JORNAL DA UNICAMP Campinas, 25 a 31 de agosto de 2008 … · suspeita de ingenuidade? – nem a...

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4 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 25 a 31 de agosto de 2008 Três momentos críticos Um dos pontos mais interessantes, na fortuna crítica de Dom Casmurro, é o modo de descrever as personagens prin- cipais da história contada por Bento San- tiago: ele mesmo e sua mulher, Capitu. Nos primeiros 60 anos de leitura do romance, a análise dos caracteres foi feita a partir do ponto de vista que conduzia a narrativa, isto é, a partir do ponto de vis- ta de Bento. Capitu, então, no julgamento de críticos importantes, era pérfida, men- tirosa por necessidade orgânica, lasciva, amoral. Já Bento tinha dupla caracteriza- ção: velho, era desiludido e amargurado; rapaz, tinha sido um tímido, de alma cân- dida, ingênuo e piedoso. A traição da mu- lher com o melhor amigo era a explica- ção da transformação de um em outro. Um segundo momento crítico se abre em 1960, com a publicação do livro de Helen Caldwell, O Otelo brasileiro de Machado de Assis. Opera-se, com esse trabalho, uma radical inversão da pers- pectiva. Bento, acusado de mover um processo contra Capitu, passa a ser ele mesmo réu de um processo movido pela crítica. E Capitu, da mesma forma que antes fora demonizada, a partir do ponto de vista de Bento, é agora erguida a mo- delo de esposa dedicada, cuja falha única foi não conseguir vencer o ciúme doentio do marido. De modo que à idealização de Bentinho segue-se a idealização de Capitu: primeiro, como esposa inocente e dedicada; logo a seguir, com Gledson e Roberto Schwarz, como representante ou alegoria das Luzes, incapazes de triunfar na sociedade patriarcal brasileira. Finalmente, um terceiro momento crítico começa quando a análise psico- lógica dos caracteres ou a leitura alegó- rica das personagens principais deixa de ser o foco da atenção. O olhar de fora Os estrangeiros têm tido papel mui- to relevante na crítica machadiana. Helen Caldwell é o caso mais espe- tacular, pois foi a partir da sua leitura de Dom Casmurro que se transformou am- plamente a maneira de ler a obra roma- nesca inteira de Machado. Mas outros também ocupam lugares igualmente importantes na tradição críti- ca. Um deles é Jean-Michel Massa, autor de trabalhos de base, cuja relevância seria ocioso reafirmar. Outro é John Gledson. Somente quando se lê, em ordem cro- nológica e de forma sistemática, a fortu- na crítica de Machado de Assis é que se percebe o lugar real do trabalho de Gledson, e como ele foi central para o estabelecimento da segunda fase da lei- tura de Machado no Brasil. Quando ele publicou o seu primeiro livro sobre Ma- chado, o único trabalho inovador que ti- nha surgido era Ao vencedor as batatas, de Roberto Schwarz. Mas a inovação desse livro, que focava apenas a primei- ra fase de Machado, residia em identifi- car, como cerne dos primeiros romances machadianos, o paternalismo e suas ra- tra o leitor e reforça a genialidade e a modernidade do autor. O texto machadiano resulta, assim, uma armadilha para os contemporâneos e uma charada oferecida à decifração dos pósteros. A postulação de uma intenção certa anda de mãos dadas com a de uma leitu- ra correta – a que corresponde a essa in- tenção. Para usar um título de romance, são a mão e a luva. E não são desprezí- veis nem a sua sedução – afinal, quem não quereria estar do lado correto, e quem não ficaria aliviado ao afastar qualquer suspeita de ingenuidade? – nem a coer- ção autoritária de definir a única manei- ra conseqüente de entender o texto. Poder de resistência Um efeito da crítica baseada na iden- tificação da intenção do autor ou na de- cifração da sua charada ideológica é di- minuir o interesse da leitura. De fato, se o texto se constituísse basicamente como armadilha e ela já es- tivesse desarmada, por que lê-lo? Ape- nas para constatar a perícia do disfarce, da linguagem cifrada? Ou a habilidade do decifrador? À distância de um século, que nos restaria senão contemplar, com interes- se mais próximo do museológico, essa espécie de Pedra da Roseta literária? Os que defendem essa forma de lei- tura provavelmente concordam com a crítica que Machado fez ao romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós. Na- quele texto, que me parece desfocado e ainda mal lido, Machado criticava o ro- mance por julgar que nele as persona- gens eram títeres a serviço da demons- tração de uma tese. Mas ao insistirem na presença, no texto do romance de Ma- chado, de índices da intenção do autor na orientação da correta interpretação das ações e palavras dos narradores-autores dos romances da última fase, não estari- am também esses críticos promovendo um caminho que, nos termos do próprio Machado, redundaria num defeito artís- tico? Em perda da coerência ficcional? Essa maneira de ler termina por em- pobrecer o texto, por secá-lo até reduzi- lo a um conjunto de diagramas críticos, por meio dos quais Machado nos desti- naria a sua real visão das questões can- dentes do tempo e procederia à crítica da ideologia paternalista. Ora, esse pressuposto tem como pro- blema adicional lançar a suspeita de co- nivência sobre qualquer identificação do leitor com as personagens ou com a voz narrativa dos romances da chamada “se- gunda fase” de Machado. Posso tomar como exemplo o roman- ce que tenho estudado com mais vagar, o Dom Casmurro. E que é central, nos debates sobre a forma moderna de ler o Machado. Bem, basta ler a moderna for- tuna crítica na vertente intencionalista para constatar que qualquer adesão emo- cional ao drama de Bento tem de arcar com o peso da acusação dirigida aos pri- meiros leitores: logro operado por meio da cumplicidade com o ponto de vista da elite retrógrada do Brasil oitocentista. E tão sensível é esse peso, que o pró- prio John Gledson terminou por sentir- se obrigado a tematizá-lo. E o fez no mesmo texto no qual defende a tese do logro do leitor e da existência de uma leitura correta, de acordo com a inten- ção de Machado. Eis aqui: “Embora a descrição de Roberto Schwarz do tipo de elite que ele repre- senta seja exata, Bento é um persona- gem com quem muitos leitores, e não só por causa de um compromisso ideológi- co subconsciente com a elite brasileira (só posso citar a mim mesmo como evi- dência), se identificarão, em um ou em vários níveis”. (Por um novo Machado de Assis, 2006 – texto de 1999) De fato, esse é um movimento ne- cessário para libertar a obra da instru- mentalização excessiva a que foi subme- tida no quadro da leitura ideológica nacionalizante. Sendo otimista, creio que o fato de ele se impor mesmo a quem julga que essa forma de leitura seja a mais correta é um testemunho do poder de resistência do literário. Recuo tático Também a crítica de Machado ao ro- mance de Eça tem sido objeto de uma apreciação de viés nacionalista, que me parece simplista e nociva ao melhor en- tendimento do momento e da inflexão na carreira literária do escritor brasileiro. Quando O Primo Basílio chegou ao Brasil, Machado tinha acabado de publi- car em volume o seu romance Iaiá Garcia. O romance de Eça fez furor. Não só pelo caráter escandaloso, que veio da forma como tratava as relações sexuais dos protagonistas, mas também pela no- vidade da linguagem. Machado de Assis publicou uma crítica dura em O Cruzei- ro, um dos periódicos nos quais colabo- rava. Na seqüência, desencadeou-se a polêmica que obrigou Machado a escre- ver uma segunda crítica, na qual respon- dia aos seus opositores. Mas esse segun- do texto não encerrou a polêmica. Ali- mentou-a. E a campanha pró-realismo no Brasil foi longa e divertida, embora bas- tante agressiva em relação a Machado. Ten- tei dar conta dela num artigo que foi republicado em Estudos de literatura bra- sileira e portuguesa, no ano passado, mos- cionalizações. O impacto do livro, além do controvertido ensaio inicial sobre “as idéias fora do lugar”, residia em fazer daquelas primeiras obras objetos de in- teresse como ensaios de apreensão críti- ca da especificidade brasileira. Mas bas- ta ver como termina aquele livro de 1977 e como começa a sua continuação, publicada em 1990, Um mestre na periferia do capi- talismo (mesmo ano em que publica o seu primeiro trabalho importante sobre Dom Casmurro), para reconhecer o lugar e o papel transformador do livro de Gledson, Machado de Assis: Impostura e Realis- mo, publicado em inglês já em 1984. Finalmente, é preciso registrar que o passo adiante, desta vez já como indica- ção crítica dos limites da perspectiva aber- ta por Caldwell e seguida por Gledson e Schwarz, é dado por outro estrangeiro, Abel Barros Baptista. Seus dois livros sobre Machado, recentemente lançados no Bra- sil pela Editora da Unicamp, ainda estão à espera de uma resposta crítica à altura, seja por conta dos autores cujas teses des- monta ou contesta, seja por conta dos jo- vens leitores de Machado de Assis. Charada e armadilha Uma questão importante, para uma vertente da fortuna crítica do autor, é a da destinação do texto do romance machadiano. É um lugar-comum hoje dizer que Machado estava à frente do seu tempo, que escrevia para um leitor futuro. Roberto Schwarz escreveu que “como Stendhal, Machado escrevia para um público ainda inexistente”. Ora, essa postulação cria um proble- ma. Se escrevia para um leitor futuro e era ao mesmo tempo muito lido e res- peitado pelo leitor seu contemporâneo, então este o admirava e dele gostava por um motivo secundário ou falso. Machado resulta, assim, um mestre do disfarce. Tão eficaz seria esse disfarce que teria prevalecido por décadas. A explica- ção para a estima e para os lugares canônicos destinados a Machado em seu tempo recorre ao disfarce e à dinâmica da aparência e da essência. Para Gledson, por exemplo, desde a década de 1880, Ma- chado se empenha no “logro do leitor”. Para sustentar essa perspectiva é ne- cessário supor que se possa identificar, com alguma dose de objetividade, a in- tenção escondida no texto. Ou, dizendo de outro modo, demonstrar que havia uma verdadeira intenção crítica, por trás da e contra a intenção aparente. Daí a leitura a contrapelo a que se dedicam os partidários dessa forma de ver o roman- ce machadiano, em busca de indicações autorais ocultas ou semi-ocultas do lei- tor menos esperto ou desconfiado, que estariam ali, à espera do olhar capaz de reconstruí-las – pistas semeadas por Machado para que os seus futuros leito- res não se confundissem e pudessem en- fim reconstruir a sua verdadeira intenção. Nesse quadro, o prestígio no seu pró- prio tempo é uma ironia que depõe con- trando como Machado terminou por ser re- tratado como romântico conservador. Para lermos adequadamente esse tex- to crítico de Machado, é preciso que o coloquemos em situação. Não foi o Ma- chado de Memórias Póstumas de Brás Cubas ou de Dom Casmurro quem a es- creveu. Foi o autor de A mão e a luva e Iaiá Garcia. O segundo Machado, em minha opinião, nasce diretamente da cri- se literária que se seguiu ao episódio de O Primo Basílio. Depois do sucesso de Eça no Brasil, a longa elaboração roma- nesca que resultara em Iaiá Garcia era um caminho sem futuro nem público. Assumir os pressupostos e o estilo do Realismo (depois denominado Natura- lismo) não era uma possibilidade para Machado. A sua solução foi um recuo tático: adotou a forma do romance do século XVIII, isto é, acentuou o seu des- locamento em relação à tendência domi- nante do presente. A escolha da forma é também a escolha da perspectiva mutante que tanto se vale do registro do moralis- mo francês, quanto do da sátira menipéia, quanto da ironia romântica que ele be- bera desde cedo na obra de Camilo. O resultado é o sabor de farsa que domina não só os dois primeiros romances da nova fase, mas ainda os que vêm depois. E o rendimento romanesco do recuo é notável não só pela invenção lingüística que advém da liberdade do ponto de vis- ta narrativo, mas também (e isso será de- pois um traço valorizado na clave de lei- tura mais moderna) por meio da consti- tuição do livro, da escrita do livro e da materialidade do livro, como tema cen- tral do romance – como bem mostra Abel Barros Baptista, em Autobibliografias. Paulo Franchetti é professor titular do Departamento de Teoria Literária da Unicamp; diretor executivo e presidente do Conselho Editorial da Editora da Unicamp. Publicou, entre outros livros, os ensaios Alguns aspectos da teoria da poesia concreta (1989), Nostalgia, exílio e melancolia - leituras de Camilo Pessanha (2001) e Estudos de literatura brasileira e portuguesa (2007) e O essencial sobre Camilo Pessanha. Publicou ainda a edição crítica da Clepsydra, de Camilo Pessanha (1995); a antologia As aves que aqui gorjeiam - a poesia do Romantismo ao Simbolismo (2005); a novela O sangue dos dias transparentes (2003) e a coletânea de haicais, Oeste (2008). Preparou, junto com Leila Guenther, para a Ateliê Editorial, edições anotadas de Iracema (2007), A cidade e as serras (2007) e Dom Casmurro (a ser lançada em setembro de 2008). Quem é Quem é professor, ensaísta e escritor Paulo Franchetti, do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL), acaba de fazer a revisão da fortuna crítica de Dom Casmurro. A tarefa resultou na introdução de uma nova edição da obra, com estabelecimento de texto e notas em parceria com Leila Guenther, a ser lançada em setembro pela Ateliê Editorial. Abaixo, o intelectual aborda pontos do seu estudo e do conjunto da obra machadiana. O Fortuna crítica revisitada revisitada Fotos: Academia Brasileira de Letras/Reprodução Folha de rosto da primeira edição de Dom Casmurro Capa de O Otelo Brasileiro, de Helen Caldwell: divisor de águas Encontro de escritores e artistas em 1901: em pé, da esq. para a dir., Rodolfo Amoedo, Artur Azevedo, Inglês de Sousa, Olavo Bilac, José Veríssimo, Sousa Bandeira, Filinto de Almeida, Guimarães Passos, Valentim Magalhães, Rodolfo Bernadelli, Rodrigo Octavio, Heitor Peixoto; sentados: João Ribeiro, Machado de Assis, Lúcio de Mendonça e Silva Ramos Eça de Queirós: crítica polêmica

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4 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 25 a 31 de agosto de 2008

Três momentos críticos Um dos pontos mais interessantes,

na fortuna crítica de Dom Casmurro, é omodo de descrever as personagens prin-cipais da história contada por Bento San-tiago: ele mesmo e sua mulher, Capitu.

Nos primeiros 60 anos de leitura doromance, a análise dos caracteres foi feitaa partir do ponto de vista que conduzia anarrativa, isto é, a partir do ponto de vis-ta de Bento. Capitu, então, no julgamentode críticos importantes, era pérfida, men-tirosa por necessidade orgânica, lasciva,amoral. Já Bento tinha dupla caracteriza-ção: velho, era desiludido e amargurado;rapaz, tinha sido um tímido, de alma cân-dida, ingênuo e piedoso. A traição da mu-lher com o melhor amigo era a explica-ção da transformação de um em outro.

Um segundo momento crítico se abreem 1960, com a publicação do livro deHelen Caldwell, O Otelo brasileiro deMachado de Assis. Opera-se, com essetrabalho, uma radical inversão da pers-pectiva. Bento, acusado de mover umprocesso contra Capitu, passa a ser elemesmo réu de um processo movido pelacrítica. E Capitu, da mesma forma queantes fora demonizada, a partir do pontode vista de Bento, é agora erguida a mo-delo de esposa dedicada, cuja falha únicafoi não conseguir vencer o ciúme doentiodo marido. De modo que à idealização deBentinho segue-se a idealização deCapitu: primeiro, como esposa inocentee dedicada; logo a seguir, com Gledson eRoberto Schwarz, como representante oualegoria das Luzes, incapazes de triunfarna sociedade patriarcal brasileira.

Finalmente, um terceiro momentocrítico começa quando a análise psico-lógica dos caracteres ou a leitura alegó-rica das personagens principais deixa deser o foco da atenção.

O olhar de fora Os estrangeiros têm tido papel mui-

to relevante na crítica machadiana.Helen Caldwell é o caso mais espe-

tacular, pois foi a partir da sua leitura deDom Casmurro que se transformou am-plamente a maneira de ler a obra roma-nesca inteira de Machado.

Mas outros também ocupam lugaresigualmente importantes na tradição críti-ca. Um deles é Jean-Michel Massa, autorde trabalhos de base, cuja relevância seriaocioso reafirmar. Outro é John Gledson.

Somente quando se lê, em ordem cro-nológica e de forma sistemática, a fortu-na crítica de Machado de Assis é que sepercebe o lugar real do trabalho deGledson, e como ele foi central para oestabelecimento da segunda fase da lei-tura de Machado no Brasil. Quando elepublicou o seu primeiro livro sobre Ma-chado, o único trabalho inovador que ti-nha surgido era Ao vencedor as batatas,de Roberto Schwarz. Mas a inovaçãodesse livro, que focava apenas a primei-ra fase de Machado, residia em identifi-car, como cerne dos primeiros romancesmachadianos, o paternalismo e suas ra-

tra o leitor e reforça a genialidade e amodernidade do autor.

O texto machadiano resulta, assim,uma armadilha para os contemporâneose uma charada oferecida à decifração dospósteros.

A postulação de uma intenção certaanda de mãos dadas com a de uma leitu-ra correta – a que corresponde a essa in-tenção. Para usar um título de romance,são a mão e a luva. E não são desprezí-veis nem a sua sedução – afinal, quemnão quereria estar do lado correto, e quemnão ficaria aliviado ao afastar qualquersuspeita de ingenuidade? – nem a coer-ção autoritária de definir a única manei-ra conseqüente de entender o texto.

Poder de resistênciaUm efeito da crítica baseada na iden-

tificação da intenção do autor ou na de-cifração da sua charada ideológica é di-minuir o interesse da leitura.

De fato, se o texto se constituíssebasicamente como armadilha e ela já es-tivesse desarmada, por que lê-lo? Ape-nas para constatar a perícia do disfarce,da linguagem cifrada? Ou a habilidadedo decifrador?

À distância de um século, que nosrestaria senão contemplar, com interes-se mais próximo do museológico, essaespécie de Pedra da Roseta literária?

Os que defendem essa forma de lei-tura provavelmente concordam com acrítica que Machado fez ao romance OPrimo Basílio, de Eça de Queirós. Na-quele texto, que me parece desfocado eainda mal lido, Machado criticava o ro-mance por julgar que nele as persona-gens eram títeres a serviço da demons-tração de uma tese. Mas ao insistirem napresença, no texto do romance de Ma-chado, de índices da intenção do autorna orientação da correta interpretação dasações e palavras dos narradores-autoresdos romances da última fase, não estari-am também esses críticos promovendoum caminho que, nos termos do próprioMachado, redundaria num defeito artís-tico? Em perda da coerência ficcional?

Essa maneira de ler termina por em-pobrecer o texto, por secá-lo até reduzi-lo a um conjunto de diagramas críticos,por meio dos quais Machado nos desti-naria a sua real visão das questões can-dentes do tempo e procederia à críticada ideologia paternalista.

Ora, esse pressuposto tem como pro-blema adicional lançar a suspeita de co-nivência sobre qualquer identificação doleitor com as personagens ou com a voznarrativa dos romances da chamada “se-gunda fase” de Machado.

Posso tomar como exemplo o roman-ce que tenho estudado com mais vagar,o Dom Casmurro. E que é central, nosdebates sobre a forma moderna de ler oMachado. Bem, basta ler a moderna for-tuna crítica na vertente intencionalistapara constatar que qualquer adesão emo-cional ao drama de Bento tem de arcarcom o peso da acusação dirigida aos pri-meiros leitores: logro operado por meioda cumplicidade com o ponto de vistada elite retrógrada do Brasil oitocentista.

E tão sensível é esse peso, que o pró-prio John Gledson terminou por sentir-se obrigado a tematizá-lo. E o fez nomesmo texto no qual defende a tese dologro do leitor e da existência de umaleitura correta, de acordo com a inten-ção de Machado. Eis aqui:

“Embora a descrição de RobertoSchwarz do tipo de elite que ele repre-senta seja exata, Bento é um persona-gem com quem muitos leitores, e não sópor causa de um compromisso ideológi-co subconsciente com a elite brasileira(só posso citar a mim mesmo como evi-dência), se identificarão, em um ou emvários níveis”. (Por um novo Machadode Assis, 2006 – texto de 1999)

De fato, esse é um movimento ne-cessário para libertar a obra da instru-mentalização excessiva a que foi subme-tida no quadro da leitura ideológicanacionalizante. Sendo otimista, creio queo fato de ele se impor mesmo a quemjulga que essa forma de leitura seja a maiscorreta é um testemunho do poder deresistência do literário.

Recuo táticoTambém a crítica de Machado ao ro-

mance de Eça tem sido objeto de umaapreciação de viés nacionalista, que meparece simplista e nociva ao melhor en-tendimento do momento e da inflexão nacarreira literária do escritor brasileiro.

Quando O Primo Basílio chegou aoBrasil, Machado tinha acabado de publi-car em volume o seu romance IaiáGarcia. O romance de Eça fez furor. Nãosó pelo caráter escandaloso, que veio daforma como tratava as relações sexuaisdos protagonistas, mas também pela no-vidade da linguagem. Machado de Assispublicou uma crítica dura em O Cruzei-ro, um dos periódicos nos quais colabo-rava. Na seqüência, desencadeou-se apolêmica que obrigou Machado a escre-ver uma segunda crítica, na qual respon-dia aos seus opositores. Mas esse segun-do texto não encerrou a polêmica. Ali-mentou-a. E a campanha pró-realismo noBrasil foi longa e divertida, embora bas-tante agressiva em relação a Machado. Ten-tei dar conta dela num artigo que foirepublicado em Estudos de literatura bra-sileira e portuguesa, no ano passado, mos-

cionalizações. O impacto do livro, alémdo controvertido ensaio inicial sobre “asidéias fora do lugar”, residia em fazerdaquelas primeiras obras objetos de in-teresse como ensaios de apreensão críti-ca da especificidade brasileira. Mas bas-ta ver como termina aquele livro de 1977 ecomo começa a sua continuação, publicadaem 1990, Um mestre na periferia do capi-talismo (mesmo ano em que publica o seuprimeiro trabalho importante sobre DomCasmurro), para reconhecer o lugar e opapel transformador do livro de Gledson,Machado de Assis: Impostura e Realis-mo, publicado em inglês já em 1984.

Finalmente, é preciso registrar que opasso adiante, desta vez já como indica-ção crítica dos limites da perspectiva aber-ta por Caldwell e seguida por Gledson eSchwarz, é dado por outro estrangeiro, AbelBarros Baptista. Seus dois livros sobreMachado, recentemente lançados no Bra-sil pela Editora da Unicamp, ainda estãoà espera de uma resposta crítica à altura,seja por conta dos autores cujas teses des-monta ou contesta, seja por conta dos jo-vens leitores de Machado de Assis.

Charada e armadilhaUma questão importante, para uma

vertente da fortuna crítica do autor, é ada destinação do texto do romancemachadiano.

É um lugar-comum hoje dizer queMachado estava à frente do seu tempo,que escrevia para um leitor futuro.Roberto Schwarz escreveu que “comoStendhal, Machado escrevia para umpúblico ainda inexistente”.

Ora, essa postulação cria um proble-ma. Se escrevia para um leitor futuro eera ao mesmo tempo muito lido e res-peitado pelo leitor seu contemporâneo,então este o admirava e dele gostava porum motivo secundário ou falso.

Machado resulta, assim, um mestre dodisfarce. Tão eficaz seria esse disfarce queteria prevalecido por décadas. A explica-ção para a estima e para os lugarescanônicos destinados a Machado em seutempo recorre ao disfarce e à dinâmica daaparência e da essência. Para Gledson, porexemplo, desde a década de 1880, Ma-chado se empenha no “logro do leitor”.

Para sustentar essa perspectiva é ne-cessário supor que se possa identificar,com alguma dose de objetividade, a in-tenção escondida no texto. Ou, dizendode outro modo, demonstrar que haviauma verdadeira intenção crítica, por trásda e contra a intenção aparente. Daí aleitura a contrapelo a que se dedicam ospartidários dessa forma de ver o roman-ce machadiano, em busca de indicaçõesautorais ocultas ou semi-ocultas do lei-tor menos esperto ou desconfiado, queestariam ali, à espera do olhar capaz dereconstruí-las – pistas semeadas porMachado para que os seus futuros leito-res não se confundissem e pudessem en-fim reconstruir a sua verdadeira intenção.

Nesse quadro, o prestígio no seu pró-prio tempo é uma ironia que depõe con-

trando como Machado terminou por ser re-tratado como romântico conservador.

Para lermos adequadamente esse tex-to crítico de Machado, é preciso que ocoloquemos em situação. Não foi o Ma-chado de Memórias Póstumas de BrásCubas ou de Dom Casmurro quem a es-creveu. Foi o autor de A mão e a luva eIaiá Garcia. O segundo Machado, emminha opinião, nasce diretamente da cri-se literária que se seguiu ao episódio deO Primo Basílio. Depois do sucesso deEça no Brasil, a longa elaboração roma-nesca que resultara em Iaiá Garcia eraum caminho sem futuro nem público.Assumir os pressupostos e o estilo doRealismo (depois denominado Natura-lismo) não era uma possibilidade paraMachado. A sua solução foi um recuotático: adotou a forma do romance doséculo XVIII, isto é, acentuou o seu des-locamento em relação à tendência domi-nante do presente. A escolha da forma étambém a escolha da perspectiva mutanteque tanto se vale do registro do moralis-mo francês, quanto do da sátira menipéia,quanto da ironia romântica que ele be-bera desde cedo na obra de Camilo. Oresultado é o sabor de farsa que dominanão só os dois primeiros romances danova fase, mas ainda os que vêm depois.E o rendimento romanesco do recuo énotável não só pela invenção lingüísticaque advém da liberdade do ponto de vis-ta narrativo, mas também (e isso será de-pois um traço valorizado na clave de lei-tura mais moderna) por meio da consti-tuição do livro, da escrita do livro e damaterialidade do livro, como tema cen-tral do romance – como bem mostra AbelBarros Baptista, em Autobibliografias.

Paulo

Franchetti

é professor titulardo Departamentode Teoria Literáriada Unicamp; diretorexecutivo e presidente do ConselhoEditorial da Editora da Unicamp. Publicou,entre outros livros, os ensaios Algunsaspectos da teoria da poesia concreta(1989), Nostalgia, exílio e melancolia -leituras de Camilo Pessanha (2001) eEstudos de literatura brasileira eportuguesa (2007) e O essencial sobreCamilo Pessanha. Publicou ainda a ediçãocrítica da Clepsydra, de Camilo Pessanha(1995); a antologia As aves que aquigorjeiam - a poesia do Romantismo aoSimbolismo (2005); a novela O sangue dosdias transparentes (2003) e a coletânea dehaicais, Oeste (2008). Preparou, junto comLeila Guenther, para a Ateliê Editorial,edições anotadas de Iracema (2007), Acidade e as serras (2007) e DomCasmurro (a ser lançada em setembro de2008).

Quem éQuem é

professor, ensaísta eescritor PauloFranchetti, doInstituto de Estudos

da Linguagem da Unicamp (IEL),acaba de fazer a revisão da fortunacrítica de Dom Casmurro. A tarefaresultou na introdução de uma novaedição da obra, comestabelecimento de texto e notas em parceria com Leila Guenther, a serlançada em setembro pela Ateliê Editorial. Abaixo, o intelectual abordapontos do seu estudo e do conjunto da obra machadiana.

O

Fortuna críticarevisitadarevisitada

Fotos: Academia Brasileira de Letras/Reprodução

Folha derosto daprimeiraediçãode DomCasmurro

Capa de OOteloBrasileiro,de HelenCaldwell:divisor deáguas

Encontro deescritores eartistas em

1901: em pé, daesq. para a dir.,

Rodolfo Amoedo,Artur Azevedo,

Inglês de Sousa,Olavo Bilac, JoséVeríssimo, SousaBandeira, Filinto

de Almeida,Guimarães

Passos, ValentimMagalhães,

RodolfoBernadelli,

Rodrigo Octavio,Heitor Peixoto;sentados: João

Ribeiro,Machado de

Assis, Lúcio deMendonça eSilva Ramos

Eça de Queirós: crítica polêmica