Jornalismo - Gênero Reportagem Como Memória

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    Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da ComunicaoXXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Rio de Janeiro, RJ 4 a !"!#$%&

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    O Jornalismo como memria um estudo a partir do gnero reportagemA Floresta das Parteiras1

    Jerusa de Oliveira MICHEL2

    Margareth de Oliveira Michel3

    Universidade de Federal de Pelotas, Pelotas, RSUniversidade Catlica de Pelotas, Pelotas, RS

    Resumo Este trabalho tem como objetivo analisar a participao do jornalismo na preservao damemria social. Para dar conta dessa proposta apresenta-se o tema na introduo, a seguir feita umareflexo terica acerca do Jornalismo e de sua relao com a construo da realidade especialmente pormeio do gnero reportagem, para em seguida, tratar da questo da memria. Por fim, apresenta-se oestudo de caso, a reportagem de Eliane Brum, A Floresta das Parteiras.

    Palavras-chave:Jornalismo; gnero reportagem; memria.

    Introduo

    Este trabalho aborda a participao do jornalismo, por meio de reportagens, e a

    preservao da memria social. O interesse pelo tema se deve ao fato de que ao atuar na rea de

    comunicao, e mais especificamente ao produzir reportagens jornalsticas ocorreu a percepo

    de que o profissional ao registrar fatos, contar histrias, de certa forma, contribui para a

    perpetuao daquilo que registrou.

    histrica a constatao de que existe no ser humano e nos grupos sociais o desejo demanter vivas as lembranas de acontecimentos marcantes e at mesmo de fatos cotidianos. Em

    funo disso, desde os tempos primitivos tcnicas de comunicao foram desenvolvidas com a

    finalidade de contribuir com a perpetuao do tempo e junto com tcnicas capazes de

    desenvolver a memria (desenhos/imagens gravadas nas paredes das cavernas, inscries em

    pedra, papiros, pergaminhos, etc) desenvolveu-se tambm a linguagem como instrumento de

    propagao das lembranas, representaes e histrias, que propiciou ao homem a possibilidade

    de construir e registrar sua trajetria. (SAPIR, 1971)

    Com o surgimento da escrita, as formas de armazenar informaes e rememorar os fatos

    mudaram, pois o homem letrado foi capaz de reconstruir de forma retrospectiva, o tempo da

    histria. Na perspectiva de Lvy (1993), a memria passou a apresentar-se disponvel,

    catalogada e comparvel, o saber deixa de ser apenas aquilo que til no dia-a-dia, aquilo que

    1Trabalho apresentado no GP GP Gneros Jornalsticos do XV Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicao, evento

    componente do XXXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao.2 Doutoranda e Mestre em Memria Social e Patrimnio Cultural (UFPEL- Universidade Federal de Pelotas), bacharel emJornalismo e Relaes Pblicas (UCPEL), Relaes Pblicas na UFPEL. [email protected] em Desenvolvimento Social (UCPEL Universidade Catlica de Pelotas) e Lingstica Aplicada (UCPEL), bacharelem Comunicao Social e em Psicologia, docente no curso de Comunicao [email protected].

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    constitui o sujeito enquanto ser humano, com identidade prpria, membro de uma comunidade,

    e tornou-se um objeto suscetvel de anlise e exame.

    Halbwacks (1990) chama a ateno para a maneira pela qual a escrita foi encarada pelo

    homem: maneira nica de se conservar lembranas porque "as palavras e os pensamentosmorrem, mas os escritos permanecem" (HALBWACHS, 1990, p. 80). A partir da importncia

    da narrativa escrita na construo da histria de uma sociedade, o valor do jornalismo impresso

    como documento histrico, desde o surgimento da imprensa, no sculo XVIII, no pode ser

    ignorado, mesclando-se com com o cotidiano dos grupos sociais. Desde ento tornou-se

    marcante a necessidade das pessoas de registrarem a vida cotidiana como uma das formas de

    manuteno da memria. Nesse contexto, a memria jornalstica marca "a entrada em cena da

    opinio pblica [...] que constri tambm a sua prpria histria" (LE GOFF, 1994, p. 461).O jornalismo transforma a realidade apreensvel em relato, tornando-se pea

    fundamental no registro de acontecimentos e isso lhe confere funo histrica na sociedade. Na

    viso de Tranquina (1999), o jornalismo entendido como uma prtica social, que estabelece

    relaes com o mundo material e com o mundo simblico dos indivduos, que acontecem

    enquanto histria e linguagem. Histria porque so relaes constitudas a partir das

    exterioridades do jornalismo, que se encontra inserido dentro do processo de produo,

    transformao e manuteno da sociedade. Linguagem porque so relaes constitudas

    tambm a partir do modo de quem faz.

    Essa mescla entre a produo jornalstica com a histria e a memria, num processo

    imbricado com a prtica e o cotidiano dos grupos sociais, lidando com o material concreto e

    simblico dos indivduos e grupos sociais, como j dito, o objeto de estudo desse trabalho e

    para a melhor compreenso da proposta sero abordados tpicos referentes ao jornalismo, com

    ateno especial ao gnero reportagem, finalizando com o estudo de caso da reportagem A

    floresta das parteiras da jornalista e escritora Eliane Brum.

    Sobre o Jornalismo e o Gnero Reportagem

    O campo jornalstico comeou a ganhar forma nas sociedades ocidentais, durante o sc.

    XIX, com o desenvolvimento do capitalismo e, ao mesmo tempo, de outros processos que

    incluem a industrializao, a educao em massa, o processo tecnolgico e a emergncia da

    imprensa. O jornalismo que conhecemos hoje tem suas razes no sculo XIX, e de acordo com

    Traquina (2005), foi durante este perodo que se verificou o desenvolvimento da imprensa. Foi

    ento que As trocas de informaes atingiram intensidade e amplitude antes difceis deimaginar. E a notcia, antes restrita e controlada pelo estado e pela Igreja, tornou-se bem de

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    consumo essencial (LAGE, 1999, p 8). Alm disso, a expanso dos jornais permitiu a criao

    de novos empregos e um nmero crescente de pessoas passou a dedicar-se a uma atividade.

    Este novo paradigma ser a luz que viu nascer valores que ainda hoje so identificados

    no jornalismo: as notcias, a procura da verdade, a independncia dos jornalistas, aexatido, e a noo do jornalismo como um servio ao pblico uma constelao deidias que do forma ao emergente plo ideolgico do campo jornalstico(TRAQUINA, 2005, p.34).

    Por essas dimenses, podemos destacar que o jornalismo um ato de transmitir

    conhecimento presente nos ltimos sculos, sendo que suas doutrinas, leis, e formas de

    relacionamentos estiveram presentes na formao de muitos povos e civilizaes e, em funo

    do empenho em noticiar os fatos, a histria da humanidade segue registrada, comprovando o

    valor que possui a cobertura de notcias e acontecimentos.Beltro e Quirino (1986), Dines (1996), Lage (1999), e Marques de Melo (2012), entre

    outros, entendem que o jornalismo tem como funo bsica informar a sociedade, averiguando

    de que forma os fatos acontecem, transmitindo-os para a populao, constituindo-se numa

    atividade que acompanha a sociedade h vrias geraes, proporcionando possibilidades de

    difuso de conhecimentos e de informaes numa escala antes inimaginvel.A sociedade se

    enriquece com a experincia do passado, o relato do presente e as especulaes e projetos do

    homem para o futuro. (BELTRO, QUIRINO, 1986, p. 22).O jornalismo tambm tem funo importante na formao da cultura, pois no

    possvel existir uma sociedade bem informada culturalmente se no receber informaes - h

    uma relao entre o jornalismo e a sociedade: atravs de notcias atuais e apuradas, h uma

    contribuio com a formao cultural da sociedade. Karam (1997) coloca que, a informao

    importante no apenas para que sejamos conhecedores daquilo que acontece nas distintas

    regies do mundo e nos posicionemos diante de culturas, comportamentos, poltica, economia,

    etc., mas tambm para que saibamos o que ocorre no mundo.A sociedade representa, em essncia, mais do que uma associao de indivduos;

    constitui uma comunidade de ao e comunicao, cuja existncia necessria tanto para o

    desenvolvimento da vida humana, quanto para o desenvolvimento de uma vida social com

    sentido.

    A sociedade se confunde em sua estrutura com a cultura, na medida em que representaum fenmeno gerado simbolicamente pela comunicao. A comunicao omecanismo de coordenao da interao social, torna possvel o consenso entre as

    pessoas. Em funo disso, no pode ser reduzida pura e simples transmisso deexperincias, consiste no processo pelo qual os sujeitos tm uma experincia comumda realidade, constroem seu mundo como coletividade (RDIGER, 1998, p. 37).

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    A sociedade deve ser vista como formada por comunidades simblicas de participao,

    que fornecem sentido s aes humanas e realidade social. O jornalismo fruto do ser

    humano e de suas necessidades. As notcias s existem, em funo das pessoas e de seus

    cotidianos; a maneira com a qual a tica e a moral conduzem suas atitudes, servem de balanapara julgar o que certo e errado. A sociedade composta por grupos de pessoas, nicas e

    distintas, no entanto, ao olhar de um jornalista suas histrias so mais do que relatos subjetivos,

    so notcias, so acontecimentos.

    Assim, o jornalismo pode ser entendido como tendo um papel socialmente legitimado

    para produzir construes da realidade que so publicamente relevantes (ALSINA, 1996, p.

    18), ou seja, ao jornalista delegada a competncia para recolher os acontecimentos e temas

    importantes e atribuir-lhes sentido, firmando, com a sociedade, um acordo de cavalheiros,contrato fiducirio social e historicamente definido (TRAQUINA, 1999, p. 168).

    Por outro lado, os processos de formao da identidade e do acervo social do

    conhecimento so processos que acontecem simultaneamente na sociedade; disso que a

    sociedade vive, e estar em sociedade significa participar da dialtica desse processo. Ser um ser

    social fazer parte desse processo de interiorizar, subjetivar e exteriorizar, objetivar, onde as

    estruturas sociais definem tipos de identidade. (BERGER e LUCKMANN, 1976) Mas preciso

    destacar que embora esse processo de construo social dependa dos contedos e da prtica

    discursiva do jornalismo, deve-se ficar atento para no incorrer no erro de imaginar essa

    construo sem a participao ativa do pblico, nas diversas interaes em que os indivduos

    tomam parte no dia-a-dia.

    Rudiger(1998) afirma que a comunicao, em especial o jornalismo, um mecanismo de

    interao social que torna possvel consensos entre as pessoas. Em funo disso, no pode ser

    reduzida pura e simples transmisso de experincias, consiste no processo pelo qual os

    sujeitos tm uma experincia comum da realidade, constroem seu mundo como coletividade

    (RDIGER, 1998, p. 37). Em decorrncia disto, principal funo do jornalismo revelar os

    fatos com a mxima neutralidade, portanto, os princpios da imparcialidade, interpretao e

    objetividade so fundamentais para se atingir esse objetivo.

    No jornalismo, os fatos so retratados por diversos olhares e atravs de diferentes gneros,

    em que o jornalista, ao transmitir o fato para o pblico interessado, o descreve de acordo como

    o viu e ouviu, procurando atingir, por meio da clareza e da escolha das palavras, a melhor

    estrutura morfolgica, sinttica, e principalmente, buscando a objetividade. Com relao aos

    gneros jornalsticos existem vrias classificaes. Aqui ser utilizada a classificao feita por

    Beltro, por atender a critrios funcionais, de acordo com as funes que os textos

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    desempenham em relao ao leitor, que seriam informar, explicar ou orientar. A partir dessas

    informaes, ele prope trs categorias bsicas: jornalismo informativo (notcia, reportagem),

    jornalismo interpretativo (reportagem em profundidade), e jornalismo opinativo (editorial,

    artigo, crnica, opinio ilustrada, opinio do leitor).O jornalismo interpretativo uma forma de fazer jornalstico extremamente rico na

    abordagem informativa, pois, ao inquirir sobre as causas e origens dos fatos, busca tambm a

    ligao entre elas e oferece a explicao da sua ocorrncia. (DINES, 2009, p. 110) A

    reportagem um gnero jornalstico privilegiado. Para Noblat (2004), notcia o relato mais

    curto de um fato. Reportagem o relato mais circunstanciado. A histria contada de acordo

    com a subjetividade de cada um, porm na hora de se escrever a histria, os valores bsicos

    como a veracidade e a objetividade dos fatos devero ser mantidos.Sodr e Ferrari (1986) identificam as principais caractersticas de uma reportagem:

    predominncia da forma narrativa, humanizao do relato, texto de natureza impressionista e

    objetividade dos fatos narrados. Os autores destacam que conforme o assunto ou o objeto em

    torno do qual gira a reportagem, alguma dessas caractersticas podero aparecer com maior

    destaque, mas sempre necessria a presena da forma narrativa.

    A reportagem , portanto, um gnero que precisa ser bem preparado, que necessita de um

    grande preparo, fsico e emocional, porque geralmente toma tempo na seleo das melhores

    fontes, leitura de documentos, conversa com os diferentes protagonistas e personagens

    envolvidos na histria, exigindo que seja captado o ambiente onde ocorrem ou ocorreram os

    acontecimentos.

    A questo da memria

    Memria um tema que est presente em vrias reas de estudo no mundo

    contemporneo e vista a partir de diferentes olhares. Do ponto de vista biolgico, memria

    refere-se a tudo que envolve os processos mentais e as muitas informaes no crebro, tais

    como idias, imagens e diferentes dados, tudo que por diferentes motivos se destaque entre os

    registros de acontecimentos passados. Sem memria no h vida. possvel, inclusive, dizer

    que a vida uma sequncia de memrias (IZQUIERDO, 2014).

    A memria importante para a vida dos grupos sociais porque o armazenamento e

    lembrana daquilo que adquirido por meio da experincia, dessa forma a aquisio de

    memrias aprendizado.(IZQUIERDO, 1989). O autor cita Marshall (1988) afirmando que h

    2.000 anos atrs, Aristteles j dizia que tudo que est no intelecto esteve antes nos sentidos, e

    considera que no h memria sem aprendizado nem aprendizado sem experincias.

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    Se por um lado reconhecida a importncia da existncia da memria relacionada

    vida, por outro, h quase um consenso de que a sociedade contempornea uma sociedade

    sem memria seja por conta dos aparatos tecnolgicos ou em funo das muitas e rpidas

    mudanas que ocorrem, gerando um movimento contnuo e fludo (BAUMAN, 2011) onde peloexcesso de informaes h uma necessidade cada vez maior de dispositivos de armazenamento

    de informaes (NORA, 2000).

    Na viso de muitos autores, ocorre no mundo contemporneo, uma falta de memria,

    fenmeno que aponta para vrias perspectivas: nossa sociedade comumente designada

    sociedade sem memria, pois devido s mudanas rpidas existe uma fluidez que exige

    movimento constante, com a utilizao das tecnologias contemporneas remete a uma

    constante atualizao de instrumentos e conhecimentos, entre outras. Em decorrncia dasmuitas atividades que cada pessoa desenvolve, h pouco ou nenhum tempo para o registro das

    suas experincias e histrias de vida.

    H um descompasso entre as geraes de jovens e velhos marcado pelas mudanas

    profundas, aceleradas e contnuas, as sociedades ocidentais descartam objetos e pessoas como

    nunca antes na histria, desenvolvendo um apetite insacivel por novidades. (BAUMAN,

    2011, p. 112). Mas o sociolgo, apesar de suas constataes coloca: A vida maior que a

    soma de seus momentos4. Esta afirmativa de Bauman remete importncia da manuteno dos

    relacionamentos entre pessoas e grupos sociais e das narrativas da histria e da manuteno de

    sua memria, pois embora reconhecendo as dificuldades da vida numa sociedade fragmentada,

    que estimula o individualismo e a fragilidade dos laos humanos, ele acredita na possibilidade

    de mudana.

    As tecnologias contemporneas remetem a uma constante mudana e atualizao de

    instrumentos e conhecimentos, que segundo Nora (2000), levam a uma necessidade constante

    de obter dispositivos para armazenar dados, memria. Para Nora, devido fluidez e rapidez da

    nossa experincia cotidiana, o que est mudando a relao que os indivduos mantm com o

    passado, experincia que precisa ser revista e revisitada, pois so as narrativas de memria que

    oferecem a possibilidade de um retorno ao passado.

    Os tericos concordam com a premissa de que tanto a histria oral quanto a memria

    so essenciais para a construo tanto das identidades pessoais quanto coletivas, especialmente

    na sociedade contempornea, na qual as identidades so to fluidas, fragmentadas,

    descentradas, ou lquidas, Bauman (2005) e Hall (2005). Em vista disso, deve ser levada em

    4ISTO Online | Entrevista http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/102755_VIVEMOS+TEMPOS+LIQUIDOSPublicada em 24. Set.10 - 21h50min. Acesso em 10/10/2013.

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    conta a posio de Hall quando ele coloca que nossa identidade, tenha ela a forma que tiver,

    uma histria sobre ns mesmos, ou em ltima anlise, uma narrativa do eu (HALL, 2005,

    p.12), por certo construda com a ajuda de nossa memria, por meio da nossa histria de vida.

    Fazendo um contraponto com a sociedade moderna, to lquida, as parteiras doAmap fazem parte de uma comunidade que traz consigo memrias e experincias de vida

    muitas alegres, muitas sofridas de uma das atividades mais tradicionais do Brasil, a que se

    ocupa de trazer os seres humanos ao mundo por meio do nascimento, uma atividade baseada na

    simplicidade, onde as prprias parteiras desenvolvem suas artes e seus instrumentos de trabalho

    criando uma cultura e uma identidade prpria.

    Para entender melhor esta questo, importante contextualizarmos o jornalismo e sua

    relao com a temtica, esclarecendo que no processo de construo das identidades sociais, nofluxo das interaes, o jornalismo como um todo ocupa um papel central. Pierre Nora fala do

    papel dos meios de comunicao de massa na produo dos acontecimentos histricos,

    afirmando que Imprensa, rdio, imagens no agem apenas como meios dos quais os

    acontecimentos seriam relativamente independentes, mas como a prpria condio de sua

    existncia.(Nora, 1988, p. 181). A partir da proposio do autor, que a memria constitui uma

    dimenso primordial na constituio das identidades, envolvendo prticas narrativas e

    administrao do real por meio das prticas discursivas, compreende-se que o jornalismo um

    elemento importante desse processo.

    O jornalismo, no arcabouo da mdia, uma atividade que produz diariamente

    registros utilizados como fonte de informao num sentido amplo e, especialmente, de

    marcao no sentido histrico. De acordo com Letcia Cantarela Matheus:

    As marcas do tempo so especialmente sensveis nos jornais,localizando o leitor num lugar na durao. O consumo dirio dasnarrativas jornalsticas fornece um forte parmetro espao-temporal.

    [...] A marcao do tempo foi se tornando funo essencial dos jornais,a ponto de lhes ser dada credibilidade para dat-lo (MATHEUS 2010,p.2-3).

    Identidade, memria e jornalismo so, a partir dessa perspectiva, concepes tomadas

    como possuidoras de uma relao direta, isso porque o jornalismo (como mdia ou segmento da

    comunicao de massa) mantm relaes claras com a Histria, caracterizando-se como

    ferramenta de compreenso e recuperao do passado. Em nenhuma outra poca, a produo de

    conhecimentos foi to intensa como nos dias de hoje registrando os fatos, o cotidiano, a prpriahistria e nem sua aplicao assumiu papel to importante na produo jornalstica, seja na

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    especificidade da notcia ou da reportagem enquanto um documento histrico, referncia

    necessria para a compreenso da relao que se estabelece entre a memria jornalstica e a

    memria social;

    [...] podemos constatar que a construo temporal envolvida no jornalismo no searticula tanto atualidade em si, mas sim, a um presente da ao social, comosublinha Franciscato (2003, p. 285). E isso significa assumir, de uma maneira ampla,que o presente uma construo social, de forma que os contedos compartilhadospelo jornalismo dizem respeito a uma experincia temporal discursiva relacionada aum sentido partilhado socialmente resultante da atuao de atores sociais noambiente - uma construo, por indivduos e instituies, de concepes e produtossimblicos ou de estruturas carregados de uma temporalidade do presente(FRANCISCATO, 2003, p. 285). [...] Esse presente social deve ser entendido,portanto, como um tempo de referncia da ao coletiva, de forma que o

    jornalismo, ao rodear a sociedade de um presente social contnuo, oferece um tipo decontedo que bastante novo para que nos impressione e bastante velho para que

    possamos conhec-lo e coment-lo (GOMIS apud FRANCISCATO, 2003, p. 336).

    A memria, em nosso tempo ou no tempo de nossos ancestrais, est entre os

    elementos formadores dos objetos culturais e sociais. atravs das narrativas do presente,

    observadas no jornalismo que muitas vezes podemos analisar a prtica de armazenar, preservar

    e reconstruir verses de passados comuns, indicados em padres e tendncias, em processos de

    composio e recuperao de informaes jornalsticas. A sociedade se v representada por

    meio da prtica jornalstica, que memria em ato, enraizada no concreto, no espao, na

    imagem, no objeto, presente vivido e transformado em notcia que amanh ser passado

    relatado, constantemente recuperado (PALACIOS, 2010).

    Nessa perspectiva, o Jornalismo tambm compreendido como importante Lugar de

    Memria (NORA, 1993; 1997), caracterizando-se por ser portador de uma realidade

    construda a partir dos acontecimentos, que apresentada como verdica e imparcial, ocupando

    espao destacado no arquivamento e na produo da memria contempornea (RIBEIRO, 1995;

    BARBOSA, 1996; ENNE, 2004).

    por meio do jornalismo que so registrados fatos, testemunhos e padres decomportamento, os quais podem caracterizar diferentes pocas e momentos da histria, desta

    forma, os jornalistas podem ser considerados como Agentes de Memria que muitas vezes

    no so reconhecidos por eles prprios nem pelos estudiosos da memria.Em seu artigo, Why

    memory's work on journalism does not reflect journalism's work on memory5, Zelizer explica

    que o trabalho jornalstico permite apresentar o passado, oferecendo ao mesmo tempo, pontos

    de comparao e oportunidades de fazer analogias, ao mesmo tempo em que d nova roupagem

    a eventos anteriores. Ao incluirem o passado nas suas narrativas, os jornalistas apresentam5 Traduo da autora: "Por que o trabalho de memria no jornalismo no reflete o trabalho de jornalismo namemria"

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    clararamente a importncia do passado na produo de sentido do presente, e por isso eles se

    tornaram Agentes de Memria(ZELIZER, 2008).

    Por intermdio da informao jornalstica ocorre o vnculo com o passado (no qual

    est presente a iluso de que o contedo est relacionado ao que era melhor, mais original) eque permite memria encontrar associaes que auxiliam na compreenso dos

    acontecimentos do presente em seu contexto, com suas interligaes, coerentes com os

    acontecimentos de ontem, e que tornam o jornalismo legtimo (BERKOWITZ, 2011).

    O jornalismo na sociedade contempornea apresenta-se como formador de opinio e

    de vises acerca do real. Muitos autores, entre os quais os citados anteriormente no texto, tem

    buscado mostrar como os meios de comunicao de massa, de forma especial o jornalismo,

    ocupam um lugar importante como formadores e mantenedores/armazenadores da memriasocial. Nesse caso, os jornais podem ser pensados, segundo Nora como construtores e/ou

    legitimadores de lugares de memria (RIBEIRO, 1996).

    Conforme Pollak (1992), a memria um elemento constituinte do sentimento de

    identidade, tanto individual como coletivo, construdo no conjunto pelas experincias e

    vivncias do indivduo e de seu grupo. Pode ser submetida a transformaes constantes,

    transmite a cultura local herdada e constituda por acontecimentos vividos socialmente. Nessa

    tica, so trs os elementos que servem de apoio memria: os acontecimentos vividos, as

    pessoas e os lugares. E, so estes os elementos responsveis pelo estabelecimento dos laos

    afetivos entre as pessoas. Para o autor, a memria seletiva, pois nem todos os fatos ficam

    registrados e os indivduos s tm recordaes dos momentos a que do importncia e que, por

    alguma razo, ficaram marcados subjetivamente. Ainda na perspectiva de Pollak (1992), os

    acontecimentos histricos so auxiliares na nossa memria; no desempenham outro papel,

    seno as divises do tempo assinaladas em relgio ou determinadas pelo calendrio. Um

    indivduo para lembrar seu passado tem que se remeter s lembranas dos outros, que se

    constituem em pontos de referncia, onde esto fixados pela sociedade. Desta forma, a memria

    coletiva envolve sentimentos de pertena e identidade, j que ela sempre dependente das

    interaes e dos grupos sociais.

    O Objeto, a reportagem A Floresta das Parteirase sua Anlise

    Este estudo, utiliza como metodologia o estudo de caso, e caracteriza-se pela sua

    interrelao com diferentes campos sociais e pela interdisciplinaridade ao abordar as questes

    relativas ao jornalismo/reportagem, identidade, e memria contidos na reportagem A Florestadas Parteiras, de Eliane Brum. Alm dos conceitos j abordados, em sua anlise levar

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    tambm em conta o pensamento relativo cultura do grupo no qual se encaixam as parteiras da

    floresta, na Amaznia.Voltamo-nos ento para a figura da parteira, me de pegao, na maioria

    dos casos, negra ou ndia e pobre. Eliane Brum, em As Parteiras da Floresta, vem nos falar

    exatamente destas mulheres. Ela as descreve como mulheres extremamente sbias sem que paraisso, seja preciso conhecer as letras do alfabeto. Seu texto inicia narrando uma parte da histria

    destas mulheres.

    Elas nasceram do ventre mido da Amaznia, no extremo norte do Brasil, no Estadoesquecido do noticirio chamado Amap. O pas no as escuta porque perdeu oouvido para os sons do conhecimento antigo, para a msica de suas cantigas. Muitasno conhecem as letras do alfabeto, mas so capazes de ler a mata, os rios e o cu.Emergiram dos confins de outras mulheres com o dom de pegar menino, adivinham avida que se oculta nas profundezas. (BRUM, 2008, p.19)

    Caco Barcelos, jornalista com larga experincia profissional, escreve a apresentao do

    livro de Eliane Brum O Olho da Rua. A posio dele acerca da escrita e dos mtodos de Brum

    importante pela viso que possui acerca da prtica profissional da jornalista: "A imprensa

    simboliza a liberdade, no s uma atividade profissional. O jornalista, o reprter tem o dever

    de contar os episdios na medida em que eles forem acontecendo", ele disse em entrevista

    Amilton Pinheiro , do Portal de Comunicao da UOL6. Por esta posiopessoal, ao se referir

    forma como a autora encara o jornalismo e o gnero reportagem , ele escreveu no prefcio:

    Reportagem, para Eliane, um ato de entrega, de envolvimento intenso entre quemfala e quem escuta, por meio de uma relao preciosa de confiana mtua entrereprter e personagem. [...] So prticas de conduta simples, mas simbolicamentecorajosas por se oporem, nestes tempos, corrente dominante nas redaes brasileiras,refns da arrogncia e de maniquesmos. [...] Muito jornalista experiente escorregaporque presume demais. E presume a partir de seus preconceitos, de sua viso demundo, de sua vida cotidiana numa realidade muito diferente... (BARCELOS, 2008,p. 10-11)

    Sobre Brum (2008) e sua metodologia de construo da reportagem Barcelos (2008)afirma:

    Os mtodos rigorosos de pesquisa da autora representam, para meu entusiasmo, o

    avesso da dinmica tecno-burocrtica predominante. Apurar por e-mail, por telefone,por intercmbios eletrnicos de informao, alm de excluir da pesquisa a maioria dapopulao, que no tem acesso a essas tecnologias, elimina o melhor da prtica

    jornalstica: ouvir de perto, ao vivo, de preferncia com os ps envolvidos na lama dosacontecimentos. A reportagem a arte da escuta. Para Eliane Brum, muito mais doouvir. [...] ela exercita com esmero o seu dom de ouvinte, que abrange por ofcio acaptao do tom e do ritmo das palavras e do silncio. o seu jeito de aproveitar aomximo o privilgio dos reprteres: o de ver primeiro, o de entrar nas casas, o de ouvirnarrativas de vidas, do parto vivncia da morte, para depois transmitir aos outros.(BARCELOS, 2008, p. 11)

    Sobre si mesma, Brum (2008, p.11), comenta Como reprter e como gente eu sempre

    achei que mais importante do que saber perguntar era saber ouvir. Eu no arranco nada. S me

    6http://portaldacomunicacao.uol.com.br/graficas-livros/69/artigo300344-1.asp.Acesso em 05/01/2015.

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    comprometo a ouvir, a escutar de verdade, sem preconceitos E continua, afirmando:

    Ser reprter algo profundo, definitivo, do que sou. Todo meu olhar sobre o mundo mediado por um amor desmedido pelo infinito absurdo da realidade. E pelacapacidade de cada pessoa de reinventar a si mesma, dar sentido ao que no temnenhum. [...] Em cada rua do mundo, seja de floresta ou de concreto, busco aquilo que

    faz tantos brasileiros andarem pelo mapa, s vezes descalos. Aquilo que move tantosde ns a ancorar no dia seguinte e um dia depois do outro. Meu ofcio encontrar oque torna a vida possvel apesar de tudo, a delicadeza na brutalidade do cotidiano, avida na morte. (BRUM, 2008, p.13-14)

    A Floresta das Parteiras a primeira das oito reportagens do livro O Olho da Rua, que

    Brum lanou em 2008, e que foi tambm publicada na revista poca. O texto fala que:

    Dorica ( direita) e sua irmAlexandrina ajeitam o beb no

    tero de Ivaneide Iapar.Fonte: BRUM (2008, p. 22)

    sabedoria que no se aprende, no se ensina nem mesmo se explica. Aconteceapenas. Esculpidas por sangue de mulher e gua de criana, suas mos aparamum pedao ignorado do Brasil. O grito ancestral ecoa do territrio empoleiradono cocuruto do mapa para lembrar ao pas que nascer natural. No depende deengenharia gentica ou operao cirrgica. Para as parteiras, que guardaram atradio graas ao isolamento geogrfico do bero, mais fcil compreender queum boto irrompa do igarap para fecundar donzelas que aceitar uma mulher quemarca dia e hora para arrancar o filho fora. (BRUM, 2008, p. 19)

    Assim, as mos dessas mulheres fazem do estado do Amap a regio com o maior nmero

    de partos normais no Brasil das cesarianas. Ofcio repassado entre geraes, onde muitas

    mulheres de uma mesma famlia abraam o ofcio de parteira, ou como elas mesmas se

    autodenominam, me de pegao, a maioria, segundo dados de organizaes que apoiam essas

    parteiras, est na regio norte e nordeste, onde os nveis de pobreza so maiores. A estimativa

    de que 60 mil mulheres atuem como parteiras no Brasil, concentrando-se no interior do pas,

    comunidades quilombolas e indgenas.

    Jovelina C. dos Santos, parteirade Ponta Grossa do Piriri.

    Fonte: BRUM (2008, p. 26)

    Encarapitadas em barcos ou tateando caminhos com os ps, a ndiaDorica, a cabocla Jovelina e a quilombola Rossilda so guias de umaviagem por mistrios antigos. Cruzam com Tereza e as parteirasindgenas do Oiapoque, onde j comeou o Brasil. Unem-se todas pela

    trama de nascimentos inscritos na palma da mo. "Pegar menino terpacincia", recita a caripuna Maria dos Santos Maciel, a Dorica, a maisvelha parteira do Amap. Aos 96 anos, mais de 2 mil ndios conheceramo mundo pelas suas mos pequenas, quase infantis. Dorica - av, me,madrinha - nem mesmo gostaria de possuir o "dom". "O dom assim,nasce com a gente. E no se pode dizer no", explica. "Parteira no temescolha, chamada nas horas mortas da noite para povoar o mundo."(BRUM, 2008, p.28)

    Para estas parteiras praticamente impossvel entender como uma mulher escolhe

    arrancar seu filho a fora, atravs de uma cesariana, com data e horrio agendado. Segundo

    dados do Ministrio da Sade, 24% dos 2,6 milhes de partos que acontecem no Brasil so

    cirrgicos quando apenas 5% a 10% destes partos necessitam de cirurgia. Nadando contra esta

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    corrente, o Amap traz quase 90% de sua populao ao mundo atravs das mos de

    aproximadamente 752 pegadoras de menino, sendo considerado o estado brasileiro recordista

    em partos normais. Transcrevo abaixo, algumas passagens do texto Parteiras da Floresta de

    Eliane Brum, onde ela descreve de forma quase potica a vida destas parteiras.

    Tereza Bordalo(de culos)e asparteiras do Oiapoque

    Fonte: BRUM (2008, p. 29)

    Negra, negrssima, como a terra do quilombo do Curia, nos arredores deMacap. Abre os braos gorduchos, musculosos de pegar menino,alinhavar vestidos e benzer doentes: "Curia de Dentro, Curia de Fora,fiz os partos no de aqui e no de l. Tudo aqui nasceu pela minha mo".Solene, Rossilda larga a vassoura para contar a sina, sacudindo-se nacadeira de balano ao som de cantiga para apressar parto embaraado:"Valei-me, Senhor, meu glorioso So Joo! So Joo foi ancorado l noRio de Jordo. Valha-me Deus, Deus de misericrdia! As cordas que meouvem havero de me levar".(BRUM, 2008, p. 28)

    Atravs destas falas possvel perceber claramente as condies destas mulheresSo pobres as parteiras. Muitas nem dentes tm. Outras s comem farinha de tapioca.Ajudar a humanidade a vir ao mundo nunca lhes rendeu nenhum tosto. O que eumais queria nesta minha vida era uma cama bonita, suspira Ceclia Forte, 66 anos,que nunca conheceu outro pouso para o corpo que no fosse uma rede de algodo.Quando a fome aperta o ventre, o corao capitula, ameaa parar. (BRUM, 2008, p.32)

    Medina (1986), Piza (2003), Marques de Melo (1994, 2003), entre outros, afirmam

    que os textos jornalsticos tm como funes informar, explicar ou orientar os leitores, e se

    enquadram em categorias bsicas, como a caracterizada pelo jornalismo informativo (nota,notcia, reportagem, e entrevista), ou a em que se enquadra o jornalismo interpretativo

    (reportagem em profundidade), caractersticas encontradas no texto da reportagem de Brum.

    Tambm encontramos na reportagem fontes iconogrficas, importantes na linguagem

    jornalsticas, pois na perspectiva de Kossoy (2005, p. 50), dentre as diferentes formas de

    informao transmitidas pela mdia, as imagens, em geral, se constituem num dos sustentculos

    da memria. Lima (2012) afirma que

    Quando se fala em memria, estamos trabalhando com pessoas,representaes sociais, tempos, espaos, significados, valores culturais,sentimentos individuais e coletivos. Essas memrias sejamindividualizadas e/ou coletivas constituem e organizam a histria

    juntamente com as prticas culturais de um determinado local,construindo suas identificaes conforme as relaes com o outro.(LIMA, 2012, p. 145)

    Ao descrever as parteiras, Brum perpassa por todos esses elementos, identificando nas

    parteiras e em seus relatos identidades e representaes sociais, cujos significados individuais e

    coletivos, no s organizam sua prtica cultural, mas esto presentes na memria do gupo. A

    memria, para Le Goff (2003), expressa de forma tanto individual quanto coletiva. Cada

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    sujeito revela uma subjetividade, manifestada tanto em alguma coisa representativa do passado,

    quanto a partir do momento que suas lembranas e experincias so compartilhadas pelos

    diferentes grupos sociais, quando a memria se torna coletiva. ento que a memria contribui

    para sejam apropriados saberes estabelecidos por experincias de grupos sociais, permitindoque se forme um elo entre memria e narrativa.

    Ao abordar o relato do passado em sua reportagem, Brum apresenta sua importncia

    na produo de sentido do presente por meio de testemunhos e padres de comportamento, e

    conforme o refencial terico ao caracterizar diferentes momentos da histria, pode ser

    considerada como agente de memria. Tambm so encontrados na reportagem de Brum os

    elementos que esto presentes no sentimento de identidade e que servem de apoio memria:

    os acontecimentos vividos, as pessoas e os lugares, e que envolvem sentimento de pertena memria coletiva em decorrncia das interaes e dos grupos sociais.

    Consideraes Finais

    Nestes trechos do texto da jornalista fica clara a origem destas mulheres quando as

    descreve como a ndia Dorica, a cabocla Jovelina e a quilombola Rossilda. Fala ainda das

    parteiras indgenas do Oiapoque. Seguindo atravs do texto de Brum, ela nos fornece a

    descrio da cabocla Jovelina, que aos 77 anos a parteira mais afamada de Ponta Grossa do

    Piriri no Amap e relata seu estado de pobreza ao relatar que a parteira mora em um casebre,

    fala tambm da negra, negrssima Rossilda, mulher quilombola, ressaltando a questo da sua

    cor, o que pode nos dar uma ideia de que sua vida jamais foi fcil, percebe-se aqui a construo

    da identidade e da cultura dessas mulheres, conforme os parmetros dos autores do referencial

    terico.

    Construir uma reportagem contar uma histria, ter o privilgio de conviver com

    pessoas que so diferentes de ns, de ver primeiro, de entrar em suas casas, de ouvir seus

    relatos, sua histria, e depois transmit-los aos outros. O texto em questo est repleto das falas

    destas mulheres, e atravs destas falas que a jornalista o constri, respeitando linguagem

    utilizada pelas parteiras. Ser jornalista muito mais do que simplesmente narrar os fatos de

    forma objetiva e neutra, apurando os fatos do dia para que sejam entregues a sociedade o mais

    rpido possvel. possvel que se faa um jornalismo onde o mais importante seja ouvir no

    aquilo que se quer perguntar, mas sim aquilo que a pessoa quer nos dizer.

    Olhando o jornalismo e a construo das reportagens a partir desta perspectiva, pode-se

    afirmar que o jornalismo como prtica pode ser aliado das cincias sociais, utilizando suas

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    tcnicas e metodologias para apurar os fatos e averiguar as verdades, registrando sua histria, e

    que pode sim se constituir de valioso instrumento de construo de histria e memria social.

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