdução. III) O jusnaturalismo e as condições de desenvolvimento do Positivismo 1 Mestrando em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Especialista em Gestão Pública pela Universidade Federal de Ouro Preto; Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto, Professor de Hermenêutica Jurídica da PUC Minas.

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Normativismo Jurídico: A contribuição de Hans Kelsen

para a consolidação do Positivismo Jurídico.

Bruno Camilloto Arantes1

Texto apresentado à revista de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito de

Lafayete

Resumo: O presente trabalho trata do desenvolvimento do positivismo jurídico na

perspectiva teórica de Hans Kelsen.

Palavras chaves: Teoria do Direito, Positivismo Jurídico e Hans Kelsen.

Abstract: In this article, we focus of the development of the positivism (juridical) on

perspective abstract of Hans Kelsen.

Key words: Theory of Law, Positivism and Hans Kelsen.

SUMÁRIO.

I) Apresentação. II) Introdução. III) O jusnaturalismo e

as condições de desenvolvimento do Positivismo

1 Mestrando em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; Especialista em

Gestão Pública pela Universidade Federal de Ouro Preto; Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto, Professor de Hermenêutica Jurídica da PUC Minas.

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Jurídico. IV) A influência da doutrina de Kant na doutrina

da Hans Kelsen. V) O surgimento do Positivismo

Jurídico: As Escolas Histórica, Exegética e Analítica. VI)

A Teoria Pura do Direito. VII) Conclusão. VIII)

Bibliografia.

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I) Apresentação.

A idéia do presente ensaio nasceu dentro da sala de aula como resultado da

experiência como professor da disciplina de Introdução ao Estudo do Direito. Ao

lecionar sobre fenômeno jurídico, tendo em vista a teoria tridimensional do

Professor Miguel Reale2, surgiram dificuldades das mais diversas em se expor e

discutir com os alunos a concepção da norma jurídica nos moldes propostos por

Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito.

Institutos como norma fundamental, sistema estático e sistema dinâmico, condição

de validade, dentro outros apresentados na Teoria Pura do Direito, são de difícil

entendimento para os alunos do primeiro semestre (ou ano) das faculdades do

direito.

Consigna-se, nesta oportunidade, que o presente ensaio não será uma apologia à

Teoria Pura do Direito mas, sim, um estudo preliminar e crítico da teoria ali

exposta.

Para tanto, se fará uma incursão histórica no pensamento jusfilosófico procurando

demonstrar o contexto que permitiu o surgimento do pensamento kelseniano. A

seguir se discutirá os aspectos principais de sua obra como forma de elucidação de

sua teoria e, por fim, apresentar-se-á ao leitor algumas observações críticas sobre

a mesma.

2 Sobre o assunto ver: REALE (1994).

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II) Introdução.

A concepção de ser humano indica a existência de dois mundos possíveis para sua

compreensão: o mundo sensível e o mundo inteligível. Enquanto physis (natureza)

o homem pertence ao mundo animal, isto é, ao mundo sensível. Por outro lado, o

mundo inteligível se estabelece pelo logos (razão) possibilitando ao homem a

racionalidade. Surge, dentro do plano da intelectualidade, a normatização que

deverá guiar o homem na sociedade, isto é, a criação de normas sociais criam,

conseqüentemente, um mundo de dever ser em oposição ao mundo do ser. Assim,

o plano do ser está relacionado com a natureza e o plano do dever ser com a

cultura e intelectualidade humanas.

Dentro dessa compreensão do ser humano, o Direito está relacionado com o

mundo inteligível, ou seja, é o mundo do dever ser que possibilita o

desenvolvimento do Direito como algo produzido pela cultura. O Direito, neste

trabalho, é entendido dentro de uma concepção culturalista onde se torna produto

da cultura do homem.3 Tendo em vista esses aspectos preliminares, já se percebe

a complexidade do Direito.

3 Para tanto ver: REALE (2002).

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O Professor Miguel Reale, dentro de sua teoria tridimensional do direito, descreve

o fenômeno jurídico4 como sendo um FATO, um VALOR e uma NORMA. Em sua

obra Filosofia do Direito, o citado Professor deixa claro que qualquer estudo do

Direito que não encare o fenômeno jurídico em seus três aspectos corre o risco de

ser apenas um estudo parcial e fragmentário.

Assume-se, assim, a posição de que, enquanto produto da cultura do homem, o

direito é um fenômeno complexo que tem por pressuposto um elemento fático, um

elemento axiológico (valorativo) e um elemento normativo (norma jurídica).

Essa breve introdução é necessária diante do tema escolhido para o debate, qual

seja, normativismo jurídico. Essa doutrina tem seu expoente em Hans Kelsen que

encara o fenômeno jurídico somente do ponto de vista do elemento normativo.

Entretanto, para se chegar à elaboração e conceituação do normativismo,

necessário se faz descrever sobre o contexto histórico que possibilitou o seu

desenvolvimento.

4 Fenômeno Jurídico é entendido nesse trabalho como aquele fato que acontece dentro da

sociedade, dotado pelo homem de uma valorização e recepcionado por um sistema de jurídico (positivo ou não) que se diferencia das demais ordens de conduta pela característica da bilaterialidade-atributiva.

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III) O Jusnaturalismo e as condições de desenvolvimento do Positivismo

Jurídico.

O jusnaturalismo é a corrente de pensamento que tem por fundamento o direito

natural. Todavia, a idéia de direito natural varia ao longo da história e, conforme

nos ensina o Professor Edgar de Godói da Mata Machado, no seu livro Elementos

da Teoria Geral do Direito, deve ser tratado com reservas. Esta é a lição do

Eminente Professor:

“O estudo da evolução histórica do conceito de direito natural encontra suas raízes no período mítico da civilização, quando as instituições morais e jurídicas se confundem com regras do culto, como a indicar sua vinculação profunda com a própria natureza das coisas.” (MATA MACHADO,1995:69)

No pensamento grego da Antiguidade5 o Direito era pensado, sobre a idéia do

JUSTO. Assim, de forma sucinta e sem qualquer aprofundamento jusfilosófico,

Platão concebia o Justo como um Ideal a ser alcançado. Aristóteles, por sua vez,

trabalhava a idéia do Justo como uma Virtude. Em todos dois grandes filósofos a

idéia de Justo se ligava à igualdade e relacionava-se com a vida de determinada

sociedade.

A Escola Estóica teve o mérito de trabalhar a igualdade do ponto de vista da

racionalidade e da universalidade. Nesse sentido José Luiz Quadros de

MAGALHÃES (2000:27) nos leciona que “Os estóicos proclamaram a humanidade

5 A divisão histórica dos períodos Antiguidade Gera, Estoicismo, Idade Média, Iluminismo e

Modernidade, seguem a idéia apresentada pelos professores José Luiz Quadros Magalhães, Edgar da Mata Machado e Alexandre Travessoni Gomes.

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como uma comunidade universal” Essa também é a lição do Professor Alexandre

Travessoni Gomes, in literis:

“A conceção de direito e justiça dos estóicos está fundada nessa universalidade da razão. Para eles há uma razão eterna, uma lei da natureza que governa todo o cosmos: como o homem faz parte dessa natureza, a razão se encontra, também, em todos os seres humanos, independentemente de sua raça ou nacionalidade. Essa lei natural serve de base para o direito positivo e define o critério de justiça.” (GOMES, 2000:32)

Na Idade Média a idéia de direito natural esteve vinculada à concepção de Deus

por uma influência decisiva da Igreja Católica. A título de exemplo, em seu

pensamento São Tomás de Aquino discorreu sobre quatro categorias de Leis, a

saber: Lei Eterna (que é dada por Deus e ninguém pode conhecê-la); Lei Natural

(que deriva da Lei Eterna e nos aparece como princípios que servem para

distinguir o bem do mal); Lei Divina (que é a revelação pela autoridade eclesiástica

dos livros sagrados) e, por fim, a Lei Humana que é a lei positiva dos homens.6

O advento do pensamento humanista-renascentista, a revolução científica que o

segue, o desenvolvimento do empirismo e do racionalismo e, por fim, o movimento

Iluminista, transformaram profundamente o pensamento e a cultura Ocidental.

Nesse contexto, Bacon e Descartes ganham importância com suas doutrinas

empíricas (observação e experimentação) e racionais. O chamado século das

luzes tem seu ápice com a Revolução Francesa que foi um acontecimento histórico

6 Sobre o tema ver: MAGALHÃES (2000:33); BOBBIO (1995:19) e AFONSO (1984:125)

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para todo o mundo. Nesse sentido, destacando a importância desses pensadores,

a Professora Elza Maria Miranda Afonso leciona:

“A filosofia que nasce para se contrapor ao sistema medieval se dicotomiza em duas grandes correntes, que seguem paralelamente, a partir do século XVII: o empirismo que se inicia com Francis Bacon e o racionalismo que surge com Renè Descartes”. (AFONSO,1984:144)

Nesse contexto iluminista, o Direito Natural passou a ser fundamentado na Razão

surgindo então o jusnaturalismo racional que se inicia no século XVII indo até o

século XVIII que iria, ainda, encontrar no século XIX o Positivismo Jurídico como

adversário (AFONSO,1984:170).

Como expoentes dessa corrente temos, por exemplo, Hugo Grócio, Locke, Hobbes

e Rousseau. Grócio, considerado precursor do jusnaturalismo racional7, entendia o

direito natural através da própria natureza humana. Ele concebia, através da razão,

que o homem enquanto pessoa é capaz de possuir direitos oponíveis ao seu

semelhante e ao Poder Soberano. E tais direitos são de caráter universal.

Locke, defensor dos direitos individuais, identifica o direito natural na liberdade e na

igualdade. Os homens, no estado de natureza, são livres para praticar qualquer

conduta. Contudo, para seu desenvolvimento, o homem necessitava de viver em

sociedade, ou seja, necessita de conjugar todas a liberdades individuais. Assim,

passa-se do Estado de Natureza para o Estado Civil onde cada um transfere sua

7 Sobre o tema ver: MATA MACHADO (1995:89) e AFONSO (1984:148)

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liberdade individual ao Estado. Este, por sua vez, limita-se na lei da natureza

devendo, portanto, respeitar a liberdade individual do cidadão.

A doutrina de Hobbes procura estabelecer a convivência dentro de um plano de

normatividade real, isto é, ele vê o Estado de Natureza como o local onde reina a

guerra entre todos os homens. Por isso, o homem precisa abandonar o Estado de

Natureza por dois motivos: pelo medo da morte e pela razão. A passagem do

Estado de Natureza para o Estado Civil se dá quando os homens abrem mão de

seus direitos e o concentram nas mãos de um soberano (que além de conservar os

direitos originários detém, também, a força da espada para executar o pacto social

constituído) que não faz parte desse pacto. Já no Estado Civil, Hobbes o concebe

absolutamente concentrando nas mãos do soberano um poder acima dos poderes

dos cidadãos.

Por fim, Rousseau, em sua obra mais conhecida O Contrato Social, desenvolve os

conceitos de vontade geral e autonomia. Em sua doutrina o poder deve ser

exercido em conformidade com a vontade geral dos súditos. Nesse sentido é

necessário uma liberdade autônoma capaz de criar as próprias leis que submetem

os indivíduos. Todas essas doutrinas foram importantes par ao desenvolvimento da

sociedade. Como adverte Edgar de Godói da Mata Machado, o que os

jusnaturalistas iluministas buscavam, na verdade, era uma justificação para o

direito positivo face ao Poder Absoluto do Estado.

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“Recordando o que ficou no capítulo anterior, insistimos em que a chamada Escola do Direito Natural e das Gentes é muito pouco “das gentes” e menos ainda “do direito natural”. O que os autores da época, desde Grotius até Kant, procuravam era, antes, uma teoria do Direito Positivo.” (MATA MACHADO, 1995:99)

IV) A influência da doutrina de Kant na doutrina da Hans Kelsen.

A filosofia kantiana tem a preocupação de estabelecer as condições de

possibilidade para o conhecimento humano. Isso tanto do ponto de vista teórico

quanto do ponto de vista prático.

Coube à Kant estabelecer, definitivamente, o conceito de liberdade como elemento

essencial ao Direito. Como lembra o Professor Joaquim Carlos Salgado, em sua

obra “A idéia de Justiça em Kant”, de todos os autores do iluminismo, foi Rousseau

que exerceu influência decisiva no pensamento kantiano com relação à idéia de

liberdade. In literis:

“(...), a influência de Rousseau pode dizer-se positiva, no sentido de fornecer elementos dos conteúdo apriorístico da ética kantiana, concluindo uma prospectiva de independentização da ética anunciada em Montaigne, que se completa, em primeiro lugar, através do conceito de autonomia, compreendendo os conceitos de vontade e de lei, com que Kant pretende vencer o problema da antinomia entre lei e liberdade, liberdade e bem, sollen e wollen.” (SALGADO, 1995: 229)

Tanto Rousseau como Kant trabalhavam a idéia de liberdade como autonomia.

Contudo, foi Kant que, desenvolvendo a idéia de liberdade como juízo sintético a

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priori8, a coloca como fundamento das ciências éticas, dentre elas, o direito. Com

relação ao direito, Kant reduz todos os direitos, até então ditos naturais, a um único

direito natural, qual seja, a liberdade. Nesse sentido temos a lição do Professor

Alexandre Travessoni Gomes:

“Isso pode, de fato, num primeiro momento, levar à conclusão de que não há direito natural. Entretanto, há em Kant, como ele próprio afirmou claramente, um único direito natural: a liberdade. O homem deve sair do estado de natureza para constituir o Estado civil, porque é um ser livre. O fundamento da ordem jurídica (do direito estrito), bem como da moral, é, pois, a liberdade.” (GOMES, 2000:80)

Trabalhando a idéia de imperativo como a proposição que segundo a razão se

destina a um agir, Kant identifica dois tipos: o categórico e o hipotético. O

imperativo categórico é o reconhecimento de um DEVER, ou seja, a ação praticada

é fim em si mesma. O imperativo hipotético é a imposição de um DEVER, isto é, a

ação praticada é um meio para se chegar no fim. Assim, a idéia de liberdade em

Kant é um imperativo categórico.

A partir da distinção entre os imperativos (categórico e hipotético) Kant faz a

distinção entre a ordem moral e a ordem jurídica. A ordem moral é aquela onde a

conduta obedece ao imperativo interior, ou seja, é regulada por si mesma. Por

outro lado, a ordem jurídica é condicionada pelo imperativo hipotético. A conduta

8 Na teoria kantiana os juízos podem ser sintéticos ou analíticos. Analíticos são aqueles em que a

conexão do predicado com o sujeito é pensada por identidade: o que se diz do sujeito já é parte de sua própria conceituação. Sintéticos são aqueles em que o predicado nos traz uma nova informação sobre o sujeito, ou seja, o critério de adequação do juízo não está contido nele mesmo e não pode ser averiguado sem auxílio de elementos externos a ele (isto significa que não se confirmam através do princípio da não-contradição). Juízo a Priori são aqueles que independem de toda percepção concreta e de qualquer experiência. Ele é um produto de uma intuição intelectual, ou intelecção, que apreende imediatamente um objeto que se apresenta. Em sua obra Crítica da Razão Pura, Kant pretendem fundamentar os juízos sintéticos a priori.

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aqui não é fim em si mesma mas, ao contrário, meio para se alcançar um fim

determinado pelo imperativo hipotético. Nesse momento Kant identifica o Direito

equívoco como sendo aquele em que não existe a coação e o Direito estrito como

sendo aquele em que a coação se faz necessário. É a partir da conceituação do

Direito Estrito de Kant que Kelsen desenvolve sua teoria normativa do Direito.

Edgar de Godói da Mata Machado, em sua obra Direito e Coerção, leciona que

vários intérpretes de Kant vislumbram que o fundamento do direito para ele é a

liberdade. Adverte, contudo, que, para Kant, o fundamento do Direito está na

conciliação das liberdades de todos que se dá mediante a coação e, somente

através do Estado.

“Eis como, partindo do criticismo teórico, com uma noção de liberdade indemonstrável, e passando por uma conceituação moral, fundada em algo necessário mas incognoscível, Kant não pode encontrar para a vida social plena do homem, para a boa convivência entre os cidadãos, senão uma ordem jurídica mecanizada pelo uso da força, que a tanto equivale a identificação entre direito e coerção.” (MATA MACHADO, 1999:120)

Se, por um lado, o Prof. Edgar de Godói da Mata Machado fundamenta o direito

em Kant na coerção, o Professor Joaquim Carlos Salgado entende que em Kant é

a liberdade que fundamenta o direito.

“Isso nos traz, como conseqüência, o princípio da autonomia (liberdade) como critério de validade das leis jurídicas. A liberdade é a conditio sine qua non do direito, ao passo que a sanção coativa é sua conditio per quam. A ordem normativa é coativa do direito está submetida ao fim último do direito que, por ser o seu fim último, lhe dá a essência: a liberdade.” (SALGADO, 1995:278)

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É a partir da doutrina de Kant que a liberdade ganha condições para figurar como o

elemento essencial da justiça (inclusive para garantir a igualdade) e,

conseqüentemente, do direito.

A coerção torna-se, assim, elemento central na doutrina kantiana. Com fundamento

na coerção, Kant classifica o direito em direito estrito e direito equívoco. O primeiro

seria aquele dotado de coerção, portanto, aquele em que teríamos uma força

exterior a exigir-lhe o cumprimento. O segundo seria tão somente aquela norma de

conduta que não possui o elemento da coerção externo e institucionalizado.

Retomando a idéia de Kant, Kelsen parte do estudo do direito estrito para

desenvolver sua teoria. Advertindo os leitores já no prefácio da Teoria Pura do

Direito, Kelsen nos revela o propósito de chegar as últimas conseqüências do

positivismo jurídico.

V) O surgimento do Positivismo: As Escolas Histórica; Exegética e Analítica.

O termo positivismo jurídico pode apresentar inúmeros sentidos. Inicialmente o

movimento positivista nos remonta ao positivismo filosófico de Augusto Comte

(1798-1857). Contudo, o positivismo jurídico pode ser verificado muito antes da

própria filosofia positivista. Se por direito positivo entendemos aquele emanado

pelo Poder Político, qualquer pensador que tenha por objeto de investigação essas

normas de conduta seria um positivista. (MATA MACHADO, 1995:143)

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Para o presente trabalho, como pressuposto conceitual, adotaremos o termo

positivismo jurídico nos moldes estabelecidos dentro da teoria de Hans Kelsen.

Desta forma, em oposição à doutrina jusnaturalista que foi trabalhada na parte

inicial deste texto, o positivismo jurídico encara o Direito como sendo aquele

conjunto de normas que são postas (positivadas) pelo Poder do Estado dotadas,

necessariamente, de coerção.

Todavia, para se chegar ao pensamento kelseniano, necessário se faz que

recordemos os movimentos históricos que possibilitaram o seu desenvolvimento.

Desenvolveu-se na Alemanha, principalmente sob a doutrina de Savigny, a Escola

Histórica do Direito. Se contrapondo à idéia de Direito Natural universal e válido

para todos em qualquer lugar e época; a Escola Histórica se baseava na

concepção histórica do Direito sob o fundamento do espírito do povo. Em que pese

ser tão discutido o conceito de espírito do povo, a Escola Histórica do Direito

contribui com o positivismo jurídico na medida em que atribui a característica da

mutabilidade (devido ao tempo e espaço) às normas de uma determinada

sociedade. Desta forma a característica da mutabilidade do direito auxilia na

construção da idéia de direito positivo nos moldes kelsenianos.

Posteriormente surge na França a Escola da Exegese que concebia o direito como

um corpo de normas consolidadas, ou seja, um código. O movimento de

codificação teve importância fundamental para esta escola e o Código de Napoleão

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foi um verdadeiro monumento que veio consolidar a Escola da Exegese. A

importância e influência desse pensamento é tão forte que BOBBIO (1995:77)

atribui a expressão “fetichismo legal” para denominar a forma de pensar dessa

época. Como contribuição para o positivismo jurídico temos que a Escola da

Exegese consolidou uma forma de produção legislativa organizada, sistemática e

densa. O código era, assim, o instrumento fundamental para o trabalho de todos

aqueles que operavam o direito.

A Escola Analítica se desenvolveu na Inglaterra e teve como grande pensador

Austin que construiu seu pensamento a partir da comparação entre os sistemas de

common law e de direito positivo. A comparação entre os dois sistemas possibilitou

a Austin estabelecer princípios gerais que servissem para fundamentar todo o

direito. Segundo Edgar de Godói da Mata Machado, a Escola Analítica foi a

responsável pela fundação da Teoria Geral do Direito.

“Essa verificação é a raiz da Teoria Geral do Direito. Interessante como Austin, por exemplo, admitiu e chegou a defender a codificação que, entretanto, até hoje, repugna ao Common Law. Dele é a afirmação de que existem conceitos, princípios e distinções aplicáveis a todos os sistemas jurídicos – dever jurídico, direito subjetivo (em oposição, portanto, a direito objetivo), liberdade, delito, sanção, etc., direito escrito (statute law) e não escrito (common law), direito público e direito privado, etc., outros tantos temas específicos de uma teoria geral do Direito. Eis a razão por que deve o fundador da Escola Analítica Inglesa ser mencionado entre os iniciadores da Teoria Geral do Direito.” (MATA MACHADO, 1995:141)

Além de contribuir para a construção da teoria geral do direito, a Escola Analítica

também contribuiu com o positivismo quando fundamenta as leis positivas no poder

soberano dentro de uma sociedade politicamente independente. Esta concepção

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nos permite afirmar que existe uma ligação da produção normativa ao Estado, isto

é, cabe ao Estado a produção e a aplicação das normas jurídicas.

Esse breve panorama histórico não é o aprofundamento das teorias apresentadas.

Ao contrário é a síntese apertada do pensamento de cada escola no sentido de

ressaltar quais as contribuições de cada uma ao movimento do positivismo.

Destaca-se, também, que os fatos históricos não são desencadeados em uma

linha reta cronologicamente determinada. A ordem das idéias apresentadas nesse

texto tenta, no quanto for possível, respeitar a ordem cronológica dos

acontecimento. Todavia, a história é desenvolvida pelo movimento dialético no qual

nem sempre é fácil dizer onde começa e onde termina certo fato, idéia ou

pensamento.

A partir da analise das três mais importantes Escolas e, unindo-se à elas, o

movimento de codificação, podemos, agora, adentrar na teoria normativa de Hans

Kelsen.

VI) A Teoria Pura Do Direito.

Como dito anteriormente, Kelsen se propõe a extrair as últimas conseqüências do

positivismo jurídico. Se propõe, como ele mesmo diz no prefácio de sua Teoria

Pura do Direito, a desenvolver uma teoria 1) do direito; purificada de todo conteúdo

valorativo, sociológico, político, etc; 2) positivo, ou seja, de qualquer direito posto e

exercido coercitivamente pelo aparato estatal. (KELSEN, 2000:XI)

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Em sua visão sobre as ciências, Kelsen identifica a ciência da natureza e a ciência

do direito. Segundo ele, a ordem natural é regida pelo princípio da causalidade, ou

seja, causa/efeito. Se A é tem que ser B. Por outro lado, a ordem normativa é

regida pelo princípio da imputação, ou seja, causa/conseqüência. Se é A deve ser

B. Para Kelsen, a ordem normativa, tal qual a ordem natural, deve se limitar à

descrição do fenômeno como ele ocorre.

A partir desses princípios Kelsen identifica dois sistemas de normas: estático e

dinâmico. Estático é aquele em que a validade da norma decorre do seu conteúdo.

Dinâmico é aquele cuja validade da norma decorre de outra norma superior sendo,

portanto, uma validade formal.

Concebendo o direito como o conjunto de normas editadas pelo Estado e exercidas

coercitivamente, Kelsen o enquadra dentro do sistema normativo dinâmico, ou

seja, naquele sistema onde prevalece a validade formal.

Discorrendo sobre o ordenamento jurídico, Kelsen o concebe em uma estrutura

escalonada e hierárquica denominando-a de pirâmide normativa. Na base da

pirâmide existem normas que decorrem de uma norma superior e assim,

sucessivamente até chegar-se no topo da pirâmide onde está a constituição como

norma máxima. É assim que funciona a validade formal das normas para Kelsen.

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Há uma dedução da norma superior para a validação da norma inferior9. A norma

inferior será valida somente se estiver de acordo com a norma superior.

Mas para Kelsen qual é então o fundamento da Constituição como norma máxima

dentro da pirâmide normativa? De onde retiramos a norma que fundamentará a

Constituição já que o sistema é dinâmico e a norma se fundamenta,

necessariamente, em outra superior?

Para fundamentar o ordenamento jurídico, Kelsen cria a Norma Fundamental como

forma de sustentar sua teoria. É a Norma Fundamental que dá validade para a

Constituição e todas as demais normas do ordenamento. Mas se o sistema é o

dinâmico (portanto fundamentado na validade formal) possui a norma fundamental

algum conteúdo? Não. Kelsen admite a Norma Fundamental como sendo

hipotética condicional, ou seja, uma norma que não é posta, mas, sim,

pressuposta. A norma fundamental é, assim, a pedra angular do ordenamento

jurídico atribuindo-lhe validade e unidade. Nesse sentido são palavras do próprio

Kelsen:

“Dado que o fundamento de validade de uma norma somente pode ser uma outra norma, este pressuposto tem de ser uma norma: não uma norma posta por uma autoridade jurídica, mas uma norma pressuposta, quer dizer, uma norma que é pressuposta sempre que o sentido subjetivo dos fatos geradores de normas postas de conformidade com a Constituição é interpretado como o seu sentido objetivo. Como essa norma é a norma fundamental de uma ordem jurídica, isto é, de uma ordem que estatui atos coercitivos, a proposição que descreve tal norma,

9 Kelsen entende que há uma vinculação material e formal das normas. É claro que a norma inferior

não pode violar materialmente a norma superior. Essa vinculação, para Kelsen, é eventual sendo mais importante é a vinculação formal. Para aprofundamento ver a obra Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, capítulo VIII.

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a proposição fundamental da ordem jurídica estadual em questão, diz: devem ser postos atos de coerção sob os pressupostos e pela forma que estatuem a primeira Constituição histórica e as normas estabelecidas em conformidade com ela.” (KELSEN, 2000:224)

Fechando seu sistema normativo, Kelsen ainda trabalha uma condição para a

validade do ordenamento: eficácia. Esclareça-se: a validade é dada pela Norma

Fundamental. Entretanto a condição para essa validade é a eficácia. Condição e

validade não são conceitos que se identificam. Para Kelsen, eficácia deve ser

entendida da seguinte forma:

“Mas fala-se ainda de um ordenamento “eficaz” quando a conduta das pessoas corresponde em geral e grosso modo a esse ordenamento, sem ter em conta os motivos pelos quais ela é determinada. O conceito de eficácia tem aqui um significado normativo, e não causal.” (KELSEN, 2000:28) (grifo nosso)

Kelsen deixa claro que a idéia de eficácia trabalhada em sua teoria não

corresponde a idéia de eficácia social. Eficácia social seria a correspondência entre

a norma e a conduta, isto é, a adequação perfeita das condutas dos cidadãos às

normas postas pelo Estado. Todavia, para Kelsen, eficácia está relacionada com a

normatividade, ou seja, se liga a possibilidade de aplicação coercitiva da norma à

conduta humana.

A relação entre o fundamento de validade e a condição de validade se desenvolve

entre a Norma Fundamental e o conceito de eficácia. Já deixamos claro que para

Kelsen o que dá validade ao ordenamento é a Norma Fundamental. Mas apesar de

ser válido o ordenamento jurídico tem, ainda, que ser eficaz, ou seja, aplicado.

Assim, a condição para que a validade exista e fundamente as normas de um

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sistema está condicionada à sua aplicação. Sobre a relação entre a Norma

Fundamental e a Eficácia, a professora Elza Maria Miranda Afonso leciona:

“Em que consiste realmente a eficácia, esse elemento da realidade, esse elemento da ordem do ser, que condiciona a validade do dever-ser normativo? A ordem jurídica, para Kelsen, é eficaz quando existe correspondência efetiva entre suas normas e os fatos aos quais elas se aplicam, quando os indivíduos aos quais ela se dirige se conformam às suas normas, quando suas normas são, de maneira geral observadas e aplicadas efetivamente. (161)” (AFONSO, 1984:262-263)

Se a condição para a validade é a aplicação, esta, por sua vez, se faz através de

uma sanção. Sanção, dentro da teoria Pura do Direito, é:

“Finalmente, o conceito de sanção pode ser estendido a todos os atos de coerção estatuídos pela ordem jurídica, desde que com ele outra coisa não se queira exprimir se não que a ordem jurídica, através desses atos, reage contra uma situação de fato socialmente indesejável e, através desta reação, define a indesejabilidade dessa situação de fato.” (KELSEN, 2000:46)

As normas jurídicas são dotadas de sanção que é a resposta da própria norma à

sua violação. Sanção, portanto, é essencial ao direito.

Quanto à relação entre as normas jurídicas e a sanção, percebe-se que nem todas

as normas jurídica possuem a previsão sancionatória para sua violação. Ora, se

para Kelsen toda norma possui sanção, o que fazer então com aquelas que não

apresentam a sanção explicitamente?

Nesse caso, Kelsen separa as normas em primárias e secundárias. Primárias

seriam aquelas que seu próprio conteúdo dispõem uma sanção no caso de

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violação. Secundárias seriam aquelas que não possuindo o mecanismo da sanção,

estariam ligadas imediatamente a um norma que possui e, logo, também conteriam

o instituto da sanção. Logo toda norma jurídica possui sanção.

Noberto Bobbio (2001), em sua obra “Teoria da Norma Jurídica”, admite a

existência de normas sem sanção. E não é para menos. Quando nos deparamos

com normas constitucionais que estabelecem a divisão de poderes, que

estabelecem competência, que, enfim, estabelecem formas de governo,

percebemos que não há, diretamente, nenhuma sanção atrelada àquela norma.

Como solução para o problema das normas sem sanção e, não aceitando o

posicionamento de Kelsen de sempre ligar a norma sem sanção àquela que a

contenha, Bobbio propõe que o instituto da sanção não seja imprescindível à

norma isoladamente, mas sim, ao ordenamento jurídico como um todo orgânico.

Nesse sentido:

“A dificuldade pode ser resolvida por um outro modo, isto é, observando que quando se fala em uma sanção organizada como elemento constitutivo do direito, nos referimos não às normas singulares, mas ao ordenamento normativo tomado no seu conjunto, razão pela qual, dizer a sanção organizada distingue o ordenamento jurídico de todo outro tipo de ordenamento não implica que todas as normas desse sistema sejam sancionadas, mas apenas que o seja a maior parte.” (BOBBIO, 2001:167)

Sendo a sanção, para Kelsen, o elemento restaurador da violação da norma ela

(sanção) é exercida através de uma coação10. A coação é, nessa visão, elemento

10

Sobre o tema ver MATA MACHADO (1999).

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essencial do direito. A ligação entre a sanção e a coação é descrita pelo próprio

Kelsen:

“Como esta proibição se opera por forma a que um tal uso da força passe a constituir pressuposto de uma sanção, e a sanção, por seu turno, é ela própria um ato de coação, isto é, uso da força, a proibição do emprego da força só pode ser uma proibição limitada, e, por isso, haverá sempre que distinguir entre o uso proibido e o uso autorizado da força – autorizado, este último, como reação contra uma situação de fatos socialmente indesejável, particularmente como reação contra uma conduta humana socialmente perniciosa, quer dizer, autorizado como sanção atribuível à comunidade jurídica.” (KELSEN, 2000:39)

Coação é, assim, o exercício da força para a restauração da norma violada. Força

que é autorizada pela norma, ou seja, seu exercício é regulado pelo Direito. Nesse

momento destaca-se a presença do órgão institucionalizado que irá determinar a

conduta do homem na sociedade criando normas e, posteriormente, estabelecer o

cumprimento forçado dessa conduta através da força coercitiva: o Estado.

Assim, a força regulada pelo Direito só pode ser exercida pelo Estado. O Estado é

o monopolizador instituindo a norma através do Poder Competente (legislativo) e

exercendo a força em restauração da norma através da Autoridade Estatal

Competente.

Kelsen chega mesmo a identificar os conceitos de Estado e Direito, isto é, só existe

Direito (como ordem coercitiva posta pelo Estado) num determinado Estado e, por

sua vez, só existe Estado com a regulamentação jurídica do poder. É o Direito que

delimita, institui, organiza jurídica e politicamente o Estado. A Constituição da

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República é o esqueleto que sustenta, não só o ordenamento jurídico, mas todo o

corpo técnico burocrático do Estado.

VII) Conclusão.

O ponto de partida do presente trabalho foi a análise da teoria normativa de Hans

Kelsen. Para tanto, tentamos demonstrar as condições históricas que permitiram a

Kelsen construir sua teoria procurando destacar os elementos mais importantes de

sua obra. Apesar de seus ensinamentos já terem ocupado lugar de maior destaque

nas ciências jurídicas, a importância de sua teoria é demonstrada em qualquer bom

livro de Introdução ao Estudo do Direito. O debate em torno da obra de Kelsen

passa, necessariamente, pela discussão entre seus seguidores e seus opositores.

Nesse sentido:

“Recansèns Siches relata que, em abril de 1960, Kelsen chegou à Faculdade de Direito da Universidade Nacional Autônoma do México, para pronunciar conferências e surpreendeu-se com o enorme público, de três mil pessoas, que se apresentou para ouvi-lo. Explicando a Kelsen os motivos de tamanho interesse que sua presença despertava, Recasèns Siches disse-lhe que os juristas hispano-americanos dividam-se em três grupos: o grupo dos kelsenianos fanáticos, devotos absolutos da Teoria Pura do Direito, na qual viam a última e definitiva palavra da doutrina jurídica; o grupo dos juristas que se lhe opunham ferrenhamente e o combatiam sem tréguas, e o grupo de discípulos críticos que, aprenderam muito com Kelsen mas intentavam superar algumas das perspectivas da Teoria Pura do Direito. Conta Recasèns Siches que, confessando-se um adepto desse terceiro grupo, ouvia de Kelsen a seguinte resposta: “Sabe usted, que pensándolo bien, creo que yo pertenezco tambièn a ese tercer grupo de discípulos críticos.”” (AFONSO, 1984:269-270)

Com relação à dimensão de importância que a obra de Kelsen obteve dentro da

ciência do direito, Edgar de Godói da Mata Machado nos chama a atenção:

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“A Teoria Geral do Direito encontra na obra de Hans Kelsen, qualquer que seja o juízo crítico que se lhe faça, o maior e mais poderoso impulso de elaboração. Pode-se mesmo afirmar que nenhum autor contribuiu, tanto quanto o fundador da Escola de Viena, para dar estatuto próprio à ciência do direito positivo. (MATA MACHADO, 1995:167)

Para chegar ao seu propósito inicial, Kelsen reconhece duas funções em relação a

ciência jurídica: 1) Do conhecimento e 2) Da autoridade11. Ao jurista, assim, como

qualquer cientista, só cabe o conhecimento e descrição do fenômeno jurídico, qual

seja, a norma.

A atividade do jurista é conhecer e descrever a realidade normativa não cabendo

qualquer tipo de valoração a respeito da mesma. Também não é possível valorar o

fato social que gera o direito. Cabe, simplesmente, fazer a subsunção legal através

de um silogismos formal. Com isso Kelsen pretende depurar de todo o Direito o

caráter Axiológico e Sociológico cabendo à Filosofia do Direito o primeiro e à

Sociologia o segundo.

Essa posição avalorativa do direito é criticada pela Professora Elza Maria Miranda

Afonso quando:

11

A função da autoridade é aquela destinada ao Poder Competente cabendo a este determinar a conduta do homem na sociedade, seja pela positivação de normas (Poder Legislativo), seja pela determinação do sentido das mesmas (Poder Judiciário). Kelsen ainda afirma que neste momento há uma identificação das funções desses dois poderes no sentido de que os dois determinam a conduta do homem havendo, contudo, uma maior liberdade de atuação do primeiro em relação ao segundo. Essas considerações fazem parte da teoria da interpretação de Hans Kelsen que extrapolam os limites do presente ensaio.

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“Entendemos que a Ciência do Direito – enquanto conhecimento – não pode ser reduzida a uma atividade meramente descritiva, mas que é uma atividade crítica, pois todo conhecimento implica em um processo de reflexão crítica.” (AFONSO,1984:294)

Diante do entendimento do fenômeno jurídico proposto no início desse trabalho,

concordamos com a referência supra citada de que a ciência do direito não pode

(como efetivamente não é) ser desenvolvida a partir somente do método descritivo

das ciências naturais. Ressalte-se que a descrição dos fenômenos é método

também questionado nas ciências da natureza.

Direito, enquanto produto da cultura humana, não é algo, simplesmente, descritivo

mas é algo que se destina ao próprio homem. As normas de um determinado

Estado podem ser descritas. Entretanto, há, nessa visão, uma redução de todo o

Direito (e também da Ciência do Direito) a um único aspecto do fenômeno jurídico,

qual seja, a norma.

O Direito, como um fenômeno social complexo, serve para realizar os valores

inerentes à pessoa humana tais como a dignidade, liberdade, igualdade para

ficarmos em poucos exemplos. Assim, os direitos nascem, primeiro, nas

consciências dos povos civilizados para depois serem declarados nas constituições

estatais e, posteriormente, serem eficazes para a realização completa do homem.

(SALGADO, 1996:16)

Nesse momento de valoração do direito surge, para o cientista, a necessidade de

avaliar os valores da norma e do fato que compõe a fenômeno jurídico.

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Discorrendo sobre a axiologia (teoria dos valores) Miguel Reale (2002:211)

identifica o homem como VALOR-FONTE de todos os demais, ou seja, o homem

através da sua história e cultura cria valores que tem por fim o próprio homem.

Também Edgar de Godói da Mata Machado, ao desenvolver sua teoria do

personalismo jurídico, coloca o homem no centro da discussão jurídica. É o homem

que é sujeito de direitos. É para o homem que os direitos fundamentais são

elevados de valores à categoria de direitos merecendo toda regulamentação

normativa.

Por fim, mas sem o esgotamento do assunto, o direito nasce a partir do mundo

inteligível do qual só o homem faz parte. Qualquer teoria, como por exemplo a

teoria de Kelsen, que pretenda reduzir o fenômeno jurídico somente à norma, ao

fato, ou, ao valor, não poderá compreender a complexidade do direito.

A crítica que se faz nesse momento à teoria de Hans Kelsen é a cisão do

fenômeno jurídico, ou seja, é a visão fragmentária que o cientista do direito tem

que adotar para estudar o direito. Não é possível entender o direito somente como

norma como propunha Kelsen para cientista jurídico. Cabe, também ao cientista do

direito criticá-lo na tentativa de se alcançar um ideal, qual seja, a justiça.12

12

Para o entendimento das idéias de justiça ver as obras “A Idéia de Justiça Kant” e “A idéia de Justiça em Hegel”, ambas de Joaquim Carlos Salgado.

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A regulação da força dentro da sociedade pode se dar de diversas maneiras13

sendo uma delas o direito. O direito é, então, o fenômeno cultural que visa regular

a força dentro da sociedade baseado em um critério, ou nos dizeres do Professor

Joaquim Carlos Salgado, uma idéia de justiça.

Desta forma, a teoria de Kelsen assume importância vital para o desenvolvimento e

consolidação do positivismo jurídico. Entretanto, o direito deve ser entendido para

além da norma jurídica. Ao contrário daquilo que leciona Kelsen, o Direito deve ter

por elemento essencial a liberdade e não a coação. Sendo a liberdade um valor, do

ponto de vista formal, e um direito ,do ponto de vista material, é através dela que o

homem constitui, autonomamente, um sistema normativo para a determinação das

condutas dentro da sociedade estabelecendo, conseqüentemente, os ideais de

justiça a serem garantidos pela normas.

13

A força pode ser estabelecida pela força física, econômica, intelectual, etc

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VIII) Bibliografia: AFONSO, Elza Maria Miranda. O positivismo jurídico na epistemologia de Hans Kelsen. Belo Horizonte: FDUFMG, 1984, 312 P. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Noções de filosofia do direito. Trad. Márcio Pugliesi. São Paulo: ÍCONE, 1995, 239 p. _______, Norberto. Teoria da norma jurídica. Trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. Bauru: EDIPRO, 2001, 192 p. _______, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: UNB, 1999, 184 p. GOMES, Alexandre Gomes. O fundamento de validade do direito. Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, 214 p. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cultura, 200, 511 p. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito .Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, 427 p. MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional. Tomo I. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, 414 p. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Dos pré-socráticos a Wittgenstein. 5. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, 298 p. MATA MACHADO, Edgar de Godói da. Direito e Coerção. 2. ed. São Paulo: Unimarco, 1999, 256 p. _______________, Edgar de Godói da. Elementos de teoria geral do direito. Introdução ao estudo do direito. 4. ed. Belo Horizonte. UMFG, 1995, 410 p. REALE, Gionvanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia. Vol. 1. São Paulo: PAULUS, 1990, 693 p.

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_______, Miguel. Filosofia do direito.20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, 749 p. SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant. Seu fundamento na liberdade e na igualdade. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995, 372 p. _________, Joaquim Carlos. Os direitos fundamentais. Separata do n. 82 da Revista de Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte: UFMG, 1996, 69 p. VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de filosofia II. Ética e cultura. São Paulo: Loyolla, 1993, 293 p.