José maria neves musicologia histórica para a música de hoje

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Musicologia Histórica para a Música de Hoje

José Maria Neves

São muitos os estudos musicológicos que, tentando visão de conjunto sobre a produção internacional ou sobre arealidade da produção musicológica de um determinado contexto acadêmico ou cultural, denunciam o foco pre-ferencial da musicologia histórica tradicional sobre os fatos do passado, e mais ainda, sobre o passado europeu.Tentando este tipo de visão panorâmica, Claude Palisca1 já constatava que isto vinha ocorrendo com a musicologiahistórica estadunidense, centrada em temas que faziam furor nos meios acadêmicos europeus, e muito particular-mente sobre estudos medievais e renascentistas, ocorrendo quase total descaso da música produzida no país. Via-se aí não apenas a aceitação imediata dos modelos musicológicos trazidos da Europa, mas também apego aosnúcleos temáticos considerados ricos e relevantes.É justamente em função desta realidade que justifica-se a redefinição do musicólogo proposta por Palisca, que ovê como antes de tudo como o historiador, e como um historiador que desempenha mais seu papel de cronista, queo de interpretador dos dados que fazem parte do relato.Fazer história enquanto os fatos ocorrem, principalmente quando o narrador participa desta história, pode causargrandes perplexidades. Nada é impossível, mas esta nova prática começará por exigir reformulações metodológicase busca de modo diferenciado de ver o próprio objeto de estudo. Felizmente que, como dizia Arthur Mendel2 ,quando o homem deseja conhecer todas as coisas, ele busca antes de tudo conhecer a si mesmo. Tal idéia pode serfacilmente ampliada, para mostrar o desejo de conhecer a sociedade e os produtos culturais da sociedade ondevive este homem que pesquisa. Isto seria suficiente para explicar a necessidade de serem incentivados todos osesforços para fazer com que a musicologia histórica se voltasse - não de modo exclusivo, mas de modo preferen-cial - para a produção musical de nosso país e de nosso tempo.Trabalhando com realidade que lhe é próxima, qual seja a produção musical de seu tempo, o historiador tratará decontexto musical que lhe é familiar, e poderá exercer sua função de modo mais natural e fluente que quando tratade contexto cultural que conhece de modo apenas indireto, e que não faz parte de seu cotidiano.Contexto familiar e, preferentemente, que pertença a seu campo de interesse pessoal. Pois, como diz Kerman3 , osmusicólogos podem amar algumas das músicas que estudam... e estas músicas devem revestir-se de interesseestético (pressuposto muito recente, como lembra o mesmo Kerman). Quando trata da música do seu meio e doseu tempo, o musicólogo não estará voltado apenas para algo que desperta seu interesse em razão do diferente,poderá caminhar em direção do que Mendel4 chama de interesse crítico.Mas de que maneira o musicólogo exercerá a difícil responsabilidade de escolha dos objetos para descrição eanálise, diante de produção sempre enorme e variadíssima? Será fácil detectar o mais relevante? A formação domúsico e do musicólogo parecem apontar para outra direção, uma vez que todos somos preparados para vermos eavaliarmos apenas a música do passado. No nosso sistema pedagógico, parece nada ter restado do antigo preceitoda predominância do presente sobre o passado. Não sei se alguém ousaria hoje repetir o que disse JohannesTinctoris em 1477: não há música que valha a pena ser ouvida que não tenha sido composta nos últimos quarentaanos5 . Nos séculos seguintes, e particularmente a partir da segunda metade do século XIX, fomos ensinados apensar que dificilmente poderá alguém suplantar os mestres do passado, e mesmo que tenha havido saudávelreação contra este preconceito através de artistas e pensadores dos anos 40, 50 e 60 (cite-se particularmente JohnCage e seus textos filosóficos), ainda temos necessidade de confrontar passado e presente.Pagamos o preço de uma ciência que é vista como histórica, e de história do passado, pois esquecemo-nos de quea história avança até o presente e que uma das contribuições que os estudos de musicologia histórica podem trazerserá a promoção (no sentido de difusão e estudo aprofundado) da nova música, aumentando o conhecimentosobre ela. Neste sentido, o musicólogo estará prestando permanente serviço à sua comunidade, e estará atuandocomo elo entre os criadores e os intérpretes e o público.E justamente porque deve voltar-se para a produção cultural do presente e de comunidade particular, a musicologiahistórica não poderá renegar os estudos relativos à música popular, em termos de uso e valor social. FrankHarrison6 já vem há tempos chamando a atenção para esta necessidade, chegando mesmo a dizer que “a função detoda musicologia é ser, de fato, etnomusicologia, ou seja, ampliar sua gama de pesquisa de forma a incluir mate-rial que é qualificado de ‘sociológico’”.É preciso lembrar-se que esta volta à música do presente não é novidade. Kerman já cita em seu ContemplatingMusic o fato de Edward Dent ter sido membro-fundador da Sociedade Internacional de Música Contemporânea ede Charles Seeger ter desempenhado função relevante no panorama da música contemporânea estadunidense dosanos 20 e 30. Como se vê, estes dois importantes pesquisadores aliaram sua ação acadêmica a práticas musicaisefetivas, e o fato de serem pessoas atuantes na vida musical não os impediu de ter visão crítica da música produ-zida em seu tempo e em seu meio. Deve-se lembrar também o papel de Dahlhaus e de seus colaboradores noestudo da música do século XX, a partir dos anos 60.Seguindo tão bons exemplos, poderíamos dizer que somos convidados à vivenciação da música do nosso tempo,em ação que vise à sua melhor difusão, ao mesmo tempo em que somos chamados a estudar esta música, para

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traçar seu perfil. Somos chamados a sermos os cronistas desta sociedade e de suas práticas musicais, e cronistasque interpretam, no sentido de expressar os anseios dos que as produzem e dos que as consomem.Para que possam fazer esta crônica interpretativa e crítica, será pedido dos musicólogos que busquem exprimir ateoria da música nova, estruturando modelo técnico que permita as análises e os juízos. Este desafio pode assustaros pesquisadores, que não se julgarão suficientemente armados para tão árdua empreitada. Consolará semprelembrar que em cada época diversos estudiosos descreveram os princípios teóricos que dão base à prática musi-cal, e que esta definição de princípios teóricos é mais singela do que se imagina. De fato, o bom cronista relatarátambém os elementos que circundam e condicionam o objeto artístico e farão, por isto mesmo, exposição dateoria da música. Uma boa musicologia dará conta de como a obra está feita, de como ela é transmitida e de comoela é recebida, preocupando-se em registrar o pensamento e o comportamento do compositor, do intérprete, doprofessor, do crítico, do público. A música de hoje - como talvez tenha sido com as músicas de muitas outrasépocas passadas - reflete extraordinária vitalidade e diversidade, que, conforme nota Milton Babbit, é comparávelà da própria teoria da música, e a produção musicológica deverá dar conta desta variada diversidade, para contri-buir de modo eficaz para a compreensão do fato musical e para seu maior implemento. Mais ainda: como dizLeonard Meyer7 : “uma vez apuradas as normas de um estilo, o estudo e a análise do conteúdo afetivo de umadeterminada obra desse estilo pode ser realizada sem referência contínua e explícita às reações do ouvinte oucrítico. Ou seja, o conteúdo subjetivo pode ser discutido objetivamente”.Quando analisa o positivismo inerente ao trabalho musicológico, Joseph Kerman não se restringe às categorias de“pensamento de baixo nível” (na analogia com o barco, visto em duas posições espaciais diversas, permitindodedução sobre diversas posições intermediárias que teriam sido ocupadas por ele) e de “pensamento de alto nível”(que corresponderia às deduções mais sofisticadas, que atenderiam ao que, em Mendel, levaria a explicaçõessobre diferenciação estilística); ele deseja incorporar aquilo que Isaiah Berlim chamou de explicação “densa” e“tênue”. O importante desta incorporação é o fato da explicação “densa” ultrapassa a aplicação de modeloslógicos e, ainda tomando a dedução como base do saber historiográfico, lança mão da percepção intuitiva e daimaginação8 , em reinterpretação ou abordagem mais imaginativa do material que é trabalhado. Mas é precisoque se diga que, conforme acentua Mendel9 , as explicações “densa” e “tênue” variam entre si apenas em grau.Mas quando se pensa em uma musicologia histórica que não abandone o presente e que pretenda fazer sua crônica,é preciso que se reflita mais sobre alguns conceitos que dão base à historiografia e que certamente interferirãosobre a construção deste novo projeto. O primeiro deles é o de “continuidade”, que é considerado o fundamentoprincipal da escrita da história em forma narrativa10. A influência deste conceito sobre a construção do pensa-mento historiográfico será menor e menos condicionadora se ele servir apenas como suporte de técnica de relato.Se ele for incorporado como substrato filosófico, poderá trazer subjacente uma espécie de evolucionismo quepode ser nefasto, por falso.Este mesmo conceito de “continuidade” servirá para discussão de tema que preocupa enormemente os pesquisa-dores e críticos que dedicam-se à história recente, quando devem fixar-se em fatos e obras e sentem o quanto fazfalta um relativo recuo histórico. Na verdade, nunca se chega a um acordo sobre aquilo que muitos historiadorese musicólogos, e com eles Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, chamava de “critérios de elegibilidade lexicográfica”,isto é, o que faz com que um artista, por exemplo, possa ser pinçado e proposto como verbete de dicionário outema de capítulo de livro... Estes critérios incluem dados que fogem ao controle do próprio personagem e repre-sentam construção do pesquisador ou de grupo de pesquisadores, podendo ser, entre outros, o fato de ter nascidoem bom lugar e em bom momento (em terra de cego, quem tem um olho é rei?). Mas independentemente daescolha de critérios de elegibilidade que tenham bom fundamento lógico, não se pode esquecer que o grande temaem discussão é “o que fica”, “o que se eterniza”, conceito de gosto bom romântico. Aí também, há critériosdefendidos por diversos grupos, com destaque para a convicção de que o que determina esta permanência é a“novidade” (ou o que John Cage chamou de “princípio da originalidade”), o que faz com que a história passe a servista como uma seqüência de grandes revoluções. O curioso em tudo isto é que a musicologia histórica que sebaseia neste conceito encontra-se com princípio estético predominante em passado mais longínquo - de fins doséculo XVII a meados do século XIX -, quando uma obra devia ser original, para poder ser considerada autênti-ca11. Deve-se tomar em conta que, naquele momento, a difusão das obras também regia-se pelo mesmo princípio,e os intérpretes estavam visceralmente comprometidos com a produção musical contemporânea, do mesmo modoque a produção de teoria da música. Nos nossos dias, a adoção do “princípio da originalidade” como critérioprimeiro de elegibilidade colocaria problema de descompasso entre a prática musical e a produção de literaturasobre música.Finalmente, deve-se lembrar que, dentro da tradição historiográfica européia, somente no século XIX tem inícioo que poderia ser chamado de “história dos estilos”, que realmente só tomaria vigor bastante mais tarde. Estahistória reage contra a acumulação de dados técnicos autônomos e contra a tendência em explicar qualquer obramusical através da biografia do seu autor. Contra esta forma de positivismo, uma história voltada para o estiloprocura ser uma verdadeira história da música, e não um amálgama de análises de obras (o que de fato representaum avanço com relação a histórias da música que pareciam não partir da realidade musical), uma história queevidencie a arte, e não contingências biográficas ou sociais (ainda que enfoque social tenha sido um dos princi-

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pais enriquecimentos da historiografia moderna). A busca do estilo, enquanto fisionomia de uma ou de um grupode obras, permitiria a reconciliação entre a sensibilidade estética e os requisitos da historiografia, podendo revelaro que faz de uma peça uma obra de arte, mas que o faz de modo sempre mutável, que se transforma no tempo12.

1 Harrison, Hood & Palisca. Musicology. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1963, p 210.2 Mendel, Arthur. “Evidence and Explanation”, in Report of the 8th. Congress of the International

Musicological Society, 1961. Cassel/London/New York: Bärenreiter, 1962, v. 2, p. 2-18.3 Kerman, Joseph. Musicologia. São Paulo: Martins Fontes, p. 33.4 Mendel, Obra citada.5 Citado por Kerman, obra citada, p. 34.6 “American Musicology”, in Musicology. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1963.7 Citado por Kerman, obra citada, p. 145.8 Kerman, obra citada, p. 69.9 Mendel, obra citada p. 11, 13 e 15.10 Dahlhaus, Carl. Foundations of Music History. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p. 10.11 Dahlhaus, obra citada, p. 12.12 Dahlhaus, obra citada, p. 17 e 18.