José eduardo agualusa e a lusofonia

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Opinião de Agualusa sobre a lusofonia

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José Eduardo Agualusa foi o escritor escolhido pela equipa para representar a Angola e a Lusofonia.

Escolhemos alguns dos seus textos, a opinião lúcida e objetiva patente em alguns dos seus textos.

Reflitamos sobre as suas palavras (umas mais longínquas outras mais próximas no tempo), sempre

pertinentes e atuais.1 Não esqueçamos que pertencermos à “lusofonia” é muito mais do que falarmos

a mesma língua: é a sua cultura que lhe é intrínseca, é a nossa luta, enquanto portugueses e orgulhosos na nossa língua e nessa mesma cultura que urge NUNCA ESQUECER…Afinal, como muito bem diz Pessoa “A minha pátria é a língua portuguesa”. A quem (não) interessa a lusofonia?

José Eduardo Agualusa

Na tomada de posse do novo Governo português2, José Sócrates3 reservou um curto

parágrafo, já no final do seu discurso, para assegurar que a lusofonia constituirá um

dos vértices do triângulo estratégico da política externa portuguesa, sendo os outros

dois a União Europeia e os Estados Unidos. Não explicou porquê. Creio, no entanto,

que vale a pena fazer a pergunta: para que serve aos portugueses a lusofonia? 1 Os textos transcritos têm supressões, sublinhados e itálicos da responsabilidade da equipa. 2 Realizou-se a 12 de Março de 2005 a cerimónia da entrada em funções do XVII Governo Constitucional português. 3 Primeiro-ministro português, desde esta data.

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Ainda antes – o que diabo é isso?

Finalmente, resta uma terceira questão a considerar: estarão os chamados

países lusófonos interessados na lusofonia?

Viajei bastante, ao longo dos últimos anos, pelos países e territórios onde se

fala a nossa língua. Verifiquei durante essas viagens que a palavra lusofonia não

significa exactamente a mesma coisa em todos esses lugares. Creio, inclusive,

que a maioria dos cidadãos lusófonos não sabe muito bem o que ela significa.

Mesmo no Brasil, cujos habitantes, na sua esmagadora maioria, falam português

como língua materna, inúmeras vezes me achei na situação de ter de explicar o

que se pode entender (ou o que eu entendo) por lusofonia. Já em Angola, em

Moçambique, e até em Goa, a palavra desperta frequentemente suspeitas ferozes.

Não significa isto que se deva abandonar o termo – muito menos o conceito – até

porque já não é provável que entretanto se consiga forjar outro melhor. Mas

talvez devêssemos começar por investir no esclarecimento e no debate.

A lusofonia é, simultaneamente, mais, e menos, do que o conjunto dos

países onde se fala português. É mais, porque inclui os imigrantes lusófonos,

cujo número, em países como os Estados Unidos, a França ou a África do Sul,

ultrapassa até, por exemplo, a população do arquipélago de São Tomé e

Príncipe. Inclui ainda fragmentos dispersos de populações de matriz

portuguesa, que, não obstante o isolamento, continuam a falar português

desde o berço, como acontece em Diu. É menos, porque em alguns dos países

de língua portuguesa, como em Timor ou em Moçambique, só uma reduzida

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percentagem da população se comunica em português. Importa ainda referir

que em todos os países de língua portuguesa, incluindo em Portugal, se falam

outras línguas nacionais.

(…) Obviamente não será fácil para Portugal manter uma identidade forte,

dentro de uma Europa alargada, se perder a ligação ao espaço lusófono. O

desafio para Portugal passa pois por construir, a partir da lusofonia, enquanto

memória histórica, um novo rosto para o futuro, e isto sem comprometer nem a

sua segurança nem a sua prosperidade.

A última questão talvez seja a mais difícil de responder. Creio que os maiores

inimigos de um projecto lusófono moderno não estão fora das fronteiras dos

nossos países. Vivem entre nós, e são milhões. Muitas das pessoas que em

Angola, em Moçambique ou em Timor, reagem com desconfiança, senão

mesmo com violência, à simples menção da palavra lusofonia, fazem-no por

receio de que a sua própria identidade linguística e cultural possa ser

ameaçada pela afirmação e crescimento de um tal projecto. Convém escutar e

dialogar com estas pessoas, ao invés de combatê-las. São receios fundados. A

língua portuguesa enraizou-se em Angola, após a independência, com uma

rapidez absolutamente extraordinária, devendo ser já o principal idioma materno

dos angolanos, mas isso fez-se de forma brutal e implicou resistências. As

correntes xenófobas, racistas e ruidosamente antiportuguesas que hoje prosperam

em Angola aproveitam-se, naturalmente, do rancor resultante deste fenómeno.

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No Brasil, país gigantesco, em larga medida ignorante de si mesmo, quanto

mais do que lhe é exterior, a indiferença costuma ser o principal sentimento

quando se fala de lusofonia. Alguma coisa, todavia, está a mudar. A nível

institucional o Brasil começou a desenhar, com o Governo de Lula, uma política

externa que passa pela sua afirmação no espaço da língua portuguesa. A nível

cultural assiste-se a um claro florescimento das relações entre o Brasil e Portugal,

por um lado, e o Brasil e África, por outro.

Infelizmente há ainda em Portugal quem veja no Brasil um concorrente no que

respeita à cooperação com os países africanos onde se fala a nossa língua, ao

invés de um parceiro. Por outro lado, a forma, digamos, pouco firme, como os

sucessivos governos portugueses, desde 1975, têm lidado com os regimes

africanos não democráticos também não contribuiu em nada para o

desenvolvimento nesses países de uma simpatia para com os ideais da

lusofonia.

(…)

Crónica saída na revista dominical do jornal português “Público”, do dia 20 de Março de

2005, com o título original "Deveria ser a base, José, e não um vértice".

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Discurso sobre o fulgor da língua José Eduardo Agualusa

O Velho Firmino rondava-nos vagamente por ali, sempre absorto, extraviado,

soprando no ar ensopado misteriosas ladainhas. Eu via-o descer as escadas

tropeçando em aliterações:

“E fria, fluente, frouxa claridade Flutua como as brumas de um letargo.”

(…) A Fernando Pessoa, esse, amava-o ainda com maior fervor. A ele e a toda a sua

legião de heterónimos. Rezava-os:

“Mas em torno à tarde se entorna

A atordoar o ar que arde

Que a eterna tarde já não torna!

E em tom de atoarda todo o alarde

Do adornado ardor transtorna

No ar de torpor da tarda tarde.”

Eu deixava-me afundar no ar de torpor da tarda tarde. (…)

Chegara ali como um náufrago, de mochila às costas, e logo me fascinara o

improvável alfarrabista, ou sebo, nome mais comum no Brasil, ocupando por inteiro

os dois andares de um fatigado casarão colonial. (…) No sebo do Velho Firmino

Carrapato, porém, a desordem era legítima e muito antiga. Três gerações de

Carrapatos haviam contribuído com o seu demorado labor para aquele esplêndido

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caos. Os livros multiplicavam-se, empilhados pelo chão, ou desalinhados por metros

e metros de incertas estantes em alumínio, sem outra lógica que não fosse a da sua

chegada ali. O Velho Firmino dispusera cinco ou seis redes amarradas às colunas,

junto às largas portadas abertas para a rua, de forma que era possível folhear os

livros com alguma comodidade, rezando para que a brisa da tarde fosse capaz de

abrandar o calor, sim, mas não forte o suficiente para transformar em irremediável

pó, pura poeira erudita, os papéis antigos.

Firmino gostava de mim. Estranhara ao princípio o meu sotaque – de onde vinha

eu? Angola?! –, olhara-me perplexo:

“Na África?! E lá falam português?...”

Disse-lhe que sim, que falávamos português, tal como muita gente em

Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor, e, é claro,

em Portugal. Não, isso não, contestou o velho, em Portugal não. Os portugueses já

mal falam português. Na verdade, acrescentou, nem sequer se pode dizer que

falem, isso carece de demonstração. Ele vira, meses atrás, um filme português e não

compreendera uma única palavra. Os actores emitiam uns vagos murmúrios,

mantendo a boca fechada, como se fossem ventríloquos, com a diferença de que os

bons ventríloquos falam pelo próprio umbigo, ou o alheio, falam pelos cotovelos,

falam inclusive pela boca fechada de um português, e sempre com relativa clareza.

Argumentei, já um pouco irritado, que isso tinha a ver com a deficiente qualidade

técnica do som dos filmes portugueses, bem como, é certo, com a má dicção de

alguns dos actores, e depois dei o braço a torcer, e concordei que sim, que os filmes

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portugueses deviam ser exibidos com legendas, não apenas no Brasil mas também

em Portugal. Estávamos nisto quando, sereno como um milagre, entrou na loja um

português. Era um homem franzino, e no entanto sólido e elegante, com o crânio

rapado, uma barbicha rala, bem desenhada, uns óculos de aros redondos, em prata,

que deviam ser herança de algum remoto antepassado.

“Boa tarde! Posso entrar?”

Também ele falava sem abrir a boca, mas parecia simpático, de forma que o

chamei, apresentei-lhe o alfarrabista, e em breves palavras dei-lhe conta da nossa

querela. Um pequeno clarão iluminou os óculos do português e ele sorriu. A questão

recordava-lhe uma tese que Agostinho da Silva defendia. Talvez a tese de Agostinho

nos parecesse um tanto bizarra e sem suporte científico – mas era poética. Disse

isto e ficou muito sério:

“A poesia acerta mais do que a ciência. Na natureza, por exemplo, a beleza é

utilitária, isto é, não existe no universo fulgor sem serventia. Se os cientistas

fossem à procura da beleza ao invés da funcionalidade chegariam mais depressa

à funcionalidade.”

Segundo Agostinho da Silva as línguas

afeiçoam-se às geografias que colonizam. Num

horizonte amplo, desafogado, o sotaque é mais

aberto, e numa paisagem fechada ele tende a fechar-se. Assim, no Brasil, em

Angola ou em Moçambique as pessoas falam a nossa língua abrindo mais as

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vogais, e nos Açores, na Madeira, em Portugal continental, mas também em Cabo

Verde, fecham-nas.

Foi assim, através da poesia, que o português conquistou o árduo coração de

Firmino Carrapato. Naquela tarde fossou tranquilamente pelos salões, sem pressa,

não hesitando em desfazer e refazer as pilhas poeirentas. Quando a luz já começava

a declinar chamou o velho. Firmino foi estudando com vagar os livros que o

português escolhera. Lia alto o título, via o estado da lombada, sopesava-os. Um

deles, um grosso volume ricamente encadernado, pareceu intrigá-lo:

“Discurso sobre o Fulgor da Língua? Foi um doutor daqui, do Maranhão, que

escreveu isso, mas nunca ninguém o leu. Tem a certeza que quer levar?”

O português assentiu com a cabeça. O velho murmurou qualquer coisa (pareceu-

me reconhecer um verso de Pessoa) e depois encolheu os ombros:

“Tá bom. Esse eu ofereço...”

Uma semana depois dei com o português sentado num bar de rastafáris. Estava

feliz como um rio. Antes que eu lhe perguntasse alguma coisa mostrou-me um

papel:

"Quem achar este bilhete queira por favor dirigir-se ao meu advogado, em São

Luís do Maranhão, com o exemplar do livro onde o encontrou”. Vinha depois o nome

e o endereço do advogado.

O português sorriu:

“Você não vai acreditar: herdei um casarão em Alcântara!”

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O bilhete fora escrito pelo autor do grosso volume que o Velho Firmino lhe

oferecera. O infeliz falecera anos atrás, desiludido com a desatenção do mundo, mas

não sem antes ter redigido um testamento em que doava o palacete da família a

quem quer que provasse ter comprado e lido o seu único livro. O português exultou:

“E sabe uma coisa? O livro é bom!”

in Catálogo de Sombras: Contos, Lisboa, Dom Quixote, 2003, pp. 51-58 : 13/03/2003

Acorda, Acordo, ou dorme para sempre

José Eduardo Agualusa

Participei [no dia 31 de Janeiro p. p.], na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, num debate sobre o Acordo Ortográfico — que o Brasil prometeu aplicar este ano, e Portugal também, tendo Portugal depois recuado de forma inexplicável.

Pela experiência que ganhei participando em debates públicos cheguei à conclusão de que as opiniões contrárias ao Acordo Ortográfico resultam:

1) da confusão entre ortografia, as regras da escrita, e linguagem. O Acordo Ortográfico tem por objectivo a existência de uma única ortografia no espaço da língua portuguesa, não pretende, o que aliás seria absurdo, unificar as diferentes variantes da nossa língua.

2) no caso de Portugal, de um enraizado sentimento imperial em relação à língua. No referido debate, na Casa Fernando Pessoa, este sentimento ficou explícito quando um espectador se levantou aos gritos: "A língua é nossa!" A História desmente-o. A língua portuguesa formou-se fora do espaço geográfico onde se situa Portugal — na Galiza. Por outro lado, a língua portuguesa tem sido sempre,

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ao longo dos séculos, uma criação colectiva de portugueses, africanos, brasileiros e povos asiáticos. Basta pensar na influência árabe. Se retirarmos todas as palavras de origem árabe e banto à língua portuguesa, deixaremos de a conseguir utilizar.

3) de uma série de objecções técnicas ao presente acordo. Muitas delas fazem sentido. Neste caso parece-me que o mais correcto seria corrigir essas deficiências e depois aplicar o acordo.

Angola tem mais a ganhar com a existência de uma ortografia única do que Portugal ou o Brasil. Não produzimos livros. Porém, necessitamos desesperadamente deles. Se queremos educar as nossas populações, e desenvolver o país, teremos de importar nos próximos anos muitos milhões de livros. Espero das nossas autoridades que criem rapidamente legislação tendente a facilitar a entrada de produtos culturais e, em particular, de livros. Importamos livros de Portugal e do Brasil. Isso significa que temos livros em duas ortografias no nosso território, facto que suscita natural confusão, sobretudo aos leitores recentemente alfabetizados — em particular jovens e crianças.

Acrescente-se que um dos maiores desafios que temos pela frente, nos próximos anos, é o de alfabetizar toda a nossa população. Ora, uma das virtudes do actual Acordo Ortográfico é precisamente o de facilitar a escrita.

Caso o Acordo Ortográfico não venha a ser aplicado — por resistência de Portugal —, entendo que Angola deveria optar pela ortografia brasileira. Somos um país independente. Não devemos nada a Portugal. O Brasil tem cento e oitenta milhões de habitantes, e produz muito mais títulos, e a preços mais baratos, do que Portugal. Assim sendo, parece-me óbvio que temos mais vantagem em importar livros do Brasil do que de Portugal.

No futuro, Portugal pode sempre unir-se à Galiza. Isto supondo que a Galiza não tenha entretanto começado a aplicar o Acordo Ortográfico, ou, no caso de o Acordo não vencer, começado a utilizar a ortografia brasileira.

http://www.ciberduvidas.com/index.php?page=articles&rid=1602