JORNAL JÁ PARAÍBA: quebrando paradigmas no ciclo midiático ... · O preconceito linguístico,...

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Ano VI, n. 09 Setembro/2010 JORNAL JÁ PARAÍBA: quebrando paradigmas no ciclo midiático do preconceito linguístico Juliene Paiva de Araújo Osias 1 Resumo A ideologia do preconceito linguístico baseia-se numa norma linguística culta e de prestígio social, não levando em consideração que outras manifestações linguísticas sejam elas orais ou escritas podem ser eficientes na interação entre os falantes da língua. A questão é que esse preconceito extrapola o âmbito da linguagem, atuando também no âmbito social, por exemplo, sempre amparado e difundido pela Gramática Tradicional, pela prática pedagógica, pelos livros didáticos e pela mídia, transmissora e cristalizadora de regras do falar bem e do escrever bem. Neste contexto, entretanto, analisar-se-á (do ponto de vista de alguns aspectos gramaticais e de níveis de linguagem) uma mídia que rompe com essa tradicional manutenção da patrulha dos puristas em nome da norma gramatical: o Jornal Já Paraíba, tabloide do Sistema Correio de Comunicação que circula no estado da Paraíba. Palavras-chave: Preconceito linguístico. Mídia. Jornal Já Paraíba. 1 INTRODUÇÃO O preconceito linguístico é uma realidade na nossa sociedade, mas uma realidade implícita, silenciosa, embora autoritária e manipuladora. Essa postura sustenta-se por uma ideologia que considera a Gramática Tradicional como única forma aceitável de interação entre os falantes (por ser de prestígio), relegando os falares e outras performances da língua como manifestações toscas, inacabadas e, sobretudo, isentas de qualquer status. A imposição de uma norma linguística clássica e que reproduz regras e restrições tem a mídia como fomentadora dessas ideias, papel fundamental para a manutenção de um ciclo de controle de um saber linguístico oficial e unificado. A mídia, neste sentido, funciona como um dos Comandos Paragramaticais [CP] segundo Bagno (2008), e não apenas o meio pelo qual eles se difundem. O conceito dos CP será um dos alvos de apreciação posteriormente. 1 Mestre em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba, professora de Redação e Expressão Oral I e II e de Leitura e Produção de Texto do Iesp, professora do Colégio Pio XI. E-mail: [email protected]

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Ano VI, n. 09 – Setembro/2010

JORNAL JÁ PARAÍBA:

quebrando paradigmas no ciclo midiático do preconceito linguístico

Juliene Paiva de Araújo Osias1

Resumo

A ideologia do preconceito linguístico baseia-se numa norma linguística culta e de prestígio

social, não levando em consideração que outras manifestações linguísticas – sejam elas orais

ou escritas – podem ser eficientes na interação entre os falantes da língua. A questão é que

esse preconceito extrapola o âmbito da linguagem, atuando também no âmbito social, por

exemplo, sempre amparado e difundido pela Gramática Tradicional, pela prática pedagógica,

pelos livros didáticos e pela mídia, transmissora e cristalizadora de regras do falar bem e do

escrever bem. Neste contexto, entretanto, analisar-se-á (do ponto de vista de alguns aspectos

gramaticais e de níveis de linguagem) uma mídia que rompe com essa tradicional manutenção

da patrulha dos puristas em nome da norma gramatical: o Jornal Já Paraíba, tabloide do

Sistema Correio de Comunicação que circula no estado da Paraíba.

Palavras-chave: Preconceito linguístico. Mídia. Jornal Já Paraíba.

1 INTRODUÇÃO

O preconceito linguístico é uma realidade na nossa sociedade, mas uma realidade

implícita, silenciosa, embora autoritária e manipuladora.

Essa postura sustenta-se por uma ideologia que considera a Gramática Tradicional

como única forma aceitável de interação entre os falantes (por ser de prestígio), relegando os

falares e outras performances da língua como manifestações toscas, inacabadas e, sobretudo,

isentas de qualquer status.

A imposição de uma norma linguística clássica e que reproduz regras e restrições tem

a mídia como fomentadora dessas ideias, papel fundamental para a manutenção de um ciclo

de controle de um saber linguístico oficial e unificado.

A mídia, neste sentido, funciona como um dos Comandos Paragramaticais [CP]

segundo Bagno (2008), e não apenas o meio pelo qual eles se difundem. O conceito dos CP

será um dos alvos de apreciação posteriormente.

1 Mestre em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba, professora de Redação e Expressão Oral I e II e

de Leitura e Produção de Texto do Iesp, professora do Colégio Pio XI. E-mail: [email protected]

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O preconceito linguístico, suas causas e consequências e a atuação da mídia nesse

contexto serão discutidos, no entanto, para que se culmine numa análise de um periódico

posicionado na contramão do preconceito linguístico.

Trata-se de um jornal impresso que circula na Paraíba, o Já, tabloide diário do Sistema

Correio de Comunicação. Partir-se-á do entendimento de que o Jornal Já rompe com o papel

mantenedor do círculo midiático do preconceito linguístico, uma vez que não depende da

norma culta vigente e também porque assume que um periódico com tais características não

apenas pode existir, como também pode figurar na mídia de forma a conviver com outras

realidades linguísticas.

2 UMA LÍNGUA OFICIAL E DE PRESTÍGIO SOCIAL

Quando se fala em preconceito linguístico, inclui-se uma série de outros fatores:

inclusão para uns e exclusão para outros no aspecto social, e não apenas linguístico.

Temos, na nossa sociedade, uma ideologia gramatical norteada pela observância plena

(ou, pelo menos, pela exigência dessa observância) aos preceitos de uma norma linguística

oficial, obrigatória e, claro, excludente, a partir da qual todas as práticas linguísticas são

medidas, julgadas e aprovadas ou reprovadas.

Trata-se de uma forma de controle, que podemos compreender da seguinte forma:

Como sustentam Marx e Engels (1991 [1846]: 72), o domínio de uma classe social

sobre as demais não ocorre apenas no plano material pela detenção dos meios

econômicos de produção, do poder político, das fontes de matéria-prima, dos bens

fundiários etc. É preciso que esse domínio também se dê no plano espiritual, das

ideias. (BAGNO, 2008, p.26)

Vê-se, assim, a relação da língua com um contexto de superiorização não apenas no

plano linguístico. Observemos este ponto de vista:

A língua oficial está enredada com o Estado, tanto em sua gênese como em seus

usos sociais. É no processo de constituição do Estado que se criam as condições de

constituição de um mercado linguístico unificado e dominado pela língua oficial

[...]. (BOURDIEU, 1996, p. 32 apud BAGNO, 2008, p. 28)

Bagno (2008) aponta os gramáticos como os juristas dessa língua de Estado e os

professores como os agentes de imposição. E, assim, funciona uma dinâmica que considera

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todo e qualquer desvio às regras gramaticais como uma ameaça à unidade da língua de

Camões (enveredando até mesmo pela intolerância), tendo a oralidade, inclusive, que se

submeter à escrita, fazendo-se uma dicotomia muito clara do que é certo – escrito e dentro da

norma culta – e errado – oral, variante, espontâneo, funcional.

Dessa forma, o falante que não se enquadra nas regras da Gramática Normativa é

aquele que fala de modo errado e escreve de modo errado, ou seja, comunica-se mal, não

importando se há eficiência na comunicação verbal e na interação desse falante com outros.

Apenas a língua oficial, culta e homogênea

[...] vale para todos os membros da sociedade brasileira como língua legítima e

digna de respeito. Tudo o que escapa do domínio linguístico delimitado pelas

gramáticas normativas é “corruptela”, é “feio”, é “errado”. Não é “língua de gente”

ou, quando muito, é língua de seres humanos degradados, os párias da sociedade.

Por isso Napoleão Mendes de Almeida fala de “língua de cozinheiras” ou de

“infelizes caipiras”, Luiz Antonio Sacconi condena a “língua de jacu” ou de

“asnos”, enquanto Eduardo Martins a atribui a “índios”. (BAGNO, 2008, p. 31)

O aspecto mais contundente disso tudo é que a questão da língua em si extrapola para

outros âmbitos. Em outras palavras, quando se menospreza, deprecia e ridiculariza uma

variedade de língua, isso, na prática, equivale a menosprezar, depreciar e ridicularizar o

próprio usuário dessa variedade. E vale ressaltar que, do ponto de vista do preconceituoso, há

erros mais sérios e outros menos sérios. Há erros mais crassos e outros menos crassos. Isso

depende de quem os comete, de qual posição na sociedade esse falante da língua ocupa.

Ilustra-se esse argumento facilmente a partir da “escala de crassidade”:

Fonte: Bagno, 2009, p. 28.

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Podemos observar na escala acima que a medida de crassidade é inversamente

proporcional ao prestígio social: quanto mais prestígio social estiver em questão, menos erros

serão encontrados e policiados pelos membros da mesma classe privilegiada. E, é claro:

quanto menos prestígio social houver, mais erros serão encontrados, policiados e condenados

pelos puristas em geral.

Leite (2008) também analisa essa questão:

A metalinguagem intolerante (ou preconceituosa) camufla (ou denuncia) outros

preconceitos, de todas as ordens. Isso significa que o preconceito ou a intolerância

não são somente linguísticos, são também de outra ordem (social, política, religiosa,

racial etc.). (LEITE, 2008, p. 14)

Apenas para reiterar e concluir essa etapa do raciocínio, vale retomar aqui duas

situações ocorridas no cenário político brasileiro – ambas no âmbito linguístico – e

mencionadas por Leite (2008).

Em 1990, o termo “imexível” foi proferido por Rogério Magri (ex-sindicalista e então

ministro do Trabalho do governo Fernando Collor de Mello), referindo-se ao Plano Collor.

Houve, então, toda uma celeuma em torno desse neologismo, a ponto de a mídia explorar o

assunto à exaustão:

O novo adjetivo criado pelo então ministro suscitou quase uma polêmica linguística

porque muita gente se incomodou com a novidade, e os jornalistas se encarregaram

de colher opiniões de professores de português, de gramáticos e de linguistas sobre

a criação linguística. [...] Esse foi um fato muito comentado, motivo de muitas

anedotas e muitas críticas à ignorância do ministro. (LEITE, 2008, p. 47-48)

Por sua vez, Fernando Henrique Cardoso (sociólogo e então Presidente da República),

em 1993, afirmou que a inflação já não era mais “convivível”. Mas, desta vez, um ato

idêntico ao de Magri foi tratado de forma bem mais amena e sem grandes sobressaltos:

A repercussão não foi a mesma do imexível, talvez em razão do prestígio

(intelectual, social, político, econômico etc.) do segundo criador. A sociedade não

se mobilizou tanto para comentar o “convivível” [...]. O convivível mobilizou

minimamente os jornalistas. (LEITE, 2008, p. 48-49)

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Por outro lado, é interessante observar que, apesar de o neologismo criado por

Fernando Henrique Cardoso ter sido recebido com menos impacto e menos rejeição (ou talvez

nenhuma), não foi ele que se dicionarizou. A verdade é que o “imexível” de Magri foi

naturalmente aceito e incorporado pelo falante comum (no sentido de ser um falante

desvinculado de pré-requisitos sociais para ter sua variedade linguística valorizada), e isso é o

suficiente para o termo tornar-se um novo verbete no dicionário.

Podemos vê-lo na referência que faz Leite (2008) ao Dicionário Houaiss:

Imexível

Datação

c. 1990

Acepções

▪ adjetivo de dois gêneros em que não se pode mexer; inalterável

Ex.: um plano de governo i.

Etimologia

in- + mexível; ver misc(i)-

Antônimos

mexível

(HOUAISS apud LEITE, 2008, p. 49)

3 NORMA OU NORMAS?

Bagno (2008), citando Lucchesi (1994), mostra-nos um panorama conceitual de norma:

(1) norma padrão: “Reuniria as formas contidas e prescritas pelas gramáticas

normativas” ;

(2) norma culta: “Conteria as formas efetivamente depreendidas da fala dos

segmentos plenamente escolarizados, ou seja, dos falantes com curso superior

completo” ;

(3) norma vernácula: “Padrões linguísticos das classes mais baixas, não

escolarizadas, que se oporiam de forma nítida aos padrões das classes média e alta,

escolarizadas” . (LUCCHESI, 1994 apud BAGNO, 2008, p. 145)

A problemática que se observa a partir de conceitos como esses é que eles excluem a

realidade do continuum que existe, simplesmente, pelo fato de os falantes migrarem o tempo

todo de uma norma para outra, a depender do meio, do contexto, do gênero em uso, entre

outras condições.

E o agravante é que a norma culta (com predominância da escrita) – número (2) da

citação acima – sempre foi, tradicionalmente, relacionada ao saber linguístico correto e viável,

não se levando em consideração que há modalidades de fala, por exemplo, extremamente

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cultas, enquanto há também modalidades de escrita extremamente informais – em outras

palavras, não há, na prática da língua, essa fronteira tão bem definida que a norma culta quer

impor.

Bagno (2008) concorda com o conceito de número (1), norma padrão, mas questiona

os de norma culta e norma vernácula assim, no singular, optando por referir-se a elas como

normas cultas e normas vernáculas. Vejamos o porquê:

A dificuldade [...] começa quando o autor usa a palavra “norma” no singular para

referir-se às entidades descritas em (2) e (3). Uma proposta sociolinguística de

classificação não pode admitir a existência de uma norma culta e de uma norma

vernácula. [...] A heterogeneidade e variabilidade desses dois “subsistemas”

obrigaria a falar de normas cultas e normas vernáculas sempre no plural. (BAGNO,

2008, p. 145)

Esta última abordagem aponta para a prioridade que se dá neste artigo ao uso

democrático da língua e ao não patrulhamento linguístico diante dessa liberdade.

4 O PAPEL DA MÍDIA NO CICLO DO PRECONCEITO LINGUÍSTICO

4.1 TRÊS ELEMENTOS DE DIFUSÃO E SUSTENTAÇÃO

Basicamente, Bagno (2008) aponta três elementos que reproduzem a ideologia do

policiamento gramatiqueiro e, consequentemente, do preconceito linguístico e atuam como

sustentáculos dela (funcionando como Comandos Paragramaticais): a Gramática Tradicional,

a prática pedagógica tradicional e os livros didáticos.

Com esse aparato, gera-se um círculo vicioso:

[...] a Gramática Tradicional inspira a prática pedagógica convencional, que por sua

vez gera e nutre o mercado editorial do livro didático, cujos autores, fechando o

círculo, recorrem à GT como fonte máxima de concepção de língua. (BAGNO,

2008, p. 96)

Bagno (2008), no entanto, identifica a consistente atuação de um quarto elemento, a

mídia, entendida pelo autor como um dos Comandos Paragramaticais (CP).

4.2 OS COMANDOS PARAGRAMATICAIS (CP)

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Os comandos paragramaticais (CP) são, em sua forma “clássica”, livros destinados

ao público em geral (portanto, livros não-didáticos [...] ), escritos por

autoproclamados “defensores da língua portuguesa” que investem contra os “erros

comuns”, a “invasão de estrangeirismos”, a “ruína do idioma de Camões”, a

“pobreza da língua na atual geração” [...]. [...] Em sua forma mais “moderna”, os

CP servem-se tanto dos meios de comunicação mais difundidos ao longo do século

XX – jornal, revista, rádio, televisão, telefone – quanto das inovações mais recentes

no campo da produção e difusão de informações – o CD-ROM e a Internet.

(BAGNO, 2008, p. 97)

Os comandos paragramaticais funcionam como formadores de opinião e consistem

num meio pelo qual se eterniza a ideologia do preconceito linguístico. Professores de

português tornam-se conhecidos e respeitados, difundindo as regras ao pé da letra em colunas,

como a de Pasquale Cipro Neto, no Diário do Grande ABC, em “Ao pé da letra”, e Inculta e

Bela, na Folha de S. Paulo.

A patrulha gramatiqueira amplia seu domínio na mídia, que cumpre muito bem seu

papel de difundir a ideia de norma única aceitável, fomentando o preconceito e cristalizando

essa postura.

5 O JORNAL JÁ ROMPENDO COM O PAPEL DA MÍDIA

O Jornal Já Paraíba, em formato de tabloide, surgiu no Sistema Correio de

Comunicação no ano de 2009. Circula no Estado da Paraíba sendo vendido ao preço de

R$ 0,25 (vinte e cinco centavos).

Pelo valor, já se percebe que ele aponta para um público de menor poder aquisitivo,

pertencente a classes sociais menos favorecidas.

E não é apenas o valor que condiz com a possível classe social do leitor-alvo. A

própria linguagem – não comprometida com a norma linguística vinculada à classe social de

maior prestígio – é um indício claro da proposta do jornal: ser acessível a um público menos

favorecido, levando informações numa linguagem que faz parte do universo linguístico desse

público, ou seja, sem preciosismos gramaticais e sem dependência de uma norma culta

exigida, exigente, imposta e excludente.

É relevante valorizar tal proposta, uma vez que a mídia, de uma forma geral, utiliza-se

do espaço que tem para reiterar críticas ácidas aos usos linguísticos que não seguem à risca as

rígidas regras gramaticais. A existência de um jornal como o Já Paraíba mostra-nos que

modalidades linguísticas diversas podem coexistir, sem que isso represente a morte da língua

portuguesa.

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Esse tipo de mídia, felizmente, tem tido aumento de circulação, o que nos leva a

constatar que mais pessoas de classes menos favorecidas estão tendo acesso à leitura, à

informação, não importando se a linguagem utilizada neles é culta ou não, mas importando a

funcionalidade dessa leitura.

Em outros Estados do Brasil, jornais semelhantes têm conquistado espaço igual, como

podemos ver na citação abaixo2:

Os jornais populares se tornaram um fenômeno no Brasil. Entretanto, ninguém

esperava que a venda desses periódicos se tornasse tão explosiva, desbancando os

grandes veículos de comunicação que estão há anos no topo das tiragens. Esses

novos dados foram divulgados pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC),

revelando que o tabloide mineiro Super Notícia, de Belo Horizonte, alcançava o

primeiro lugar do ranking no mês de agosto, com aproximadamente 300 mil

exemplares diários vendidos, desbancando a Folha de S.Paulo [...].

Na lista dos dez maiores jornais do país, o Super Notícia não é o único que segue a

linha editorial popular. Outros títulos voltados, principalmente, às classes C e D

também obtiveram destaque, como o Extra, do Rio de Janeiro, que ficou à frente do

Estado de S.Paulo, e o Diário Gaúcho, do Rio Grande do Sul, que atingiu 152 mil

exemplares.

Preços baixos, muitas cores e imagens, linguagem curta e objetiva e excesso de

publicidade são imprescindíveis para o sucesso das publicações, é o que dizem os

especialistas. [...]

É interessante observar essa postura quando há colunistas de jornais brasileiros que se

comportam como fiscais do bom português (sob o ponto de vista unicamente da patrulha

gramatiqueira, é claro). É o que podemos observar no comentário de Dora Kramer3, em sua

coluna no jornal O Estado de S. Paulo, citado por Leite (2008):

Há de haver uma explicação para o empenho do governo em geral e do presidente

Luiz Inácio da Silva em particular na consolidação do pensamento banal, da palavra

tosca e do ato irrelevante como valores representativos do caráter nacional.

Seria de se esperar que, uma vez eleito, Lula fizesse um esforço – aproveitando as

condições objetivas oferecidas pelo cargo – para superar suas deficiências de

formação e tornar-se de fato um exemplo de ascensão social, política, educacional,

cultural, e sobretudo pessoal.

A conjugação de argumentos irrelevantes – [...] –, raciocínios triviais – [...]–, com

um português ofensivo à nacionalidade – [...] – não combina com os atributos até

congênitos de alguém que foi capaz de chegar à Presidência da República. [...]

Considerando que o presidente sabe falar normalmente (sem preciosismos, mas no

limite do linguajar aceitável) quando quer, qual a necessidade de discursar aos

carteiros agredindo o português [...]? (LEITE, 2008, p. 59-60)

2 DIAS, Marina. Jornais populares explodem em vendas; São Paulo está fora da rota. In: Portal Imprensa, 28 de

novembro de 2007. Disponível em <http://www.direitoacomunicacao.org.br> Acesso em 17 de julho de 2010. 3 KRAMER, Dora. Em nome da lei do pior esforço. In: O Estado de S. Paulo, 26 jan. 2005.

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No artigo “O linguajar de Lula”4, de Gilberto de Mello Kujawski, temos uma postura

semelhante à de Dora Kramer:

Então, o que faz Lula? Ele [...] se limita a maltratar a língua, engolindo os esses,

violentando a sintaxe, forçando erros de concordância, como se isso bastasse para

„falar gostoso o português do Brasil‟. Em suma, Lula forja um arremedo de língua

popular, distante tanto dos padrões da linguagem formal, como dos usos legítimos

da fala popular [...]. O discurso de Lula degenera num Frankenstein assustador: „A

gente tem que ser gentis‟, soltou outro dia.

Fica evidente o tom de reprovação às modalidades populares da língua. Usam-se

termos como “linguajar aceitável”, “degenera”, “agredindo o português”, “maltratar a língua”,

“violentando a sintaxe”, “português ofensivo à nacionalidade”, entre outros. Ainda por cima,

um dos textos refere-se aos “padrões da linguagem formal” – como se houvesse apenas um

padrão absoluto, quando, na prática, a língua tem uma miríade de possibilidades e de

realizações, e não um único padrão.

A mídia é incansável na sua atuação de reprimir os falares que fujam da norma culta

usada por uma elite autoritária (e cobrada por ela), usando de ironias e de comentários

impiedosos, como vemos na citação a seguir5:

O presidente Lula às vezes é glorificado, às vezes ridicularizado por sua linguagem

metafórica nem sempre afinada. A glorificação é cada vez menor, convém admitir.

Mas ele não gosta apenas de metáforas. Seu linguajar colorido, quando improvisado

e solto, vem ornado por várias figuras de palavras, ou tropos, como comparações,

catacreses, metonímias e outras. Num desses sobrevoos, concitou os patrícios a

tirarem "o traseiro da cadeira" para procurar juros mais baixos em outros bancos,

que não os em que são presentemente enforcados. O rompante indica que não tem

nenhuma intimidade com bancos, não precisa de crédito nem se preocupa

pessoalmente com bufunfa. Beleza.Traseiro, já se sabe, significa "situado detrás,

que fica na parte posterior", lembra o Dicionário Houaiss, que classifica o termo

como "de uso informal", quando relacionado com seres humanos. No mínimo. No

máximo, chulo, bem chulo, sinônimo de palavra monossilábica e deselegante.

Este artigo não tem o direcionamento de explorar especificamente a performance

linguística do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e sim a do Jornal Já Paraíba, mas

consideramos importante ilustrar nossos argumentos com tais comentários sobre Lula, uma

vez que são sistemáticos, sintomáticos de um preconceito linguístico voraz e ocorrem na

4 KUJAWSKI, Gilberto de Mello. O linguajar de Lula. In: O Estado de S. Paulo, 18 de fev. 2005. 5 “Lula e suas metáforas – Presidente foge do compromisso com as palavras ao abusar das figuras de linguagem

em seus discursos” Disponível em <http://revistalingua.uol.com.br/textos> Acesso em 18 de julho de 2010.

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mídia impressa, online e televisiva, demonstrando perfeitamente qual é o papel que a mídia

desempenha quando o assunto é língua.

O Jornal Já Paraíba foge desse padrão e aponta para uma prioridade: a eficiência da

comunicação verbal frente ao público-alvo em questão, e não a observância rígida a um

padrão linguístico pouco (ou nada) frequente no contexto social desse público.

Vejamos a análise de algumas notícias ou apenas manchetes desse jornal.

Fonte: Jornal Já Paraíba - 22 de maio de 2010 - Ano II, nº 11, página 4

A manchete optou pela forma “papa figo”, como é conhecida no folclore brasileiro, em

detrimento da forma composta “papa-fígado”, de acordo com a norma culta. Também soa

jocoso o modo de abordar a questão ao se usar “engaiolado”, numa alusão à gaiola do

passarinho oferecido à criança e a “gaiola” onde o estudante se encontra desde a descoberta da

violência contra a criança em questão, ao invés de termos como encarcerado ou mesmo preso.

Outro aspecto gramatical que merece destaque é o uso da vírgula – ou a falta dela em

alguns casos.

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A Gramática Tradicional estabelece a presença de vírgula após “dentre eles” e a

ausência dela nos trechos destacados em “[...] a Polícia Militar prendeu o estudante e o

encaminhou para o Conselho Tutelar da cidade.” e “O estudante está preso na Cadeia Pública

de Sousa e está à disposição da Justiça.”.

Fonte: Jornal Já Paraíba - 28 de maio de 2010 - Ano II, nº 16, página 2

A manchete dá o tom: “tá” e “pro” são situações impossíveis para a Gramática

Tradicional, além da expressão “não tá nem aí” – típica da modalidade oral.

Fonte: Jornal Já Paraíba - 28 de maio de 2010 - Ano II, nº 16, página 8

Além da nada ortodoxa expressão “amasso” (sob o ponto de vista dos puristas),

observa-se a não-observância à concordância verbal no trecho “[...] as imagens só vai

começar a circular [...]”.

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Fonte: Jornal Já Paraíba - 28 de maio de 2010 - Ano II, nº 16, página 10

A não-observância, desta vez, foi quanto à regência verbal. Em “[...] provou ter um

bom conhecimento ao responder as perguntas [...]”, o verbo “responder” não teve a sua

regência obedecida (pois é um verbo transitivo indireto, o que exigiria a ocorrência de crase),

se analisarmos segundo as exigências gramaticais.

Fonte: Jornal Já Paraíba – 10 de julho de 2010 - Ano II, nº 53, página 12

O termo “prá”, típico da modalidade oral e muito comum na performance linguística

do brasileiro, foi usado nesta manchete em contraposição ao “para”, termo aceito pelos

parâmetros gramaticais aceitáveis.

A seguir, algumas manchetes que se utilizam igualmente de gírias, sem que se trate de

um jornal voltado a um segmento específico, como aqueles voltados ao público adolescente,

por exemplo, em que é muito comum esse tipo de linguagem.

Fonte: Jornal Já Paraíba – 12 de julho de 2010 - Ano II, nº 54, página 3

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Fonte: Jornal Já Paraíba – 12 de julho de 2010 - Ano II, nº 54, página 4

Fonte: Jornal Já Paraíba – 14 de julho de 2010 - Ano II, nº 56, página 4

Fonte: Jornal Já Paraíba – 12 de julho de 2010 - Ano II, nº 54, página 6

Fonte: Jornal Já Paraíba – 14 de julho de 2010 - Ano II, nº 56, página 3

Neste caso abaixo, o verbo “levar”, conjugado na 2ª pessoa do singular (tu), foi aqui

registrado como “leva”, ao invés do “levas”, recomendado pela Gramática Tradicional. A

opção também do uso de “leva bala”, ao invés de “tu serás alvejado” ou “tu serás baleado”

leva-nos a retificar que o registro da língua que é feito nesse jornal não tem compromisso com

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as imposições gramaticais do “bem falar” e do “bem escrever”, como os puristas

compreendem.

Fonte: Jornal Já Paraíba - 14 de julho de 2010 - Ano II, nº 56, página 1

Fonte: Jornal Já Paraíba – 17 de julho de 2010 - Ano II, nº 59, página 7

O termo “pêia” é um registro regional absolutamente fora dos padrões gramaticais.

Fonte: Jornal Já Paraíba – 16 de julho de 2010 - Ano II, nº 58, página 1

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Fonte: Jornal Já Paraíba – 16 de julho de 2010 - Ano II, nº 58, página 4

“Busão” é um termo criativo, formado por derivação sufixal, em que se acrescentou o

sufixo “ão” ao termo da língua inglesa “bus” – outra gíria muito difundida. Além desse termo,

vê-se a opção pelos termos “despenca”, “espremido” e “chega pra lá” – igualmente populares,

descomprometidos com a performance formal.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um dos argumentos mais conhecidos para uma manutenção de uma exigência a uma

obediência rígida às regras gramaticais deve-se a um temor que os puristas revelam de que a

língua portuguesa morra ou se descaracterize irreversivelmente diante do mau uso (“mau uso”

na análise preconceituosa deles), dos maus tratos, dos desvios às regras, enfim, do desrespeito,

como se costuma pensar.

A questão é que a língua não morre, mas também não fica imóvel nem presa a uma

série de imposições gramaticais clássicas. A norma culta é uma referência, não deixa de ser,

nem é nossa intenção insinuar que não seja. Mas não é a única referência. Outras modalidades

existem, e isso é inegável. O povo tem performances várias no uso que faz da língua, isso não

pode ser simplesmente ignorado – e a língua está sempre se reinventando. A Gramática

Tradicional não está rigidamente presente na realidade linguística de cada falante – não há

como ocultar isso. Não se pode usar o argumento da obrigatoriedade da obediência à norma

culta como uma das condições para a aceitação social. Menos aceitável ainda é a

sedimentação do preconceito linguístico, realidade de segregação no tocante ao que cada um

tem de mais identitário: sua língua.

E a mídia é uma das responsáveis por essa sedimentação, muitas vezes, sistematizando

um comportamento de verdadeira patrulha em nome do “bom” uso da língua.

O Jornal Já Paraíba, periódico de circulação no Estado da Paraíba, é um exemplo

contrário a essa patrulha e uma confirmação de que há público para todas as modalidades da

Ano VI, n. 09 – Setembro/2010

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língua – oral formal, oral informal, escrita com influência de oralidade, escrita formal, escrita

com presença de gírias, oral com presença de gírias, entre outras possibilidades. Ele chega ao

público usando uma linguagem condizente com a condição social, com a classe social e com a

realidade linguística do leitor – um leitor que escolhe essa leitura porque se identifica com ela.

E é nessa identificação que está a funcionalidade dessa leitura, a eficiência comunicativa – é

isso que interessa.

Nenhuma modalidade da língua está morrendo ou sendo desrespeitada – apenas há

modalidades diversas e geradas por diversos contextos e situações, e todas podem coexistir.

Sem preconceito, sem restrições e levando-se em consideração que elas existem e não podem,

simplesmente, ser ignoradas, ou condenadas, ou relegadas à condição de chulas ou grosseiras,

quando são, na verdade, formas eficientes de comunicação.

REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. A norma oculta – língua & poder na sociedade brasileira. São Paulo:

Parábola, 2009.

______. Dramática da língua portuguesa – tradição gramatical, mídia & exclusão social.

São Paulo: Edições Loyola, 2008.

DIAS, Marina. Jornais populares explodem em vendas; São Paulo está fora da rota. In:

Portal Imprensa, 28 de novembro de 2007. Disponível em:

<http://www.direitoacomunicacao.org.br> Acesso em 17 de julho de 2010.

LEITE, Marli Quadros. Preconceito e intolerância na linguagem. São Paulo: Contexto,

2008.

LULA e suas metáforas – Presidente foge do compromisso com as palavras ao abusar das

figuras de linguagem em seus discursos. Disponível em:

<http://revistalingua.uol.com.br/textos> Acesso em 18 de julho de 2010.

KUJAWSKI, Gilberto de Mello. O linguajar de Lula. In: O Estado de S. Paulo, 18 de fev.

2005. Disponível em: <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos> Acesso em 17 de

julho de 2010.

SCHERRE, Maria Marta Pereira. Doa-se lindos filhotes de poodle – variação linguística,

mídia e preconceito. São Paulo: Parábola, 2008.