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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO:
MESTRADO
JONAS MARCELO GONZAGA
O PROCESSO FORMATIVO E A ATUAÇÃO DO ARTE-
EDUCADOR: POSSIBILIDADES E CONTRIBUIÇÕES DA
TEORIA IRONISTA
SÃO BERNARDO DO CAMPO – SP
2016
JONAS MARCELO GONZAGA
O PROCESSO FORMATIVO E A ATUAÇÃO DO ARTE-
EDUCADOR: POSSIBILIDADES E CONTRIBUIÇÕES DA
TEORIA IRONISTA
Dissertação apresentada como exigência do Programa de Pós-Graduação em Educação: Mestrado, à Universidade Metodista de São Paulo, Escola de Comunicação, Educação e Humanidades para a obtenção do título de Mestre em Educação. Área de concentração: Educação Orientação: Profa. Dra. Norinês Panicacci Bahia.
SÃO BERNARDO DO CAMPO – SP
2016
FICHA CATALOGRÁFICA
G589p Gonzaga, Jonas Marcelo
O processo formativo e a atuação do arte-educador: possibilidades e
contribuições da teoria ironista / Jonas Marcelo Gonzaga. 2016.
166 p.
Dissertação (mestrado em Educação) --Escola de Comunicação,
Educação e Humanidades da Universidade Metodista de São Paulo, São
Bernardo do Campo, 2016.
Orientação: Norinês Panicacci Bahia
1. Educador ironista 2. Arte-Educação 3. Contemporaneidade
I. Título.
CDD 379
A dissertação de mestrado sob o título “O processo formativo e a atuação do
arte-educador: possibilidades e contribuições da teoria ironista”,
elaborada por Jonas Marcelo Gonzaga foi apresentada e aprovada em 23 de
fevereiro de 2016, perante banca examinadora composta por: Profª Drª
Norinês Panicacci Bahia (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Décio Azevedo
Marques de Saes (Titular/UMESP) e Prof. Dr. João Cardoso Palma Filho
(UNESP/SP).
____________________________________
Profª Drª Norinês Panicacci Bahia
Orientadora e Presidente da Banca Examinadora
____________________________________
Profª Drª Roseli Fischmann
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação
Programa de Pós-Graduação: Mestrado
Área de Concentração: Educação
Linha de Pesquisa: Formação de Educadores
Dedico este estudo à minha família.
Ao meu avô, Conrado Marcelo, que me presenteava com cadernos no período
natalino; ao meu avô paterno, Edemir Gonzaga, que me permitia rabiscar os
seus livros; ao meu pai, Ademir Roberto, que possuía uma velha estante
recheada de livros, que sentia prazer ao ver os seus filhos estudarem e nos
incentivava à cultura letrada; à minha mãe, Maria Regina, por sua indescritível
e permanente atenção, fé e amor por mim; à minha irmã, Barbara, pela sua
torcida em minha trajetória e palavras de incentivo; e, à minha querida esposa,
Rosi, que se mostrou tão compreensiva, companheira, ouvinte, falante,
construtora de ideias, dedicada à harmonia e amante do nosso casamento.
AGRADECIMENTOS
Meus agradecimentos se dirigem aos professores e amigos, que
colaboraram tanto na trajetória constitutiva da dissertação quanto no respaldo
cotidiano que só as pessoas de bem sabem fazer.
Agradeço, primeiramente, à minha orientadora Profª Drª Norinês
Panicacci Bahia, que estendeu as mãos desde a entrevista do processo
seletivo, demonstrando interesse e respeito pelo tema que intencionei no início
do meu projeto, além da paciência, prontidão, perspicácia, inteligência para
além de uma prestimosa orientação e generosidade que ofertou em todo o
percurso.
Agradeço ao meu professor Dr. Décio Azevedo Marques de Saes que me
possibilitou um olhar mais aguçado às constituições sociais nas quais a
Educação se interpenetra, assim como a aprendizagem que obtive ao longo de
duas disciplinas que me ensejaram acesso à sua vastidão estética-cultural, de
fato, colossal. Assomam-se à gratidão, as considerações pontuais que me
forneceu na qualificação da dissertação, assim como para a defesa da mesma,
pois me fizeram reconsiderar elementos estruturais do objeto de estudo.
Agradeço ao professor Dr. João Cardoso Palma Filho pelos apontamentos
relevantes e construtivos realizados na banca de qualificação, e da mesma
forma, endereçados à defesa da dissertação e à sua reformulação.
Agradeço à Profª Drª Roseli Fischmann, Coordenadora do PPGE, por sua
intelectualidade e ações generosas, pelo seu acompanhamento na trajetória dos
estudos, pelo telefonema de boas-novas.
Agradeço ao professor Dr. Roger Marchesini de Quadros Souza, pelo seu
conhecimento empírico e teórico acerca da funcionalidade estatal da Educação,
pela sua ponderação sensata e crítica da realidade brasileira e sua índole
receptiva, acolhedora e gentil.
Agradeço ao professor Dr. Jean Lauand, pelas suas demonstrações de
domínio do seu campo estético-linguístico, do quão consegue desafiá-lo e
explorá-lo.
Agradeço à professora Dra. Zeila de Brito Fabri Demartini, pela sua
competência na área metodológica e histórias acadêmicas ou não, que me fez
refletir acerca da minha atuação docente e de pesquisador.
Agradeço à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior) pela bolsa de estudos que me foi concedida durante três
semestres.
Agradeço à assistente da coordenação do Stricto Sensu em Educação,
Priscila Roger, pelas inúmeras orientações que muito me auxiliaram a resolver
os processos burocráticos.
Finalizo os meus agradecimentos com os amigos Marciano do Prado,
Leandro da Nóbrega Pinheiro, Glauco Fernando Silva Santos, Teo Garfunkel,
Patricia Cristina Santos da Silva, Luciana de Freitas Lanni, Paula Andreatti
Margues, Luis Eduardo Prates da Silva, Humberto Luiz Maia da Costa, Simone
Andrade Queiroz, Rafael Cerqueira Barbosa, Malina Almeida Brandão Souza,
Pedro Campos Filho, Daniel Gregório; meus sogros, Oswaldo Moreno Munhoz
e Maria Suzana da Silva Munhoz; e meu primo, Guilherme Trindade Marcello,
por suas infindas qualidades, excelências e camadas irônicas que me fizeram
questionar o que eu avaliava saber.
“Nunca vivemos, como agora, uma
época tão rica em conhecimentos
científicos e invenções tecnológicas,
nem mais equipada para derrotar as
doenças, a ignorância e a pobreza; no
entanto, talvez nunca tenhamos ficado
tão desconcertados diante de certas
questões básicas como o que fazemos
neste astro sem luz própria que nos
coube, se a mera sobrevivência é o
único norte que justifica a vida, se
palavras como espírito, ideais, prazer,
amor, solidariedade, arte, criação,
beleza, alma, transcendência ainda
significam alguma coisa, e, em sendo
positiva a resposta, o que há e o que
não há nelas. A razão de ser da cultura
era dar resposta a esse tipo de
pergunta. Hoje ela está exonerada de
semelhante responsabilidade, já que a
transformamos aos poucos em algo
muito mais superficial e volúvel: uma
forma de diversão para o grande
público ou um jogo retórico, esotérico e
obscurantista para grupelhos vaidosos
de acadêmicos e intelectuais que dão
as costas ao conjunto da sociedade. ”
Mario Vargas Llosa
(Extraído do livro A civilização do
espetáculo)
RESUMO
GONZAGA, Jonas Marcelo. O processo formativo e a atuação do arte-educador: possiblidades e contribuições da teoria ironista. Orientação: Norinês Panicacci Bahia. 2016. Universidade Metodista de São Paulo – UMESP, São Bernardo do Campo. A presente pesquisa visa a revisão bibliográfica do processo formativo e, ao mesmo tempo, a investigação e problematização da atuação contemporânea do educador ironista na Educação. O autor Imanol Aguirre, concebe este título ao educador que seja provocativo, inteirado e propositor de experiências estéticas frente às complexidades contemporâneas, amalgamadas num tecido histórico-social caracterizado pelo trânsito da pluralidade, dos imaginários, da construção de identidade e da mobilidade social. O ironista atua dialogicamente “in loco” criando respostas às variadas demandas com os seus educandos. A fomentação da crítica, a mobilização da dúvida e da ironia, a conexão dos territórios das competências e habilidades, são os objetivos pelos quais o educador ironista intenciona um cenário educacional mais efetivo e emancipador ante as reais necessidades contemporâneas. Palavras-chave: 1.Educador Ironista; 2.Arte-Educação; 3.Contemporaneidade
ABSTRACT
GONZAGA, Jonas Marcelo. The formative process and the performance of the art educator: possibilities and contributions of ironist theory. Orientation: Norinês Panicacci Bahia. 2016. Methodist University of São Paulo - UMESP, São Bernardo do Campo. This research aims to a bibliographic review of the formative process and, at the same time, the investigation and questioning of contemporary performance of the ironist educator in Education. The author Imanol Aguirre, conceives this title to the educator who is provocative, acquainted and proposer of aesthetic experiences front to contemporary complexities, amalgamated in a historical and social fabric characterized by transit of plurality, the imaginary, the construction of identity and social mobility. The ironist acts dialogically "in loco" creating answers to the varied demands with their students. The fostering of criticism, the mobilization of doubt and irony, the connection of territories between competences and abilities, are the goals by which the ironist educator intends a more effective educational scenario and emancipator in the face of real contemporary needs. Keywords: 1. Educator Ironist; 2. Art-Education; 3. Contemporaneity.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 12
CAPÍTULO 1:EM BUSCA DE UMA SOCIEDADE MAIS HUMANA .................. 24
1.1 O cotidiano escolar e as competências prementes ................................ 24
1.2 O educador como potencializador de humanidades .............................. 66
CAPÍTULO 2: A IRONIA COMO INSTRUMENTO DO SABER ........................ 80
2.1 A ironia como postura epistemológica e pedagógica ............................. 80
CAPÍTULO 3: DO INOVAR AO LIBERTAR: O PENSAMENTO DE IMANOL
AGUIRRE ....................................................................................................... 101
3.1 A atuação do educador ironista – origem e desenvolvimento .............. 101
3.2 Quem é, com o que se preocupa e onde atua Imanol Aguirre? ........... 122
3.3. Por uma mediação estética que desperte a reflexão .......................... 125
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 143
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 147
APÊNDICE 1: Histórico do arte-educador no Brasil ....................................... 152
APÊNDICE 2: Principais produções de Imanol Aguirre ................................. 164
12
INTRODUÇÃO
Um bom início do rememorar as primeiras impressões educacionais
escolarizadas se dá, de fato, no que se chamava popularmente de “Prézinho”,
a pré-escola na qual alguns discentes adentravam ainda aos cinco anos; no
meu caso, se deu aos 6 anos e durou aquele único ano como era esperado,
pois aos 7 anos todos estavam, sem exceção, na primeira série, atualmente,
segundo ano do Ensino Fundamental I.
Possuo uma foto da minha primeira professora, cujo nome é Sueli – e
dela, carrego as melhores impressões de uma atuação plena, solidária,
provocativa, imaginativa e intencional; a fotografia em questão revela-nos um
do lado do outro com um painel atrás de nós com uma pintura recheada de
motivos caipiras pendurado na parede, à frente estamos com chapéu caipira
de palha, meio que colados lateralmente, haja vista a força com a qual ela me
apertava junto a si. Sorriso grandiloquente da parte dela; sorriso receoso, de
estranhamento da minha parte. Mas, sem psicologismos, creio que sei a
resposta para tal investida da minha fisionomia: procuro esconder uma perna
atrás da outra, meio que na altura do joelho, pois a calça estava suja ou
rasgada! Saliento que nada relacionado à falta de apreço e atenção dela a
mim, muito menos quanto à dedicação da minha mãe e seu zelo pela minha
vestimenta; eu simplesmente era um rapaz inclinado aos esportes, às corridas,
ao atletismo que, inclusive, acompanharam-me por toda a vida de estudante
até o fim do Ensino Médio.
Esta exemplificação é cabal para mim, pois revela o que a escola
representava aos meus olhos e joelhos: a interação integral e literal desprovida
de receios, fosse no âmbito intelectual ou no físico. Não obstante, este
sentimento de pertinência me foi abundante até o penúltimo ano do Ensino
Médio, quando, inevitavelmente, por meio de um embate com um professor de
matemática (diga-se de passagem, não-ironista – e, mais além, pedante e
não-mediador) esconjurei a possibilidade de me tornar educador (mesmo
porque nunca havia pensado em tal), pois a deliberação da recente vice-
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diretora (já que o diretor também recém-chegado estava ausente, como se
confirmou pelo ano todo) frente ao problema foi a de me suspender por 3 dias.
O diálogo com a Educação havia se interrompido ali.
A postura ditatorial e insegura da vice-diretora frente às minhas
argumentações pontuais e contextualizadas, foi a seguinte: “...você não
precisa usar estas palavras difíceis para explicar o seu ato...”; isto, na
presença da minha mãe que, racionalmente, arguiu: “Se ele não pode
argumentar como vai se explicar?(...)” Eu era fruto de 10 anos da mesma
escola pública, que me fizera criticar, duvidar, dialetizar as condições postas
no mundo, agora, cerrava o meu direito de me expressar com os instrumentos
antes instruídos.
No ano de 1998, a Educação representada pela minha escola mostrou-se
permeada de incoerências, de escusas, de falta de transparências, de tons
autoritários que se alegrava apenas com a sua própria voz em meio ao
silêncio. Até então, apenas para reforçar o poder instrutivo e formativo dos
estudantes que a escola pública do Estado de São Paulo ensejou, pelo menos,
especificamente, em minha escola, podia-se falar francamente sobre a aliança
entre a comunidade e a gestão escolar; o espaço-tempo adequado e
sincronizado às atividades extracurriculares esportivas e artísticas; o diálogo
permanente, de cunho moral, multidisciplinar, atencioso, por fim, humano em
todas as suas possíveis leituras. O que se nota, é que quando a gestão
mudou, toda a dinâmica escolar antiga ruiu em consonância às novas
características infiltradas e alienantes.
Alguns elementos da minha própria historicidade formativa, enquanto
estudante do Ensino Médio são interessantes à exposição: a minha relação
com a aprendizagem sempre foi a de prazer, de curiosidade, de ponto de
partida para outras conexões, de perspectivas voltadas à minha vida pessoal,
de trabalho vindouro; os professores enalteciam a minha atuação tanto no
sentido de aproveitamento das próprias aprendizagens quanto no de liderar os
amigos em diferentes proposições, o que se constatou em toda a minha vida
14
estudantil sendo líder de classe ou de time nas competições esportivas; a
leitura foi-me libertadora, pois descobri as entrelinhas das relações humanas
mais por meio dela e não apenas por via das experiências travadas; os
professores referenciais estavam continuamente ligados às ciências humanas,
pois conseguiam sagazmente inter-relacionar os conteúdos disciplinares à
nossa vivência, ou seja, estávamos motivados, alimentados, direcionados a
conquistar o que desejássemos, sentíamos seguros com os embates e
problematizações propositadas por eles, pois víamos naqueles exercícios a
vida, e não apenas a disciplina curricular, os desafios eram-nos postos para
serem suplantados: fomos educados para melhorar o que havia sido proposto,
criado, oferecido; os princípios que nortearam toda a aprendizagem estavam
marcadamente relacionados com o grau de empatia que se dava entre os
professores e alunos, muitos professores moravam em nossos bairros,
portanto, conheciam as nossas histórias, os enfrentamentos em diversos
níveis, assim como as nossas facilidades de assimilação, de construção e
desconstrução propositiva, enfim, o entrosamento humano para alcançar a
aprendizagem era o mais fluído possível, possuíamos um potencial
imensurável, livre e sem pré-conceitos para se dedicar para além da zona de
conforto.
Fato importante que revela uma contradição interessante e que vale a
menção, se relaciona com a minha educação profissionalizante realizada no
SENAI, onde me formei como Ferramenteiro ao passar de 2 anos de ensino
integral (durante a manhã e a tarde, pois à noite eu cursava o Ensino Médio).
Havia disciplinas teóricas e práticas, com objetivo notório de formação
tecnicista, voltado ao mercado de trabalho na indústria. Dos meus 15 aos 17
anos formei-me conhecedor da diversidade metalúrgica contemplando saberes
correlacionados ao uso de tornos mecânicos e CNC (comando numérico
computadorizado), fresadoras e retíficas.
O que há de valia quanto ao meu registro formativo é a dualidade deste
período, no qual eu era o “líder dos mecânicos” por transitar muito bem entre
os meus pares e saber detalhadamente as ansiedades levantadas para
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posteriores reivindicações, muito embora, no quesito “notas bimestrais”, eu
figurava entre as piores nas relacionadas à praticidade mecânica, pois
“matava” as peças, nunca atendendo as especificidades e dimensões
pretendidas; no entanto, as minhas notas teóricas eram as exemplares a todo
o segmento discente. A minha capacidade de ouvir e buscar a compreensão
entre os segmentos me fez um interlocutor de vontades, esperanças,
objetivos, promessas, prazos e, determinantemente, do avanço nas relações
que provocaria melhorias de todas as espécies, técnicas e humanas.
A meu ver esta sólida e diferenciada formação educativa, mediada por
professores atuantes e que constantemente se educavam estudando por suas
vezes, contribuiu com a edificação do meu olhar crítico, plural, enviesado,
ácido e por quê não, ironista? E não menos humano, coletivo, solidário,
dilatador de perspectivas e de novos panoramas, “ouvidor” de todos e para
todos. Postas estas experiências simbólicas envoltas pelo empirismo, que
formalizam o meu processo formativo primeiro, que regem a sequência com
que se deu e ainda se dá a minha trajetória enquanto educador
contemporâneo, avanço e introduzo a minha passagem pela graduação em
Artes Cênicas.
A minha escolha profissional foi a de me tornar artista cênico, algo que
acalentara durante a adolescência vendo o ator Toni Ramos e a atriz
Fernanda Montenegro se multiplicarem em inúmeras personas, cada qual com
sua identidade artística, seu digital próprio, seu registro artístico intransferível,
sua poética pessoal indelével. A vida não me permitiu experimentar os cursos
cênicos durante os longos e primeiros 17 anos de vida, por eu ter que realizar
o curso mecânico a contragosto por ordem dos meus pais, todavia, como bem
me conheciam, permitiram-me escolher qual graduação intencionaria cursar.
Pois bem, havia chegado a minha hora de inclinar-me às minhas naturais
habilidades, ao menos assim pensava e acabei (prudentemente,
irrevogavelmente) por optar às artes cênicas. Iniciei o Curso de Graduação em
Educação Artística com habilitação em Artes Cênicas aos 18 anos na FATEA
16
– Faculdades Integradas Teresa D´Ávilla, hoje, FAINC – Faculdades
Integradas Coração de Jesus, extremamente motivado com a introdução às
artes em suas múltiplas e articuladas linguagens; neste ponto, compreendi o
potencial desbravador e emancipador que as artes cênicas viabilizavam por
meio do diálogo plural entre a produção estética e as suas reflexões
intrínsecas. As artes, não apenas as cênicas, promovem a criticidade e a
construção de cidadãos atuantes. Destas conclusões, vi-me num contexto
muito similar ao meu período formativo dado na escola pública (ainda de
qualidade inegável na época), onde os atores se exercitavam num
determinado tempo e espaço, com situações-problemas dados a serem
galgados num palco no qual os papéis se conectavam intuindo seus inerentes
objetivos.
Após 2 anos nesta graduação pela FATEA, minha habilitação em Artes
Cênicas não abriu por falta de alunos necessários; então, transferi-me à FPA –
Faculdade Paulista de Artes, onde concluí a minha formação em 3 anos, pois
as disciplinas não eram as mesmas nas instituições, portanto, levei 5 anos
para me graduar. Esta vivência da transferência de instituição me projetou
novos desdobramentos profissionais e referenciais. A FPA se situa ainda na
Av. Brigadeiro Luís Antônio em São Paulo, centro fervilhante das artes, região
de tradição e renovação estética, ou seja, consegui meu bacharel em Artes
Cênicas com o pé no mercado de trabalho, além de alcançar a Licenciatura
em Educação Artística cursando as disciplinas pedagógicas aos sábados.
Meu intuito estava direcionado apenas ao bacharel, e não à Licenciatura.
Meu foco era atuação cênica nos palcos da cidade de São Paulo; o lecionar
Educação Artística jamais foi considerado, exatamente por conta de a
Educação estar registrada em minhas memórias como um ambiente que se
transformara em um signo opressor, de um microcosmo anacrônico, sujeito as
roupagens equivocadas dos recentes e malformados gestores, que oprimiam
os direitos mais inerentes à atuação cidadã, conforme a minha suspensão
arbitrária no fim do Ensino Médio.
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Durante a minha graduação por meio da FPA, iniciei a minha inserção no
mercado cênico me articulando entre os amigos e me cadastrando, inclusive,
nas agências de propaganda com as quais participei de alguns vídeos. Este
período foi de intensa imersão nas artes, tanto no sentido teórico quanto no
prático, pois consegui dialogar e introjetar grande parte das aprendizagens do
meu métier. Realizei cursos em diferentes linguagens da interpretação cênica
de longas e curtas durações, incluindo os gêneros televisivos,
cinematográficos e, obviamente, teatrais. O entendimento amplo das
especificidades da interpretação me acompanhou ao longo da minha trajetória
artística, pois a minha curiosidade de dominar o maior número de linguagens
de atuação provocava a minha auto-afinação, como um instrumento em
prontidão, pré-disposto a ser manipulado conforme a necessidade.
Enquanto me dediquei exclusivamente às artes, amadureci meu senso
reflexivo, estético e humano. O fato de me apresentar continuamente a
diferentes públicos em diversas cidades brasileiras, possibilitou-me a
compreensão de que a arte possui alguns compromissos com o ser humano:
dialetizá-lo, apontá-lo, sugeri-lo, problematizá-lo, religá-lo, reconectá-lo,
ironizá-lo e por fim, humanizá-lo. Naturalmente, sem a maçante ideia didática
de “instruir quem não sabe”, mas sim, propositar uma experiência estética que
dialogue “olhos nos olhos” e que repercuta internamente de forma salutar,
libertadora, inclusiva e esperançosa.
Faz-se oportuna a evocação de alguns diretores teatrais/televisivos e de
professores da graduação em Artes Cênicas, que me acentuaram a percepção
no tocante à compreensão das fragilidades humanas, dos “fiapos humanos”,
como também fizeram por emergir das minhas ações um elo indissociável,
penetrante e transformador entre a minha arte (a minha atuação, que agora se
dá em termos educacionais também) e o público (figurado pelos estudantes):
Nicola Roberto Vignati, Antunes Filho, Roberto Lage, Prof. Dr. José Carlos dos
Santos Andrade, Analy Alvares, Prof. Dr. Marcelo Soler e Prof. Dr. Jairo
Maciel. Ressalvo estes educadores em específico, pois me ajudaram nos
18
pilares básicos da minha atuação, e hoje projeto as minhas aprendizagens
como educador artístico.
Após 10 anos de atuação enquanto ator profissional, tendo vivenciado o
cenário paulista teatral, alcançado algumas metas e outras não, decidi prestar
o concurso para o Estado de São Paulo como professor de artes. Esta
mudança de perspectiva de atuação me incitou à novidade e a um novo fôlego
para desvelar o andor contemporâneo da educação pública. Assumi o cargo
em janeiro de 2011, porém, antes, participei da primeira turma de formação da
EFAP – Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Professores – Paulo
Renato Costa Souza, onde recebi instruções básicas do ensino na rede
pública do Estado de São Paulo. Assim que tomei ciência do local onde minha
sede seria, de imediato me apresentei à gestão e aguardei o início dos
trabalhos, já que ainda cursava a EFAP.
No decorrer de 4 anos e 10 meses atualizados como professor efetivo
pelo Estado de São Paulo acumulei muitas experiências e histórias. Neste
ínterim, atuei durante 2 anos para a Prefeitura Municipal de São Paulo como
professor de artes PEB I e II, cargo efetivo, o qual exonerei em fevereiro de
2014 com o intuito de me dedicar ao Curso de Mestrado em Educação pela
UMESP – Universidade Metodista de São Paulo; além de ser chamado a
assumir mais outros 2 cargos efetivos pelas Prefeituras de São Bernardo do
Campo e Mauá, também como professor efetivo em artes, porém, estes
cargos não os poderia assumir por já acumular 2 cargos como funcionário
público. É válido mencionar outrossim que, nestes anos de dedicação ao
magistério, participei de duas montagens cênicas ficando em cartaz às sextas,
sábados e domingos; em outras palavras, mantenho meu faro estético com
frescor comprometendo-me profissionalmente quando tenho oportunidade de
conciliar os horários, os empregos.
Atuei por 3 meses como professor eventual antes de assumir o cargo
pelo Governo do Estado de São Paulo, passando a lecionar em todos os anos
a partir do quinto ano do EF II, o que me serviu de baliza, de preparação para
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os desafios inerentes à educação. Após tomar posse do cargo realizei os
seguintes cursos via Diretoria de Ensino de São Bernardo do Campo:
“Tão Perto Tão Longe II – Entrelaces com o Currículo de Artes” (2011),
este curso também foi Online e tratava de artistas visuais contemporâneos e
suas proposições estéticas particulares, culminou com a ida de todos os
professores participantes ao Pavilhão da Bienal para verem a exposição “Em
nome dos artistas – Arte contemporânea norte-americana na Coleção Astrup
Fearnley”. “Grandes Temas da Atualidade – Edição 2011”, curso composto por
12 videoconferências com duração de 2h30 cada uma e transmitidas por
streaming, observava temas presentes e correlacionados à Educação. “O
Ensino de Arte com Adaptação Curricular” (2011), neste curso, realizado
dentro da Diretoria de Ensino de São Bernardo do Campo, fez-me direcionar
um olhar mais cuidadoso às crianças deficientes, em situação de inclusão.
“Curso de Atualização Inglês Online para Servidores” (2013), o qual foi
interessante no sentido de contextualizar o inglês para uma prática cotidiana,
imediata. “Programa de Formação de Tutores – Profort” (2014), o qual me
capacita à tutoria em cursos que ensejam esta qualificação. Em 2015 realizei
três cursos complementares: “Mecanismos de Apoio ao Processo de
Recuperação da Aprendizagem: Articulação pedagógica e práticas de
intervenção”, “Recursos metodológicos e superação de defasagens” e
“Avaliação e recuperação de estudos”, cujo objetivo foi oferecer recursos que
auxiliam os professores no processo de recuperação, garantindo ao aluno o
direito de apropriação das competências/habilidades propostas pelo Currículo
Oficial do Estado de São Paulo. “Ensino Híbrido: Personalização e Tecnologia
na Educação”, foi o último curso concluído em 2015, cujo objetivo foi
apresentar possibilidades de integração das tecnologias digitais no contexto
escolar, buscando maior engajamento dos alunos na aprendizagem, assim
como, ampliação do potencial do professor para intervenções efetivas e
planejamento personalizado.
Aproximando agora de um curso especial que fiz ligado à Secretaria de
Educação de São Paulo, muito me alegra a escrita, pois foi exatamente a partir
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da Especialização em Artes para Professores do Ensino Médio – carga
horária: 440 horas, pela UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho, que eu me voltei aberta e pacientemente à Educação, pois
esta especialização conseguiu dilatar em mim a vontade de me tornar mais
conhecedor da minha própria profissionalidade e atuação. Iniciei-a em 2011 e
a finalizei em 2013 com um artigo chamado: “A atuação do educador ironista
na Educação”. Meu artigo aborda uma nova metodologia para a atuação do
educador contemporâneo nomeado, o ironista, concebida pelo professor
espanhol Dr. Imanol Aguirre, atualmente Diretor do Departamento de
Psicologia e Pedagogia da Universidade Pública de Navarra. Este artigo foi
escolhido junto a mais outros 8 pela organizadora Dra. Elisa Tomoe Moriya
Schlünzen com o intuito de formatar o e-book intitulado: “Desafios na Docência
em Artes: teorias e práticas”.
Com base na influência e envolvimento que tive com a ideia do
“educador ironista”, considerei importante propor o desenvolvimento desta
pesquisa no Mestrado em Educação, pela possibilidade de adentrar no
universo ironista mais profundamente e integrando-o à realidade brasileira,
mais especificamente, à educação nas escolas da periferia. Pretendo uma
revisão bibliográfica relacionada a esta metodologia com o intuito de
esclarecer os desdobramentos possíveis frente a uma educação caracterizada
pelos fenômenos contemporâneos, tais como a pluralidade, a fugacidade e a
construção da identidade tendo por contraponto a transitoriedade da
sociedade.
Meu processo formativo revela a valoração da dúvida, da pesquisa
provocativa, do aprimoramento contínuo, tanto em meus períodos da
educação básica quanto da graduação universitária, junto a isto, os cursos que
me ajudaram a afinar o olhar e o tato para a Educação. Percebo que não só
realizei mais cursos pela falta de tempo por possuir dois cargos públicos;
quando se tem empregos concomitantes, de algo deve-se abdicar. Este
momento, apresenta-se perfeitamente planejado para um mergulho acadêmico
que venha contribuir com um pensamento provocativo, com uma produção
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intelectual de valia para os educadores enquanto prática mediadora na
educação.
A minha experiência como educador em educação artística ao longo dos
três primeiros anos me revelou que, as aulas de artes possuem um potencial
de transformação social, de conscientização reflexiva que se desdobra na
pluralidade interdisciplinar dos saberes humanos, contribuindo indelevelmente
à construção identitária dos alunos em diversos níveis, como psicológico,
emocional e comportamental.
Porém, a interação do aluno-professor se revela como um dos pontos
cruciais para formatar esta nova cumplicidade de aprendizagem estética e
humana. Daí, surge a necessidade por parte do educador contemporâneo em
artes de avançar nas suas próprias qualidades, em atributos profissionais e
pessoais, e até mesmo em suas defasagens de formação, com o intuito
obstinado de se melhorar continuamente para provocar os espantos estéticos
prementes de uma educação artística valiosa, válida, contextualizada,
multidisciplinar, sagaz, dotada de conceitos e práticas que intencionem a
solidariedade, o espírito coletivo e o conhecimento.
Imanol Aguirre ao propositar o educador ironista como uma forma
atualizada de “ser” professor frente às adversidades, indica um caminho de
intervenção provocativa, pois entende que novas respostas ou novos
encaminhamentos se fazem necessários na atuação do educador na pós-
modernidade.
O educador ironista, enquanto proposição didático-pedagógica, ainda
não se faz conhecida para a maior parte do segmento dos professores, por
esta razão, talvez, trazer à luz esta possibilidade e/ou intervenção recente
desde os seus primórdios, levantando as raízes do ironista, contribua como
uma nova perspectiva de atuação e lida ante às demandas transitórias que a
sociedade vivencia.
22
A sociedade contemporânea apresenta-se fragmentada e em constante
transição; o fato do educador intencionar satisfatoriamente as suas metas
educacionais de forma atualizada, consciente e sensível às alteridades
inerentes ao processo educativo, oportuniza o esclarecimento por meio desta
pesquisa que se faz presente, um novo perfil de educador atento às
fugacidades, mediador interessado nas possibilidades que nascem do
espontâneo, do “aqui agora”.
Mediante o desinteresse crescente entre os alunos, a revelação de
baixos desempenhos por meio de pesquisas e avaliações internas e externas
à escola, é natural que as pessoas ligadas à Educação e a própria sociedade
se perguntem: Aonde está o problema? Quais são os pontos frouxos? Quais
papéis não estão desempenhando bem? Será que cada ator está ciente da
sua função e do seu objetivo? O cenário está posto, mas como podemos agir e
reinventar novas disposições dos elementos em cena? Quem media os
conhecimentos propositados pelo currículo são os professores, mas à medida
que cabe a eles, pode se reconfigurar num processo contínuo de formação, de
evolução, a ponto de atingirem um diálogo (de fato, dialógico) mais profícuo
com alunos? Será que o educador ironista por intentar ser camaleônico, ou
seja, intuir a adaptação incessante às condições postas “in loco” da escola – e
não oferecer resistências às características daquela região; flexibilizar as
certezas; duvidar e reencontrar novas sendas junto aos alunos; ironizar e
elucubrar o senso-comum, o lugar-comum, “a voz do povo”, a unanimidade;
não tenha algo a oferecer à atuação do educador, ou ainda mais, não possua
espaço para propositar o seu parecer?
Procurando sugestionar às condições apresentadas no panorama
educacional, o educador ironista se disponibiliza como uma proposição de
intervenção contínua, investigativa e contemporânea para juntar forças, somar
respostas mais adequadas ao contexto problematizado e que urge de uma
ação instituinte.
23
Assim, a questão que norteou esta pesquisa foi: qual a contribuição da
teoria ironista para a formação e a atuação do arte-educador de forma
que o mesmo possa enfrentar as demandas educacionais
contemporâneas a partir de uma atitude provocativa, instigadora e
propositiva?
Com o intuito de esclarecer e, ao mesmo tempo, apontar as
possiblidades da atuação ironista dentro da educação, seja dentro da escola
pública quanto da privada, fez-se uso da revisão bibliográfica enquanto
metodologia nesta dissertação, que está organizada em três capítulos: no
Capítulo 1 – “Em busca de uma sociedade mais humana”, é realçada a
premente necessidade de que as práticas educacionais possam desencadear
um espírito coletivo nas aprendizagens, uma construção sucessiva de
habilidades, competências e potencialidades científicas e humanas, de forma
que as relações sociais se redesenhem em perspectivas solidárias, justas e
democráticas; contempla-se em interface, apontamentos da realidade
contemporânea do arte-educador brasileiro. No Capítulo 2 – “A ironia como
instrumento do saber”, reflete-se acerca de duas dimensões atreladas à ironia:
a epistemológica e a pedagógica; onde o conceito da palavra ironia é
averiguado epistemologicamente e, ao mesmo tempo, aponta-se a
possibilidade de intervenção (postura pedagógica) do arte-educador
amalgamada à ironia. No Capítulo 3 – “Do inovar ao libertar: o pensamento de
Imanol Aguirre”, apresenta-se o educador Imanol Aguirre, assim como, uma
exposição da origem e desenvolvimento da concepção ironista no contexto
educacional, visando a mediação estética diferenciada do educador ironista
que, ao provocar o exercício da protagonia, arroje os estudantes à libertação
reflexiva. Nas considerações finais, as ponderações desenvolvidas ao longo
da dissertação foram sinteticamente pontuadas conjuntamente à percepção de
que o arte-educador precisa amiúde ampliar e investir em seu domínio de teor
histórico-estético, pedagógico, analisando criticamente o cenário educacional
disposto na contemporaneidade e suas possibilidades de intervenção.
24
CAPÍTULO 1
EM BUSCA DE UMA SOCIEDADE MAIS HUMANA
Refletiremos sobre práticas pedagógicas voltadas ao auxílio docente, à
condição ética do exercício profissional e à autocrítica. A descrença da certeza
didática será problematizada para que a criatividade possa ser impulsionada a
descobrir melhores respostas perante a dinâmica contemporânea.
Analisaremos as atitudes docentes que provocam a emancipação dos saberes
em interface à posição política da sua profissão. Buscaremos expor pontos de
tensão na atividade do educador e, ao mesmo tempo, sinalizar o compromisso
com a edificação de uma sociedade mais humana.
1.1 O cotidiano escolar e as competências prementes
A escola não possui outro papel senão aquele de ser insubstituível para o
processo formativo do ser humano, de garantir com que proficiências de
saberes e de “savoir-faire sejam adquiridos por todos de maneira sistemática e
organizada. Tem uma função social específica que é a de gerir estas
aprendizagens”, conforme Meirieu (1998, p. 17, grifo do autor). Entretanto,
pouca relevância é dada pela mídia à Escola e ao profissional que, por
exemplo, descobre um instrumento pedagógico que facilita à maior parte dos
alunos assimilarem conhecimentos, em contrapartida, qualquer engenheiro que
produza um parafuso específico que mobilizará uma indústria e, por sequência,
arrebanhará milhões de dólares, será convidado à uma entrevista exclusiva
com pompas aristocráticas. Infelizmente, ao se tratar de alunos e professores,
há uma contingência demagógica de vozes que vive a exortá-los “ao trabalho,
à disciplina e à honestidade” (p.18).
Em “Aprender... Sim, mas como? ”, há uma profunda proposição de
análise da qualidade profissional do docente. Meirieu (1998) insinua a
possibilidade da mudança na Escola “se os problemas forem colocados em
termos de competência profissional dos professores, de qualidade de serviço
25
prestado, de eficácia da gestão das aprendizagens”, neste sentido deseja se
fazer claro:
E não é para obedecer ao mito da empresa que se utiliza aqui o termo “gestão”, nem é para santificar tudo o que vem do Japão que se evocam os “controles de qualidade”. Há muito tempo os professores do primários e secundários questionam os problemas de gestão da classe, não para buscar os meios de nela trabalharem tranquilos, mas para descobrir que instrumentos podem ser eficazes, como regular o seu uso e trabalhar, juntamente com os alunos, para gerir esse sistema complexo de limitações e de recursos que juntos constituem (MEIRIEU, 1998, p. 19).
São contundentes os seus discursos, pois sabe o quão os educadores
não gostam que sua missão esteja reduzida à uma condição tecnicista. Reforça
que “não há ´boa educação` sem uma boa aprendizagem” e conclui “que toda
aprendizagem bem sucedida, realizada de maneira lúcida, tendo encontrado
meios de identificar suas aquisições e de regular seus métodos é
autenticamente educativa” (p.19). Enfatiza que a pedagogia é uma prática da
decisão concernente à ciência da educação, e que os professores são
convocados a se comportarem como “verdadeiros atores sociais” (p. 21).
Entendamos as conjecturas dialogicamente, pois na condição de abertura
nos aproximaremos de outras perspectivas; esta é a razão de estarmos aqui
averiguando outras possibilidades de percepção. A luz e o rigor atribuídos a
Sócrates, são lançados por Meirieu na direção do professor, que segundo o
autor, “não é senão aquele que ilumina... que ilumina o que já existe” (p.27).
Ao professor cabe um quê de despojamento, que se recuse a “posição de
genitor” do saber; basta que assuma, talvez, o papel de “iluminador”, tendo em
mente que “as coisas nascem através dele, não nascem dele.” Ao tentar
ensinar, há que se conduzir à descoberta e a força de transmissão se perderá;
o aluno é o detentor da aprendizagem, do conhecimento assimilado. O
educador que compreender-se limitado tal qual “um acompanhante”,
assessorará no percurso, pois sabe que não pode aprender pelo outro. Esta é
uma visão progressista de educação. (p.34).
26
O processo educativo passa a “suscitar e desenvolver” competências que
terão alguma função social, fornecerá instrumentos aos indivíduos que se
integrarão em determinado grupo social, constituindo o seu lugar. O ensino-
aprendizagem procurará mediar provocativamente as bases dos diversos
conhecimentos:
O indivíduo é irremediavelmente um ser social e, como tudo o que faz e diz é englobado, estruturado, expresso pelo social, é apenas um ser social. A sociedade nada pode dele obter que ela mesma não tenha, de uma certa forma, nele introduzido. Por mais que tentasse se emancipar, só poderia ao preço de uma difícil metamorfose exigindo novas inculcações. Por mais que se encontre privado de seus quadros sociais, ele tenta reconstruí-los minuciosamente e deve, como Robison Crusoé, ritualizá-los o suficiente para não os perder completamente, para não se perder completamente (MEIRIEU, 1998, p. 36).
Como seres sociais buscamos compreender o mundo exterior,
integrando-o em nosso universo; passamos então a construir sistemas de
representação que irão se aprimorar gradativamente até alcançarmos mais
possibilidades de ação e intervenção no mundo (p.37).
Meirieu (1998, p. 38) anuncia que a prática pedagógica é tecida de
tensões. A prática é a história adornada de fugacidades, passagens, transições
e conflitos; nada é linear, mas sim dialético. Há sujeitos que se confrontam,
trabalham e se articulam com estruturas cognitivas diferentes. O cenário
histórico inclui a construção do saber entre seres que se pressionam e
resistem, e a história se dará neste espaço onde não há receita, não há
“certeza de sair dela totalmente ilesos” (p. 39). O fato de não sacrificar nenhum
dos polos que estão em tensão, fará com que a tensão se revele maior e mais
fecunda, atendendo um objetivo ou um querer de ambos. É um “colocar-se sob
tensão” para se criar um terreno dinâmico de dialogias que fogem da
tranquilidade. Quando se pensa na realidade brasileira e todas as
complexidades que giram entorno da Educação Pública, considerando a
proposição de Meirieu, diríamos de imediato que não é uma tarefa atraente e
confortável.
27
Se o educador deseja se tornar um profissional com intencionalidade, é
natural que se esforce por dominar “o ‘conhecível’, que explore, em todos os
sentidos, os conhecimentos que deve fazer com que sejam adquiridos, que
compreenda as suas gêneses e suas lógicas, que examine todos os recursos.”
Porém, os saberes que estão sendo estimulados não pouparão “o professor da
imaginação e da inventividade didática” (MEIRIEU, 1998, p.41).
As intervenções podem explorar os pontos de apoio do estudante, como:
quem é ele? Qual a sua idade? As suas referências culturais? Quais
acontecimentos marcantes em sua trajetória de vida? O professor insistirá em
novas abordagens para tramar saberes que devem ser alcançados e
formulados; em outras palavras, o professor trabalhará a situação geral do
aluno, assim como ambiente de aprendizagem; observará em suas
proposições o domínio sensório-motor, o cognitivo e o afetivo; sensibilizará em
diversos níveis de complexidade e fará uso de diferentes suportes para tal;
manipulará a organização do seu trabalho para facilitar a aprendizagem;
lapidará as competências escolares, sociais e pessoais com os alunos,
praticando a curiosidade e estimulando o engajamento dos mesmos na
aprendizagem (MEIRIEU, 1998, p. 43).
Ao preparar uma sequência de aprendizagens, o professor seleciona
objetos que farão emergir uma noção ou conceito e dosará os documentos e as
instruções, pois o respeito ao ritmo se faz prudente. Todo sucesso alcançado
deverá “ser ultrapassado, retrabalhado, reorganizado”, as aquisições não são
definitivas, segundo Meirieu (1998, p.59).
O desequilíbrio é necessário à evolução dos saberes; ofertará a produção
de novas representações de conhecimento, pode-se apostar em informações,
materiais que interajam com o projeto de aprendizagem em teste. O projeto é
um “meio de exploração”, “um instrumento de previsão” que, se porventura,
não confirmar na realidade a eficácia, caberá uma revisão. (MEIRIEU, 1998, p.
59-60).
28
O educador pode insistir consistentemente nas propostas de situação-
problema, pois é um elemento-chave para as rupturas das representações
herméticas:
A situação-problema, simplesmente, põe o sujeito em ação, coloca-o em interação ativa entre a realidade e seus projetos, interação que desestabiliza e reestabiliza, graças às variações introduzidas pelo educador, suas representações sucessivas; e é nessa interação que se constrói, muitas vezes irracionalmente, a racionalidade (MEIRIEU, 1998, p. 63, grifo do autor).
Metodicamente, Meirieu nos oferece reflexões para a prática docente e
propõe possíveis intervenções que objetivam determinado saber; provoca-nos
mencionando que “os conhecimentos não são coisas que se acumulam, mas
sistemas de significações através dos quais o sujeito se apropria do mundo” e
que “a memória não é uma seleção de arquivos, mas a integração de
informações em um futuro possível para o qual nos projetamos”; é notório que
“os conhecimentos não se constroem sobre a ignorância, mas sim pela
reelaboração de representações anteriores sob a pressão de um conflito
cognitivo.” (MEIRIEU, 1998, p. 65).
Em síntese, indica-nos a concepção de materiais e instruções que
auxiliem a construção do conhecimento específico; o equilíbrio e, portanto, a
estabilização de uma nova representação em um nível superior; a atração que
mobilizará o aluno por meio de três ordens de situação-problema: de
comunicação, de resolução e de utilização; a distinção do aluno com
dificuldade, pois convirá intensificar a pressão do dispositivo como um
treinamento complementar, do aluno bloqueado, com o qual deverão ser
encontrados novos pontos de apoio e novas abordagens, ou seja, uma
alternativa pedagógica. (MEIRIEU, 1998).
A relação de Sócrates com quaisquer interlocutores, levava-os por si
mesmos à descoberta de alguma ciência. Meireu acentua esta intervenção que
se nega a assumir alguma autoria de ensino e “mostra a imperiosa
necessidade de levar em conta a interioridade do sujeito no exato momento em
29
que se age do exterior sobre ele”; assevera que somos “ atormentados pela
ética e sua exigência última: fazer advir a humanidade no homem” (1998, p.
72, grifo nosso).
Assegura que o centro da aprendizagem é a ética, pois nos capacita ir
além das alternativas estéreis; só a ética permite os homens determinados
instituírem enclaves educativos que se negam às simplificações “’faça como
você quiser’” e “’faça como eu quero’”. De fato, não há um mar de rosas para
este perfil de educador, pois tudo é frágil e precário e esta posição educativa é
insustentável, quase não se consegue manter-se instalado, no entanto,
conforme Meirieu, esta “é a única posição possível para quem quiser fazer com
que o outro aprenda.” Não encontramos aqui, explicitamente, os caracteres do
ironista e sua capacidade de se reinventar, de aceitar a transitoriedade como
um dos bens da contemporaneidade? (MEIRIEU, 1998, p. 75).
O aluno pode ser seduzido e sentir-se contente com o fato, pois “pode-se
encontrar prazer na dificuldade, no trabalho com a complexidade cujas chaves
são lentamente descobertas [...] e é justamente o aluno capaz desse prazer
que terá êxito na escola”, afirma Meirieu (1998, p.81). Ao sair da aula, o aluno
seduzido pela aprendizagem estará compreendendo o que pode identificar e
reutilizar em outros contextos a partir desta determinada aprendizagem
estimulada; isto é chamado de “conhecimento identificado” do qual o aluno se
torna mestre por meio do auxílio de outros. O “triângulo pedagógico” se dará
entre educando-saber-educador, o fascínio é próprio desta triangulação movida
pela lentidão e pelo caos, porém, rumo à autonomia.
Para Meirieu, o educador pode constituir a sua prática metodológica
atendendo alguns princípios de organização
[...] esforçando-se para sair das tradicionais formulações em termos de conteúdos de programas para elaborar objetivos unívocos e explícitos, construindo progressões rigorosas de identificação dos pré-requisitos e o encaixe dos objetivos uns sobre os outros, certamente, obtêm-se os meios de livrar a ação pedagógica da improvisação sistemática [...] Sendo assim, é particularmente útil que os professores façam a
30
análise, em termos de objetivos, dos saberes que têm função de ensinar e que construam caminhos didáticos rigorosos: além da fecundidade do exercício para a formação pessoal daquele que o executa, isso favorece, na verdade, um instrumento de ajuste muito precioso para a prática educativa [...] (MEIRIEU, 1998, p.81-82).
O sucesso da aprendizagem, poder-se-ia dizer, está intrincado na
capacidade de suscitar o desejo de saber, porém, sabe-se da dificuldade de
implementar desejos quando os atrativos não são os que mais apetecem o
aluno. Meirieu continuamente rediz que educar não é uma tarefa fácil e o leitor,
certamente, consente que não é uma das atividades mais domináveis, até
mesmo para o próprio profissional da educação que vive a assimilá-la.
A elucubração desta problemática evidencia que os desejos não podem
surgir do nada e, necessariamente, devem estar associados ao que já existe; o
educador se torna nestas condições um criador de enigmas, ou seja, mostra-os
o suficiente para que surta interesse pelas suas riquezas, porém, cala-se a
tempo para que os alunos possam suscitar vontade de desmascará-lo. É um
jogo no qual fala-se “’muito e não o bastante’”, não se pode descortinar a
surpresa, esta tarefa é de quem seduzido foi e agora deseja adentrar os seus
segredos (MEIRIEU, 1998, p.92).
Ao mesmo tempo, anuncia que o professor precisa, paradoxalmente, em
sua relação educativa, estar muito distante e muito próximo dos alunos:
“próximo o bastante para que se possa ser como ele um dia, distante o
suficiente para que se tenha a vontade de ser como ele um dia.” O professor,
nesta teia complexa de relações, tem de revelar a sua diferença, “mostrar-se
na posição mais bem sucedida”, assim como mostrar a sua extrema
proximidade, a sua emoção compartilhada, a sua inquietação e medos, revelar-
se humano; ainda, anunciar os seus objetivos e o seu saber convicto, ansiando
por adesão, como também, empaticamente, projetar-se na figura de alunos e
descobrir respostas aos seus problemas pedagógicos (1998, p.94, grifo do
autor).
31
Quanto à gestão de uma sala de aula, Meirieu (1998, p.102) aponta a
eficácia de rituais distintos, que garantem o funcionamento do ensino-
aprendizagem. Cita o ritual de organização de espaço que permite cada aluno
a se apropriar de um território; o ritual de divisão de tempo que organiza
momentos de trabalho individuais, em grupos ou de informação coletiva; e o
ritual de codificação dos comportamentos que assegura a segurança física e
psicológica de todos.
O esmero que um professor precisa cultivar é o de traduzir “os conteúdos
de aprendizagem” em “procedimentos de aprendizagem”, ou seja, conforme
melhora e burila esta capacidade de sequenciar operações mentais e realizá-
las compreensivamente em sala de aula, objetiva o conteúdo como um
dispositivo didático, e isto só se consegue com a análise da prática e da
atividade intelectual, tendo em vista condições que garantem êxito no ensino-
aprendizagem (MEIRIEU, 1998, p.117).
Dentre muitas ferramentas que visam a melhoria da didática docente,
Meirieu inclui operações mentais intrínsecas ao processo de aquisição do
saber: a operação mental da dedução – colocar-se do ponto de vista das
consequências de um ato ou de um princípio, neste caso, o professor deve
organizar a experimentação das consequências; a operação mental da indução
– confrontar elementos (exemplos, fatos, observações) para fazer emergir seu
ponto comum (noção, lei, conceito), neste caso, o professor deve organizar o
confronto dos materiais escolhendo os materiais, emergindo similaridades,
pedindo ao aluno para descobrir um novo material; a operação mental de
dialetizar – colocar em interação leis, noções, conceitos, evoluindo variáveis
sem sentidos diferentes e chegando à compreensão de um sistema (operações
formais, abstrações reflexivas), neste caso, o professor deve organizar a
interação entre os elementos, utilizando as formas de “de jogo” adaptadas e
impondo a rotação sistemática dos papéis; a operação mental de divergir –
relacionar elementos que pertencem a domínios diferentes, buscando novas
associações, relações originais entre as coisas, as palavras, os registros de
explicação, neste caso, o professor deve organizar o encontro com o
32
inesperado, impondo relações não habituais e permitindo avaliar a pertinência
das mesmas (MEIRIEU, 1998, p 122-123).
Com Meirieu percebe-se que o educador se apoia no sujeito e suas
aquisições prévias (“pré-requisitos estruturais” – natureza e nível das
capacidades dominadas; “pré-requisitos funcionais” - natureza dos
conhecimentos e nível atingido nas representações), inclusive em suas
estratégias, ou seja, é preciso que se integre novos dados em sua estrutura
cognitiva, assim teremos articulação com o já conhecido. A avaliação
diagnóstica possui importante função neste sistema. A ação didática é
direcionada conforme o sujeito tal como ele é, intui o enriquecimento das
competências e capacidades, além de facilitar que o indivíduo modele novas
estratégias com as suas representações (MEIRIEU, 1998, p. 135).
O educador, conforme Meirieu, precisa se inteirar com as três dimensões
do ato de aprender: a relação pedagógica, o caminho didático e as estratégias
de aprendizagem. Quão mais conhecedor destas esferas, o educador atingirá
eficazmente os seus objetivos no ensino-aprendizagem. A formação do
educador é permanente, pessoal e essencial; cabe a ele desvendar os enigmas
da sua profissionalidade.
Para o educador que atua na periferia, no subúrbio, como relata Meirieu,
(tomando por base a minha própria atuação periférica), a experiência prova que
o cotidiano é permeado de extremas dificuldades, o que permite um acesso
lúcido acerca das questões da educação e da sociedade. Contudo, esta
empiria laboriosa, suburbana, não assegura por si mesmo, a resolução dos
problemas com os quais se depara. Compreende-se que a lucidez não basta
para garantir a eficácia do ensino-aprendizagem, mas já é um começo
(MEIRIEU, 2002, p. 21).
Há um privilégio no âmbito do exercício pedagógico ao se trabalhar em
subúrbios que “continuam sendo os pontos mais sensíveis de nossas
sociedades [...] onde nossa determinação educativa é verdadeiramente posta à
33
prova.” Os vínculos sociais são sensíveis e expostos aos riscos de dissolução
nestas condições emergentes, onde o educador realiza um “esforço essencial
para permitir aos jovens que vivem ali reconhecer-se juntos em sua
humanidade e compartilhar essa humanidade sem renegar suas
especificidades” (MEIRIEU, 2002, p. 22).
[...] é nos subúrbios que se situam atualmente nossas fronteiras essenciais e que as fronteiras são sempre desafios fundamentais para os homens: fronteira entre o norte e sul, entre a democracia e o fanatismo, entre a integração absoluta e o respeito às diferenças... fronteiras que se movem, evidentemente, mas fronteiras que separam os homens e clivam seriamente todos os seres que as atravessam várias vezes por dia (MEIRIEU, 2002, p. 23).
Relata que na educação há muitas humilhações que comprometem o
desenvolvimento pleno dos estudantes, limitando o seu processo
irrecuperavelmente, de forma a bloquear a compreensão de si mesmo e do
mundo. Se a intenção é provocar o “saber libertador”, o educador precisa
firmar-se em suas aprendizagens metodológicas num contínuo garimpar-se.
Concebe que da tensão entre a prática e a teoria, pode nascer o “verdadeiro
valor pedagógico”, o qual resulta no estímulo para a criança crescer. Apenas
estimula, pois depende da decisão do outro. O crescimento é a compreensão
do mundo e de si na busca por um lugar que faça sentido (2002, p. 33).
Discute o papel da escola como mediadora das grandes obras nas quais
a razão operou, para que continue servindo como uma instituição do Estado,
inclusive ambicionando e promovendo cultura, ofertando um início às crianças
e jovens estudantes, ou seja, “que instaure as condições para que o homem
revele-se a si mesmo.” O projeto de uma escola segue em consonância com o
“acesso a uma humanidade que vai além das conjunturas e das circunstâncias
nas quais vivem” os alunos, “poderão reconhecer-se juntos como parceiros da
mesma história intelectual e partilhar ali uma experiência que é o único meio
verdadeiramente capaz de contribuir de modo autêntico para o vínculo social”
(MEIRIEU, 2002, p. 48).
34
Para tanto, esclarece que o professor não pode abrir mão, renunciar do
“momento pedagógico”, pois, então, não haveria razão da existência da
pedagogia: o ensino-aprendizagem se bastaria numa troca de nível inferior, o
rigor e as exigências cederiam ao bate-papo sem objetividade voltada à
construção do saber. O “momento pedagógico” é o instante no qual o professor
frente às resistências de aprendizagem, demonstra a sua proposição estóica
dos porquês da relevância do educar; é um ato de compromisso ético.
Na educação há alguns profissionais insidiosos – não os chamarei (neste
momento) de educadores como gostamos de nomear os bons educadores,
pois fazem um desserviço à educação, à pátria, por fim, aos humanos que
recém chegaram à existência escolar; que confirmam por meio da sua prática
docente vacilante, tratamentos que degradam o jovem aluno e que os
preparam à submissão e à humilhação para o resto da vida (MEIRIEU, 2002, p.
65). Esforçamo-nos pouco a pouco para, definitivamente, como você leitor está
percebendo, marcar as diferenças singulares entre o educador que finge sê-lo
com os seus narcisísticos truques diários e o educador que não possui
descanso, pois o que mais lhe apetece é esquecer da fadiga trabalhando
eticamente ao lado dos seres que podem erigir e povoar um futuro melhor.
Barbosa (2011)1 afirma haver “... uma onda sentimentalóide em torno da
arte-educação”, cuja perspectiva apenas objetiva a transformação dos alunos
em seres mais sensíveis; o que diminuiria drasticamente o potencial do ensino-
aprendizagem estético. Para Barbosa, “... a arte desenvolve a cognição (...) a
capacidade de aprender”. Avança em suas asseverações e recorda de
experiências realizadas nos EUA em 1977, nas quais revelaram-se os
seguintes dados: estudaram os dez melhores alunos num período de dez anos
e constataram uma única característica em comum: todos haviam feito pelo
menos dois cursos de artes ao longo da sua trajetória escolar.
1 Em uma entrevista intitulada “Caminhos para a conscientização” à Revista Educação,
concedida ao repórter Flávio Amaral.
35
Salienta ainda que, o ensino de artes na escola pode acolher as crianças
rejeitadas pela própria instituição ou por terem dificuldade de aprendizagem, ou
problemas de comportamento, de forma a oportunizá-los a experimentação de
novas capacidades, sem medo e com ousadia. O papel da arte na Educação é
de primordial relevância para os avanços técnico-humanos:
[...] a arte possibilita que os indivíduos estabeleçam um comportamento mental que os leva comparar as coisas, a passar do estado das ideias para o estado da comunicação, a formular conceitos e a descobrir como se comunicam esses conceitos. Todo esse processo faz com que o aluno seja capaz de ler e analisar o mundo em que vive, e dar respostas mais inventivas (BARBOSA, 2011, s/p.).
Quando perguntada sobre os Parâmetros Curriculares voltados à arte,
Barbosa (2011) esclarece a sua postura de ser contra o currículo nacional,
enaltecendo o melhor ensino ocidental adotado pelo Canadá que, aliás, sempre
se recusou a ter um currículo nacional; revela que a Inglaterra piorou a sua
educação ao adotar um e na Espanha, simplesmente não deu certo. Esclarece
que os “... parâmetros foram feitos por gente muito boa, mas foram elaborados
por universidades hegemônicas” e fortalece a ideia de que “... não se determina
todo o conteúdo, apenas linhas estruturais. Se isso fosse debatido em cada
Estado, em cada município e depois em cada escola, seria uma coisa
interessante” (s/p).
Nós, educadores do Governo do Estado de São Paulo, conhecemos a
prática neoliberal que o governo paulista demonstra há mais de vinte anos;
infelizmente, o diálogo que Barbosa se remete não é vislumbrado na realidade
vivenciada nas unidades escolares. Avista-se somente um efeito que se origina
no topo do poder e, consecutivamente, os dominós atingem os mais periféricos.
Sabe-se que o currículo é uma questão de poder, de identidade; ele está
imanente àquilo que o ser humano se torna, poderíamos dizer: qual é o tipo de
ser humano desejável para um determinado tipo de sociedade? Ela será
humanista? Otimizadora? Competitiva? Neoliberal ou Socialista? Em poucas
palavras, quem formata o currículo que, logicamente, não é dialogado com
quem não pertence a hegemonia, pergunta-se entre os seus pares: qual
36
conhecimento deve ser ensinado? Pois, modificaremos as pessoas conforme o
conteúdo pré-ordenado; irão segui-lo. Com a massificação da escolarização
também se instauraram processos que racionalizam os resultados
educacionais com rigorosidade e especificidade; a ideologia da escola é a
mesma do Estado e serve-o.
Quanto à profissionalização do arte-educador, Barbosa (2011, s/p) expõe
que “... falta atualização permanente e os programas de atualização, de
maneira geral, não são adequados” e quase se solidariza, tamanho o fracasso
governamental com a educação, num esforço ao asseverar que, “... algumas
universidades estão se mexendo com tentativas de se estudar estética, filosofia
da arte e novas tecnologias.” Este, específica e honestamente falando, é o
estado da arte da Educação do Estado de São Paulo no ano corrente.
Contudo, como felizmente notaremos, alçaremos voo crítico e pedagógico,
porque precisamos compreender todas as sínteses com as quais os autores
deixaram em suspensão para que pudéssemos, à nossa maneira, ler e intervir
no mundo.
Acerca do “erro epistemológico” que a Estado e os municípios praticam
contra o arte-educador nos concursos públicos, Barbosa (2011) indica que as
atuais graduações em bacharéis, tais quais, artes plásticas, artes cênicas e
música, não comportam a aprendizagem de todas as linguagens, assim, os
profissionais não estariam preparados para isso. O currículo enfatiza a
aprendizagem de todas as linguagens, muito embora, não encaminha os
profissionais cujas competências são específicas. Ou seja, se a educação
fosse realmente projetada para possuir uma intencionalidade e um avanço
determinado, mobilizaria o seu currículo de artes com modalidades e
profissionais distintos de ensino-aprendizagem.
Pouquíssimos novos pesquisadores se formam na pós-graduação de
artes, após dois anos de mestrado ou quatro anos de doutorado; no caso da
Universidade de São Paulo, apenas vinte e um ao fim do quarto ano, segundo
Barbosa (2011). Questionada sobre a improvisação que as instituições públicas
37
e privadas realizam para “tapar” a lacuna de profissional licenciado ou
bacharelado em artes, problematiza expondo que “... o grande problema é que
o arte-educador tem poucas horas de aula. Resultado: para ter 40 horas de
trabalho, o professor corre de escola em escola”, sendo que nas escolas
públicas “... é comum o professor de história ensinar arte. E ainda tem aquela
ideia de que, se está faltando umas horinhas para completar o horário, o
professor ensina arte” (s/p).
Ainda que o ensino-aprendizagem em arte-educação esteja precário,
aponta progressos imensos ao indicar que qualquer diretor já sai da
universidade com a ideia de que o ensino de artes é importante para as
crianças e adolescentes. A pesquisa passou a ser respeitada também.
Todavia, faz questão de relatar que a Capes lhe enviou uma carta em 1972
dizendo que não lhe ofereceria bolsa de estudos, pois a arte-educação não era
uma área de pesquisa; depois de trinta anos recebeu a Ordem Nacional do
Mérito Científico, justamente por suas contribuições na arte-educação. Posso
me exemplificar neste sentido, relatando que ao solicitar bolsa de estudos para
o Governo do Estado de São Paulo, tendo como mediadora a minha diretoria
regional de São Bernardo do Campo, foi-me entregue um documento com
pouquíssimas palavras alertando-me ao indeferimento do pedido, pois a minha
preocupação com o objeto de estudo, o educador ironista, não condizia com o
currículo do Estado de São Paulo, portanto, não teria valia dentro dos
parâmetros estabelecidos. Registro o fato, pois foi justamente a Capes – daí a
importância das palavras que revelam progresso, segundo Barbosa, que me
concedeu bolsa de estudos. A Capes progrediu sim, ao contrário, do ainda
conservador Governo do Estado de São Paulo.
Sinaliza que os CEUS (escolas-modelo da Prefeitura de São Paulo) foram
a melhor iniciativa em arte-educação do Brasil, porque conseguiu integrar a
ideia de educação e cultura, levando espetáculos para a escola, cuja
experiência participei como ator durante alguns anos e, explicitamente, uma
nova cultura se construiu no jogo entre a escola, o estudante e as linguagens
artísticas. A cultura pode se dinamizar, emancipou-se e mais qualidade
38
profissional adentrou os portões das escolas periféricas. Porém, em relação ao
outro lado da ponta, Barbosa declara o desserviço que empresas operam:
[...] há quem pense apenas em formar orquestras para algumas empresas mostrarem que têm responsabilidade social. Tenho visto barbaridades, projetos equivocados, pensados para projetar o presidente da empresa ou o nome da mulher dele na revista Caras . Há projetos que instalam ateliês temporários em favelas, em que a comunidade ajuda um artista famoso a pintar o que ele determina. Há outro, apresentado como grande projeto social, que leva artistas para decorar a casa de favelados. Isso é oportunismo de pessoas explorando a ingenuidade dos pobres. Ou no mínimo uma brutal falta de consciência política. Não gosto que as empresas façam projetos, prefiro que elas apoiem projetos nascidos na comunidade (BARBOSA, 2011, s/p).
Adverte que a direita política tem se apossado da palavra cidadania e
distorcido-a, então, prefere pronunciar a palavra conscientização ao
correlacionar o sentido da arte-educação e seus efeitos sobre a educação.
Compreende que “... a arte abre caminhos para a conscientização social, para
a descoberta dos direitos, das obrigações de cada um. Tem um monte de
gente com discursos vazios que abusa do termo cidadania” e declara ter
arrepios quando ouve falar em educação para a cidadania: “... dependendo de
quem fala, pode ser uma picaretagem” (BARBOSA, 2011, s/p).
No artigo “Tecendo histórias do ensino de artes: conversas com Ana Mae
Barbosa”, no qual a mesma é entrevistada por Rejane Galvão Coutinho (2015)
em um diálogo que orbita entorno do lançamento do livro “Redesenhando o
Desenho: educadores, política e história”, Coutinho argui com Barbosa
expondo a sua preocupação acerca dos jovens professores, futuros
professores que estão em formação inicial ou continuada, especificamente no
sentido de como poderiam estimulá-los mais ao pensamento histórico, ao
cultivo da memória que tanto falta ao Brasil, em “... como trazer essas questões
para a sala de aula?” Barbosa explicita que a diretriz do exercício de memória
que concerne à constituição do ensino de artes no Brasil, assim como do arte-
educador, é fazer com que os próprios educadores ou futuros educadores
analisem a maneira como aprenderam:
39
[...] Como é que eles chegaram a universidade para cursar arte. Você faz com que eles, recuperando sua própria história e, através dela, relacionem aos acontecimentos do país, das mudanças políticas que levam as mudanças educacionais [...] Seus alunos, todos, tem respeito pela história e sabem que ela pode explicar algo do presente. Eu vejo isso em seus alunos. A pergunta: Onde começou? É uma pergunta que você sempre procura fazer para que seus alunos busquem analisar e responder questões. Onde começou essa prática de desenho pedagógico? Onde começou essa mania de polivalência? Importante analisar juntos e buscar as respostas. Eu acredito que a chave é essa: saber onde começa tudo, os problemas que temos hoje onde se iniciaram? E nossos grandes ganhos onde começaram? Esse é o caminho. Para se entender o hoje é preciso voltar, é preciso das origens, do passado (COUTINHO, 2015, p. 16, grifo nosso).
Nota-se em seus colóquios a necessidade de estimular os professores a
pensar de onde vêm as suas práticas, pois não podem ser alheios,
inconscientes de uma atuação que reproduz modelos, sejam enrijecidos ou
burocráticos, hegemônicos ou excludentes. É importante a consciência sobre a
metodologia empregada em sala de aula “... sabendo onde ela começa,
sabendo no quanto ela se transformou ao longo dos anos e de como nos
apropriamos dessa metodologia” (COUTINHO, 2015, p. 17).
O nosso estudo presente possui o intuito de, justamente, levantar o
questionamento sobre as possibilidades de atuação pedagógica do arte-
educador, impregnada da metodologia ironista, compreendida sobretudo pela
sua postura pedagógica, na qual o arte-educador se preenche com a certeza
de sempre duvidar, embora saiba muito bem orquestrar o processo de ensino-
aprendizagem minuciosamente, tendo em vista mais horizontes com os quais
possa se deparar.
Voltando ao Meirieu que acerta ao creditar para o seu livro o nome de “A
Pedagogia entre o Dizer e o Fazer – A Coragem de Começar”, pois é sincero
ao insistir em dizer que a tarefa de educar é difícil, que as crianças e jovens
estão em situação de descompromisso, com preconceitos até mesmo contra o
professor e resistentes às restrições; sabemos que muitas vezes, as primeiras
coibições sensatas direcionadas aos alunos acontecem em sala de aula
40
quando possuem cinco, seis anos, algumas vezes aos quinze, dezesseis anos.
Onde estava o exemplo, o reflexo, a referência familiar? São destas
complicações de cunho socioeconômicos, destes espelhos sociais, destas
marcas contemporâneas na unidade familiar que estamos a todo tempo nos
remetendo e, cada honesta intenção de conhecer metodologias e didáticas que
melhor funcionem frente a rede complexa da contemporaneidade, mais dignos
serão os resultados.
A coragem é imprescindível para se indignar, e em um sentido
educacional, o educador carrega em si o estigma rebelde contra o
establishment. O docente que se mobiliza incessantemente, não deseja que a
alienação seja amiga das mentes em processo formativo, não permite a miséria
se apossar do espírito da juventude mesmo que o seu entorno seja violento e
sádico. Este valioso docente não pode orquestrar um espetáculo fantasioso,
muito embora, possa sonhar boas esperanças após um dia exaustivo,
conflituoso, de um ofertar-se sobre-humano (MEIRIEU, 2002, p. 68-69).
Praticar o ensino exige solicitude, ou seja, uma entrega deliberada que
assessore a aprendizagem alheia, nestes termos, Meirieu ressalta:
Significa dizer também que a solicitude pedagógica não é de modo algum uma intenção pura, livre de qualquer envolvimento pessoal, uma espécie de “santidade educativa” acessível apenas aos seres excepcionais... Ela é a expressão do fato de que a preocupação consigo e a preocupação com o outro estão sempre estranhamente misturadas, indissociáveis, em um tormento que permite entabular, exatamente por sua complexidade, uma história surpreendente e singular com os outros seres humanos que se pretende, dessa maneira, educar e salvar da ignorância e da infelicidade (MEIRIEU, 2002, p. 73, grifo do autor).
Educar exige ética, remete à responsabilidade, à relação e o quão o
educador se disponibiliza a um real encontro de aprendizagem, que possa
gerar felicidade e saber. Um projeto que esteja comprometido com o
desenvolvimento educacional, particularmente representado pelo educador em
sua aula, demanda “’trabalho sobre o saber que ensina’”, ou seja, por ser
41
evidente, muitos professores, instituições formativas, podem subestimar este
fator, porém, é ele que dá sentido ao trabalho: dar atenção à especificidade
epistemológica do que é ensinado; compreender os princípios organizadores
da disciplina considerada em função dos imperativos dos programas e
identificar os objetivos-núcleos em sua especificidade e em sua complexidade.
Porém, o professor saberá a medida da transposição deste estratagema
didático à realidade; a ética deve imperar no processo até que a relação de
ensino-aprendizagem alcance a partilha (MEIRIEU, 2002, p. 91-92).
Tal qual Philippe Perrenoud, Meirieu, aprecia o “’trabalho do sonho’”, no
qual o professor mediante dificuldade, duvida, hesita, reflete, formula hipóteses
e estratégias; justifica-se relatando que quem não sonha não duvida, então
sabe o tempo todo o que pode e sabe fazer, não conhece a incerteza, perde
tempo arquitetando coisas que não fará, esta pessoa não se arrisca a inventar
nada, está condicionado a enfrentar problemas apenas cujos dados sejam
identificados, do contrário está perdido. Portanto, às vezes pode-se perder
tempo, energia e ideias, mas só desta forma, alguma condição criativa
suscitará (MEIRIEU, 2002, p. 107-108).
O educador é fundamental na construção da autonomia que vai se
efetuando por meio de níveis de aprendizagem, cabe a ele oferecer confiança e
honrar esta trajetória de dignidade com “formulações que permitam apreender
aquilo que se quer transmitir” assim como “inventar permanentemente novas
situações de aprendizagem”; percebe-se um faro educativo insatisfeito que
planeja “investir sua energia na busca de demonstrações mais eficazes e de
mediações que permitam ao aluno ter acesso à cultura que o livrará de seu
preconceitos e que lhe oferecerá os meios de se pensar no mundo”.
Considerando que este educador em prontidão jamais imporá nada ao outro
com violência de algum dispositivo (MEIRIEU, 2002, p. 123-124).
Meirieu compartilha que a pedagogia é uma gramática de saberes, que
pode organizar o caos de todos os conhecimentos, de forma a ofertar acesso
42
progressivo ao espírito humano e, ao mesmo tempo, experienciar o limite do
poder entre os homens (MEIRIEU, 2002).
Criteriosamente, proposita-nos uma configuração que muito servirá ao
educador ironista – não podemos esquecer que todo aparato aqui refletido
incrementa possibilidades, sugestões, que visam a constituição e a reflexão
acerca de um novo perfil de docente, seja para a atuação na disciplina de Artes
como a priori Aguirre (2009) nos apresentou, seja para a pluralidade das
disciplinas que constituem o Currículo; revela-nos saberes pedagógicos que
podem auxiliar a percepção docente. A descrição das quatro divisões que
Meirieu concebe para os operadores pedagógicos pode parecer confusa, como
até mesmo o autor avalia, porém, as modalidades de operação são plataformas
que manifestam intencionalidade pedagógica, obviamente irão requerer em sua
prática especificidades de objetivos e de métodos que o educador irá aliar;
contudo, salientamos, como sugerido por Meirieu, o professor pode encontrar
liga, por um lado, entre as operações de continuidade e ruptura, por outro,
entre suspensão e risco:
Se consideramos o aluno como um sujeito já constituído, cujas representações, desejos e interesses devem ser levados em conta, e se acreditamos na necessidade de lhe fornecer ferramentas intelectuais necessárias ao seu desenvolvimento, o operador pedagógico será exatamente a continuidade: continuidade entre sua história e seu projeto, continuidade entre o sujeito reconhecido como tal e as responsabilidades que deverão ser confiadas a ele, continuidade entre sua inserção cultural e social e os saberes que serão ensinados.
Se consideramos o aluno como um sujeito em formação que se deve
libertar de todas as aderências psicológicas e sociais que o prendia, se essa concepção é acompanhada da convicção de que os saberes são juntamente os meios que lhe permitirão aceder à condição de adulto, o operador pedagógico será a ruptura: ruptura entre o caráter aleatório e caprichoso de seus desejos e a realidade universal de uma cultura emancipadora, ruptura entre os caprichos, suas decisões imaturas, e a reflexão profunda que requer o acesso à cidadania, ruptura entre os ritos e a violência da sociedade infantil e o poder de argumentação que está na base de uma sociedade de adultos.
Se percebemos o aluno sobretudo como uma pessoa que se deve interpelar para que encontre em si mesmo a coragem exigida para estabelecer um contato com os outros seres e com outros saberes, e se, por outro lado, o consideramos como um sujeito já constituído, então o operador pedagógico será a suspensão: suspensão da imediaticidade dos posicionamentos, que é preciso reconhecer como legítimos, mas que se deve pedir que os reavalie quando um outro se opuser a ele, suspensão de seus compromissos institucionais, sociais ou mesmo
43
político aos quais ele tem direito, mas que se preocupará inserir em um conjunto de regras de funcionamento que permitirão o debate sem violência... suspensão da expressão de uma personalidade digna de ser reconhecida como tal, mas que também deve aceitar e reconhecer o direito dos outros à sua própria expressão.
Se consideramos o aluno como um sujeito em formação, cujas posições são ainda muito frágeis e aleatórias para que se possa alimentar nele a ilusão de participar de uma vida democrática prematura, porém se fixamos como objetivo educativo essencial para ele a perspectiva de um engajamento pessoal e a “coragem de começar”, então o operador pedagógico será o risco: risco de um sujeito que aprende a se colocar em cena sem recorrer à reprodução ou à imitação, risco de um sujeito que pela interpelação pedagógica, escapa aos conformismos sociais, assim como às imagens de si mesmo, nas quais sua história e o olhar dos outros ameaçam aprisioná-lo, risco que a educação deve ensinar o sujeito a assumir, mas sem alimentar nele a ilusão de que isso já lhe dá direito, antes mesmo de ingressar na sociedade adulta, a um reconhecimento incondicional (MEIRIEU, 2002, p. 146-147, grifo do autor).
Fornece-nos um material repleto de matrizes que possibilitam a leitura das
condições, posicionamentos, níveis, avanços nos quais os alunos estejam. Há
que se levar em conta no processo de ensino-aprendizagem, naturalmente, os
centros de interesse do aluno, as aquisições já realizadas, as representações,
as estratégias individuais de aprendizagem, a relação social com o saber, a
inserção familiar e local, a cultura de referência, a violência de seus impulsos,
seus engajamentos espontâneos, a obediência ou a resignação à lei do mais
forte, os papéis que foram atribuídos ao sujeito pelo grupo, a imagem de si na
qual se aprisionou, suas próprias dificuldades pessoais, sua ignorância, sua
incapacidade, seu fracasso ou seu medo (MEIRIEU, 2002).
Recomenda um “princípio regulador”, uma transferência, que será
realizada pelo educador ao trabalhar nos quatro setores. Nada mais é que a
dinâmica pela qual o indivíduo se apropria do saber incorporando-o em seu
desenvolvimento para alcançar novos saberes. Há três abordagens que o
educador poderá transitar conforme os níveis dos alunos:
a) a transferência utiliza um conhecimento, uma competência ou um
domínio. O professor introduz uma dinâmica que conduza o aluno a se projetar
em seu próprio futuro e tecer relações possíveis do que está aprendendo.
Neste processo pode haver incitação de novos problemas e paralelos de nova
aprendizagem com o que outrora já havia sido aprendido.
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b) a transferência remete à possibilidade de “criar pontes”. Neste caso, as
pontes são entre as disciplinas, entre a situação de formação e a de trabalho,
entre os saberes escolares e a vida pessoal e social do aluno. Supõe-se uma
“transposição”, um “transporte” de uma ferramenta ou situação a outra, intuindo
uma “reconstrução de esquemas de ação em função daquilo que já foi
aprendido e de elementos novos que são descobertos”, considerando também
os códigos sociais e hábitos deste aluno, a sua história pessoal que agora se
insere em um novo jogo de representações. O professor pode “modificar as
situações de inserção social e simbólica dos saberes transferidos e trabalhando
com os próprios alunos sobre a complexidade das condições de transferência
assim analisadas.”
c) a transferência possibilita a incorporação de conhecimentos “mortos”
em uma dinâmica pessoal e da construção de si mesmo como sujeito de seus
atos. Neste aspecto, o sujeito possui intencionalidade em sua conduta, nada é
“mecânico”; os saberes foram incorporados pelas pessoas, contribuindo para o
seu desenvolvimento pessoal e coletivo. O professor e sua capacidade
pedagógica promove a circulação do aluno entre os quatro setores
mencionados, fazendo com que se jogue em cada registro sistematicamente,
inserindo questões para os savoir-faire por meio dos saberes, para os
conhecimentos, atitudes, para os interesses sociais e pessoais, para o universo
abstrato em relação a subjetividade individual, constituindo “uma conduta de
construção identitária” que nunca formará uma identidade fixa, como se fosse
dado rígido ou limitado a um conhecimento por segurança. A ideia é que seja
uma identidade em percurso inacabado, “um estabelecimento de relação
sistemático”, um questionamento do que constitui os pontos de apoio
necessários da construção de si (MEIRIEU, 2002, p. 216-217, grifo do autor).
Para Meirieu (2002) há quatro dimensões que uma vez articuladas,
acessam o educador “a um verdadeiro profissionalismo”, que não está apenas
ligado ao seu acúmulo de saberes acadêmicos e pedagógicos, às suas
competências técnicas:
45
1. A primeira dimensão diz respeito ao “momento pedagógico”, onde o
professor busca compreender a resistência do aluno, suspende a sua
lógica de ensino e sua exposição enciclopédica do seu saber. Entende
que a realidade não lhe satisfaz, mas não se culpabiliza; neste
instante, embora haja preconceitos com o termo, a compaixão é
identificada, ela “faz sorrir os espíritos fortes e rir os cientistas”, torna-
nos compreensivos com a dificuldade alheia, inventores de algo que
permitirá o encontro com o outro. Acena à literatura, vista como um
cabedal de léxicos, que pode compatibilizar as conexões entre os
seres, ela nos dá permissão ao conhecimento que atravessa o
sofrimento, a solidão, a exclusão, por fim, aproxima os universos e as
identificações humanas, portanto, há uma semelhança, uma alteridade
irredutível (p. 278).
2. A segunda dimensão é constituída pela “memória pedagógica” do
ensino, que se dá em uma espécie de reserva heterogênea de
saberes e resultados de pesquisas experimentais, por exemplo, onde
coexistem “resultados quantitativos de estudos de campo, informações
sobre os processos de cognição e de aprendizagem e de dados
relativos às interações individuais e sociais na instituição escolar.” Esta
memória estará indissociável dos “mestres”, das suas produções, das
suas pesquisas e lógicas, das suas contradições e limites, pois como
bem declara Meirieu: “... é mais que construir para si um “’reservatório
de dados’”; é realmente construir para si uma memória viva” (p. 281-
282, grifo do autor).
3. A terceira dimensão de modelo está relacionada ao levantamento de
índices. Trata de o educador captar correspondências entre o que tem
na memória e o que é levado a viver. O exercício de se aproximar das
situações estudadas na formação, das leituras; discernir o que há por
trás de contextos diferentes ou uma questão que se está vivenciando
e até mesmo uma tensão que se entremeia e opera na prática diária.
Pode deixar-se ser guiado por “proximidades estranhas, aproximações
46
incongruentes, analogias e metáforas.” O educador é desafiado a lidar
com alguma proposta situacional que, de repente, não lhe permite
programar nada, está em uma esfera nunca antes tocada por si
mesmo (p. 283).
4. A quarta dimensão proposta por Meirieu corresponde à junção das
dimensões anteriores; é a restauração de “uma unidade em uma
intencionalidade que associa uma decisão ética, a correspondência
possível entre a memória e uma situação, uma decisão” que anteceda
o ato. No entanto, ainda há consciência da incerteza, pois arrisca-se a
realizar algo que permita apenas o aluno a fazer o que pode. A
proposição não se constitui unilateralmente, há um devir que demanda
da resposta do aluno. Trata-se do educador em um momento
intencional e pedagógico, valorizá-lo no conjunto das “dimensões do
projeto de educar”; é um situar-se em sua história e construir. Relatar
e escrever encurtam a distância entre o dizer e o fazer; registrarão-se
em um texto sempre em construção, justificativas rigorosas,
diversidade de experiências e riquezas da memória. Esta narrativa é
“um espaço de reconciliação provisória no qual se pode encontrar um
mínimo de serenidade [...] que nos torna suportáveis aos nossos
próximos e permite-nos não cair no romantismo estéril [...]” (p. 284-
285).
Desta forma, tivemos até aqui ponderações pedagógicas que movem à
ação mais acertada conforme as necessidades particulares do aluno, sem que
o professor esteja sendo alvo de prescrição salvadora. Certamente, Meirieu
não se convenceria de alguma certeza, já que literalmente pensa a dúvida
como elemento inerente à pedagogia; a nossa investida se concentra em
analisar recursos que ao menos não vitimam a curiosidade de alguma possível
descoberta. O processo de intervenção pedagógica é complexo, inacabado e
sujeito a constantes transformações; o educador pode manipular, transferir,
mediar, desvirtuar, deslocar, recuar, incorporar, agir de forma não-convencional
47
e imaginativa, tendo em vista a promoção multifacetada de saberes que se
correspondem à vida e à identidade personalizada do aluno.
Quando nós, professores atuantes nas periferias, lemos na face dos
alunos, um abandono, uma miséria, uma exclusão - e isto, não é raro;
compreendemos racional e afetivamente o quão ainda somos imperfeitos para
solucionar pedagogicamente a aprendizagem destes alunos, pobremente
referenciados por todo o aporte da indústria cultural, que as redes
contemporâneas fazem emergir. O fato é que o professorado está na linha de
frente onde todas as manifestações sociais irão se convergir; ali residirá à flor
da pele, os acometimentos, os paradoxos, os prélios, a constatação da
marginalização e o descaso oriundos de todas as gerações anteriores. É uma
história plantada sobre a ignorância alheia.
Contudo, Meirieu (2006, p. 12) nos convoca à provocação de que “ aceitar
a mediocridade inevitável do cotidiano não significa condenar-se
irremediavelmente à rotina e à insignificância”, vai além, relatando que mesmo
com as instruções mais ou menos oficiais, com a complexidade da instituição
escolar, do fardo das tarefas administrativas que precisam ser realizadas
diariamente, com a formatação dos alunos pela mediocridade televisa
(incluímos aqui todas as mídias que veiculam artefatos unicamente com
propósitos econômicos), com as pressões sociais sobre o professorado (como
se fosse o culpado pelo fenômeno do fracasso escolar), apesar deste bojo
atrelado à docência, "ainda é possível que a transmissão advenha na sala de
aula. E que então, de súbito, o ofício passe a ter sentido” (p. 15).
O educador, mesmo que onisciente das dificuldades materiais que
massacram o pleno funcionamento educacional, como todos os demais
problemas que a vida em um subúrbio pode criar, não pode deixar de refletir
sobre os conteúdos do ensino, sobre o como se aproximar pedagogicamente
de uma determinada comunidade, há tempos esquecida em sua integralidade
pelo poder público.
48
Faz-se oportuna uma asseveração simples e tão diretiva que Meirieu
(2006) partilha em seu livro “Carta a um jovem professor”, tendo como pano de
fundo a problemática docente frente à precariedade que assola o ensino
público, complementa:
Em todos os casos, o professor deve possibilitar a cada aluno confrontar-se com um saber que o ultrapassa e, ao mesmo tempo, fornecer-lhe a ajuda necessária para se aproximar dele; e deve solicitar o comprometimento da pessoa e, simultaneamente, colocar à sua disposição os recursos sem os quais não poderá ter êxito em suas aprendizagens (2006, p. 19).
As certezas balançam, desestabilizam quando encontramos o novo, mas
precisamos de referências estáveis provindas do profissional do ensino, o
educador; ele ofertará saber e acompanhamento, permitirá que cada um se
introduza nesse saber rigoroso com os recursos que estão dispostos a si, com
a sua própria organização mental aos poucos se apropriará dos conhecimentos
organizados (MEIRIEU, 2006, p. 21).
Meirieu evoca a reminiscência de que, provavelmente, todo educador
possui como registro, uma atuação específica e especial de algum professor
em seu passado, que o atingiu na alma e na memória de forma tão tocante que
o fez, posteriormente, tornar-se, por sua vez, um docente. Revela o
pensamento a seguir num tom profético, de promessa: “Não há nada de
extraordinário, então, em considerarmos nosso ofício como um meio de
possibilitar a outros que vivam a alegria das descobertas que nós próprios
vivemos.” É uma mostra de dignificar quem um dia o ensinou, de encontrar
energia criadora ante “... às humilhações de um concurso de seleção com
provas sempre difíceis, em geral maçantes e raramente pertinentes em relação
ao ofício que iremos exercer” (2006, p. 25). Quem entre nós, não concordaria
com estas ponderações honestas e irrefutáveis, que cabem em nosso contexto
brasileiro?
São acúmulos infindáveis que obstaculizam o simples projeto de educar,
desde os preenchimentos burocráticos em cada aula, em cada diário – o que
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pensar dos professores de Artes, Sociologia, Filosofia, por exemplo, que
possuem apenas duas aulas semanais e, portanto, numa carga horária de 32
aulas semanais, preenchem 16 diários? Não é uma demanda facílima, ainda
mais quando este educador, invariavelmente, possui dois cargos
concomitantes, pois o que recebe em um cargo não oferta dignidade
econômica o suficiente para apenas exercer, dedicadamente, seus esforços à
uma única unidade escolar. Meirieu nos desperta o interesse ao conceber uma
ideia que, certamente, todo educador brasileiro vive a comentar entre os seus
pares pelos corredores escolares:
É por isso que defendo a ideia iconoclasta segundo a qual toda pessoa que assume responsabilidades administrativas ou pedagógicas deveria manter um contato regular com os alunos: que o diretor da escola continue lecionando algumas horas por semana em sua disciplina de origem [...] Que os funcionários da administração central do ministério assim como os reitores e seus colaboradores continuem a assumir cargas de ensino escolar ou universitário. [...] Para que ninguém esqueça jamais de onde emana e onde se pode regenerar permanentemente o projeto de ensinar (2006, p.28).
Para definitivamente humanizar Meirieu (se ainda se faz necessário),
disponho em perspectiva mais do que acessível a todos nós, educadores,
exemplos tão ordinários do autor, correlatos à natureza da docência, com o
propósito de desmistificar alguns posicionamentos, que insistem abarcar todos
teóricos e jogá-los em um mesmo caldeirão onde só haveria verborragia
insípida, restos de teia secular e vetusta e, por fim, descrédito pelo simples fato
de teorizar o que a maioria não pratica; o sentimento de Meirieu perpassa pela
profissionalização de todo educador brasileiro quando se anunciam
“perseguições administrativas irrisórias”:
“’Professor Meirieu, o senhor não preencheu corretamente o diário de classe... O senhor está atrasado com seus boletins... O senhor esqueceu as últimas instruções ministeriais sobre a gramática? O senhor tratou de convocar os pais desse aluno? De encaminhar esse outro ao conselheiro de educação e de procurar a assistente social para relatar o caso desse terceiro? [...] Professor Meirieu, o senhor não fez nada para a semana da imprensa na escola? O que o senhor está pensando em fazer para a semana contra o racismo? O senhor não está subestimando seu papel em matéria de educação para a
50
saúde? O senhor parece estar esquecendo de nossas responsabilidades em matéria de prevenção de acidentes de trânsito. E o senhor tem certeza mesmo de que esse livro que está usando para ensinar seus alunos a ler faz parte do programa?’”. A gente acaba explodindo!” (2006, p. 27).
Como apresentamos, o nosso autor possui experiência do que
poderíamos chamar de “chão de fábrica”, ou seja, sempre observado e com
baixa autonomia, uma menção de atividade mecânica, mas, é claro, nas suas
devidas proporções. Meirieu se dedicou a contemplar todas as gamas de seu
ofício, então, natural que ele possa testemunhar legitimamente qualquer
parecer educacional.
Reflete a didática como sendo nada mais que “a investigação pela qual
tentamos compreender “’como as coisas funcionam’” na cabeça de um aluno
para que ele faça o melhor aproveitamento dos conteúdos programa” (2006, p.
41). Pondera que para ensinar, o educador precisa organizar situações de
aprendizagens que sejam eficazes, e nisto, haverá questionamento dos
próprios saberes docentes, pois, como pesquisador, há um empenho na
elaboração de sequências didáticas que revisitarão, redescobrirão os seus
próprios conhecimentos (2006, p. 43).
Sinaliza que a escola precisa trabalhar para modificar as práticas de
avaliação que se assemelham ao sistema produtivo de mercado, à economia
de mercado; torna-se inútil o confronto com o capitalismo se os profissionais da
educação não combaterem “as formas de exclusão e banimento”, de
assegurarem a todos, os fundamentos da cidadania, mesmo que não adentrem
às universidades mais prestigiadas. A escola precisa ofertar os saberes que
sem os quais, os mais carentes não chegarão a nem compreender a sua
própria condição; neste sentido, o educador se atentará ao acontecimento
pedagógico, de forma que facilite a sua ocorrência e mais alunos possam
aprender a saber, a ser e a conviver (p. 46-47).
De mãos dadas, o trabalho e a motivação seguem no cotidiano escolar,
segundo Meirieu (2006). São elementos que se conjugam e que se
51
condicionam um ao outro. O esforço sempre estará impregnado na atividade
docente, mas de forma consubstancial ao esforço do aluno, ambos podem
atingir “satisfações intelectuais inéditas, horizontes novos que estimularão sua
curiosidade” (p. 51). Com a mesma convicção, Meirieu afirma que é por meio
da exigência da qualidade do próprio trabalho, que o educador desejoso, busca
“a perfeição de humanidade”, pois poderá distinguir o que vale a pena (p. 56).
Todo material, objeto, gesto, palavra e expressão que se estude com
afinco pode se tornar digno de elucubração da condição humana, desde que
vasculhado em toda a sua potencialidade, em todo o emaranhado cultural no
qual se insere; nestas ações sistemáticas há de se encontrar qualidade e
formação cidadã. Uma intencionalidade que tenta alcançar magníficos saberes,
talvez, despertos e fruídos por meio de um momento pedagógico inesperado,
como o nosso exemplo:
Devo confessar que levei muito tempo para compreender e formalizar isso. Acho que percebi pela primeira vez quando era professor de Letras e estava tentando fazer teatro com meus alunos. É que, nesse aspecto, o teatro é uma grande escola: o cenário, os ritos, a iluminação... tudo convida a abandonar a gesticulação que nos ocupa tanto na “’vida’” para tentar chegar à densidade do gesto. [...] A qualidade da expressão não é um suplemento de alma, mas o próprio tema que se torna corpo e palavra... E, ainda hoje, sempre que participo ou assisto a um trabalho de expressão artística com alunos – de dança, teatro, música, caligrafia, pintura ou escultura – fico encantado com o trabalho extraordinário que se executa ali: [...] eles se dedicam, ajustam o foco para se comunicar com os outros: pouco a pouco interiorizam a exigência até levá-la ao mais profundo de si e até – um dia, talvez – não precisarem mais ter um professor ao seu lado para encarná-las (MEIRIEU, 2006, p. 54, grifo nosso).
Analisa que os nossos alunos são consumidores de imagens; o universo
das crianças e jovens está abarrotado de artefatos culturais que em nada
contribuem para o seu crescimento: “as mídias exaltam o infantil quando a
escola tenta fazer a criança crescer” (Meirieu, 2006, p. 61). O controle remoto
não estará nas mãos do aluno em sala de aula como alternativa, por exemplo;
o aluno não poderá ao seu bel-prazer modificar a sintonia na qual oferece um
determinado professor em sua frente. Não há “possibilidades inesgotáveis” e
52
“infinitude de atividades” que digam apenas ao seu capricho (p. 60). Muitos
professores acabam por apenas lamentar e acusar as famílias de indulgência,
por fim, deixam de ensinar, de insistir, pois creem que os alunos são indignos;
Meirieu incita o professor com a sua própria performance, construir
pacientemente, dia a dia, a disciplina escolar que afeta a todos os profissionais
docentes, sendo minucioso na preparação do seu trabalho, cuidando do
ambiente, tendo firmeza nas instruções e distribuindo os papéis que cada um
tem na obra coletiva (p. 62, grifo do autor).
Ao aprofundar a disciplina a ser ensinada que surgirá a disciplina
esperada, o ambiente promissor de aprendizagens. Portanto, com projetos e
definições de tarefas, respeitando as estruturas de funcionamento da aula, os
alunos, aos poucos, abandonam as suas satisfações imediatas apreendidas do
mundo infantilizado das mídias e se permitem ao envolvimento e construção de
aprendizagens (2006, p. 65).
Meirieu se ressente pelo fato do Ministro da Educação da França ter
modificado a nomenclatura de “instituidor2” para “professores de Escola”, pois a
etimologia identifica-o como “”aquele que instrui, aquele que institui a
humanidade no homem’” (2006, p. 67) e é na Escola, seu ambiente de
trabalho, que transmite conhecimentos e forma cidadãos; a unidade escolar
não é lugar de acolhimento e de passagem, mas sim de contexto educativo que
precisa fazer sentido, onde há ao molde instituidor, “o reconhecimento da
alteridade, a exigência de precisão, de rigor e verdade, aprendizagem conjunta
da constituição do bem comum e da capacidade de “’pensar por si mesmo’” (p.
68).
O bom educador demonstra probidade quando, inclusive, revela suas
falhas e ignorâncias, não possui receio de se mostrar perplexo intelectualmente
diante de alguma situação surpreendente. Ele constrói o ambiente apropriado
às aprendizagens e trocas por meio da sua probidade; o aluno reconhece
2 Instituidor, vocábulo que designa aquele que dá início, cria, educa, forma, disciplina, declara
por herdeiro.
53
quando a inteligência, a argumentação, a razão, a verdade, estão legitimadas
no ambiente escolar e todos são coparticipantes. É responsabilidade do
professor indicar o exercício de contradizer o mundo rigorosa e eticamente;
incentivar os alunos a examinarem as palavras e sua coerência, não o prestígio
de quem as profere; de checarem sistematicamente as fontes. São práticas
que motivam a expressão pessoal, “a aprendizagem da liberdade de pensar”
(MEIRIEU, 2006, p.74, grifo do autor).
A escola possibilita ao aluno entrar em contato com a esfera coletiva,
onde aprenderá a respeitar o ponto de vista alheio e construir um objetivo em
comum, um saber objetivo. O desenvolvimento é progressivo e abrange os
aspectos intelectual, social e político do aluno. Meirieu (2006) aponta o direito
como peça fundamental da democracia, pois rege as relações civilizadas e
teria de ser estudado, assimilado por todos desde os primeiros anos escolares:
Primeiro em cada aula: proporcionando sistematicamente aos alunos os meios de recorrer a experiência ou a documentos a fim de habituá-los a não mais acreditar apenas nas palavras de alguém. Depois em cada classe: adotando sistematicamente objetos de observação, de estudo e de debate, discutindo regularmente e serenamente com os alunos sobre os métodos de trabalho utilizados e sua eficácia. Finalmente, nas escolas de nível fundamental e médio: promovendo instâncias de representação dos alunos sob mandato, e assegurando-lhes sistematicamente uma formação para saber tomar a palavra, para o debate argumentado, para a conduta de reunião [...] (p. 77, grifo do autor).
Reflete as sociedades democráticas como um combinado que hesita
entre “a tirania de elites e o populismo demagógico” (p. 79). De fato, não sabe
se é possível a criação de uma verdadeira democracia. Ainda assim, acredita
que não há outra solução a não ser fomentá-la. Acena que o Estado faz uso da
violência de forma ilegítima e os governantes requisitam à escola o ensino de
virtudes que eles mesmos não praticam. A ditadura já deixou marcas indeléveis
tanto para os franceses quanto aos brasileiros: não exercitar os conhecimentos
e os princípios políticos e democráticos é deixar margem à insurreição do
poder violento e tirânico, novamente. O educador como profissional da
54
aprendizagem é também um militante político, em seu aspecto mais nobre, pois
edifica sobriamente humanidade.
Meirieu aponta os educadores como seres que são o futuro. São seres
esperançosos que criam pontes dialógicas, que provocam os alunos a se
compreenderem em interação com o mundo numa perspectiva subversiva,
questionadora, arguidora e que atenda a ética. Como não encontrarmos
semelhanças nas descrições dos pilares que regem um bom educador ao
evocarmos a imagem pluralista do educador ironista? Entendemos que o
ironista e a sua atuação da dúvida, da descrença, da promoção da alteridade e
do confronto às humilhações humanas, já que se esforçará em ampliar os
léxicos dos alunos, redesenha possibilidades dignificantes de intervenção no
ensino-aprendizagem, injeta ânimo na prática docente porque lhe dá sentido e
valor. A sua sina é refutar para si e, conjuntamente aos seus alunos, qualquer
indício de subserviência e inanição, está em prontidão para captar
possibilidades que destruam a alienação, o conformismo e a subjugação.
Ao buscar um diálogo com o suíço Perrenoud (2000), percebemos que
um dos matizes que se acentuam na atuação do docente contemporâneo se
manifesta em “decidir na incerteza e agir na urgência” (p. 11). Corrobora junto à
Meirieu (1998) ao enfatizar que o aluno resiste ao saber e à responsabilidade e
que, portanto, a intervenção afinada do educador faz-se necessária. Coloca em
questionamento a crise das finanças públicas e das finalidades da escola e
neste contexto socioeconômico frágil e débil, contudo, o professor precisa
dominar os saberes a serem ensinados, administrar a sala de aula e avaliar;
incita à forma mais inovadora, de prática democrática, que impugna a clássica
administração da progressão das atividades, pautada em anúncios de
reprovação provável e regida por provas escritas regulares, ao contrário da
avaliação formativa que já nos debruçamos um tanto sobre a sua reflexão
amadurada, pois induz a um apoio integrado, formas diferenciadas de ação que
evitam as distâncias entre as progressões de conhecimentos (PERRENOUD,
2000, p. 13).
55
Tardiff (2012) nos convida ao entendimento de que a prática profissional
do educador é senão a pedagogia, ou seja, de um ser ético e autônomo, que
cotidianamente enfrenta problemas que não possuem respostas prontas;
considera que
Um profissional do ensino é alguém que deve habitar e construir seu próprio espaço pedagógico de trabalho de acordo com limitações complexas que só ele pode assumir e resolver de maneira cotidiana, apoiado necessariamente em uma visão de mundo, de homem e de sociedade” (p.149).
Perrenoud (2000) compreende as competências correlacionadas entre si
e ligadas a um conjunto delimitado de tarefas, problemas; junto a este
movimento, os recursos cognitivos (saberes, técnicas, savoir-faire, atitudes,
competências mais específicas) seriam mobilizados pela competência que está
em foco. Ou seja, um diálogo entre competência e uso dos recursos cognitivos
para se alcançar outras competências, saberes. Justifica a necessidade de se
refletir sobre a atuação, as competências profissionais, de colocar as crianças
no centro das atenções pedagógicas, de buscar métodos ativos e projetos
dotados de sentido, de desenvolver as competências e educar objetivando a
cidadania:
O ofício não é imutável. Suas transformações passam principalmente pela emergência de novas competências (ligadas, por exemplo, ao trabalho com outros profissionais ou à evolução das didáticas) ou pela acentuação de competências reconhecidas, por exemplo, para enfrentar a crescente heterogeneidade dos efetivos escolares e a evolução dos programas. Todo referencial tende a se desatualizar pela mudança das práticas e, também, porque a amaneira de concebê-las se transforma. Há 30 anos, não se falava tão correntemente de tratamento das diferenças, de avaliação formativa, de situações didáticas, de prática reflexiva [...] (p. 14).
Proposita uma lista que não se pretende ser “consensual, completa e
estável de um ofício ou das competências que ele operacionaliza” (p.14) em
famílias:
1. Organizar e dirigir situações de aprendizagem. 2. Administrar a progressão das aprendizagens.
56
3. Conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação. 4. Envolver os alunos em suas aprendizagens e em seu trabalho. 5. Trabalhar em equipe. 6. Participar da administração da escola. 7. Informar e envolver os pais. 8. Utilizar novas tecnologias. 9. Enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão. 10. Administrar sua própria formação contínua.
Como observamos, anuncia competências prementes que,
indubitavelmente, qualquer educador contemporâneo não poderia dar as
costas a estas considerações, ou poderia? Conforme estamos refletindo, o
ironista, naturalmente, se distanciaria e não pré-julgaria; ele não sabe e,
portanto, deseja aprender. Cremos que basta este apontamento para não
incidirmos em certezas que em nada nos farão acrescentar à nossa reflexão.
Define com precisão o seu entendimento e o emprego da palavra
competência, designando-a como uma “’capacidade de mobilizar diversos
recursos cognitivos para enfrentar um tipo de situações’”, especificando-a em
quatro aspectos: 1. As competências não são por si mesmas saberes, savoir-
faire ou atitudes, porém, integram, orquestram, mobilizam os recursos. 2. Cada
situação é única e essa mobilização só é pertinente em situação, mesmo que
possa operá-la de forma analógica com outras já apreendidas. 3. Exercitar as
competências requer operações mentais complexas, esquemas de
pensamento, que permitem determinar (quase consciente e rapidamente) e
realizar (de modo mais ou menos eficaz) uma ação relativamente adaptada à
ação. 4. As competências profissionais constroem-se, em formação, com a
navegação diária do professor, de uma situação de trabalho à outra (p. 15, grifo
do autor).
A descrição de qualquer competência nos remete a três elementos que se
complementam, segundo o autor:
Os tipos de situações das quais se dá um certo domínio; Os recursos que mobiliza, os conhecimentos teóricos ou metodológicos,
as atitudes, os savoir-faire e as competências mais específicas, os esquemas motores, os esquemas de percepção, de avaliação, de antecipação e de decisão;
57
A natureza dos esquemas de pensamento que permitem a solicitação, a mobilização e a orquestração dos recursos pertinentes em situação complexa e em tempo real.
Pondera que as análises de competências se remete à teoria de
pensamento, à ação situada, da prática como ofício e condição, portanto, o
educador sempre estaria em terreno instável no plano dos conceitos, das
ideologias. No plano da ação, o professor gera uma situação de aprendizagem
global, porém, mobiliza competências específicas; percebe todas as cenas ao
seu redor com o intuito de gerir as aprendizagens e envolver todos os alunos,
inclusive, os distraídos.
Ao visualizar as competências específicas, que são componentes
principais ao “administrar a progressão das aprendizagens”, Perrenoud (2000,
p. 17) elabora cinco competências:
1. Conceber e administrar situações-problema ajustadas ao nível e às possibilidades dos alunos.
2. Adquirir uma visão longitudinal dos objetivos do ensino. 3. Estabelecer laços com as teorias subjacentes às atividades de
aprendizagem. 4. Observar e avaliar os alunos e situações de aprendizagem, de acordo
com uma abordagem formativa. 5. Fazer balanços periódicos de competências e tomar decisões de
progressão.
Considera que ao objetivar um projeto comum que envolva todos os
alunos, o educador necessita se atentar aos aspectos metacognitivos
mobilizados por algumas competências, tais como:
Trabalhar a partir das representações dos alunos. Trabalhar a partir dos erros e dos obstáculos à aprendizagem. Fornecer apoio integrado, trabalhar com alunos portadores de grandes
dificuldades. Suscitar o desejo de aprender, explicitar a relação com o saber, o
sentido do trabalho escolar e desenvolver na criança a capacidade de auto avaliação.
Favorecer a definição de um projeto pessoal do aluno.
No tocante à uma “cultura em psicossociologia das organizações”,
Perrenoud (2000, p. 17-18) sinaliza à gestão escolar, assim como ao educador,
58
em suas respectivas funções, o desenvolvimento de determinadas
competências específicas que se assomam, inextricavelmente, à sua atuação:
Instituir e fazer funcionar um conselho de alunos (conselho de classe ou de escola) e negociar com eles diversos tipos de regras e de contratos.
Abrir, ampliar a gestão de classe para um espaço mais vasto. Desenvolver a cooperação entre os alunos e certas formas simples de
ensino mútuo. Elaborar um projeto de equipe, representações comuns. Dirigir um grupo de trabalho, conduzir reuniões. Formar e renovar uma equipe pedagógica. Administrar crises ou conflitos interpessoais. Elaborar, negociar um projeto da instituição. Organizar e fazer evoluir, no âmbito da escola, a participação dos alunos. Dirigir reuniões de informação e debate. Prevenir a violência na escola e fora dela. Participar da criação de regras de vida comum referentes à disciplina na
escola, às sanções e à apreciação da conduta. Desenvolver o senso de responsabilidade, a solidariedade, e o
sentimento de justiça. Negociar um projeto de formação comum com os colegas (equipe,
escola, rede).
Percebemos que determinadas competências se relacionam mais às
disciplinas; outras competências, aos problemas teóricos e de campo. O fato, é
que Perrenoud nos suscita muitos elementos que estão interligados à atuação
docente, e que nos auxilia a conectar mais atribuições criteriosas às
ferramentas e/ou instrumentos ironistas. Nas palavras de Perrenoud (2000), o
seu estudo sobre as competências prioritárias se dirige “aqueles que trabalham
para modernizar e para democratizar o sistema educativo” e que em seu
trabalho se encontrará “um conjunto de propostas relativas aos recursos de
que depende a mudança” (p. 19, grifo nosso). Mesmo que o educador seja o
“conceptor e dirigente” das situações de aprendizagem, isto não garante a si
mesmo a não ocorrência de riscos e falhas, o que inclui, portanto, necessárias
reinvenções didático-metodológicas (p. 24). Neste sentido, Tardiff (2012, p. 61)
colabora ao manifestar a ideia de que os saberes profissionais do educador
são heterogêneos e plurais porque “trazem à tona, no próprio exercício do
trabalho, conhecimentos e manifestações do saber-fazer e do saber-ser
bastante diversificados e provenientes de fontes variadas [...]”.
59
O professor sempre se atentará ao seu planejamento didático, pois deseja
identificar os objetivos trabalhados em cada situação em questão; analisará
posteriormente o que se desenvolveu nas atividades e situações, de fato, de
forma a modificar a sequência das atividades propositadas e, por meio da
avaliação, controlará os conhecimentos adquiridos pelos alunos (2000, p. 27).
Estes procedimentos permitirão uma intencionalidade mais precisa no ensino-
aprendizagem.
Acerca das representações oriundas dos alunos, afirma que é preciso
trabalhar a partir das suas concepções, e por meio do diálogo avaliá-las e
aproximá-las dos conhecimentos científicos a serem ensinados. Para tanto, o
educador precisa apurar a sua competência didática, daí encontrará “um ponto
de entrada” no sistema cognitivo do aluno para desestabilizá-lo, o suficiente, ao
incorporar “novos elementos às representações existentes”, reorganizando-os
(p. 29).
Descreve que quando o aluno é levado a trabalhar cognitivamente, aos
poucos, acontece a reestruturação do “seu sistema de compreensão de
mundo” (p. 30), de forma que dominará melhor a realidade simbólica e prática
da sua existência. Ao travar contato com alguma situação-problema será
obrigado “a transpor um obstáculo graças a uma aprendizagem inédita” (p.31).
Haverá um movimento de hipóteses, explorações e tentativas para mais um
reequilíbrio.
Perrenoud (2000, p. 39) avalia que o professor poderia transmitir a sua
paixão pelo conhecimento, mas isto seria uma questão de identidade e projeto
pessoal do próprio profissional. No entanto, reflete que a competência ligada a
este posicionamento perpassa pela “arte de comunicar-se, seduzir, encorajar,
mobilizar, envolvendo-se como pessoa”. Ainda assim, o professor teria que ser
cúmplice e solidário na busca pelo conhecimento, “renunciando a defender a
imagem do professor “’que sabe tudo’”. Tardiff (2012) salienta que o educador
não atua sozinho, ele está em contínua relação com o aluno:
60
A atividade docente não é exercida sobre um objeto, sobre um fenômeno a ser conhecido ou uma obra a ser produzida. Ela é realizada concretamente numa rede de interações com outras pessoas, num contexto onde o elemento humano é determinante e dominante e onde estão presentes símbolos, valores, sentimentos, atitudes, que são passíveis de interpretação e decisão que possuem, geralmente, um caráter de urgência (p. 49-50).
Ao tratar da temática formativa do educador brasileiro, Perrenoud (2002,
p. 13) coloca em xeque se nós, brasileiros, ofertaremos a educação em linhas
democráticas “ou se a educação continuará sendo, como na maioria dos
países, um instrumento de reprodução das desigualdades e de sujeição das
massas ao pensamento dominante”. Estas palavras foram proferidas no ano
2001, aqui no Brasil e agradecemos a reflexão direcionada: todos nós,
educadores, após 14 anos, precisamos ter isto em mente e constatar quais são
as relações de forças que movem os objetivos no ensino público brasileiro.
Explicita algumas contradições que já haviam se pronunciado em meados
de 2000, e agora, mais do que nunca, convivemos e tratamos delas: cidadania
planetária e identidade local; globalização econômica e fechamento político;
liberdades e desigualdades; tecnologia e humanismo; racionalidade e
fanatismo; individualismo e cultura de massa e, por fim, democracia e
totalitarismo. Para atuar competentemente neste panorama, no mínimo,
movediço e sensível, o educador que deseja “desenvolver uma cidadania
adaptada ao mundo contemporâneo” (p. 14), segundo Perrenoud (2002),
deveria ser: uma pessoa confiável; um mediador intercultural; um mediador de
uma comunidade educativa; uma garantia de lei; um organizador de uma vida
democrática; um transmissor cultural e um intelectual. De forma complementar,
Tardiff (2012) descreve o seu ponto de vista sobre o que é um professor ideal:
[...] é alguém que deve conhecer sua matéria, sua disciplina e seu programa, além de possuir certos conhecimentos relativos às ciências da educação e à pedagogia e desenvolver um saber prático baseado em sua experiência cotidiana com os alunos (p. 39).
61
No que diz respeito à construção de competências e saberes, o educador
contemporâneo deveria ser: um organizador de uma pedagogia construtivista;
garantia do sentido dos saberes; um criador de situações de aprendizagem; um
administrador de heterogeneidade e um regulador dos processos e percursos
de formação. Sua postura fundamental estaria ligada à prática reflexiva de uma
sociedade em transformação, da capacidade de inovar e favorecer a
construção de novos saberes. A sua implicação crítica se correlacionaria ao
envolvimento nos debates políticos sobre a educação em todas as escalas:
escolar, regional e federal; debates estes, de cunho corporativo, sindical, de
programas escolares, à democratização da cultura, à gestão do sistema
educacional (PERRENOUD, 2012, p. 15).
Afirma que o educador privilegia o desenvolvimento global do aluno,
considerando a sua abertura para o mundo e o seu juízo, muito mais
importantes que apenas a acumulação de saberes; além disto, considera que
os professores são mais “sensíveis à diversidade das relações com o saber,
das maneiras de aprender, dos ritmos de desenvolvimento e das trajetórias dos
indivíduos” (PERRENOUD, 2012, p. 35).
Ao analisarmos as características propostas para este perfil de educador,
entendemos que há a possibilidade de relacionarmos este profissional descrito
com o ironista. A este educador explicitado tanto por Meirieu (2002) quanto por
Perrenoud (2002) poderíamos chamá-lo - claro que, convenientemente; de
ironista, um tipo que se assemelha ao personagem John Keating, interpretado
pelo extraordinário ator Robin Williams em 1989, cujo nome do filme é
“Sociedade dos poetas mortos”. Keating inseria sentido às aprendizagens
literárias que vivia a transmitir, jorrava paixão em cada gesto e palavra, enchia
com sopro de vida as atividades da sua disciplina e era aceito como um ser
confiável pelos jovens inquietos, receosos e ávidos pelas experiências que a
vida pudesse ofertar, mas a contrapartida dos seres ortodoxos a estas
proposições não era da mais complacente e democrática. Podemos imaginar.
Estamos apenas tentando elucidar as potencialidades de um educador
contemporâneo, que esteja vívido o bastante para enfrentar com maturidade,
62
humor, paciência e uma ironia ácida, este mundo complexo, corrosivo,
truculento e muito pouco convidativo da educação do homem pós-moderno. E
nisto tudo há de ter poesia.
Para Tardiff (2012) quando se trata do trabalho docente, o educador se
comporta como um agente organizacional, “ele é sujeito de seu próprio trabalho
e ator de sua pedagogia, pois é ele quem a modela, quem lhe dá corpo e
sentido no contato com os alunos (negociando, improvisando, adaptando)” (p.
149).
Aponta a prática do educador como uma mistura de talento pessoal,
experiências, intuições, bom senso e de habilidades que foram confirmadas
pelo tempo e uso; sua prática educativa será melhor operada se cambiar entre
uma arte, uma técnica e uma interação, como assevera: “[...] devemos evitar
rejeitar, de maneira dogmática e unilateral e em proveito de um único tipo, os
diferentes tipos de ação que existem efetivamente na educação” (p. 175).
Conceitua a arte de educar pautada sob um triplo fundamento:
[...] ela tem seu fundamento em si mesma (é ensinando que nos tornamos bons professores); tem seu fundamento na pessoa do educador (é possível aprender a educar, contanto que o educador já possua as qualidades do ofício); e, enfim, tem seu fundamento na pessoa do educando, cuja formação constitui a finalidade interna, imanente da prática educativa (p. 161, grifo nosso).
Tardiff afirma que o professor sabe o que faz e por que o faz, ele possui
consciência profissional “[...] que se manifesta por meio racionalizações e
intenções (motivos, objetivos, premeditações, projetos, argumentos, razões,
explicações, justificações [...]” (p. 208, grifo do autor). Entretanto, não só este
profissional consciente, mas qualquer “ator humano” possui limitações, sabe
das coisas até certo ponto, “[...] não é necessariamente consciente de tudo o
que faz no momento em que o faz [...] suas ações têm muitas vezes
consequências imprevistas, não intencionais, cuja existência ele ignora” (2012,
p. 211).
63
Acerca das “’competências profissionais’” do professor, Tardiff (2012)
compreende que estão “[...] ligadas às suas capacidades de racionalizar sua
própria prática, de criticá-la, de revisá-la, de objetivá-la, buscando fundamentá-
la em razões de agir” (p. 223). Seu enfoque é argumentativo e deliberativo,
tendo aporte em uma “[...] racionalidade limitada e concreta, enraizada nas
práticas cotidianas dos atores, racionalidade aberta, contingente, instável,
alimentada por saberes lacunares, humanos, baseados na vivência [...]” (p.
224).
O educador é considerado como ator principal e mediador da cultura e
dos saberes escolares; está sobre ele a responsabilidade do papel educativo
da escola. Tardiff sinaliza-o como um sujeito do conhecimento, ator que
desenvolve, produz e assume teorias, conhecimentos e saberes de sua própria
ação. Contudo, há desvalorização dos seus saberes pelas autoridades
educacionais, escolares e universitárias; há intenção política nesta ação,
situando-o longe da “sequência dos mecanismos de decisão e das estruturas
de poder que regem a vida escolar” (TARDIFF, 2012, p. 243).
Defende “a unidade da profissão docente do pré-escolar à universidade”
(2012, p. 244), objetivando o reconhecimento social dos professores como
seres do conhecimento e como atores sociais, de forma que todos os
educadores se reconheçam como pessoas competentes, que podem aprender
juntos como melhorar a profissão em comum. O seu profissionalismo o conduz
à uma autogestão dos conhecimentos dos seus pares, portanto, a
incompetência de um profissional só poderia ser avaliada por seus pares (p.
248).
Segundo Tardiff, o professor precisa ter inúmeras habilidades e
competências, pois estará cotidianamente atrelado à mobilização plural de
objetivos: “[...] emocionais ligados à motivação dos alunos, objetivos sociais
ligados à disciplina e à gestão da turma, objetivos cognitivos ligados à
aprendizagem da matéria ensinada [...] ao projeto educacional da escola [...]”.
Há um quê de pragmatismo em seus saberes profissionais, tal qual o artesão
64
que possui uma caixa de ferramentas que “constituem recursos concretos
integrados ao processo de trabalho, porque podem servir para fazer alguma
coisa específica relacionada com as tarefas que competem ao artesão” (2012,
p. 264). Todo educador é um ator social com personalidade, poderes,
pensamento e ação que mostram em quais contextos se insere e transita; tem
uma história de vida e suas particulares emoções; seu saber é personalizado e
encravado numa situação de trabalho a qual deve atender (p. 265-266).
Enfatiza que o trabalho docente objetiva os seres humanos, portanto, traz
consigo “as marcas de seu objeto de trabalho” e, aos poucos, desenvolve a
sensibilidade para distinguir a diversidade entre os alunos, para evitar
generalizações, por exemplo. Sensibilidade que exigirá investimento contínuo e
de longo prazo; da mesma forma, investirá na revisão dos seus saberes
oriundos da experiência, que aliás, o conectarão permanentemente com os
componentes éticos e emocionais, pois saberá mais de si mesmo por meio da
sua prática com os alunos, pelas “mudanças emocionais inesperadas na trama
experiencial” (p. 267-268).
Reflete sobre o processo formativo do educador contemporâneo,
indicando que quanto à continuidade dos estudos, o tempo se torna escasso,
não permitindo uma maior dedicação ao desenvolvimento profissional ou a
discussões coletivas sobre os problemas do ensino e da profissionalização.
Afirma que o professor tem mantido uma posição individualista, sendo os seus
métodos de ensino-aprendizagem, em sua maior parte, tradicionais. Percebe
uma necessidade de melhorar a formação intelectual dos professores, porém,
os cursos universitários diminuem as cargas horárias de disciplinas teóricas e
conceituais em detrimento das questões utilitárias e práticas, portanto,
disciplinas como Filosofia, Sociologia e Economia ficam esquecidas do
currículo de formação docente. Frisa que os currículos universitários são muito
fragmentados e as disciplinas pouco dialogam, são demasiadamente
especializadas. No entanto, demonstra que os cursos aumentaram em média
mais um ano para se completar a formação de docente, no sentido de tentar
elevar a qualidade formativa dos alunos, dos futuros educadores (p. 282-283).
65
Proposita a concepção do prático reflexivo que se associa mais ao
professor experiente do que o perito; é visto com um sólido repertório de
conhecimentos, embora se diferencie pelo seu modelo deliberativo e reflexivo,
pois a sua ação vai além de resolução de problemas e escolha de meios, ela
delibera os fins e está em constante reflexão da construção da atividade
profissional, contextualizada pelas contingências das situações de trabalho. O
prático reflexivo é igualmente conhecido pela sua capacidade de adaptação às
situações novas, além da concepção de soluções inovadoras, originais.
Descreve-o como “o próprio modelo do profissional de alto nível, capaz de lidar
com situações relativamente indeterminadas, flutuantes, contingentes, e de
negociar com elas, criando soluções novas e ideais” (p.302).
Observamos por meio dos autores Meirieu (1998), Perrenoud (2002) e
Tardiff (2012), aspectos do cotidiano escolar e as competências relacionadas à
atuação de um bom educador contemporâneo. Os autores sugerem em suas
pesquisas que o docente é um ser em constante aperfeiçoamento, de forma
que possa valorar a si mesmo e incrementar a sua performance diante às
transformações, contingências e representações. Possui alta relevância como
ator social, embora a sua profissionalidade sofra consequências ante às ações
e forças do poder. Sua responsabilidade diz a respeito da sua própria
profissionalização, que possui ares pragmáticos e, ao mesmo tempo, à
construção de uma sociedade na qual os futuros homens e mulheres estejam
mais compassivos, rigorosamente instruídos, e detentores das capacidades de
reflexão, deliberação e inovação.
No próximo subcapítulo, atentaremo-nos às considerações do
estadunidense Henry A. Giroux (1987), do jamaicano Stuart Hall (2006), do
polonês Zygmunt Bauman (1999) e da brasileira Ana Mae Barbosa (2005) que,
conjuntamente, oferecerão reflexões acerca das forças políticas e ideológicas
que envolvem a profissão docente, assim como referências sobre os aportes
com os quais o educador da contemporaneidade pode se respaldar e operar
crítica e reflexivamente a sua profissão, intuindo a edificação de saberes
ligados às múltiplas urgências fomentadas pela globalização. Anunciaremos
66
paralelamente as esferas sob as quais o educador potencializará, junto aos
seus alunos, uma sociedade desbravadora e ética, que não se envergonhe em
ser regida sabiamente pela dúvida.
1.2 O educador como potencializador de humanidades
Pensar as mudanças que constituam um novo panorama social, que seja
verdadeiramente democrático, implica em refletirmos o potencial que se
resguarda em cada camada compositora da sociedade. A escola pública é a
ambiência, o estabelecimento, o espaço cuja potencialidade (se assim
explorarmos) provocará reações e reflexos nas demais esferas que compõem a
vida social. Ao refletirmos sobre uma composição, um perfil de educador que
possa intervir e instaurar possiblidades críticas, estratégias pragmáticas no
ensino-aprendizagem, voltamo-nos às ponderações dos autores pedagógicos
que constituíram identidades de modelos docentes que, se nos esforçássemos
apenas um pouco, naturalmente, poderíamos complementá-las entre si
mesmas; ou, intentaríamos sem a menor certeza, mas com clareza de espírito,
reagrupá-las e, possivelmente, daríamos um nome (como já o fizeram) que
abreviasse muitas qualidades de atuação: educador reflexivo, intelectual
transformador, instituidor e até mesmo, por que não, educador ironista.
Inseriremos este arquétipo docente nas elucubrações pontuais e lúcidas dos
nossos autores em diálogo com as nossas percepções.
Como Giroux (1987, p. 8) assevera, a escola já foi e ainda é um
instrumento que produz intelectuais, movimentos sociais de resistência,
discursos de liberdade e potencialização de capital cultural de grupos
populares, ou seja, “[...] a escola como esfera de oposição e a pedagogia
radical como uma forma de política cultural.” Segundo o autor, a escola é
submetida às forças políticas e ideológicas, e o magistério, subordinado à
divisão técnica e social do trabalho, distanciando aqueles que controlam a
escola daqueles que trabalham nela diariamente com os alunos, distanciando-
os das “práticas sociais de oposição”. A pedagogia, sob a pressão dessas
67
forças ideológicas, acaba por se resumir em teorias de ensino mais técnicas,
padronizadas, e o interesse nisto consiste na eficácia, no gerenciamento e no
controle de formas limitadas de conhecimento (p. 9).
Analisa que o professor, mediante estas imposições, está perdendo o seu
potencial intelectual, seu trabalho de intelectual na própria pedagogia crítica;
está sendo formatado em um escriturário que cumpre ordens alheias, um
técnico especializado. Neste formato, a possibilidade de um intelectual cede a
de um reprodutor dedicado da cultura dominante no interesse do bem comum;
a escola pública ficou “[...] a serviço de interesses corporativos capitalistas” (p.
10). Há desde o século XX uma crescente “[...] desvalorização do trabalho
intelectual crítico, em benefício de considerações de ordem prática” (p.12-13).
Os próprios programas de formação de professores não educam os estudantes
à uma profissionalidade crítica, o eixo das disciplinas não promove a
descoberta de quem é o educador e o seu papel, e de quais são as “condições
subjacentes à estrutura da vida escolar”; no entanto, os alunos são treinados
para compartilhar técnica e dominar a disciplina da sala de aula.
[...] os professores são considerados mais como obedientes servidores civis, desempenhando ordens ditadas por outros, e menos como pessoas criativas e dotadas de imaginação, que podem transcender a ideologia dos métodos e meios a fim de avaliar criticamente o propósito do discurso e da prática em educação (p. 14).
Avalia que a mensagem oculta nesta fórmula tecnocrática de se pensar e
gerir a escola é: docentes, não participem criticamente da produção e da
avaliação dos currículos escolares! Sem a influência dos professores
transformadores, questões como: “o que vale como conhecimento”, “o que é
importante ensinar” e “a forma como se vê o papel da escola na sociedade e a
consequente compreensão dos interesses sociais e culturais que modelam
todos os níveis da escola” (p. 16) passam sem deixar vestígio, não são
elaboradas e discutidas pela instituição escolar, assim como pela sociedade. A
autonomia dos professores vai decrescendo em virtude também dos “’pacotes’”
de materiais escolares”, que os desqualificam em dada medida (p. 17).
68
Giroux (1987) reclama ao professor o direito de se envolver na produção
dos materiais curriculares, respeitando, assim, as especificidades culturais, o
julgamento do professor e as histórias de vida dos alunos junto ao processo de
ensino-aprendizagem. Para os administradores escolares, as soluções técnicas
são o bastante para dar conta da complexidade dos problemas sociais,
políticos e econômicos que assolam as unidades escolares, ou seja,
representam a ideologia na qual “se o problema pode ser medido, pode ser
solucionado” (p. 18); a quantificação é a lei para mensurar o sucesso.
Questiona a falsidade com a qual a racionalidade tecnocrática direciona
os currículos, pois se recusa a considerar que nem todos os alunos aprendem
a partir dos mesmos materiais ou pedagogias empregadas, ou ainda, formas
de avaliação. Os alunos são oriundos de práticas, culturas e talentos
diferentes. Portanto, como não incluir o papel que cabe ao educador nas
decisões curriculares? Isto é inexplicável do ponto de vista pedagógico, não faz
o menor sentido (p. 19).
A condição perspicaz e intelectual que todo professor deveria assumir,
pode repensar a natureza do seu trabalho, as questões materiais e ideológicas
para o seu trabalho intelectual, assim como desvelar outras inteligências,
ideologias e interesses que são oriundas do próprio trabalho docente. O
professor, neste caso, seria um alguém especial a serviço dos valores
intelectuais, que desenvolvesse o senso crítico dos alunos (p. 21). Como
esclarece Giroux, “[...] é importante enfatizar que os professores devem
responsabilizar-se ativamente por levantar questões sérias sobre o que
ensinam, como devem ensinar e quais os objetivos mais amplos por que lutam”
(1987, p. 22).
Insiste que todo educador intelectual, criativo e crítico precisa se revestir
em sua prática reflexiva com a dimensão política da sua atividade, ou seja, um
conjunto intelectual que deseje o desenvolvimento de uma sociedade
democrática, de uma escola pública com caráter democrático, “dedicada a
formas de fortalecimento pessoal e social.” O professor intelectual é
69
significativo demais, pois desenvolveria conhecimentos e habilidades que
ofertassem ferramentas aos alunos para não se tornarem apenas gerentes ou
empregados qualificados, mas sim, líderes. Uma luta contra a reprodução dos
privilégios de poucos que subordina a existência achatada de muitos:
Todas as correntes da teoria educacional representam uma forma de ideologia que tem íntima relação com as questões de poder. Isso é evidente no modo como tais discursos teóricos surgem, como estruturam as distinções entre conhecimento de status superior e inferior, como legitimam modelos culturais, que reproduzem específicos interesses patriarcais, raciais e de classes, e como ajudam a manter determinados padrões organizacionais e de relações sócias de sala de aula (GIROUX, 1987, p. 25, grifo do autor).
Abordaremos neste momento, extensamente, por exatamente fazer
sentido à nossa pesquisa, quatro categorias idealizadas por Giroux (1987) no
tocante a função social dos educadores como intelectuais, trazendo mais
variações de atuação docente à nossa reflexão sobre as possibilidades e
contribuições ironistas:
1. Intelectuais transformadores: esta categoria sugere que os professores intelectuais podem emergir de qualquer grupo e trabalhar com grupos diversos, desenvolvem as culturas e tradições emancipatórias dentro e fora das esferas públicas, utilizam a linguagem da crítica, empregam o discurso da autocrítica, de forma a tornar claros os fundamentos para uma pedagogia radical, enquanto, simultaneamente, enfatizam a importância dessa abordagem para os estudantes e para a sociedade. Sua tarefa central é tornar o pedagógico mais político e o político mais pedagógico, ou seja, inserir a educação diretamente na esfera política, afirmando que a escolarização representa tanto uma disputa por significado, como uma luta a respeito de relações de poder. A escola se torna espaço central, onde poder e política operam a partir de uma relação dialética entre indivíduos e grupos, que funcionam dentro de condições históricas e limites estruturais específicos. A escolarização, a reflexão crítica e a ação tornam-se parte fundamental de um projeto social para ajudar os alunos a desenvolverem uma profunda e inabalável fé no combate para vencer as injustiças e mudarem a si próprios. Conhecimento e poder estão ligados, pois para mudar a vida de maneira a torná-la possível, é necessário compreender as precondições necessárias para lutar por ela. Por outro lado, tornar o político mais pedagógico significa utilizar formas de pedagogia que: tratem os estudantes como agentes críticos, problematizem o conhecimento, utilizem o diálogo e tornem o conhecimento significativo, de tal modo a fazê-lo crítico para que seja emancipatório. Os intelectuais transformadores dão voz ativa aos alunos em suas experiências de aprendizagem. Para os intelectuais, os estudantes são como atores coletivos em suas várias características de
70
classe, culturais, raciais e de sexo, em conjunto com as particularidades de seus diversos problemas, esperanças e sonhos. É neste ponto que a linguagem crítica se une à linguagem da possibilidade. Isto significa trabalhar para criar condições materiais e ideológicas na escola e na sociedade mais ampla que deem aos alunos a oportunidade de se tornarem agentes de coragem cívica; isto é, cidadãos que possam atuar como se uma autêntica democracia realmente prevalecesse, fazendo desespero parecer inconvincente e a esperança exequível.
2. Intelectuais críticos: são ideologicamente alternativos às instituições e às formas de pensamento existentes, mas não se consideram ligados a qualquer formação social específica, nem tampouco se veem desempenhando uma função social que seja expressamente política por natureza. Seus protestos constituem uma função crítica que eles compreendem como parte de seu status profissional ou de sua obrigação como intelectuais. Na maioria dos casos, a postura dos intelectuais críticos é a-política ao nível de sua consciência e eles tentam definir sua relação com o resto da sociedade como livre de amarras. Como indivíduos, são críticos das desigualdades e injustiças, mas frequentemente se recusam ou são incapazes de avançar de sua postura isolada para o terreno da solidariedade coletiva e da luta. Muitas vezes, essa omissão é justificada com argumentos que colocam a impossibilidade da política por razões ideologicamente tão diversas, tais como: a alegação de que vivemos em uma sociedade totalmente administrada ou de que a história está em mãos de uma tecnologia fora de controle, ou há a simples recusa em acreditar que exista ação humana que tenha qualquer efeito sobre a história (grifo do autor).
3. Intelectuais adaptados: adotam uma posição ideológica e um conjunto de práticas materiais que sustentam a sociedade dominante e os grupos de elite. Não estão, geralmente, conscientes desse processo, uma vez que não se definem como agente do status quo, embora sua postura política promova os interesses das classes dominantes. Essa categoria também se define em termos que sugerem ser livre de amarras, distante das incertezas geradas pelos conflitos de classe e pelo engajamento político. No entanto, a despeito de tais racionalizações, esses intelectuais funcionam principalmente para produzir e mediar, acriticamente, ideias e práticas sociais que servem para reproduzir o status quo. Esses são os intelectuais que denunciam a política, enquanto, simultaneamente, recusam-se a correr riscos. Outra variação sutil é o intelectual que desdenha a política ao tomar o seu profissionalismo como um sistema de valores, sistema que frequentemente envolve o conceito espúrio de objetividade científica (grifo do autor).
4. Intelectuais hegemônicos: fazem mais do que se renderem a modalidades de
cooptação acadêmica e política ou esconderem-se atrás de afirmações espúrias de objetividade: conscientemente definem-se pelas formas de liderança moral e intelectual que colocam à disposição dos grupos e classes dominantes. Esse estrato de intelectuais fornece, às várias facções das classes dominantes, a homogeneidade e a consciência de suas funções éticas, políticas e econômicas. Os interesses, que definem as condições e a natureza de seu trabalho, são subordinados à preservação da ordem existente. Esses intelectuais podem ser encontrados nas listas de consultoria das maiores fundações, nas congregações das maiores universidades, como gerentes na indústria cultural e, na prática educacional, em postos docentes dos vários níveis de ensino. Quaisquer que sejam os interesses ideológicos
71
que tais educadores representam, há sempre a possibilidade de tensões e antagonismos reais entre: sua falta de controle sobre as metas e propósitos do processo educacional, e a relativa autonomia que gozam. É dentro dessas tensões e contradições objetivas que surgem possibilidades para a alteração de alianças e para que os professores se movam de uma categoria para outra.
Literal e meticulosamente, expusemos as análises de Giroux (1987)
acerca dos tipos de intelectuais que compõem categorias e que se distinguirão,
inevitavelmente, em sua atuação docente, contudo, zonas de contato podem
possibilitar um diálogo, uma tensão positiva. Giroux aponta que o intelectual
transformador está inserido em um contexto no qual há produção da cultura
dominante, porém, “[...] definem seu terreno político ao oferecerem aos
estudantes discursos alternativos e práticas sociais críticas [...]” (p. 40).
Considera que se o intelectual transformador se permitir ao discurso da
crítica e ao discurso da possibilidade, pode desvelar, positiva e negativamente,
o funcionamento do poder na escola; o que não quer dizer que o poder seja
apenas repressivo, mas sim, um jogo de forças dialéticas, uma “base de todas
as formas de comportamento, por meio das quais as pessoas resistem e lutam
por sua concepção de um mundo melhor” (p. 41).
Corroborando com Aguirre (2009), compreende a linguagem não apenas
como uma ferramenta para expressar o pensamento, pois ela está impregnada
de um locus de significado, “[...] tornando-se possível levantar questões sobre o
padrão da autoridade que legitima e utiliza a linguagem a fim de alocar
recursos e poder para alguns grupos, negando-os a outros” (1987, p. 43). Há
uma disputa entre os grupos de como a realidade deve ser compreendida e
reproduzida, portanto, há
[...] tipos de dominação que penalizam o corpo e o psiquismo, que “’penetram’” o corpo a fim de colocá-lo em uma teia de tecnologias e práticas que servem para prendê-lo a ideologias específicas ou a valores úteis à sociedade mais ampla” (GIROUX, 1987, p. 45).
A cultura deve ser analisada e praticada como elemento da política e do
poder, na esfera de luta e de contradições; não pode apenas ser “depósito de
72
conhecimentos”, formas e valores que são transmitidos aos alunos, pois as
culturas dominantes e institucionalizadas, certamente, discursarão de forma
selecionada e privilegiada, ou seja, legitimará novamente os seus interesses
específicos. A cultura tem de ser construída de forma emancipatória:
“[...] é uma expressão concreta da afirmação, da resistência, do desejo e de
luta do povo para se “’representar’” como agentes humanos, estabelecendo
seu lugar de direito no mundo” (p. 47).
Os professores intelectuais estarão sempre conectando as experiências
dos jovens e dos adultos à produção de saberes, aos debates, de forma que se
compreenda aspectos constitutivos da realidade social. Os intelectuais notarão
o capital cultural dos alunos e, pedagogicamente, os colocará em
possibilidades expressivas; é assim que se engajam “[...] criticamente as
linguagens, os sonhos, os valores e as descobertas daqueles estudantes cujas
histórias são, muitas vezes, silenciadas” (p. 48). O intelectual ao propiciar
outras experiências culturais criticamente, ajudará os alunos a desenvolver
habilidades, valores e senso de responsabilidade; em seu trabalho, buscará
apoio em condições práticas e sustentadas por ideologias democráticas,
promoverá novos espaços para teorias, práticas criativas e reflexivas (p. 51).
Está em questão aqui a necessidade de se fazer a associação teórica entre conhecimento e poder, de tal maneira a dar aos estudantes a oportunidade de aprenderem mais criticamente o que são, como parte da formação social mais ampla, ajudando-os a compreender como têm sido formados pelo contexto social e como são aí posicionados (GIROUX, 1987, p. 97).
Giroux (1997) reflete que a escola pública enquanto instrumento da
cultura dominante, tem enfatizado a técnica e a passividade: “a ênfase não é
mais ajudar os estudantes a “’lerem’” o mundo criticamente; em vez disso, é
ajudá-los a “’dominarem’” as ferramentas de leitura” (p. 33). Indica aos
educadores pais que vejam a escola não como neutra, objetiva, porém, “[...]
como uma construção social que incorpora interesses e suposições
particulares” (p. 39). Aos educadores, propõe que compreendam como a
sociedade moldou os indivíduos
73
[...] no que é que acreditam, e como estruturar os efeitos que têm sobre estudantes e outros. Em outras palavras, os professores e administradores, em particular, devem esforçar-se para compreender como as questões de classe, gênero, e raça deixaram uma marca sobre sua maneira de pensar e agir. Esta interrogação crítica fornece os fundamentos de uma escola democrática (p. 40).
No campo curricular, o esforço se dá na construção de condições
apropriadas para que a humanidade encontre auto compreensão e significado;
que o currículo observe a qualidade e o propósito da escolarização e da própria
vida; seus fundamentos sejam tanto históricos quanto críticos; reconheça a
singularidade e necessidades individuais como parte de uma realidade social
específica; dirija-se às experiências pessoais concretas de grupos e
populações culturais específicas e subordine os interesses técnicos às
considerações éticas (GIROUX, 1997, p. 50-51).
Analisa que a escola socializa os alunos para conformarem-se ao status
quo, não para trabalharem com habilidades que permitissem de forma crítica
intervirem no mundo e modificá-lo (p. 67). Portanto, proposita aos professores
que orientem os seus alunos a compreenderem por meio das aprendizagens, a
dialética dinâmica entre consciência crítica e ação social (p. 68). Segundo
Giroux, o intelectual transformador é mais do que uma pessoa, um produtor ou
transmissor de ideias: “os intelectuais são também mediadores, legitimadores,
e produtores de ideias e práticas sociais; eles cumprem uma função de
natureza eminentemente política” (p.186). Ainda mais, os intelectuais “[...]
podem fornecer a liderança moral, política e pedagógica para aqueles grupos
que tomam por ponto de partida a análise crítica das condições de opressão”
(p. 187).
No sentido da solidariedade, da ética e da educação crítica, Giroux (1997)
explicita que os professores atuariam “[...] como ativistas sociais cujo trabalho é
sustentado e informado por lutas e movimentos sociais mais amplos” (p. 245);
aponta-se contemporaneamente
74
[...] para a necessidade de reconstruir-se uma política cultural na qual os educadores críticos e outros intelectuais possam tornar-se parte de qualquer um dos diversos movimentos sociais nos quais utilizam suas habilidades teóricas e pedagógicas na construção de coligações históricas capazes de mudança social emancipadora (p. 250).
Giroux (1999, p. 20) esclarece-nos que a educação radical está pautada
em três peculiaridades: a educação radical tem uma natureza interdisciplinar;
questiona as categorias fundamentais de todas as disciplinas e tem uma
missão pública de tornar a sociedade mais democrática. Enquanto campo de
ação oferece um traço único que une a teoria e a práxis. Compreende o
educador radical da mesma forma que o assimila como educador crítico, uma
designação não poderia anular a outra. O educador radical não aceita a ideia
de que a educação pública tenha propósitos econômicos, não pode se tornar
loja de uma corporação. Portanto, a educação radical tem como pressuposto,
uma linguagem de possibilidades que investiga uma linguagem de
empoderamento humano (p. 21).
A liberdade e as capacidades humanas dos indivíduos devem ser desenvolvidas ao máximo, mas os potenciais individuais devem ser vinculados à democracia, no sentido de que a melhoria social deve ser a consequência necessária do florescimento individual. Os educadores radicais encaram as escolas como estruturas sociais. Essas estruturas devem educar as potencialidades que as pessoas têm para pensar, para agir, para ser indivíduos e para ser capazes de compreender os limites de seus compromissos ideológicos. Esse é um paradigma radical. Os educadores radicais acreditam que o relacionamento entre as estruturas sociais é tal que as potencialidades humanas conseguem ser educadas a ponto de questionar as próprias estruturas (GIROUX, 1999, p, 21, grifo nosso).
Em “Cruzando as fronteiras do discurso educacional: novas políticas em
educação”, Giroux (1999) indaga sobre os propósitos da educação e qual tipo
de cidadão a sociedade vem produzindo; sinaliza a categoria de pedagogia de
fronteira reforçando os processos pedagógicos como uma forma de transpor
fronteiras: “formas de transgressão em que as fronteiras existentes de
dominação podem ser desafiadas e redefinidas” (p. 41). Define que o conceito
de pedagogia de fronteira está além de colocar o aluno em contato com
75
culturas, “[...] significa entender como a identidade é frágil quando se
movimenta rumo a fronteiras transpostas, que apresentam uma variedade de
linguagens, experiências e vozes” (p. 47). Esta espacialidade pode ser
compreendida como uma fonte potencial de experimentação pedagógica,
criatividade e possibilidades democráticas.
Giroux (1999, p. 66) não descarta as possibilidades de intervenção em
contexto pós-moderno, pois há espaço para “pluralidade, diferença e
multinarrativas”; o trabalho de mudança vai se compondo em um projeto radical
de luta democrática. A pós-modernidade contribui com “os relacionamentos
culturais e estruturais instáveis” e a incidência de seus melhores insights
podem adequar-se em “uma política democrática progressista e
emancipatória”. O educador radical, transformador, ironista, sem dúvida
alguma, estaria se articulando entre estas zonas mais promissoras de
convergência.
[...] a pós-modernidade aponta para o papel cada vez mais poderoso e complexo do novo meio eletrônico na constituição de identidades individuais, linguagens culturais e novas formações sociais. Dessa maneira, a pós-modernidade proporcionou um novo discurso que nos permite compreender a natureza mutável da dominação e da resistência nas sociedades capitalistas tardias (GIROUX, 1999, p. 70).
Neste sentido, os professores intelectuais podem oportunizar e explorar
“relações de conhecimento/poder”, onde as narrativas e práticas sociais sejam
construídas e embasadas “de uma política e de uma pedagogia da diferença”
que permita aos alunos interpretarem o mundo de formas diferentes, resistindo
ao abuso de poder, com o intuito de construir “comunidades democráticas
alternativas” (p. 92). Incrementa acerca do trabalho docente nos parâmetros
pós-modernos, indicando à pedagogia crítica, a necessidade de uma nova
linguagem que permita o fluxo da solidariedade e para que as questões de
poder, justiça, luta e desigualdade não se reduzam a um único roteiro, ou “a
uma narrativa dominante que suprima o contingente, o histórico e o cotidiano
como objetos sérios de estudo” (p. 92).
76
Giroux (1999) pondera que “para o desenvolvimento de uma pedagogia
crítica é fundamental explorar como a pedagogia funciona como uma prática
cultural para produzir – em vez de meramente transmitir – conhecimento [...]”
(p. 117). Está direcionada à construção de condições específicas, que permitirá
professor e aluno pensar sobre o modo como o conhecimento é produzido e
transformado na relação com experiências sociais informadas pela relação
particular entre o self, os outros e o mundo (p. 117).
Os educadores precisam encorajar os alunos através do exemplo para encontrar maneiras de ficarem envolvidos, para se destacarem, para pensarem em termos globais e para agirem segundo contextos específicos. O conceito dos professores como intelectuais transformadores é marcado por uma coragem moral e um criticismo que não requer que eles se retirem da sociedade, mas que apenas se distanciem para não serem implicados naquelas relações de poder que subjugam, corrompem, exploram ou infantilizam (GIROUX, 1999, p. 125).
Giroux (1999, p. 162) valoriza e ratifica a luta antirracista, assevera que a
“[...] pedagogia antirracista deve demonstrar que os nossos pontos de vista
sobre raça têm um peso histórico e ideológico diferente [...]” ou seja,
“[...] não pode tratar as ideologias simplesmente como expressões individuais
de sentimento, mas como práticas históricas, culturais e sociais que servem
para corroer ou reconstruir a vida democrática”.
Para os professores e professoras progressistas da contemporaneidade,
segundo Giroux (2000, p. 70), o enfrentamento, o desafio posto, é de conseguir
unir cultura e política, transformar e fazer o pedagógico aderir mais caracteres
políticos, unindo a aprendizagem em toda a sua globalidade às mudanças
sociais, pois “[...] a cultura está composto de indivíduos e política, porque esta
proporciona recursos por meio dos quais as pessoas aprendem a pensar sobre
si mesmas e a relacionar-se com as demais e com o mundo que as rodeia”.
Giroux (2000, p. 74) convoca-nos à urgência de “[...] criar práticas
pedagógicas em uma diversidade de culturas públicas que ofereçam
facilidades à juventude, para que ela aprenda como ser sujeito da história [...]”
É justamente nesse labor, o de criação de práticas pedagógicas que, Aguirre
77
(2009) provoca-nos, minimamente, a perscrutar um pouco mais as ferramentas
metodológicas do educador ironista; e, além disto, convida-nos a entrar em um
universo que justifica a dúvida e a incerteza como dispositivos operacionais.
Uma das suas poucas certezas se ampara na construção de uma sociedade
que oportunize o acesso dos alunos à uma vida mais plena.
Aderimos Hall (2006) às nossas reflexões pós-modernas no sentido de
problematizar a complexidade identitária, assim como, as consequências
inextricáveis da contemporaneidade sob o sujeito, principalmente, em seu
processo formativo. Oferece-nos, primeiramente, o conceito do sujeito do
Iluminismo, centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de
consciência e de ação, cujo “’centro’” consistia num núcleo interior que era
contínuo. O seu centro era o seu eu interior. O segundo exemplo de
transformação identitária se dá com o sujeito sociológico: seu núcleo interior já
não era autônomo e autossuficiente, mas estava em relação com “’outras
pessoas importantes para ele’”, que mediavam para ele os valores, os sentidos
e os símbolos, portanto, a cultura. A sua identidade se formava na “’interação’”
entre o eu e a sociedade; ainda assim, o seu “’eu real’”, a sua essência,
permanecia em si, porém, num diálogo contínuo com os mundos culturais
“’exteriores’” (p. 11-12). A terceira identidade, a pós-moderna se insere num
campo provisório, variável, problemático, fragmentado; onde a identidade do
sujeito não é fixa (centrada), essencial ou permanente. Hall a nomeia de
“’celebração móvel’”: está se transformando e se formando “continuamente em
relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos
sistemas culturais que nos rodeiam” (p. 13).
Agora, por que trazemos estas concepções? E, principalmente, por que
daremos atenção específica à terceira identidade? Bem, há “jogos de
identidade" na sociedade contemporânea, e nossos alunos da educação
básica, certamente, estão em jogo e em processo constitutivo de sua
identidade. A formação identitária é suscetível às persuasões, e o educador
transformador, intelectual, ironista, pode auxiliar na sua constituição,
pluralizando aspectos culturais (capital cultural) e problematizando criticamente
78
a sociedade global (híbrida) e suas linhas de força e poder junto aos alunos.
Contudo, é certo que usamos aqui uma transposição metafórica dos recursos
sociológicos de Hall.
As representações culturais estão correlatas ao processo histórico do
indivíduo, e os efeitos da globalização têm surtido deslocamentos culturais, ou
seja, certas “identificações “’globais’” começam a deslocar e, algumas vezes, a
apagar, as identidades nacionais” (2006, p. 73). Em virtude da
interdependência global, ocorre a fragmentação de códigos culturais, que
acaba por gerar a exposição das culturas nacionais, das identidades culturais.
Este fenômeno cultural e global, não passa despercebido pelo ironista que atua
em loco; analisa as tensões entre ambas esferas, pois compreende as gamas
implícitas em seus alunos no que se refere a vínculos a lugares, eventos,
símbolos, histórias particulares, por exemplo. Sabe das sujeições dominantes
que acompanham as culturas homogeneizantes e sempre procurará por meio
do diálogo, confrontar com os seus alunos, o que está em jogo, o que pode se
perder, o que pode se ganhar mediante determinada postura:
No interior do discurso do consumismo global, as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de moeda global, em termos das quais todas as tradições específicas e todas as diferentes identidades podem ser traduzidas. Este fenômeno é conhecido como “’homogeneização cultural’” (p. 75-76, grifo do autor).
Como Bauman (1999, p. 25) sinaliza, “[...] em vez de homogeneizar a
condição humana, a anulação tecnológica das distâncias temporais/espaciais
tende a polarizá-la”; notamos que a globalização, segundo o viés do autor,
promove infindos debates, justamente, por polarizar, ironicamente, agora que
detentores da tecnologia, as representações culturais e seus sujeitos. Este
pensamento de Bauman só vem a acrescentar o âmbito duvidoso no qual o
ironista seleciona as suas reflexões contemporâneas.
Conforme Bauman (1999, p. 67), “[...] O significado mais profundo
transmitido pela ideia da globalização é o de caráter indeterminado,
79
indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais [...] A globalização é a
“’nova desordem mundial’” [...]. Considerando as perspectivas de Bauman
acerca da globalização e seu cunho desorganizado, quando recordamos da
sala de aula que abriga toda uma multiplicidade, diversidade, contingência, só
podemos, realmente, acreditar que apenas um perfil bem distinto de educador
poderia colocar os pés dentro dos limites do ensino-aprendizagem.
Preocupamo-nos neste subcapítulo com um diálogo com o autor norte-
americano Giroux e a sua ponderação incisiva no tocante à pedagogia radical,
ao mesmo tempo, que aponta o desígnio de que o educador deveria assumir a
sua condição de intelectual, de transformador, que arquiteta possibilidades
entre a pedagogia e a política como cúmplices de uma vida mais respeitável e
consciente. Tomamos, mesmo que brevemente, apontamentos sociológicos de
Hall e Bauman acerca das rupturas nas representações culturais do homem
contemporâneo, pertencente ao universo globalizado e, aparentemente,
desorganizado, ou teriam razões para assim sê-lo?
No entanto, cremos que conseguimos expor neste primeiro capítulo,
algumas matrizes referenciais do que significa ser um bom professor, passando
por Meirieu, Perrenoud, Tardiff e, apontando por meio de Barbosa, alguns
aspectos que permeiam a arte-educação e o processo formativo do arte-
educador brasileiro na contemporaneidade, alcançando, por fim, as ações
comprometidas do professor intelectual (radical) de Giroux.
No próximo capítulo, abordaremos um breve histórico do uso da ironia
como instrumento para desarmar falsas ideias, motivações escusas e
paradigmas. A ironia é vista como uma ponte capacitadora de intervenções
pedagógicas que acabam por acurar a postura do professor.
80
CAPÍTULO 2
A IRONIA COMO INSTRUMENTO DO SABER
Este capítulo dedica-se a explanar acerca da ironia, a partir da leitura
kierkegaardiana que se remete à Sócrates, compreendendo-a em sua
dimensão epistemológica, assim como pedagógica. A ironia é assumida como
um instrumento do saber, um recurso propositivo que abarca uma
intencionalidade e uma funcionalidade, circunscrevendo-a numa possibilidade
de filiação pedagógica entre mestre e discípulo, docente e discente, ou seja,
uma postura pedagógica. Enseja-se, proveitosamente, o Apêndice 1 que
oportuniza em caracteres históricos o processo formativo do arte-educador no
Brasil3.
2.1 A ironia como postura epistemológica e pedagógica
Soren Kierkegaard (1991) introduziu a sua reflexão sobre a ironia – e, por
que não, a sua reflexão irônica? –, por meio da sua dissertação de Mestrado
realizada na Faculdade de Filosofia da Universidade de Compenhague no ano
de 1841. A título de curiosidade, a sua obra foi traduzida mui tardiamente pelos
italianos em 1989, pelos franceses em 1975; em contrapartida, os japoneses já
se dispunham do “O conceito de Ironia – constantemente referido a Sócrates”
em 1935, ao passo que a primeira versão portuguesa com a tradução de
alguns textos selecionados se deu na década de 1970, no entanto, apenas na
década de 1980 culminou-se a tradução a partir do original. A edição que
fazemos uso é uma tradução da 3ª edição dinamarquesa de 1962.
Soren (1991, p. 25) revitaliza a nossa memória ao propor que “todo
fenômeno individual contém apenas um momento...” e, que por fim, não
satisfaz, mas sim confere nostalgia; contrabalança aludindo à história, onde
3 Histórico do processo formativo do ensino de artes no Brasil, assim como do arte-educador
brasileiro e suas influências estrangeiras, enlaçada a sua atuação frente a um ideal mais
realista, portanto, ligado às demandas educacionais contemporâneas.
81
ocorre que todo fato individual testemunha um estado evolutivo, uma
participação momentânea do todo, ou seja, os fragmentos existenciais-
históricos constituem um medium imperfeito, aspectos temporais e particulares,
que podem ser avaliados pela consciência retrospectiva num olhar para trás,
não a representação exata que abarca o todo. Frente esta premissa,
partilharemos dos saberes que nos foram outorgados e orbitam ao redor da
ironia verificada em Sócrates, porém, conscientes de alcançarmos com a nossa
elucubração, um medium imperfeito.
Quando Soren explana a este respeito, mais do que nunca se remete a
Sócrates (470/469 a.C. – 399 a.C.), pensador ateniense, que apenas poderá
ser revisitado por meio de uma evocação combinatória de elementos, dada as
suas multifaces e ambiguidades, pois até mesmo os seus contemporâneos da
Grécia Antiga4 não tiveram êxito imediato ao tentar compreendê-lo. Sócrates
nada escreveu, muito disse. Tudo o que sabemos dele foi escrito por meio dos
seus discípulos como Xenofonte (430 a.C. – 355 a.C.) e Platão (427/428 a.C. –
348/347 a.C.), ou de adversários, como Aristófanes (447 a.C. – 385 a.C.).
Faremos uma análise da ironia por meio das observações de Kierkegaard,
quando cotejou os diálogos travados por Sócrates. O nosso intuito é clarear a
importância da ironia como um instrumento do saber. Perceberemos que
muitas vezes os discursos não estão longe da mentira ou do preconceito.
Porém, não tardaremos em avançar objetivamente, haja vista não ser o objeto
do nosso estudo demonstrar as especificidades de cada discípulo de Sócrates
e seus pontos de vista; apenas nos interessa as suas exemplificações que
fortalecem a ironia, ainda assim, citamos a predileção de Kierkegaard (1991)
pelas obras de Platão, sendo este, o mais reconfortante. O dinamarquês
oferece uma reflexão acerca das suas apreensões naqueles tempos idos da
primeira metade do século XIX:
[ ] e quando é que no mundo se precisou de mais de repouso, senão em nosso tempo, em que as ideias se atropelam umas às outras com a pressa da loucura, em que as ideias só
4 A Grécia Antiga é o termo usado para descrever o mundo grego que abrangeu desde 1 100
a.C. até a dominação romana em 146 a.C.
82
anunciam a sua presença no fundo da alma por uma bolha na superfície do mar, em que elas jamais se desenvolvem, mas se consomem em seus tenros brotos, apenas levantam a cabeça para a vida, mas em seguida morrem de tristeza, como aquela criança de que fala Abraão de Santa Clara, que no mesmo instante em que nasceu ficou com tanto medo do mundo, que retornou para o seio materno.” (p. 36-37).
Neste ponto há que se fazer uma ponderação: Kierkegaard não havia
nem chegado aos 30 anos quando da sua dissertação e titulação em 1841, ou
seja, um jovem provocativo que se atentava aos tempos atribulados,
desconfortáveis à reflexão que exige de “repouso”, nos quais as ideias se
perdiam ante a voracidade da loucura vivenciada em seus tempos; o que se
pensar do nosso tempo histórico no qual duas das suas marcas mais insignes
é a fugacidade, com a qual se dão as inter-relações e o movimento tecnológico,
que mais superficializa e distancia as pessoas da sua própria humanidade? Em
outras palavras, o educador contemporâneo que atua neste cenário
tresloucado, mesmo que em constante reflexão da sua profissionalidade e das
transitoriedades inerentes a toda espécie de fenômenos sociológicos, terá de
encontrar mais do que nunca um “repouso” em movimento.
Porém, antes de gravitarmos ao redor da obra kierkegaardiana,
basilarmente, apontamos (para nossa melhor compreensão) algumas
definições que o dicionário Houaiss e Villar (2007), assim como o Dicionário de
Filosofia (1994), sequencialmente, atribuem à ironia:
1. Retórica – figura por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender; uso da palavra ou frase de sentido diverso ou oposto ao que deveria ser empregado para definir ou denominar algo [A ironia ressalta do contexto.] 1.1 Literatura – esta figura, que se caracteriza pelo emprego inteligente de contrastes, usando literariamente para criar ou ressaltar certos efeitos humorísticos 2 m.q. ASTEÍSMO (´uso sutil e delicado da crítica irônica`) 3 qualquer comentário ou afirmação irônica 4 p.ext. uso de palavra, expressão ou acepção de caráter sarcástico; zombaria 5 fig. contraste ou incongruência entre o resultado real de uma sequência de acontecimentos e o que seria o resultado normal ou esperado 5.1 fig. acontecimento ou resultado marcado por esse contraste ou incongruência <uma i. do destino> i. dramática TEAT descompasso entre a situação desenvolvida num drama e as palavras ou atos que a acompanham, os quais são entendidos pela plateia mas não pelas personagens. i. socrática FIL disposição apara aprender com outrem que fingidamente se adota para, interrogando-o habilmente, fazê-lo entrar em contradição e deixar bem evidente o caráter errôneo de suas concepções, do que resulta o reconhecimento por aquele interlocutor da autêntica
83
ignorância do interrogado [Era o procedimento característico de Sócrates, registrado nos Diálogos, de Platão] ETIM gr. eirõneía,as ´ação de interrogar fingindo ignorância; dissimulação´, de eirõneúomai ´fazer-se de ignorante´. (grifo nosso). 2. Definições particulares de filósofos FONTANER (B) “A ironia consiste em dizer, por uma zombaria, agradável ou séria, o contrário do que se pensa ou do que se quer fazer pensar.” (As Figuras do Discurso, p. 145, Champs, Flammarion.) BERGSON (B) “Ora se enunciará o que deveria ser, fingindo acreditar que é precisamente o que é: nisso consiste a ironia. Ora, ao contrário, se descreverá minuciosa e meticulosamente o que é, fingindo acreditar que é exatamente isso que as coisas deveriam ser: assim procede frequentemente o humor.” (O Riso, p. 83, Skira.)
Notamos que a palavra ironia oferece, de fato, uma polifonia de sentidos e
usos, mas, como indica o excerto acima destacado, adotamos aqui neste
estudo, a ironia nos termos socráticos; a ironia instrumentalizada e a serviço de
uma área na qual o homem capacita o seu semelhante à evidência real,
descortinada das inverdades e/ou falsas certezas; a ironia como fundamento
da prática consciente da dúvida e da descrença (AGUIRRE, 2009).
Kierkegaard (1991, p. 29) expõe uma percepção quanto ao método
socrático de ser, apresentado por Xenofonte no qual “o decisivo em Sócrates
não era o ponto fixo, mas um ubique et nusquam (em toda parte e em nenhum
lugar).” Podemos atribuir a Sócrates uma sensibilidade aguda para se conectar
à presença da mais sutil ideia, ou seja, Sócrates cambiava de um ponto para o
outro em seus diálogos com o intuito de mobilizar e desarmar “verdades”
engendradas na falta de certezas do seu interlocutor.
O método socrático averiguado nos diálogos escritos por Platão, tendo
como base as interlocuções do seu mestre, Sócrates, conduzia a um processo
de reflexão que desvendava ao interlocutor os seus próprios valores, muitos
deles amparados nos preconceitos da sociedade. A contradição dos
argumentos era desmascarada em camadas por meio de perguntas simples,
ingênuas, que aos poucos revelavam os limites do conhecimento alheio; no
84
entanto, Sócrates instruía, auxiliava as pessoas a pensarem por si mesmas,
sem cobrar nada, ao contrário dos sofistas que, invariavelmente, inclusive,
eram expostos por ele.
Sócrates assumia-se um “parteiro do conhecimento”, homenagem dada à
sua mãe, uma parteira. Em seus diálogos ironizava as interpelações do seu
interlocutor sem o ofendê-lo, com o propósito de evidenciar a sua ignorância e,
uma vez, consciente, talvez, pudesse evitar o preconceito que viria amealhado
à sua antiga e frágil ignorância. Em poucas palavras, Sócrates educava, não
desmoralizava, pois com o seu método, a maiêutica, conduzia a pessoa
ironicamente de forma não pejorativa, ao ponto de fazê-la responder coisas
que nunca imaginaria precisar com tanta clareza, tal como um conceito, por
exemplo. Ou seja, com o autoconhecimento, a pessoa chegaria a conhecer o
seu próprio contexto.
O método socrático inspirava-se em seu objetivo último, que era a
elevação do homem, mas, naturalmente, construía-se dialogicamente em
camadas de esclarecimentos, embrenhando entre tabus e senso comuns para
desativá-los, desestruturá-los. Saviani (1991, p. 39) ilustra-nos a coordenação
existente entre a educação, o homem e o sentido filosófico para com a vida: “E
como a educação se destina (senão de fato, pelo menos de direito) à promoção
do homem, percebe-se já a condição básica para alguém ser educador: ser
profundo conhecedor do homem.”
Alimenta-nos, alinhado à reflexão filosófica impregnada em Sócrates, com
exigências que compõem, verdadeiramente, uma reflexão que valha ser
declarada filosófica; seu requisito é composto de radicalidade, rigor e
globalidade. Ou seja, é preciso enxergar o problema nas raízes em questão,
em seus fundamentos, em sua profundidade; é necessário sistemas e métodos
determinados que averiguem a sabedoria popular e as generalizações que a
ciência menos rigorosa possa produzir; faz-se inerente um olhar de conjunto,
não parcial, mas de perspectiva, com o intuito de contextualizar, examinar os
85
aspectos e propor à ciência, após a reflexão, uma possível delimitação de área
científica na qual se encontra o problema.
Kierkegaard (1991) nos lança luz a respeito dos desdobramentos das
ações de uma personalidade detentora imediata do divino. Neste sentido,
veremos uma analogia propositada por ele que, com as devidas precauções e
proporções abordaremos, com a intenção última de correlacioná-la à matriz
atitudinal da qual o educador ironista5 poderá fazer uso, intencionando a
protagonia e a autonomia do aluno. Platão via em Sócrates uma personalidade
original que agia em sua geração, desta relação resultaria uma comunicação
de vida e espírito:
[...] (quando Cristo assopra sobre os discípulos e diz: Recebei o Espírito Santo), e em parte numa liberação das forças presas do indivíduo (quando Cristo diz ao paralítico: Levante-te e anda,) ou melhor, realizam-se em ambas as formas ao mesmo tempo. A analogia para este caso pode portanto ser dupla: ou ela é positiva, isto é, fecundante, ou é negativa, isto é, auxiliando o indivíduo paralisado, volatilizando em si mesmo, a reencontrar a flexibilidade original, apenas protegendo e observando o indivíduo assim fortificado, e assim auxiliando-o a refletir sobre si mesmo e tomar consciência de si mesmo (KIERKEGAARD,1991, p. 37).
Sem dúvida, temos uma metáfora potente, que com o devido cuidado
podemos nos apossar positivamente, interligando a existência do que pouco a
pouco iremos esclarecer o que vem a ser o educador ironista e a sua
potencialidade de trazer consigo (minimamente) o interesse de reverter o
estado debilitado do seu interlocutor. Com calma, vamos nos aprofundar nestas
esferas. Todavia, é-nos imperioso esclarecer (mesmo que mui brevemente)
que a postura pedagógica é a mais apropriada ao educador ironista, pois o seu
ambiente profissional é o pedagógico, é o escolar, portanto, o que concerne ao
estudo epistemológico apresentado neste subcapítulo, unicamente vem a
somar, introduzindo-nos à história contada de Platão à Kierkegaard, de
Kierkegaard a nós.
5 Concepção criada pelo autor/educador Dr. Imanol Aguirre acerca do educador
contemporâneo. O ironista é reflexivo, pesquisador e provoca o constante uso da dúvida junto
ao aluno com o intuito de desarmar o senso comum.
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O segredo nos diálogos travados por Sócrates reside justamente na “arte
socrática de perguntar, ou, para recordar a necessidade dos diálogos para a
filosofia platônica, a arte de conversar.” (KIERKEGAARD, 1991, p. 40).
Sócrates utilizava a ironia para repreender os sofistas6 altivos que sabiam
muito bem falar, porém não conversar. Os ensinamentos e os objetivos que
Sócrates e os sofistas propunham, eram contrários e inconciliáveis:
Se a apresentação dos sofistas era pomposa e pretensiosa, o modo de Sócrates se apresentar era tranquilo e modesto; se a conduta dos sofistas era exuberante e voluptuosa, a dele era singela e moderada; se a meta dos sofistas era a influência no Estado, Sócrates não se sentia inclinado a ocupar-se com os assuntos do Estado; se o ensino dos sofistas era impagável, o de Sócrates também o era, no sentido inverso; se o desejo dos sofistas era sentar à mesa nos lugares mais importantes, Sócrates se sentia satisfeito ocupando o último lugar; se os sofistas desejavam ser algo, Sócrates preferia ser simplesmente nada. Tudo isso podia ser concebido como um exemplo de fortaleza moral de Sócrates (KIERKEGAARD, 1991, p.164-165).
Ao conectarmos a ponte que há entre a ironia presente nas conversas
entre Sócrates e os seus interlocutores, com a possibilidade de atuação do
educador irônico, ou ironista, encontramos na conversação o trunfo para que
aprendizagem venha a se instalar. Educador e aluno podem orquestrar juntos a
composição da dúvida e da incerteza com o objetivo de atingir o conhecimento,
conforme o ateniense aconselhava: “conhece-te a ti mesmo”.
A dialogia é o setor privilegiado às emancipações. A ironia contida nos
diálogos, tal qual utilizada por Sócrates e manifestada como um recurso de
libertação, oferece propulsão à aprendizagem. Neste tocante, Kierkegaard
(1991) afirma sobre os benefícios de quem faz uso direcionado da ironia:
Na medida, porém, que o indivíduo especulante sente-se libertado e uma grande riqueza se apresente diante de seus
6 Os sofistas eram mestres que viviam a viajar e atrair estudantes em suas aparições públicas
com os seus discursos. Os estudantes pagavam taxas em troca de educação. Os seus
ensinamentos eram em forma de discursos com estratégias de argumentação.
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olhos, facilmente ele poderá vir a crer que tudo isto também é devido à ironia, e a gratidão que ele sente pode desejar que ele se considere devedor à ironia por tudo (p. 104, grifo do autor).
Todavia, como nos precave Kierkegaard (1991, p.106) para assimilar a
“ironia socrática em seu empenho total”, não bastaria ao indivíduo lidar apenas
“com as manifestações particulares da ironia”, mas sim, “ter uma disposição
espiritual sui generis que se distingue qualitativamente de qualquer outra”.
Kierkegaard não se contenta, avança e anuncia que este indíviduo sui generis,
que se sente tocado pelas manifestações particulares que concernem à ironia,
“pode brincar com elas sem nem de longe imaginar o demônio monstruoso que
habita os sítios desertos e áridos da ironia.”
Conduz-nos, consistentemente, nos limiares da ironia em sua dissertação,
muito embora esclarece o quão perigoso pode ser o caminhar hipnótico e
salutar da senda irônica, quando nos remete em seus estudos acerca da
oposição poderosa dos políticos e sofistas atenienses, que acabaram por
acusar Sócrates de corromper os jovens e ser ateu. Sócrates era perigoso por
democratizar o saber e inquirir o modus vivendi, o status quo do seu tempo. O
tipo irônico que Sócrates personificou revela a mais autêntica ironia, por
justamente ser o “dialogador” empírico de todos os seus diálogos, e não uma
máscara, um personagem literário que não sobrevive se não forem as páginas;
ele que era conhecido por proclamar nada saber e por nada cobrar pelos
ensinamentos. Tornou-se, destacadamente, via Platão, em um irônico com
“validade universal”, segundo Kierkegaard (1991).
A eloquência oriunda do sabor da libertação, cuja promessa Sócrates
trazia em seus pulmões, criava o cenário dialógico ideal para as metamorfoses
das mentes, e isto é corrosivo e, ao mesmo tempo, uma força contra os
caracteres da cultura vigente, uma afronta a quaisquer estados/ideologias
dominantes. Neste sentido, Saviani corrobora acerca da prontidão ativa dos
seres dispostos à reflexão:
Mas se o homem não fica indiferentes às coisas, isso significa que ele não é um ser passivo. Ele reage perante a situação,
88
intervém pessoalmente para aceitar, rejeitar ou transformar. A cultura não é outra coisa senão, por um lado, a transformação que o homem opera sobre o meio e, por outro, os resultados desta transformação. O homem é então capaz de superar os condicionamentos da situação; ele não é totalmente determinado; é um ser autônomo, um ser livre. E a liberdade abre ao homem um novo campo amplo para a valorização e os valores. Sendo a liberdade pessoal e intransferível, impõe-se aqui o respeito à pessoa humana; como eu sou um sujeito capaz de tomar posições, de avaliar, fazer opções e engajar-me por elas, assim também aquele que vive ao meu lado, perto ou longe, é igualmente um sujeito e jamais um objeto (SAVIANI, 1991, p.40, grifo nosso).
A capacidade irônica de Sócrates, conforme Kierkegaard (1991),
insistentemente demonstrada nos colóquios repletos de sua sagacidade
esclarecedora, legitimava-o como “uma profecia ou uma abreviatura de uma
personalidade completa” (p. 121).
Pensar a respeito da totalidade intelectual de Sócrates, no sentido de
suas palavras, de suas interpelações, puras condutoras à verdade, não menos
edificantes do que provocativas, induz-nos a visualizá-lo entrecruzando,
freneticamente, os saberes ligados à matéria e ao abstrato. Com tamanha
sapiência, apenas um irônico tal qual Sócrates para se sentir mais leve que o
mundo, embora ainda pertencente ao mundo, conforme Kierkegaard (1991).
Em sua existência, o ser humano detentor de uma ideia sofre ações de
todas as espécies, sejam elas em seu benefício ou não; assim como toda
reação, muitas vezes, é encaminhada ao receptor que, unicamente, pode
deferi-las. Este é o caso (literalmente clássico) que se fixa em Sócrates e de
que certa forma, evidencia-se na obra “Apologia de Sócrates”, na qual o próprio
Sócrates se autodefende dos seus algozes. Kierkegaard (1991) recorda-nos de
que “a gente não se lembra”, mas, assim como a ironia, todo e qualquer ponto
de vista tem as suas lutas, provações, recuos e vitórias. Não foi diferente para
o nosso eloquente Sócrates.
Buscaremos ao longo da nossa reflexão, religar a ideia socrática da
atuação junto aos jovens ao exercício do educador contemporâneo ironista,
89
pois, segundo Kierkegaard (1991, p. 144), Sócrates via na juventude “um
terreno propício onde suas ideias só poderiam prosperar” uma vez que ela
“sempre vive de maneira mais universal do que os homens adultos.”
A juventude é uma esponja na qual ilimitados conhecimentos e saberes
são direcionados. Então, sob o ponto de vista educacional, o que significaria a
promoção do homem? Esta pergunta, Saviani (1991) nos coloca observando os
ditames reflexivos e socráticos:
Significa tornar o homem cada vez mais capaz de conhecer os elementos de sua situação para intervir nela transformando-a no sentido de uma ampliação da liberdade, da comunicação e colaboração entre os homens. Trata-se, pois, de uma tarefa que deve ser realizada. Isto nos permite perceber a função da valoração e doa valores na vida humana. Os valores indicam as expectativas, as aspirações que caracterizam o homem em seu esforço de transcender-se a si mesmo e à sua situação histórica; como tal, marcam aquilo que deve ser em contraposição àquilo que é. A valoração é o próprio esforço do homem em transformar o que é naquilo que deve ser (p.41).
Kierkegaard (1991) assevera que Sócrates “estava sempre num contato
muito vivo” com a vida. Ora, um homem devotado às inter-relações, curioso por
excelência e avesso às cobiças, às vaidades que o dinheiro insiste em doar,
não poderia deixar de sorver qualquer circunstância que um único ouvido e
língua se pusessem em prontidão. Sócrates foi um homem que:
[ ] gostava igualmente de falar com agricultores, alfaiates, sofistas, homens do Estado, poetas, com jovens e velhos, falava facilmente sobre todos os assuntos, porque em toda parte encontrava uma tarefa para sua ironia (p. 142, grifo nosso).
Ainda segundo este autor, Sócrates não utilizava grandes palavras,
longos oratórios, demonstrações do seu saber aos gritos tais quais os
mercadores; ao contrário, andava tranquilo por aí fingindo indiferença ante os
jovens, porém, não discutia com os jovens a sua relação com eles, mas sim,
assuntos que para os jovens eram importantes, mantinha-se totalmente
objetivo e focado nisto, e por baixo desta suposta indiferença, Sócrates se
90
permitia ser observado por eles: sentimentos transpassavam-lhes as suas
almas como um punhal. Sócrates havia ganhado a confidência da mentalidade
dos jovens, como se ouvisse as conversações íntimas de cada alma.
Vejamos em um excerto da obra “Apologia de Sócrates” de Platão (1972,
p. 17), a atuação irônica que Sócrates metodicamente fazia uso. Sócrates
estava sendo julgado por corromper a juventude e, portanto, interpelava um
dos seus acusadores, Meleto:
“- Dize-me cá, Meleto: dás muita importância a que os jovens sejam quanto melhores?
- Dou, sim. - Faze, então, o favor de dizer a estes senhores quem é que os torna melhores;
evidentemente o sabes, pois que te importa. Descoberto o corruptor, segundo afirmas, tu me conduzes à presença destes senhores e me acusas; portanto, faze o favor de dizer quem os torna melhores; conta-lhes quem é. Estás vendo, Meleto, que te calas e não sabes o que dizer? Com efeito, não achas que isso é feio e prova que não fazes o mínimo caso, como eu disse? Vamos, bom rapaz, fala; quem é que os torna melhores?
- São as leis. - Não é isso o que estou perguntando, excelente rapaz; pergunto que homem é,
o qual, para começar, sabe exatamente isso, as leis. - As pessoas presentes, Sócrates; os juízes. - Que dizes, Meleto? Os presentes são capazes de educar os moços e os
tornam melhores? - Sem dúvida. - Todos? Ou uns sim e outros não? - Todos. - Boa notícia nos dás, por Hera! Sobejam os benfeitores! Que mais? E esses da
assistência os tornam melhores ou não? - Eles também. - Que dizer dos conselheiros? - Também os conselheiros. - Mas, então, Meleto, acaso os homens da assembleia, os eclesiastas
corrompem a mocidade? Ou eles todos também a tornam melhor? - Também eles. - Logo, não é assim? todos os atenienses a tornam gente de bem, menos eu; eu
sou o único a corrompê-la! É isso o que dizes? - Exatamente isso é o que digo. - Que imensa desdita apontas em mim! Responde também a esta pergunta: no
teu entender, com os cavalos sucede o mesmo? Toda gente os melhora e um só os vicia? Ou se dá inteiramente o contrário: quem os sabe melhorar é um só, ou muito poucos, os adestradores; a maioria, quando trata de cavalos e os monta, vicia-os?”
Neste trecho, percebemos que a ironia está onipresente no discurso de
Sócrates, aproxima-se das incertezas e fragilidades de Meleto, induzindo-o a
91
reconhecer a sua própria ignorância, condição na qual mais se justifica; mas,
não consegue formular um pensamento inteiro enquanto resposta que o valha,
pois, o seu argumento não se pauta na verdade, mas sim no erro, na mentira e
na inobservância.
Sócrates tinha um sentido apurado, desenvolveu a habilidade de
conversar com as necessidades e incongruências de ideias alheias. O seu
auxílio vinha em benefício de seu interlocutor que, dependendo, do estado de
sua disponibilidade mental, poderia vir a se libertar. Quando o interlocutor
estivesse livre dos laços dos preconceitos, dos enrijecimentos espirituais, e os
questionamentos ajustados, seria possível a mudança. Neste ponto, culminava
a relação plena de significação, pois, Sócrates teria revirado tudo diante dele
num piscar de olhos (KIERKEGAARD, 1991). Vemos um furacão que
desestabiliza a natureza do ser, muito embora, faça-a se reconstruir
grandiloquentemente, já que todos os seus elementos estão reconectados,
rearranjados e dialogando sobriamente como jamais estiveram.
Sócrates auxiliava as pessoas num sentido de parto espiritual, era
infatigável no exercício de serrar a floresta primitiva da consciência dos jovens,
pois o intuito era o de abrir espaço para novas visões e novos plantios; os
preconceitos baseados no senso comum seriam extirpados com o manejo do
observador irônico, conforme Kierkegaard (1991).
Em Sócrates encontramos a figura do arauto compromissado com a
verdadeira e não aparente atitude da ironia, pois indica a ideia do bem, do belo,
do verdadeiro, ou seja, propõe estas condições ideais e infinitas como
possibilidade a ser vivenciada por todos aqueles que a aspiram. Kierkegaard
(1991) sinaliza que “o que vemos em Sócrates é a liberdade, infinitamente
transbordante, da subjetividade, mas isto é justamente a ironia” (p.164).
Observaremos agora, parte do diálogo travado por Sócrates em “Ditos e
feitos memoráveis de Sócrates”, escrito por Xenofonte (1972, p. 46-47), seu
discípulo, no que tange a proibição da oratória realizada por Sócrates em toda
92
palestra com os jovens. Sócrates argui questionando Cáricles, um dos
acusadores:
“- Estou pronto – disse – a obedecer às leis. Mas para que não me aconteça infringi-las por ignorância, eis o que claramente desejo saber de vós. Que entendeis, quando lhe proibis a prática, por arte da palavra? O mal ou o bem falar? Porque se vós referis à arte de bem falar, evidente é dever abster-se de bem falar. Mas se tendes em vista a má oratória, claro é dever esforçar-se por bem falar.
- De vez que é tão bronco, ó Sócrates – repostou Cáricles colérico, - interdizemos-te expressamente, o que é mais claro, o conversar com os moços.
- Para evitar – volveu Sócrates – que por equívoco não observe o que me é defeso, dizei-me até que idade deve ter-se os homens por moços.
- Enquanto não tiverem acesso ao senado – respondeu Cáricles, à míngua de razão suficiente. – Não fales, pois, com os jovens de menos de trinta anos.
- Então se quiser comprar alguma coisa de homem de menos de trinta anos não poderei perguntar-lhe: Quanto custa isso?
- Sim, isso se te permite – assentiu Cáricles. – Mas tens a mania, Sócrates, de viver fazendo perguntas sobre coisas que sabes, e isso é que te proibimos.
- Quer dizer que não poderei responder a um jovem que me perguntar: Onde mora Cáricles? Onde está Crítias7?
- Ainda isso se te permite – disse Cáricles. - Sim, Sócrates – interferiu Crítias – é preciso deixar em paz os sapateiros,
carpinteiros e ferreiros. Eles estão fartos das tuas parolagens. - Como! – exclamou Sócrates – devo, pois, renunciar às conclusões de justiça,
piedade, etc., que deles tirava? - Sim, por Júpiter! – respondeu Cáricles. – E renuncia também aos teus
vaqueiros. De outra forma arriscas diminuir por tua vez o número de bois.”
Neste excerto, Sócrates fingindo ingenuidade conduz os seus ex-
discípulos ambiciosos a se aterem aos argumentos que minguam de razões
suficientes. Nada justificava a proibição por lei do não uso da oratória por
Sócrates; em suas juventudes, tanto Cáricles quanto Crítias, viveram tal qual o
seu mestre, Sócrates, debaixo da sombra das virtudes e, agora, afastados da
moderação e prudência, cúpidos e homens de estado que se tornaram,
articulavam o extermínio da liberdade que gozava todo interlocutor jovem de
Sócrates. Os ambiciosos com o passar do tempo deixaram de exercitar as
virtudes e se permitiram às impressões vaidosas e referências viciosas.
Na próxima exemplificação, veremos em “As nuvens”, comédia de
Aristófanes (1972, p. 187-188), opositor e contemporâneo de Sócrates, que
7 Crítias foi discípulo de Sócrates; conta-se que foi o mais cúpido, violento e sanguinário dos
oligarcas.
93
erroneamente julgava ser Sócrates um dos responsáveis pela decadência que
sofria Atenas. Atentaremos ao personagem Estrepsíades que vai ao encontro
de Sócrates com o intuito de aprender a arte da conversação, pois deseja
eloquentemente convencer o seu credor de que não precisa honrar as suas
dívidas pendentes, como também, as dívidas oriundas do seu filho viciado em
jogos com cavalos e de sua nora frívola:
“- Sócrates! Socratesinho! - (Do alto.) Por que me chama, ó efêmero - Em primeiro lugar, eu lhe peço, explique-me o que está fazendo. - Ando pelos ares e de cima olho o Sol. - Ah, então você olha os deuses aí de cima, do alto de uma peneira e não aqui
da terra, se é que se pode... - Pois nunca teria encontrado, de modo exato, as coisas celestes se não tivesse
suspendido a inteligência e não tivesse misturado o pensamento sutil com o ar, o seu semelhante. Se, estando no chão, observasse de baixo o que está em cima, jamais o encontraria. Pois de fato a terra, com violência atrai para si a seiva do pensamento. Padece desse mesmo mal até o agrião...
- (Muito espantado.) Que diz? O pensamento puxa a seiva para o agrião? Então venha, meu Socratesinho, desça aqui para ensinar-me aquilo que vim procurar...
- (Descendo.) Mas a que veio você? - Porque desejo aprender a falar. Com efeito, estou sendo saqueado, pilhado e
penhorado nos meus bens, por credores e juros muito cacetes... - E como você não percebeu que se endividava? - Foi uma doença de cavalos que me arruinou, terrível, devoradora... Mas
ensine-me o outro dos seus dois raciocínios, aquele que não devolve nada. Pelos deuses, juro pagar-lhe qualquer salário que você cobrar!...
- (Em terra.) Por quais deuses você pretende jurar? Para começar, em nosso meio os deuses são moeda fora de circulação...
- Como é que vocês juram? Acaso será por peças de ferro, como em Bizâncio? - Você quer conhecer claramente as coisas divinas e exatamente o que elas
são? - Sim, por Zeus, se é possível... - E travar relações com as Nuvens, as nossas divindades, para conversar com
elas? - Sim, demais! - Então sente-se no leito sagrado. - Pronto; estou sentado. - (Com uma coroa nas mãos.) Pois tome aqui esta coroa... - Para que uma coroa? Ai de mim, Sócrates, contanto que vocês não me
sacrifiquem como ao pobre Atamante! - Não, mas fazemos tudo isso aos que vão iniciar. - O que é que eu ganho com isso? - Tornar-se-á escovado na fala, charlatão, uma flor de farinha! (Sócrates,
enquanto fala, esfrega as costas de Estrepsíades e esparge farinha sobre a sua cabeça.) Mas, fique quieto!
- Por Zeus, você não vai me enganar: de fato, polvilhado, serei uma flor de farinha...
- É preciso que o velho fique calado e preste atenção à prece! (Solenemente.) Senhor soberano, Ar incomensurável, que sustentas a Terra suspensa no espaço! Éter
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brilhante e veneráveis deusas, Nuvens, portadoras do trovão e do raio! Levantais-vos, Senhoras, mostrai-vos ao pensador, suspensas no ar!
- Não, ainda não! (Procura cobrir a cabeça com uma ponta do manto.) Antes vou cobrir-me com isto, para não me encharcar... Desgraçado de mim... Sair de casa sem nenhum bonezinho!”
Nesta demonstração, Aristófanes ridiculariza Sócrates disponibilizando-o
a um néscio qualquer, como se Sócrates possuísse interesse em fazer das
pessoas, seres eloquentes com fins viciosos e errôneos. Naturalmente, não
encontramos a concepção irônica da negatividade que estamos tratando sob o
viés de Kierkegaard; aqui, nesta comédia grega, enxergamos um jogo
dramatúrgico com propósitos cômicos, que expõem Sócrates a toda sociedade
do seu período.
Em todo o “Conceito de Ironia”, Kierkegaard (1991), intenciona validar a
ironia numa condição histórico-universal, e em Sócrates, a ironia assume
roupagem e potencial máximo para incitar a subjetividade como jamais foi
realizado. Por meio desta dialética subjetiva, o indivíduo pode se transfigurar
em um outro melhor de si mesmo. Kierkegaard (1991, p.165) anuncia que “a
ironia é, assim como a lei, uma exigência e a ironia é uma exigência enorme,
pois ela desdenha a realidade e exige a idealidade.” Naturalmente, somente
um idealista para desejar circunscrever a realidade em outros moldes menos
fantasiosos e mais palpáveis à uma vida plena. Posteriormente a Sócrates, a
ironia viria ganhar um entendimento mórbido e egoísta, que não é o contexto
que temos utilizado até então.
Compreendemos até aqui que Sócrates gozava de uma liberdade irônica,
“mas sua ironia não é o instrumento que ele usava a serviço da ideia, a ironia é
o seu ponto de vista.” (KIERKEGAARD, 1991, p.165, grifo do autor). A ironia é
preponderante em seu eixo de equilíbrio, em sua ação, ela é a premissa para
ele se portar confortavelmente negativo frente as arguições, pois isto lhe
capacita buscar por infinitas possibilidades de todas subjetividades, tanto as
suas quanto as subjetividades alheias, “mas é preciso acrescentar que a
negatividade infinita possibilitou com sua pressão toda a positividade, foi um
95
incitamento e um estímulo infinitos para a positividade” (KIERKEGAARD, 1991,
p.167, grifo do autor).
Graças a sua negatividade, Sócrates é impedido de recuar, portanto, está
compelido a descobrir as entranhas viscerais da realidade, e trazer consigo os
jovens por esta inequívoca senda. Kierkegaard (1991) relata que Sócrates com
sua mobilidade e seu entusiasmo espiritual, diariamente, animava os seus
discípulos; o ponto de vista de Sócrates, ou seja, a prática irônica em sua
inteireza, é a energia que vibrava na/pela positividade.
Sócrates instrui com o tato de um escultor, crê que toda massa pode
assumir o modelo idealizado, o modelo incrustado de positividades, de valores
reais e verdadeiros. Neste sentido, Kierkegaard (1991, p.178) pondera que “o
indivíduo moral jamais consegue realizar o bem, somente o sujeito
positivamente livre pode ter o bem como o positivo infinito, como sua tarefa, e
realizá-lo.” O quadro que se apresenta, guardadas as devidas proporções,
poderia ser o de Sócrates, ironicamente, anunciando no deserto a todos os
seres inteligíveis e sedentos: “... tome sobre si a sua cruz, e siga-me8”; no
entanto, mais ao temperamento de Sócrates, poderíamos, talvez, convir desta
maneira: “Faça como eu, porém, uma vez liberto das inverdades, reflita e aja
por si mesmo.”
Kierkegaard (1991, p.178) consegue visualizar uma perspectiva irônica
para quem foi acusado de desvirtuar os jovens: “o movimento em Sócrates é
este: ir até o bem.” O nosso autor dinamarquês confere um propósito capital
para toda historicidade socrática, sintetizando as ações de Sócrates rumo à
benignidade, à claridade das ideias e ações. Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.),
discípulo de Platão, em “Arte Retórica” reforça a ideia de que a retórica
presente também em Sócrates “é útil, porque o verdadeiro e justo são, por
natureza, melhores que seus contrários” (p. 32).
8 Mt (16:24).
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Desde que a subjetividade se anunciou ao mundo, o mesmo não recaiu
na forma anterior de desenvolvimento; na verdade, o antigo desapareceu e o
novo pode desabrochar, os rastros da subjetividade não puderam ser
apagados pela história, segundo Kierkegaard (1991, p. 212). Isto vale para
todas personalidades imbuídas do espírito irônico, que por ser negativo e livre
na/da realidade, enxerga as possibilidades positivas, ideais. Avante,
Kierkegaard (1991, p. 223) reitera que “na ironia, o sujeito bate em retirada
constantemente, contesta a realidade de todo e qualquer fenômeno, para
salvar a si próprio, na independência negativa em relação a tudo.”
Enquanto tudo se caracteriza pela vaidade, o sujeito irônico não se
permite envaidecer a si mesmo, segundo Kierkegaard (1991, p. 224), mas sim
se liberta da sedução da sua própria vaidade. O irônico está sempre
exercitando o seu polo negativo, prefere a contramão de todo e qualquer
primeiro instinto social, que se baliza no ideário do homem ordinário. Como
Kierkegaard (1991) destaca:
[ ] fica suficientemente indicado que a ironia já não se volta para este ou aquele fenômeno individual, contra um existente individual, e sim toda a existência se tornou estranha ao sujeito irônico e este por sua vez se torna estranho à existência, que o próprio sujeito irônico, na medida que a realidade perdeu sua validade para ele, até certo ponto (também) se tornou irreal (p.224, grifo do autor).
Kierkegaard (1991) analisa a ideia de que nem sempre a humanidade e
os indivíduos de uma determinada época estão em consonância com o
desenvolvimento do mundo, que arrasta consigo aquele que se recusa ao
movimento estabelecido. Esta situação revela o indivíduo que está justificado
historicamente, porém não autorizado à ação irônica; neste caso, Kierkegaard,
reflete o surgimento de uma vítima justificada que, provavelmente, trará a luz
para um novo momento.
Com esta alternância das páginas na história, percebe-se que o novo
deve vir à luz e por outro lado, o velho necessita ser realojado. Com o novo
está o indivíduo profético, que o avista mesmo com limitações; ele pressente,
97
não possui como carta na mão o porvir, portanto, não o faz vigorar, no entanto,
o indivíduo profético está mergulhado pacificamente em sua realidade, seu
caráter trágico o faz lutador pelo povo, esforça-se em aniquilar o que passou do
ponto e precisa desaparecer. Para isto, busca evidenciar o desalojar do velho
que está imperfeito. Em suma, temos o perfil do sujeito irônico, ansioso em
oferecer novos ares à realidade que perdeu sua validade, sua legitimidade, que
incomoda e constrange, conforme Kierkegaard (1991). A ironia é vista,
portanto, como uma negatividade infinita absoluta, pois nega todos os
fenômenos em sua totalidade; ela não estabelece nada, virão após ela
estabelecer. A ironia se equivale a “uma demência divina” (p. 227).
No que concerne ademais às características do sujeito irônico,
salientamos que por meio da ironia o sujeito está irrevogavelmente preso à
liberdade, como nos descreve Kierkegaard (1991):
Na ironia o sujeito está negativamente livre; pois a realidade que lhe deve dar conteúdo não está aí, ele é livre da vinculação na qual a realidade dada mantém o sujeito, mas ele é negativamente livre e como tal flutuante, suspenso, pois não há nada que o segure. Mas esta mesma liberdade, este flutuar, dá ao irônico um certo entusiasmo, na medida que ele como que se embriaga na infinitude das possibilidades, na medida que ele, quando precisa de um consolo por tudo o que naufraga, pode buscar refúgio no enorme fundo de reserva da possibilidade (p. 227).
Quanto a formação irônica: como desenvolvê-la completamente?
Kierkegaard (1991, p. 228) sugestiona que “o sujeito tome consciência de sua
ironia”, sinta-se negativamente livre para condenar a realidade dada gozando a
liberdade negativa. Conforme a subjetividade for desenvolvida, a ironia vai
aparecendo e ganhando espaço; a subjetividade se vê forte, válida e plena de
significados quando está liberta e empreendida ao serviço da ideia, mesmo que
o sujeito irônico não tenha compreendido o processo em sua plenitude.
Assim como Sócrates, o sujeito irônico finge ignorância “e, sob aparência
de se deixar ensinar, ensina os outros” (KIERKEGAARD, 1991, p. 231). O
98
irônico conserva em si a liberdade poética, “e quando ele nota que não se torna
nada, então poetiza isto também” (p. 243).
Tudo é possível ao irônico, ele faz o que lhe dá prazer; vestir-se com a
roupagem correta é um dos esmeros do irônico, às vezes, utiliza as máscaras e
fantasias de um patrício orgulhoso, de um peregrino penitente, ora se assenta
de pernas cruzadas, ora toca cítara com leveza e liberdade. Detalhes que
fazem o irônico viver poeticamente, criando a si mesmo (KIERKEGAARD,
1991, p. 244).
Verdadeiramente, ao irônico, nenhuma realidade lhe será conveniente e
suficiente, pois muito pelo contrário, o irônico não “se coloca fora e acima da
moral e da vida ética, mas ele vive de uma maneira demasiado abstrata,
demasiado metafísica e estética para poder chegar à concreção do moral e do
ético”, conforme Kierkegaard (1991, p. 245) que, continua a manifestar a
tipologia na/da qual o sujeito irônico pertence:
Para ele, a vida é um drama, e o que ocupa é o enredo engenhoso do drama. Ele mesmo é espectador, ainda quando ele próprio é o ator. Infinitiza por isso o seu eu, volatiliza-o metafísica e esteticamente, e embora de vez em quando se recolha tão egoística e estreitamente quanto possível, em outras horas tremula tão solto e distendido, que o mundo inteiro poderia caber nele. Ele se entusiasma diante de uma virtude que se sacrifica, assim como um espectador se entusiasma no teatro; ele é um crítico rigoroso que sabe muito bem quando esta virtude se torna ríspida e falsa. Ele é capaz de se arrepender, mas se arrepende estética e não moralmente. No instante do arrependimento, ele está esteticamente por cima de seu arrependimento, examina se este está correto esteticamente e se caberia bem como uma réplica na boca de uma personagem poética (KIERKEGAARD, 1991, p. 245, grifo nosso).
O irônico é o poeta que se recria no exercício da sua poesia, na reflexão
dos seus estados de ânimo. A existência do tédio na vida do irônico o faz
possuir a unidade negativa, que o possibilita para o todo, mesmo que esteja em
sua própria realidade (KIERKEGAARD, 1991).
99
A interação com a realidade só se concretizará para o sujeito irônico
quando este estiver orientado; poderá viver poeticamente e integrado, pois
estará positivamente livre na realidade à qual pertence. Ao mesmo tempo,
Kierkegaard (1991), prontifica-se a retratar o sujeito irônico como um modelo
poético que pode ser apreendido, portanto, vivido.
Notamos que a ironia orientada cumpre e provoca sua intencionalidade;
ela não é arbitrária e frágil. Portanto, o sujeito irônico é um ser povoado de
direcionamentos e intervenções; pressentimentos vindouros; negatividades que
tocam a liberdade e a essência das coisas pelo lado oposto, na positividade.
Faz-se oportuna, agora, uma consideração sintética da ironia como um
recurso linguístico da nossa contemporaneidade, pois, já dissemos o suficiente
no tocante à ironia como instrumento do saber, especialmente o socrático, que
era a nossa primeira intenção.
Absolutamente diferente da ironia socrática, que conservava a ironia
como ponto de vista do sujeito, a ironia ao passar dos séculos se condensou,
principalmente, como um recuso discursivo, um processo estilístico, uma
linguagem específica que possibilita a ambiguidade, por fim, uma figura de
pensamento no âmbito da frase, onde reside a emoção, o sentimento e a
paixão (CEGALLA, 1990, p.525).
Podemos dizer que, basicamente, enquanto figura de linguagem, a ironia
diz o contrário do que se pensa, e nesta medida, há uma intenção sarcástica
que permeia cada palavra. Citamos alguns exemplos: a) Trabalhas em excesso
e ganhas um soldo tão proporcional ao teu esforço que, as nossas roupas
surradas são forçadas a não saírem do nosso corpo. b) Vejam os nossos
amados políticos: conduzem a nossa pátria com magnificência à derrocada
apoteótica!
Brait (2008) afirma que “o procedimento irônico multiplica suas faces e
funções, configurando diversas estratégias de compreensão e representação
100
do mundo” (p. 13). A autora discorre sobre a ironia relacionando-a à produção
de uma série de artifícios expressivos que podem estar em diferentes níveis
linguísticos, tal qual o humor. Neste processo haveria um produtor, um sujeito
estratégico, que mediaria os níveis linguísticos ao seu interlocutor.
Ainda segundo a autora, a ironia pode ser considerada uma estratégia de
linguagem, partícipe da constituição do discurso como fato histórico e social,
mobilizadora de vozes que instaura, portanto, a polifonia, ainda que esta
polifonia não represente a democratização dos valores veiculados ou criados.
Reflete a possibilidade de a ironia desnudar determinados aspectos culturais,
sociais e estéticos, encobertos por uma suposta seriedade, embora menos
crítica.
Como apresentado, analisamos a arte socrática detentora da ironia como
baluarte. Sócrates, iniciou o processo de desmistificar os valores arraigados
pela falsa moralidade que imperava em seu tempo; viu nos jovens a
possiblidade de transformação, já que ansiavam por um diálogo esclarecedor.
A ironia, posteriormente, deixa de assumir a propriedade socrática, aquela que
separa em definitivo a pessoa irônica enquanto ponto de vista; porém, ainda
assim, é empregada com fins subversivos à ordem, está a serviço do sujeito
que busca na interrogação e no humor, alguma reivindicação.
No próximo capítulo, trataremos da origem moderna e do
desenvolvimento do educador ironista a partir dos autores pragmáticos Richard
Rorty, que nos apresentará o ironista liberal, e o controverso politicamente,
Sidney Hook. Por fim, apresentaremos o espanhol Imanol Aguirre e suas
pesquisas atreladas ao arte-educador ironista.
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CAPÍTULO 3
DO INOVAR AO LIBERTAR: O PENSAMENTO DE IMANOL AGUIRRE
O capítulo pretende a articulação de alguns aspectos da produção dos
norte-americanos Richard Rorty e Sidney Hook, buscando correlacioná-los
(cada qual em sua medida) à concepção ironista. Ao mesmo tempo, reflete-se
acerca do processo formativo de Imanol Aguirre, que dialoga com a ideia do
educador ironista e suas possibilidades de atuação pedagógica dentro de uma
era marcada pela visualidade no ensino das artes. São abordadas reflexões e
posicionamentos do autor no tocante ao ensino-aprendizagem, contemplando
as esferas estéticas, humanas e sociais.
3.1 A atuação do educador ironista – origem e desenvolvimento
Buscaremos expor neste ponto dissertativo, primeiramente, o filósofo
pragmatista nova-iorquino Richard Rorty, nascido em 1931, chegando muito
jovem à Universidade aos 15 anos. Seus pais lhe ofereceram um olhar
trotskista9 e, ao mesmo tempo, aproximaram-lhe do pensamento liberal-social
de John Dewey10.
Obteve o seu bacharelado e mestrado pela Universidade de Chicago.
Doutorou-se em Yale, lecionou filosofia como titular em Princeton durante 15
anos. Professou também na Universidade Virgínia e, posteriormente, na
Universidade de Stanford como professor de Literatura Comparada. Conseguiu
desde os seus primeiros escritos relacionar originalmente as teorias dos
9 Leon Trotsky (1879-1940) foi um ucraniano intelectual, marxista, revolucionário bolchevique,
escreveu teorias políticas e ideológicas que contrariavam o posicionamento de Josef Stalin,
secretário geral do Partido Comunista da União Soviética, que defendia a não expansão da
Revolução em outros países.
10 John Dewey (1859-1952) doutorou-se pela Universidade John Hopkins, exerceu a função de
professor em inúmeras Universidades. Seus estudos e teorias se desenvolveram tendo o
Pragmatismo por tradição. Ver "A Escola e a Sociedade", 1899; "Democracia e Educação",
1938 e "Arte como experiência", 1958.
102
primeiros pragmatistas que, geralmente, entendiam a importância de uma ideia
em função da sua utilidade, eficiência, em resolver determinado problema.
Rorty descrevia-se como um liberal de esquerda com uma posição
socialdemocrata. Uma década anterior ao seu falecimento em 2007, revelou
uma constante necessidade das universidades se voltarem aos mais pobres,
fazendo com que os ricos não os desvalorizasse. Algumas de suas obras mais
conhecidas são “A filosofia e o espelho da natureza” de 1979, “Contingência,
ironia e solidariedade” de 1989 e “O futuro da religião – solidariedade, caridade
e ironia” de 2005.
Atentaremos, especificamente, na obra “Contingência, ironia e
solidariedade” de 1989, a qual desvela o ironista e seus caracteres que o
fazem potenciar. Este livro possui três partes, faremos uso dos conceitos
atrelados à segunda parte do mesmo, que leva o nome “Ironismo e Teoria”. Os
três tópicos da segunda parte seguem consecutivamente tal qual está presente
na obra original: “Ironia privada e esperança liberal”; “Auto-criação e filiação:
Proust, Nietzsche e Heidegger”; “Da teoria ironista às alusões privadas:
Derrida”.
Rorty (1989) sinaliza que todos os seres humanos carregam um conjunto
de palavras que utilizam para justificar as suas ações, crenças e vidas; são
palavras que formulam elogios aos amigos e desprezos aos inimigos, podendo
participar dos planos e projetos, das mais profundas dúvidas e esperanças.
Palavras que se ligam à prospecção e à retrospectiva de todas as vidas. Rorty
nomeia estas palavras de “vocabulário final” de uma pessoa. Este vocabulário
é o quanto se pode ir com a linguagem, além destas palavras “há apenas a
passividade impotente ou o recurso à força” (p.73, tradução nossa).
Oferece elementos ímpares e indissociáveis para a composição do
ironista, sua análise identifica o ironista correlacionado à dúvida com o seu
próprio léxico contínua e irrevogavelmente:
103
Eu devo definir um "ironista" como alguém que preencha três condições: (I) Ela tem radical e continuamente dúvidas sobre o vocabulário final que ela atualmente usa, porque ela tem sido impressionada por outros vocabulários, vocabulários tomados como final por pessoas ou livros que ela tem encontrado; (2) ela percebe que a argumentação formulada no seu vocabulário presente não pode nem subscrever ou dissolver essas dúvidas; (3) na medida em que ela filosofa sobre sua situação, ela não acha que seu vocabulário é mais próximo da realidade do que outros [...] lronistas que estão inclinados a filosofar veem a escolha entre vocabulários como se feitos nem dentro de um metavocabulário neutro e universal ou por uma tentativa de combater aparências passadas para o real, mas simplesmente por jogar fora o novo contra o velho (RORTY, 1989, p.73, tradução nossa).
Estes tipos irônicos renunciam à tentativa de formular critérios de escolha
entre os vocabulários finais, como Rorty pondera. O ironista nunca será capaz
de se levar a sério completamente, pois há muito compreendeu que os termos
que descrevem a si mesmos estão sujeitos a alterações, às contingências e
fragilidades, por fim, aos próprios egos e sua infinda limitação.
O senso comum bloqueia toda a possibilidade de vir à tona o caráter
ironista, porém, se o senso comum for desafiado, mesmo que os seus adeptos
respondam generalizada e explicitamente as regras de linguagem que estão
acostumadas (como bem o fizeram os sofistas gregos e até mesmo Aristóteles
em seus escritos éticos) muito embora percebam a necessidade de atender ao
desafio indo além dos seus próprios recursos, teremos então a produção de
uma vontade de ir além dos clichês, conforme Rorty (1989, p.74).
O ironista é um nominalista e um historicista, segundo Rorty (1989, p.74-
75, tradução nossa): “Ele acha que nada tem uma natureza intrínseca, uma
essência real.” A mutabilidade do universo faz com que o “vocabulário final”
seja apenas uma quimera; não há condição estanque para os jogos de
linguagem. Sempre haverá uma pergunta socrática a se fazer que está além
dos jogos de linguagem do seu tempo. O ironista está sempre preocupado com
a possibilidade de ter sido iniciado em uma tribo errada, que foi ensinado a
jogar com a linguagem errada do jogo, daí a sua constante reformulação,
inquietação, reconstrução de sentidos e regras.
104
O ironismo acredita que o ponto não é encontrar algum vocabulário final
que ponha as dúvidas para descansar ou que satisfaça critérios de adequação
ou otimização; a reflexão não pode ser regida por critérios, pois não são mais
que clichês que definem os termos de um vocabulário final que está em uso.
Por exemplo, os ironistas tomam os escritos de todas as pessoas com dons
poéticos, todas mentes originais com talento para redescrição, tais quais:
Platão, Goethe, Kierkegaard, Darwin e Freud – “como grão para ser colocado
por meio do mesmo moinho dialético” (RORTY, 1989, p.76, tradução nossa).
Richard exemplifica o ironista e a sua discordância mediante a chavões
que a cultura ocidental inculca, como: “Todos os homens, por natureza,
desejam conhecer” ou “A verdade é independente da mente humana”; estes
exemplos representam o senso comum dos quais o ironista não faz noção em
seu próprio vocabulário. Naturalmente, quando o ironista vê o seu vocabulário
final, vislumbra possibilidades, dominações poéticas e metafóricas; na visão do
ironista, vocabulários não são frutos de inquérito com critérios formulados
(RORTY, 1989, p.77).
O ironista utiliza o seu argumento de forma dialética, sua persuasão se
constrói em um sentido de que o seu método seja a redescrição em vez da
inferência, ou seja, a capacidade de se autodescrever abre as comportas para
que a vida se ressignifique, portanto, o ironista estabelece que as tradições e
as instituições sociais não determinem mais quem ele é, assume a sua
liberdade de existência poética e criativamente. Rorty afirma que o ironista é
um especialista em redescrever objetos ou eventos praticando o neologismo,
com o intuito de incitar as pessoas a adotar esta prática (RORTY, 1989, p.78).
Desta forma, percebemos que o ironista possui habilidade literária que
produz mudanças surpreendentes e transições rápidas de uma terminologia
para outra. Rorty (1978, p.80, tradução nossa) relata que, o ironista,
abandonou a ideia de chegar à verdade em favor da ideia de fazer coisas
novas; inclui-se neste jogo conceitual-prático e afirma: “Nós ironistas
105
esperamos, por esta contínua redescrição, para fazermos o quanto pudermos
melhores eus para nós mesmos.”
Existe uma revisão da própria identidade moral por meio da revisão do
próprio vocabulário final, o ironista se mostra um observador de si mesmo ad
continuum. As dúvidas atreladas à nossa própria cultura só podem ser
resolvidas ou amenizadas apenas ampliando o nosso conhecimento: isto é
cabal ao ser humano que, ansioso pela própria evolução, busca novos léxicos.
Rorty (1989) diz que a maneira mais fácil de conhecer é lendo livros e o ironista
por temer ficar preso ao seu vocabulário, amplia-o tentando dialogar com
pessoas estranhas, famílias estranhas, comunidades estranhas, observando-se
obviamente o sentido literário, como por exemplo, a família Karamazov de
Fiódor Dostoiévski.
Rorty relata que os ironistas tem de ter alguma coisa para duvidar, que o
incite à prática solidária, que o leve ao auxílio daqueles que não detenham o
domínio do jogo da linguagem, portanto, sofrem injustiças na sociedade. Neste
sentido, Rorty enfatiza o cenário dialógico no qual o ironista está inserido e as
dificuldades em provocar o senso comum:
Ironismo, como eu tenho definido, resulta da consciência do poder de redescrição. Mas a maioria das pessoas não quer ser redescrita. Elas querem ser tomadas nos seus próprios termos - levadas seriamente como elas são e como elas falam (RORTY, 1989, p.89, tradução nossa).
O ironista não vende gato por lebre, então precisa dizer que as nossas
chances de liberdade dependem das contingências históricas e que
ocasionalmente são influenciadas pelas nossas auto-redescrições. O fato de
um alguém se redescrever, ou seja, assumir conscientemente a
responsabilidade por si e de sua situação, não o faz melhor para conquistar as
forças que marcham contra si, não é uma questão de ter a verdade ao seu lado
ou de ter detectado o “movimento da história” (RORTY, 1989, p.91).
106
Para o educador ironista, a preservação e o zelo pela dúvida constituem
sólidas colunas às provocações contínuas e, que se aprimoram e se elevam
conjuntamente aos educandos. O ironista é sistêmico, não está
despropositado, é revolucionário – e por quê não, anárquico, sob determinado
ponto de vista mais conservador? Saviani (1991) contribui com o nosso
pensamento reflexivo no tocante à composição de um educador aspirante, de
fato, a sê-lo:
Quanto a nós, se pretendermos ser educadores (especialistas em educação) é porque não nos contentamos com a educação assistemática. Nós queremos educar de modo intencional e por isso nos preocupamos com a educação (p.52).
Rorty (1989, p.93, tradução nossa) assevera que o ironista sabe da
importância da solidariedade nas relações “e deseja evitar, a humilhação atual
e possível dos outros - apesar das diferenças de sexo, raça, tribo e vocabulário
final [...]” Muitas das mazelas sociais possuem estreita relação com os jogos de
linguagem e a não possibilidade de apreendê-los:
Então vítimas de crueldade, pessoas que estão sofrendo, não têm muito na maneira de uma linguagem. É por isso que não há nenhuma coisa como a "voz dos oprimidos" ou a "linguagem das vítimas." A linguagem das vítimas uma vez utilizada não está funcionando mais, e eles estão sofrendo muito para colocar novas palavras juntas. Assim, o trabalho de colocar a sua situação em linguagem vai ter que ser feito para elas por outra pessoa. O romancista liberal, o poeta, ou o jornalista é bom nisso (RORTY, 1989, p.94, tradução nossa).
Perceptivamente, os leitores de “Contingência, ironia e solidariedade” são
conduzidos para dentro de um emaranhado filosófico (e não menos empírico,
postas as análises históricas e contundentes) que Rorty se debruça
perspicazmente, de forma que aponta ao fim do estudo os seguintes
apontamentos/provocações:
A auto-dúvida parece-me a marca característica da primeira época na história humana em que um grande número de pessoas tornou-se capaz de separar a pergunta "Você acredita e deseja o quê acreditamos e desejamos?" da pergunta "Você está sofrendo?" No meu jargão, esta é a capacidade de
107
distinguir a questão de saber se você e eu compartilhamos o mesmo vocabulário final da questão de saber se você está com dor. Distinguir estas perguntas torna possível distinguir questões públicas a partir de questões privadas, questões sobre a dor de questões sobre o sentido da vida humana, o domínio do liberal do domínio do ironista. Isto, portanto, torna possível para uma única pessoa ser ambas” (RORTY, 1989, p.198, tradução nossa).
Tal qual Rorty, o filósofo Sidney Hook (1957) vinculou-se ao Pragmatismo
contribuindo em diversas áreas do conhecimento: filosofia da educação, teoria
política e ética, filosofia da história, entre outras. Nascido em 1902 em Nova
York, filho de imigrantes judeus austríacos, Hook se afeiçoou ao Partido
Socialista em sua juventude. Em 1923 obtém seu diploma pela Universidade da
Cidade de Nova York e em 1927 conquista seu doutorado pela Universidade de
Columbia; Hook sempre foi um estudante do pragmatista John Dewey, assim
como Richard Rorty.
Hook tornou-se professor de filosofia e chefe do Departamento de filosofia
da Universidade de Nova York por mais de vinte anos, aposentando-se em
1972. Esteve relacionado, posteriormente, às críticas contra o totalitarismo
tanto dos fascistas quanto de origem marxista-leninista, muito embora, Hook
tenha sido um dos maiores especialistas de Karl Marx, assistindo palestras em
Berlim em 1928 e participando de atividades no Instituto Marx-Engels em
Moscovo em 1929.
Nos Estados Unidos, Hook apoiou em 1932 o candidato William Foster do
Partido Comunista à presidência norte-americana, porém, rompe em 1933 com
a Internacional Comunista, dizendo que Stálin havia colocado a Revolução
Internacional em segundo plano. Ainda assim, Hook colaborou com causas da
esquerda, auxiliando e organizando o Partido dos Trabalhadores da América.
No período da Guerra Fria opôs-se ao comunismo, embora fosse
considerado um humanista democrático. Tentou dissuadir esquerdistas norte-
americanos de cooperar com a União Soviética. Na década de 1960, Hook se
opôs à retirada das forças armadas americanas do Vietnã. Em 1965 foi eleito
108
para a Academia Americana de Artes e Ciências, como também pertenceu
como membro da conservadora Hoover Institution, em Stanford, Califórnia. Foi
condecorado com a Medalha Presidencial da Liberdade pelo presidente Ronald
Reagan em 1985. O ano de 1989 marca a sua morte.
Hook descreve em um dos seus livros mais significativos, “O herói da
história” (1962) a possibilidade dos seres humanos exercerem um papel
criativo na construção do mundo social, que o determinismo não poderia
liquidar a intervenção humana, mesmo que dramática. Procuraremos
apresentar por meio da sua obra “A educação do homem moderno” (1957),
escrita em 1946 no pós-guerra, as ideias mais proeminentes que Hook
vislumbrava para a educação, aos professores.
Em 1946, Hook (1957) realizou uma análise educacional do seu tempo na
qual, oportunamente, respaldaremos a nossa visão contemporânea da
educação, em um sentido dialógico, que provoque a nossa percepção sobre as
empirias modernas sobre as quais Hook se debruçou, além, obviamente, de
refletirmos a nossa experiência pós-moderna.
Ironicamente, Sidney Hook (1957, p.16, tradução nossa) indica a não
dificuldade em compor uma lista de objetivos pedagógicos que um professor,
independentemente de sua posição filosófica, minimamente, poderia saber:
1. A educação deve aspirar o desenvolvimento das faculdades do pensamento crítico, independente.
2. Deve aspirar a produzir sensibilidade de percepção, receptividade para as ideias novas, simpatia imaginativa com as outras experiências.
3. Deve procurar o conhecimento das principais correntes das nossas tradições culturais, científicas e literárias.
4. Deve pôr ao alcance de todos, importantes entidades de ensino, relativos à natureza, à sociedade, a nós mesmos, ao nosso país e à sua história.
5. Deve esforçar-se em cultivar uma fidelidade inteligente aos ideais da comunidade democrática.
6. Deve, em certa medida, dotar os jovens, homens e mulheres dos conhecimentos práticos e técnicos gerais e conhecimentos especializados que, unidos às virtudes e habilidades mencionadas, capacitarão-os para realizar algum trabalho produtivo, vinculado com as suas aptidões e interesses.
109
7. Devem vigorar aqueles recursos internos e traços de caráter que permitam ao indivíduo, se for o caso, deixar por si mesmo.
Hook (1957) nos indica as sete artes liberais em sua versão moderna e
suas aspirações por uma educação liberal. Descreve sobre a importância da
construção de ideais que orquestram a escola, além de desvelar as mudanças
que ocorrem no organismo escolar:
Os ideais educativos apenas são eficazes quando correspondem a “quais” temas se estudam e “como” se estudam. Seu verdadeiro sentido aparece nas práticas e instituições educacionais. Quando estas mudam, muda o significado dos ideais, mesmo se conservarem as mesmas palavras (p.19, tradução nossa).
As aspirações educacionais instituídas em determinada comunidade, são
idênticas às aspirações da ação moral ou imoral da mesma comunidade.
Portanto, quando as pessoas desaprovam as aspirações de um sistema
educativo e anunciam quais mudanças deveriam ocorrer dentro de uma
aplicabilidade, estariam também dizendo as aspirações de uma vida perfeita.
Assim, em um jogo de palavras, Hook (1957, p.20, tradução nossa) expõe
alguns limites entre a realidade e a impossibilidade no campo educacional:
“Uma educação não deve ser o que não pode ser; pode ser o que não deve
ser; pode ser o que deve ser”.
Saviani (1991, p. 131) acredita que a educação, uma vez sistematizada a
partir das inovações implícitas ao “poder criador do homem”, poderá reforçar os
laços sociais, porém por meio das formas de convivências dos diversos grupos
sociais, dando possibilidade aos dotes originais e promoção ao intercâmbio
entre eles. Pensa em elos que dialogam “num mesmo tecido social”; seria
estéril visualizar o quadro da educação brasileira como um elemento da
sociedade a se bastar quando se pensa em resolver os problemas de todas as
esferas sociais, portanto, para as questões problemáticas da educação
escolarizada deveria ser levado em conta “o quadro cultural mais amplo.”
110
O homem, segundo Hook (1957), é um ser biológico sujeito a leis
definidas de crescimento, algumas faculdades e capacidades maduram,
prosperam e declinam, conforme um ciclo determinado; é um membro da
sociedade com herança cultural (patrimônio) e de uma organização social que
determina que suas necessidades e impulsos biológicos encontram expressão;
detentor de personalidade ou individualidade biológica, mostra um jeito de
proceder característico, influenciado pelas normas dominantes da sua cultura
que vai desenvolvendo gradual e seletivamente.
No plano da personalidade e do caráter, a educação deve aspirar ao
desenvolvimento da inteligência, assevera Hook (1957) que, ao mesmo tempo,
retoricamente, pergunta-nos o porquê de educarmos para a inteligência,
oferecendo-nos a sua contribuição assertiva:
A inteligência nos permite romper as cegas rotinas do costume ao enfrentarmos dificuldades novas; descobrir alternativas quando um impulso não pensado fosse lançar-nos à ação; prever o que não pode ser evitado e controlar o que pode ser. A inteligência nos ajuda a discernir os meios para classificar as possibilidades, a calcular os gastos antes de realizá-los, a ordenar a nossa comunidade, nossa família e nossa própria economia moral. Tudo isto e mais, sem contar os gozos que proporciona o conhecimento (p. 24, tradução nossa).
Enaltece o valor intelectual no sentido da sua virtuosidade rara, pois o
fortalecimento da inteligência fará com que o indivíduo resista mais facilmente
à tirania das modas, por exemplo; aumentará a variedade e os bens na
experiência e o seu labor muitas vezes beneficiará à sociedade. A educação
liberal que o nosso autor aponta vai na direção de consentir ao espírito humano
vivificar-se, de manter viva a sua chama, porém, responsabilizando-se
socialmente.
As aspirações educacionais ligadas ao desenvolvimento humano,
podemos dizer – interessadas na evolução intelectual do homem que se educa
-, segundo Hook (1957, p. 34, tradução nossa), “não fazem senão afirmar no
que cremos que os homens deveriam chegar a ser, tanto quanto possam estar
inflados pelo processo de ensino e aprendizagem.”
111
A educação precisa ser adequada ao homem, de forma que cabe ao
homem discernir tanto os elementos permanentes quanto os mutáveis. Assim
sendo, uma educação adequada ao homem revelará um quadro que reflete
este desenvolvimento. Nesta dimensão encontramos o pedagogo experimental
(HOOK, 1957).
A sina do experimentador é buscar a descoberta do que seja uma
educação adequada para o homem moderno e provar todas as premissas
práticas atreladas ao método, ao conteúdo e levá-las a cabo. Hook (1957, p.37,
tradução nossa) reconhece que o experimentador é chave do desenvolvimento
“de um programa educativo para o homem moderno, cujos frutos na
experiência sejam tão excelentes que possam aceitá-los todos os democratas
[...]”.
A escola exerce um propósito social que varia com o tipo de sociedade
em que se desenvolve e com as diferentes etapas de desenvolvimento social.
Os propósitos educacionais estão inerentes aos eixos que fundamentam a
sociedade e seu caráter, os ideais predominantes. “A bondade ou maldade da
educação é ao mesmo tempo causa e efeito da bondade ou maldade da
sociedade”, sentencia Hook (1957, p.43, tradução nossa).
Saviani discorre com sapiência sociológica, inclusive, com um quê
didático, acerca das funções da escola sem tocar nas ingênuas asserções que
a canonizam como o único e último ultimato à salvação da sociedade, e deste
tipo limitado de consideração se projetam outras pilhérias ora mais cândidas,
ora mais mordazes, que abastecem a fragilidade do senso comum:
A escola só poderá desenvolver um papel que contribua – veja bem, não que transforme, mas que contribua – para a transformação da sociedade, na medida em que ela discuta as condições essenciais em que os indivíduos vivem. Então, nesse sentido, ela permitiria – a par de uma função técnica, que é a função daqueles instrumentos fundamentais de acesso à cultura erudita, - ela facilitaria aos indivíduos a percepção da divisão de classes e de seu pertencimento a uma dessas
112
classes. A escola, nesse caso, só poderia cumprir essa função, na medida, em que seu papel político estivesse explícito e não implícito. Papel político quer dizer mostrar como se dão as relações de poder e quais as bases de poder. Isso levaria, então, à descoberta do lugar que se ocupa no processo produtivo. Descobrindo-se o lugar que se ocupa no processo produtivo é que, então, seria possível a organização para reivindicações de acordo com os reais interesses das camadas dominadas e, dessa forma, caminhar para a superação dos problemas enfrentados por essas camadas (SAVIANI, 1991, p. 187, grifo nosso).
A educação pode preparar por meio de adequados sistemas críticos,
ideias e atitudes que ajam cirurgicamente em momentos de crise. O
desenvolvimento de sensibilidade e discernimento são importantes para
resolver problemas passageiros, cujas sucessões constituem a substância da
história contemporânea. A educação tem alguma influência na ordem social
das sociedades, e em especial na democrática, sendo os professores, como
grupo, influentes; servidores da democracia com uma série de ideais que
buscam se validar (HOOK, 1957, p.49).
Os educadores e todos os cidadãos não poderiam fugir e/ou fingir quando
é premente tomar uma posição frente aos problemas essenciais que dividem
os homens. Ponderando acerca do exercício consciente do professor, Hook
desenvolve:
Mas seu trabalho de pedagogos não é pregar as soluções que sustentam como cidadãos. Seu dever é ensinar de tal modo que, nos níveis adequados, os estudantes vão conhecendo os processos centrais da sua cultura, habituando-se a escrutinar cientificamente nas consequências das soluções propostas, fazendo-se sensíveis aos valores implicados nessas soluções e interessados nelas, e valentes para aceitar as conclusões que o método e o discernimento conduzam (HOOK, 1957, p.71, tradução nossa).
Hook (1957, p.76-77) em suas análises sociais no tocante ao destino da
sociedade, condiciona-a por meio de prolongamentos futuros, ou seja, a nossa
sociedade atual será o prolongamento de si mesma ou surgirá de seus
choques e problemas. Se a escola está neste entrechoque de forças, também
resultará destas contingências. Quando se pensa em um ensino-
113
aprendizagem, um conteúdo adequado ao presente, não se exclui um estudo
do passado; isto faz com que não percamos o passado, mas nos capacita a
selecionar inteligentemente os materiais herdados do pretérito.
Seguindo esta linha de pensamento, como em um brainstorming
ininterrupto, natural que consideremos: qual é o prolongamento que está sendo
construído na contemporaneidade da educação brasileira? Quais são as teias
que interligam os agentes da educação, a comunidade escolar e os planos
políticos que se seguirão? E o nosso específico e, não obstante, plural, papel
de orientadores: em qual medida somos eficazes e quais são os limites de uma
atuação (pretensiosamente) ironista?
Conforme Saviani (1991, p.193, grifo do autor), “... o orientador é antes de
tudo um educador...” e “... a educação é sempre um ato político, a atividade
educacional é sempre um ato político.” Nestes termos, o ironista, o educador
estético ironista, poderá mobilizar o que o pretérito nos deixou e nos ensinou,
quer para o bem, quer para o mal, em todas as gamas produtivas da
sociedade, não apenas artística, e plugar aos sentidos dos alunos
contemporâneos. Ouvir, refletir e vivenciar a arte é um ato político, é uma ação
que contempla a individuação e se reverbera coletivamente. Toda produção
estética propositada à aprendizagem será melhor aproveitada se conectar o
indivíduo à consciência de si mesmo e do seu entorno socioeconômico. A
atuação que se espera de um orientador ironista está para além da apreciação
de cores, formas e estórias que se narram; entendemos aqui, que o educador
ironista está criando possibilidades de intervenção na vida, ensejando – agora,
sim -, um resplandecente apreciar, um olhar de águia11.
É de uma clareza e coragem as dúvidas levantadas por Hook nos anos
1946, quando indaga sobre o que se deveria referir, no presente, o conteúdo
do estudo? Audazmente se remete aos principais problemas de sua época –
que não são nada diferentes da nossa-, apontando-os: as questões sociais,
11 Ver BOFF, Leonardo. A águia e a galinha – uma metáfora da condição humana. São
Paulo: editora Vozes, 1997.
114
políticas, intelectuais e, se quiser, espirituais, frutos do nosso tempo e cultura.
Hook (1957) persiste:
São estes problemas – problemas que não cabe negar mesmo que resistamos a estudá-los – que deveriam servir de temas principais e, em torno dos quais, edificar a instrução educacional. Por temas principais não entendo simplesmente que ao chegar a um determinado ponto da educação se convertam nos problemas centrais do estudo, mas que sirvam de pontos de partida para planificar o conteúdo do curriculum, também em outras etapas. Longe de estreitar indevidamente o curso do estudo, veremos que tal orientação amplia e enriquece, sem convertê-lo em uma arcaica miscelânea contemporânea (HOOK, p.78, tradução nossa).
A educação liberal possui a função no mundo moderno de levar certa
ordem aos espíritos que têm herdado tradições de forma conflituosa; tecer os
problemas e materiais deste emaranhado social em um modelo reconhecível,
pelos quais as pessoas possam se orientar, tomando posições para uma vida
plena, responsável e convicta. Hook (1957, p.89, tradução nossa) relata que
esta educação libera dentro dos indivíduos “energias novas para voltar a dirigir
ou refazer, separada ou conjuntamente, os mundos em que vivem”. Se a ação
for acertada, terá um aumento da liberdade humana na sociedade; se for
madura, realizará a caridade por libertar a si e as outras pessoas.
Os estudantes, segundo o pensamento liberal de Hook (1957, p. 91),
deveriam ter acesso por meio da escola ao conhecimento de como funciona a
sociedade em que vivem, às grandes forças que moldam a civilização
contemporânea e, inerentemente, à reflexão sobre os problemas mais cruciais
da sua época que esperam por soluções.
Natural que pensemos em nossa escola contemporânea e, num esforço
talvez, esperançoso, vejamos algumas possibilidades, resistências criadas
pelos docentes frente ao aparelho educacional montado pelo Estado, que não
atende a sociedade e suas demandas cada vez mais crescentes. O exercício
cotidiano de buscar revoluções diárias com solidariedade e ciência está
impregnado nas ações do ironista, pois é da sua essência compartilhar o olhar
115
questionador que perscruta os papéis sociais que cada um desempenha, por
infelicidade na maior parte das vezes, inconscientemente. Mas, o primeiro ato
de liberdade é saber-se, situar-se; neste ponto, o ironista pode intervir passo a
passo e oferecer pistas a todos que se aproximam dele e/ou que ele vai atrás.
Desde os anos 1940, Hook (1957) defende que os conhecimentos e o
raciocínio que os estudos sociais proporcionam são extremamente necessários
a todos os estudantes, pois, mais adiante, podem se tornar extensões dentro
de suas tarefas na vida, contextualizados em seus campos de trabalho; estes
saberes se encontram na área da história, da economia, do governo, da
sociologia, da psicologia social e na antropologia, por exemplo. Novamente,
poderíamos no mínimo nos indagar: a escola contemporânea contém as
condições ideais para que esta instrução plural, alertada por Hook na década
de 1940, possa ser provocada? Se não, como sairá o estudante após 9 anos
de ensino básico? Preparado e munido da ciência necessária para protagonizar
os seus desejos humanos, sejam eles éticos ou não? Pode-se construir os
alicerces que o impulsionam à prática mais solidária e menos
hedonista/alienada?
Não importa a vocação de um indivíduo, a condição de sua atuação
depende das tendências sociais que ocasionam a aplicação da ciência, ou
seja, oferecem oportunidades de emprego, porém, o mais importante para
Hook (1957) se baseia no entendimento de que
[...] toda premissa da teoria democrática é que o eleitorado será capaz de tomar decisões racionais sobre o problema que tem adiante. Estes problemas são essencialmente sociais e econômicos. Seu caráter específico muda de ano em ano. Mas a sua forma genérica e a natureza dos problemas básicos, não” (p. 92, tradução nossa).
Entende-se que o corpo da sociedade é dotado de indivíduos sociais, que
zelam pela saúde de todo o organismo. A partir deste princípio, é necessária
uma participação inteligente na vida social e a escola, de forma exemplar,
deveria promover a inserção de todos os alunos neste plano de iniciação
crítica, de discernimento, de ações responsáveis. Com estes valores
116
experienciados, o aluno ampliará as suas iniciativas e responsabilidades,
vendo mais profundamente a si mesmo dentro de contextos coletivos e
complexos. Os educadores são mais contundentes e propositivos quando
trazem métodos que provocam a reação dos alunos (HOOK, 1957, p.140).
No capítulo IX – “o bom professor” da obra “A educação do homem
moderno”, Sidney Hook de imediato empresta um pensamento de Karl
Manheim de forma a dar o tom aos desígnios do professor moderno, que se
considera um professor da vida:
Procurará formar uma geração de jovens que una estabilidade emocional com um espírito flexível; mas, unicamente triunfará se for capaz de ver cada um dos problemas da nova geração contra o pano de fundo de um mundo cambiante (MANNHEIM apud HOOK, 1957, p.163, tradução nossa).
Pode-se dizer que a maior parte das pessoas escolarizadas se recorda de
algum professor que lhe ensinou; o fato reside nas memórias que se evocam e
constituem o professor como carismático, de uma imaginação provocativa, de
uma grandiosidade interpessoal diferenciada, de um cabedal de saberes entre
cruzantes que não se restringiam apenas à sua área de concentração. Este
profissional mobilizou e permeou as marcas mais edificantes da construção
cultural do estudante. No entanto, é possível evocar exemplos que
testemunhariam o exercício de um mau profissional da educação, contudo,
ficaremos nos matizes da boa prática. Provavelmente, ninguém colocaria em
destaque os métodos e técnicas com as quais este bom profissional exercia a
sua função didático-metodológica, mas sim, sua pessoalidade e o quão
humano demonstrava ser no ensino-aprendizagem. O ser humano quer se
identificar com o seu interlocutor, porque do contrário, as aversões dominariam
as pretensões tanto de quem quer ensinar quanto de quem quer aprender; por
fim, trocar. E, se houver possibilidade, o professor ou o aluno dão as costas um
ao outro se o mínimo respeito não for assistido, se não houver um terreno
generoso, paciente, dialógico e frutífero.
O professor faz e desfaz programas conforme as suas próprias
competências; ele manipula, reordena o saber. O bom professor, o
117
extraordinário, nunca será o bastante (numericamente falando) para adentrar
em todas as unidades escolares. Precisaríamos de milhares deste tipo
especial: a demanda não será suprida por inúmeras razões. No entanto, a
docência é uma arte como todas as outras, alguns professores não precisam
aprender as artes de ensinar assim como alguns cantores magníficos jamais
educaram a sua voz; o efeito contrário também é verdadeiro, alguns
professores são tão inaptos à docência tal qual um surdo de nascimento ao
estudar a música (HOOK, 1957, p.164).
Hook (1957, p.165) afirma que é um delito o fato de professores de
segunda categoria desempenharem a cátedra, por maiores que fossem as
suas outras habilidades em outros setores. Difícil não correlacionar com a
nossa realidade brasileira, uma vez que muitos professores efetivos são de
uma segunda linhagem que abarrota os cargos públicos tanto na educação
básica das prefeituras municipais quanto dos estados. Após o estágio
probatório (se não antes), a maior parte do professorado se acomoda e raras
vezes realiza um curso de aperfeiçoamento ou muito menos desenvolve
pesquisa de qualquer natureza didático-pedagógica.
Elucida a primeira função do professor: “[...] auxiliar os jovens a alcançar
a maturidade intelectual e emocional ensinando-lhes a manejar certas ideias e
ferramentas intelectuais. Isto exige ciência e familiaridade com a pesquisa
corrente [...]” (HOOK, 1957, p.166, tradução nossa). Como imaginarmos um
ensino sério, intencional, propositivo, humanizador, se o professor não realiza o
seu dever de casa? Não estaria ele faltando com a dignidade ao ousar
professar valores que não possui? Alguma carapuça serve ao suposto
educador que, inconsolavelmente, vende a verdade de um prestidigitador do
tipo mais mixuruca, semelhante àquele que vende gato por lebre e, como
sabemos, não tratamos aqui do cônscio ironista, que se distancia das quimeras
por possuir a coragem de se metamorfosear tal qual o camaleão dentro de
contextos locais, diversos e ordinários.
Como dissemos anteriormente, o bom professor aludido, sempre foi de
rara presença, é de se contar os bons profissionais que assumem a roupagem
118
do ofício e os seus inerentes desafios impregnados. Estaria o professor da
contemporaneidade lendo menos, pesquisando menos, se auto reformulando
menos, em poucas palavras: sabendo menos? Agora, pondo por ora o
semiprofissional ou o antiprofissional de lado e olhando honradamente ao
educador que anseia por se melhorar e, por sequência, contribuir com a vida
do seu semelhante, poderíamos interrogar: qual medida caberia ao Estado de
promover mais possibilidades efetivas aos professores da escola pública de se
aperfeiçoarem, de uma forma que os cursos não tenham o cunho raso,
esporádico, obsoleto? Quais são as motivações que estão presentes na
profissionalização deste educador que possui inúmeros antagonistas, como a
precarização erigida década após década da sua própria imagem profissional,
atrelada ao baixo salário, às péssimas condições materiais de trabalho e à falta
de perspectiva, de avanços?
Estas questões não são injustas quando intencionamos pulverizar a
injustiça, a subestimação, o ato algoz, provenientes das demandas que não
intencionam ofertar uma educação de qualidade e respeito ao ser humano em
estágio de formação, ou seja, pensando em um princípio de cadeia, o bom
professor, dentro das suas cercanias de atuação, é um dos elementos
propulsores de uma nova sociedade; tê-lo em maior quantidade disseminaria
em menor tempo mais seres interventores, imbuídos de ética e de um supremo
respeito à vida. Estaria o Estado tratando o solo para que frutos – talvez,
ironistas, ou não, poderiam caber outros adjetivos, atributos, sabores -
pudessem nascer/crescer vigorosos, vistosos, bons de serem provados? O que
está sendo depositado junto às sementes? Mais joio, menos trigo em um
contínuo fingir atrás da peneira?
A função do professor é uma das mais importantes da nossa cultura,
porém, não é valorizada em sua justa medida e, ironicamente, segundo Hook,
até mesmo pelos professores. O professor transmite capacidades,
conhecimentos essenciais e quando leva a sério o seu ofício, “[...] influi
profundamente na formação de hábitos e no descobrimento de uma filosofia de
vida”, conforme Hook (1957, p.168).
119
Agora, é claro que necessitamos de uma reforma educacional na qual o
governo ofereça condições mínimas de trabalho, incluindo melhorias salariais
pois, definitivamente, o professor competente e que está em ação, aspira por
um salário digno com o qual possa viver e honrar a sua família. Tudo isto
perpassa pela democratização da escola, suas adaptações estruturais, seus
novos fundamentos (HOOK, 1957, p.169).
No que concerne aos critérios de um bom professor, aborda a questão da
capacidade intelectual deste profissional, que não se refere apenas ao saber
ensinar conhecimentos derivados do seu assunto/tema, assim como estar
inteirado dos acontecimentos mais importantes dentro do seu campo: é ter
certa aptidão para as análises. Não é uma questão de ciência acumulada. É
saber lidar com diferentes tipos e planos de análises como abordar os
problemas, separar as ideias, relacionar os nossos hábitos idiomáticos com
nossas práticas intelectuais. Este professor diferenciado tende de saber sobre
outros campos, além da sua própria especialidade. Participa de discussões
com outros departamentos, pois sabe que nesta inter-relação, cada um se
relaciona com o objeto específico de uma maneira peculiar, o que no fim
enriquecerá o diálogo e as aproximações conceituais/práticas (HOOK, 1957,
p.170).
A boa vontade deste educador frente às perguntas embaraçosas, mas
não só isto, mais, a pré-disposição para estimular a contradição intelectual é
uma constante para este articulador de jogos intelectuais, que não cala o
espírito inquisitivo dos jovens (HOOK, 1957). Se, por ventura, os alunos não
participam da aula, faz-se imprescindível avaliar a própria postura, muito
embora, saibamos de condições adversas que escandalizam, alienam,
corrompem, desconstroem, desapropriam, iludem a história deste alunato, não
lhe permitindo a abertura natural ao conhecimento junto aos seus colegas e
professor, daí a resistência amarga, cruel, revoltada, que apenas o distancia de
novas revelações. A complexidade que envolve o ensino-aprendizagem na
120
sociedade contemporânea está para além de receitas que ofertem milagres
para o dia.
Ainda, concernente às qualidades do bom professor, anunciamos a
independência intelectual que é recebida de bom grado por este profissional.
Assomamos a paciência com os principiantes no exercício progressivo da
intelectualidade, que devem ser respeitados conforme o seu ritmo de
aprendizagem. A aptidão para planejar uma lição entra nas características de
um bom professor; ele não é mecânico ao introduzir os assuntos e conduz os
debates, sabe improvisar com legitimidade para despertar interesse nos alunos
ou ilustrar princípios, porém, jamais entra em sala de aula sem saber o que
falar, ensinar, produzir intelectualmente.
Podemos incluir em igual importância o conhecimento que ele possui dos
seres humanos, como cita Hook (1957, p.173-174) “um psicólogo prático”. Este
professor sabe das pessoas, estuda-as e conhece as suas diferenças, assim
consegue motivá-las em suas aulas; é necessário manter o frescor intelectual
para si e para os alunos, como por exemplo, “ fazer com que os alunos
cheguem ao resultado conhecido, com a impressão de ter sido eles que
descobriram.” Ou seja, o fingir visto no ironista se revela nos jogos
provocativos, fingir ignorância e conduzir o interlocutor a outro estado de
percepção como se o fizesse sozinho.
Quando o professor tratar de assuntos já gastos, mas com entusiasmo, e
conseguir atrair os desejos dos alunos e satisfazê-los, podemos compreender
que a chama da vontade de conhecimento estará instalada nos alunos. Hook
conclui: “Por último o bom professor resulta supérfluo e o bom estudante
aprende a arte da auto-educação” (HOOK, 1957, p.175).
Recorda que o professor pode amar os seus alunos na proporção
adequada, que ele chama de simpatia. Ao bom professor devem agradar-lhe as
pessoas, porém não é necessário lhe interessar por cada uma delas. A
121
simpatia é uma atitude positiva que produz a empatia, uma capacidade de
imaginar as necessidades pessoais dos outros.
Sua simpatia tem que se encaminhar primordialmente aos alunos como organismos intelectuais em desenvolvimento, à uma comunidade intelectual em desenvolvimento, convencido de que chegarão a ser pessoas cabais, aptas a agir de forma responsável. [...] Não pode cobrir todas as necessidades emocionais nem assumir as responsabilidades da família e da sociedade, da igreja e do juiz. [...] O professor que se converter em “um dos meninos”, que cultiva a popularidade, que fabrica lealdades pessoais em troca de um trato indulgente, tem errado em sua vocação. Deveria abandonar ao ensino para dedicar-se à política profissional (HOOK, 1957, p. 177, tradução nossa).
O nosso pragmático autor, de fato, finaliza a caracterização do bom
professor aludindo-o à posse da visão. Todo bom professor possui visão, pois
esta é a origem do seu entusiasmo intelectual, assim como do momento que se
retira diante da presença inevitável dos fracassos e reveses. Sem visão ele
seria um técnico modesto e limitado. A visão pode adotar uma doutrina, um
sonho, uma esperança, uma aspiração, um trabalho que progride, porém não
só de cunho pessoal e que tenha uma chamada imaginativa. Onde houver um
bom professor haverá amplas perspectivas de interesse nas sinuosidades de
seus assuntos, como Hook (1957) socraticamente vaticina:
Se o fogo prende nos estudantes não será para fazê-los crer em algum dogma, mas sim para alentá-los na busca da verdade e fazê-los mais sensíveis às visões que representam outros pontos de experiência (p.180, tradução nossa).
Anteriormente, pudemos refletir sobre as matrizes filosóficas socráticas
junto ao Kierkegaard, o efeito de iluminação que a ironia pode produzir na
reflexão/ação ética, racional, sensível e científica de cada ser humano,
reverberando em sua sociedade com perspectivas salutares, emancipatórias,
de teor coletivo. Ressaltando que a ambiência escolar, institucional, faz com
que o educador ironista adote a ironia enquanto postura pedagógica,
dialetizando ironicamente os conhecimentos, a sua metodologia, as estruturas
burocratas. Com Horty e Hook, compreendemos o arquétipo moderno do
educador moderno e seus domínios, assim como os princípios que regem o
122
caráter do ironista liberal em uma atuação ideal e, deliberadamente, encorpada
pela dúvida, pelo desassossego com a ampliação do seu próprio léxico. Agora,
debruçaremo-nos na vida e obra do autor espanhol, Imanol Aguirre, que,
contemporaneamente, vem propondo a concepção do educador ironista com
matizes ímpares e complementares.
3.2 Quem é, com o que se preocupa e onde atua Imanol Aguirre?
O autor espanhol Imanol Aguirre Arriaga nasceu em 1956, iniciou a sua
formação acadêmica pela Universidade de Valladolid em 1978, sendo
diplomado em “Professorado de EGB (Educación General Básica)”, hoje em
dia, esta nomenclatura passou a ser designada “Educación Primaria” na
Espanha, que atende as crianças entre seis e doze anos; licenciou-se em
Filosofia em 1989 pela “Universidade del País Vasco” e, posteriormente,
doutorou-se pela mesma instituição em 1993 pelo Departamento de Filosofia
dos Valores e Antropologia Social com a tese “Metáforas especiais do
imaginário vasco: uma exemplificação antropológica do espaço como trama
narrativa na arte moderna vasca”.
Traz em sua experiência acadêmica o cargo de professor titular de
Didática da Expressão Plástica e Diretor do Departamento de Psicologia e
Pedagogia da Universidade Pública de Navarra. Em 1993 adentrou à
Universidade como professor associado e em 1998, definitivamente, passa a
fazer parte do corpo docente, adquirindo nesta passagem de tempo, dois
doutorados. Conseguiu em seu processo formativo duas “becas” (bolsa de
estudo), uma concedida pelo Departamento de Educação, Universidades e
Investigação do Governo Vasco para a Formação de Pesquisadores (1990-
1993) e outra do Vicerrectorado de Investigação da Universidade do País
Vasco em um projeto orientado pelo Dr. Mikel Azurmendi, obtendo
reconhecimento posterior pelas pesquisas.
123
No ensino básico possui mais de 15 anos de atuação como educador do
ensino infantil (1979-1981), primário e secundário no bacharelado (1994-1996).
Esta empiria na educação básica possibilitou ao autor compreender a potência
e o impacto da cultura visual no ensino de artes desde os primeiros anos da
escolarização.
Aguirre, entre tantas atribuições vinculadas à academia, é também
assessor e professor dos programas de Formação de Professores do
Departamento de Educação do Governo de Navarra na área de Educação
Plástica e Visual desde 1993. Seus projetos de pesquisa, geralmente, são
financiados e se debruçam sob a compreensão da cultura visual e a identidade
da cultura espanhola como elementos referenciais a serem investigados;
citamos um projeto que exemplifica essas matrizes de pesquisa: “A construção
da identidade territorial nas ilustrações dos livros textuais do ensino primário e
secundário das comunidades da Cataluña, País Vasco e Navarra.”
Enquanto gestor, participou de inúmeras comissões da Universidade
Pública de Navarra que tratavam da Cultura, da Normalização Linguística da
própria Universidade. Publicou mais de 40 artigos em revistas especializadas,
além de participar de congressos onde apresenta suas pesquisas temáticas,
como: “Construção da imagem da mulher vasca através da arte e da ideologia”,
“A educação artística como reconstrução identitária do sujeito” e “Arte e
sentimento na crise do academicismo”.
Em um sentido de produção artística, Aguirre realiza exposições
individuais e coletivas nas quais suas esculturas podem ser apreciadas.
Trabalhou intensamente como escultor entre 1979 e 1986. É membro da Junta
do Patronato do Museu San Telmo de San Sebastián, onde atuou como
curador nas exposições sobre “Ibarrola 1948-1991” e “ARTE 80” ambas em
1991, possui também a experiência de passar como membro dos conselhos de
Redação das revistas BITARTE e HIK-HASI.
124
Outras linhas de pesquisa compõem o seu trabalho de campo: a
compreensão de uma nova educação estética que conceba a arte como uma
experiência pessoal e recortes conceituais desenvolvidos dentro da estética de
forma a trabalhar concretamente dentro da sala de aula, atendendo as etapas
da educação obrigatória. Poderíamos, ainda assim, tecer precisamente as
linhas de concentração do nosso autor: educação artística, cultura visual e
experiência estética em contextos formais e não formais de aprendizagem.
Imanol Aguirre orienta e co-orienta teses de doutorado na Universidade
Pública de Navarra e na Universidade de Granada. Destacamos duas teses
sob sua orientação: “Arte Contemporânea e Construção Identitária na
Educação Infantil” (2007) de María Reyes González Vida e “Concepções de
arte e interpretação no discurso educacional e práticas no Tate Britain em
Londres” (2009) de Amaia Arriaga Azkarate.
Publicou os livros “Estética da diferença: a arte vasca e o problema da
identidade” (1995) com Martínez Gorriarán; “Teorias e práticas na educação
artística: ensaio para uma revisão pragmatista da experiência estética na
educação” (2005) e coordenou “O acesso ao patrimônio cultural: desafios e
debates” (2007).
Pode-se observar alguma parcela da produção investigativa de Imanol
Aguirre, - já que não é o nosso foco abarcar toda a sua feitura acadêmica, mas
sim, o seu viés acerca do educador ironista -, sinalizando uma pesquisa
debruçada na compreensão das artes como cultura visual e suas
possibilidades na construção de novos territórios no ensino-aprendizagem,
entrelaçando-as às experiências de cada estudante. Ainda assim, o APÊNDICE
2 revela dezenas de produções que Aguirre vem publicando e contribuindo com
a comunidade científica, além de proporcionar reflexões na/da sociedade.
Poderemos no próximo subitem nos aproximar pormenorizadamente das
contribuições que Imanol Aguirre vem praticando e intuindo na arte-educação.
Notaremos que o seu entendimento artístico promove múltiplas interpretações
125
e ações para e da prática artística no período de escolarização do ensino
básico. As artes assumem para o nosso autor o potencial de emancipar o
mundo dos seus leitores, abrindo campo para que vasos e rizomas se
entrelacem num diálogo de estruturas móveis de conhecimentos; críticas
incisivas, porém solidárias e que ensejam melhorias coletivas e ironias
socráticas (postura pedagógica), de forma que o homem possa se transformar
paulatina e produtivamente em diversas gamas do saber.
3.3. Por uma mediação estética que desperte a reflexão
Imanol Aguirre (2009, p.157) em seu texto “Imaginando um futuro para a
Educação Artística” nos introduz ao conceito do educador ironista em
confluência aos paradigmas e desafios postos na nossa civilização
contemporânea. As teias da pós-modernidade são tão complexas que “fica
muito difícil fazer prognósticos confiáveis sobre o futuro e adotar medidas
efetivas, ante as questões, às quais enfrentamos em cada momento do
presente”, esclarece-nos acerca das mobilidades e aleatoriedades que
vivenciamos.
Encadeia os seus pensamentos justificando que quando se projeta uma
resposta educacional que atenda as contingências da sociedade, ela já estaria
desconfigurada à realidade, pois as mudanças contínuas fazem com que as
demandas assumam outros caracteres, portanto, estão e são de outra natureza
e necessitam, novamente, de uma nova abordagem. Exemplifica
metaforicamente “que não é fácil confeccionar uma roupa para quem não para
de se mexer e muda de forma e lugar constantemente” (p.157).
Segundo Aguirre (2009), as ideias básicas e os imaginários constituintes
das atuais propostas em educação artística precisam se renovar, por mais
“incerto” que possa ser o futuro, pois não atendem à utilidade do presente.
Amparado em Manuel Delgado, justifica as necessárias mudanças
educacionais por conta das inerentes transições que competem à formação
126
geográfica humana da sociedade: por sermos “praticantes do urbano”, de
configurações que não são sólidas e que se findam.
Emaranhadas a estas tramas, Aguirre aponta “situações caleidoscópicas”
nas quais as práticas sempre se reconfiguram; ao mesmo tempo, denuncia o
retorno de comportamentos racistas e segregadores dentro de certos setores.
Na multiplicidade de surgimentos e ressurgimentos de fenômenos, Aguirre
(p.158) conceitua os sujeitos como nódulos, “cruzamentos de territórios
autônomos, com seus próprios sistemas normativos, independentes entre si.”
Ao cotejar os aspectos disponíveis à construção identitária dos
estudantes na escola básica, Aguirre visualiza que as culturas juvenis e as
tramas simbólicas que as constituem não são padronizadas e homogeneizadas
como pretendem revelar os meios audiovisuais e a cultura da imagem.
Aprofunda a análise situando os jovens como partícipes de uma sociedade
“multiambiental ou multicontextual”, inserindo-os em contextos simbólicos, tais
quais o familiar, escolar, grupal e virtual. Nesta passagem entre os vários
símbolos que, aliás, a juventude perpassa muito bem, estão indissociáveis
muitos valores estéticos e éticos; justamente, neste trâmite de combinações de
imaginários e valores, o jovem construirá a si mesmo enquanto identidade. A
partir destes elementos estruturais, Aguirre reflete sobre os espaços da
experiência estética na vida dos aprendizes (AGUIRRE, 2009, p.160-161).
Evidencia “dois grandes epítomes da identidade fragmentada” na
sociedade contemporânea, com a qual os jovens lidam, que são a sala de aula
e o quarto. Constituído de
[...] dois espaços vitais, complementares e justapostos, mais arquetípicos dos imaginários juvenis e, cada um deles representando um compêndio de valores, atitudes, comportamentos e gostos diferentes do outro, mas fundamental na configuração das identidades juvenis (AGUIRRE, 2009, p.161).
O quarto é composto de emotividades e afetividades, há uma composição
visual que integra a família, preferências e diversões. Neste ambiente se
127
situam as experiências estéticas e os motivos que representam as práticas
culturais deste sujeito. Para os jovens, a alta cultura lhe é semelhante quando
uma arte ou artista se transforma em ícone da cultura de massa por um breve
tempo, ainda assim, jamais é apropriada verdadeiramente. Conforme o nosso
autor, as artes cultas se delimitam com os saberes escolares e/ou o mundo
adulto, portanto, “longe dos cantos mais intensos da sua experiência estética,
vital e pessoal” e, “como consequência lógica, essa percepção acarreta uma
refração imediata” (AGUIRRE, 2009, p.162).
A questão é surpreendentemente desvelada, pois temos uma proposição
de senso comum, onde “a conexão entre os materiais curriculares e os
repertórios estéticos juvenis é, completamente, deficitária ou nula”, conforme
Aguirre (p.162). Assim, obviamente, a assimilação da alta cultura e as artes
visuais deixam de ser uma experiência vital para os jovens, deixando de operar
possibilidades de uma identidade mais ampla, consciente, fortalecida e
transformadora. O fato é que, os estímulos visuais e musicais desempenham
influência sobre os imaginários dos jovens e não estão sendo, em sua maior
parte, articulados de forma atrativa dentro da cultura escolar. A história tem nos
demonstrado que a cultura midiática possui enorme proliferação e influência
acerca dos desejos e práticas juvenis.
Notoriamente, vê-se na contemporaneidade que a indústria cultural12
configura e oferece suporte à construção dos imaginários por meio dos “meios
eletrônicos, televisivos e gráficos de difusão massiva.” Há abundância, porém
não variedade. A “retroalimentação” de intensidade visual e iconicidade são,
atualmente, um substitutivo do conceito estético de beleza e, criou, segundo
Aguirre, o que podemos nomear de “filhos da imagem”: jovens aderentes à
cultura do espetáculo, promotora visual de sentimentos e sensações de grande
12 Ver Dialética do Esclarecimento (1947). Theodor Adorno e Max Horkheimer descrevem a
indústria cultural como uma ameaça à subjetividade; o eu é enfraquecido e sua construção é
estimulada ao comportamento de assimilação e adaptação das massas. A cultura
contemporânea é submetida à indústria cultural que, impossibilita experiências formativas
dialéticas, emancipatórias; “... determina toda a estrutura de sentido da vida cultural pela
racionalidade estratégica da produção econômica, que se inocula nos bens culturais enquanto
se convertem estritamente em mercadorias [...]” (ADORNO, 1995, p. 21).
128
intensidade emotiva; uma juventude ansiosa por uma narrativa oriunda dos
artefatos visuais e que, por sua vez, estão agregados por tons pitorescos,
grotescos, humorísticos e de horror (AGUIRRE, 2009, p.164).
As mudanças no ensino-aprendizagem de artes na escola pública, não se
daria no sentido de apenas “acrescentar mais arte” (cultura da rua) “ou
incorporar flertes com a cultura de massa” aos conteúdos dos “velhos
currículos”; tampouco, revalorizar a cultura popular a despeito da alta cultura.
Problematiza questionando se se fazem necessárias as mudanças de “status
nas relações de poder estabelecidas entre os artefatos estéticos e as práticas
culturais.” Para o autor, o objetivo de uma nova reformulação de aprendizagem
estética é
[...] entrelaçar os sujeitos em experiências educacionais, pela capacidade de propiciar transformações pessoais, de formar critério, de enriquecer a experiência estética, de ampliar o conhecimento de si mesmo e dos outros, pela possibilidade de gerar tramas com causas próprias e alheias ou de suscitar o ânimo compassivo. Em suma, a capacidade de contribuir para isso que tantas vezes se denomina como a construção identitária (AGUIRRE, 2009, p.166).
As artes canônicas estão sempre acompanhadas de um caráter elitista,
portanto, caracterizando-se como uma “coisa de outros, de pessoas mais
velhas”. Desta forma, Aguirre em suas análises compreende que os produtos,
os artefatos culturais da alta cultura são “afastados da experiência vital dos
jovens”. Sua proposta seria aproximar o estudante à experiência “com outras
formas culturais do seu próprio entorno, com as formas mais tradicionais da
cultura artística canônica e com a de outros entornos culturais distintos”
(p.167).
A escola tal qual se encontra subdividida, fragmentada em disciplinas e
padronizada acerca dos conhecimentos compelidos aos alunos, não é o
terreno mais propício à interação do currículo escolar e cultural. Aguirre (2009)
discute a possibilidade das mudanças relativas aos imaginários que estão por
129
trás da distribuição disciplinar dos saberes, das “noções básicas dos saberes
que os consolidam”.
Intenciona a experiência artística dentro do contexto escolar como um
relato aberto no qual não há “discursos conclusivos” com significados fixos; a
aproximação da obra de arte estaria mais para “um condensado de experiência
gerador de uma infinidade de interpretações” a um “texto cifrado”. Assim,
Aguirre socializa a ideia de que o caráter elitista da arte deve ser neutralizado;
a experiência estética pode vazar potencialmente para outras possibilidades
que permitam-na ser praticada, materializada, com toques singulares.
Outrossim, o experimento compreenderia o entendimento do papel histórico e
cultural da obra ou experiência, criando abertura para novos significados que
transformem as práticas e as realidades.
O cerne desta proposição residiria numa reescrita da própria história da
arte, além das sucessões organizadas de estilos e momentos estéticos, mas
sim, dentro de um bojo com “jogos metafóricos que aparecem e desaparecem
em função de contingências históricas e culturais” (AGUIRRE, 2009, p.169).
Embasado no pragmatista John Dewey13, compreende que as
experiências estéticas devem ser “experiências vividas” como “tramas de
crenças e desejos”. O educador interligaria com suas provocações,
experiências refinadas e intensas com fatos da vivência cotidiana. Adotando a
concepção de Dewey, Aguirre (2009) enquanto educador abarca todos os
artefatos, sejam eles das belas artes, das artes populares, da cultura de massa
incrustada na cultura visual, ou seja, vê solução para a educação artística
descontruindo as hegemonias que, por ventura, se concentram em apenas esta
ou aquela forma de se produzir, disseminar e experienciar arte.
13 O norte-americano John Dewey (1859-1952) foi filósofo e educador. Influenciou os
pragmatistas vindouros, entre eles, Richard Rorty. Suas obras abordavam a Filosofia da
Educação, a Ética, a Arte. Escreveu “Democracia e Educação” (1938) e “Arte como
experiência” (1934).
130
O interesse de uma nova educação artística se voltaria a contemplar as
inúmeras formas de experienciar a arte, em suas múltiplas facetas históricas e
contextuais, como também implementar a não menos importante história de
vida do estudante às experiências estéticas. Isto é ressignificar algo em
construção: a experiência estética, a identidade, os imaginários, a criticidade.
Aguirre atribui à Richard Rorty (1989) o espírito da atitude ironista,
propositando-o como uma “renovação do imaginário docente”. A intervenção
ironista poderia auxiliar no combate aos desafios educacionais
contemporâneos, reavaliando as próprias posturas do professorado e seu
campo de atuação.
Entendemos, primeiramente, que o ironista visto pelo viés socrático, fingi
ignorância. Quando tratamos do ironista liberal alçado por Richard Rorty, vimos
que ele reconhece a contingência da linguagem, portanto, seu léxico final
estará sempre aberto: sabe a sua incapacidade sobre as verdades postuladas
para si e para o mundo, inclusive, não acredita estar mais próximo da realidade
do que qualquer outro, então abre-se às novas configurações; duvida
constantemente, pois o que sabe não é o suficiente para pôr fim a alguma
dúvida; seu fundamento é compreender por meios variados o que se percebe
na/da realidade e a sua função dentro deste sistema de jogos, não se exclui da
dialogia, não se afasta, não evita participar, pretende assimilar, alterar,
problematizar, subverter, reconfigurar (AGUIRRE, 2009, p.172-173).
Conforme Aguirre (2009, p.174) visualiza, a redescrição dos imaginários
dos docentes na educação artística, correlacionada à atitude ironista,
potencializaria alguns aspectos fundamentais às novas formas do ensino-
aprendizagem em artes:
- A ironia é um instrumento com o qual se pretende saber e compreender;
exclui o léxico último de “conhecer a verdade”.
- A prática da dúvida e da descrença precisa estar alicerçada na
consciência.
131
- A dinâmica que envolve os jogos de linguagem intermedia as descrições
de mundo.
- A liberdade e a tensão dos antagônicos se tecem no jogo do ironista, em
seu método de ação.
- O ironista corrói o dogma, joga com as verdades dos léxicos, consegue
se manter distante de seu próprio discurso e do meio no qual ele se produz: é
um colocar-se em xeque para desvelar as falhas e falsas verdades.
- Sua ação é de cunho individual, pessoal, muito embora, ao contribuir
com os avanços dos léxicos alheios, difunde exponencialmente, reverbera para
as esferas públicas.
Aguirre pretende que a prática artística no contexto escolar seja
reveladora e útil, capaz de produzir alteridade e discernimento. Não credita às
artes o fardo de exclusiva emancipadora do homem, que isoladamente
propiciará progressos e alívios, mas que pode ser eficaz em sua dimensão,
incluindo o seu cultivo dentro da sala de aula. Partindo da ironia implícita ao
trabalho do artista ironista, discorre que
[...] não será difícil achar exemplos na história de artistas que, como ironistas deformadores, lançam um olhar corrosivo sobre uma realidade que não lhes agrada, propondo um jogo satírico ou burlesco de deformações, que façam mais evidente a futilidade ou a infâmia de dita realidade. Do mesmo modo que, praticando um ironismo revelador, muitos outros artistas projetaram seu olhar sobre a realidade, procurando novos léxicos nos quais se desenvolver e proporcionando, com isto, a incorporação, ao mundo da arte, de novos repertórios, estendendo os limites do estético e, por esse meio, propiciando certa abertura da sensibilidade estética. A luz do ironista nos permite descobrir, portanto, também na atitude dos artistas e na história da arte, sólidos fundamentos para transformar nosso imaginário docente. Observar o trabalho do artista, a partir de uma perspectiva ironista, permite-nos sugerir que os modos de operar da arte são muito adequados para uma educação artística do tipo pragmatista, baseada no jogo ironista [...] (AGUIRRE, 2009, p.175, grifo nosso).
Apoiado nas asseverações rortynianas, examina as qualidades inerentes
ao ironista, anteriormente vistas no subitem 3.1, contudo, revela,
destacadamente, que o ironista não é regido por critérios: ele submete os fatos
132
à analise num esforço de enxergar as camadas além da superfície de qualquer
objeto com que lide, e isto, metaforicamente, fazendo uso contínuo da dialética,
transitando de uma terminologia à outra, inesperadamente. Sua esperança está
depositada na ampliação do jargão alheio, no tecido que acolha em suas
tramas todas as relações contingentes, incluídos o pretérito e o porvir; estamos
falando aqui, de uma cadeia infinda de saberes na qual os seres ironistas vêm
beber, partilhar e produzir mais deste típico manancial de esclarecimentos de
toda ordem.
Enaltece a atitude ironista por sê-la competente ao situar-nos os artistas,
os escritores, filósofos e suas obras em seus respectivos pilares, como
elementos que se re-descrevem uns aos outros, se citam, se referem, se
baseiam, se constroem com o melhor do outro. Percebamos que, o educador
ironista serve a fomentar as conexões caleidoscópicas entre as obras, os
autores oriundos de diversos gêneros, entre os léxicos fervilhantes da
vizinhança convidativa. A desconfiança produz por meio do ironista, a
curiosidade; os léxicos, sobretudo, não são finais; os produtos e artefatos da
cultura visual não são um fim em si mesmo, - melhor crê-los como meios
eternos - incapazes de povoar todo o solo da realidade, portanto, jamais sabê-
la em sua inteireza (AGUIRRE, 2009, p. 176-177).
O pensamento ironista está vinculado à renovação do olhar, do
posicionamento ideológico, pois pretende ser fresco tal qual a vida em sua
cíclica mutação de valores, prerrogativas e morais. O ironista se revisiona
eticamente perante as necessidades de atuação e, em sala de aula,
comungará de leituras ocultas, particulares e díspares de cada aluno,
preparando o terreno para novos jogos que reflitam os desejos e reais
emergências dos discentes.
As obras de arte não possuem apenas um apelo racional, estão imanadas
e detentoras de um poder purgativo, e o ironista prevê em sua mediação
estética, quais proporções e âmbitos empregará na experiência estética
propositada. Há um cabedal informal e emotivo que precisa ser explorado
133
conscientemente pelo ironista. A prudência (razão) e o arrebatamento estético
estão sempre em trilhas confluentes, nas quais a elaboração da identidade
assimila novos léxicos, uns mais surpreendentes que outros, porém
emaranhados em um conjunto de saberes entrecruzados (AGUIRRE, 2009,
p.178).
Em Rorty (1989) havíamos identificado algumas premissas: o ironista
edifica a sua identidade, tornando o seu eu (self) melhor; o ironista se solidariza
(alteridade), pois amplia a sua noção dos “nós” e do “outro”, não permite a
humilhação alheia, pois sabe usar o seu léxico em defesa do oprimido. Destes
conceitos, Aguirre (2009) se apropria com o propósito de propor uma revisão
dos imaginários em educação artística, como uma alternativa e possível
melhora da sociedade como um todo. Como toda produção visual está repleta
de significados e referências, segundo o autor, talvez estas imagens “se
convertam em mediadoras de valores, crenças, desejos e fantasias” (p.179).
Aguirre pontua sobre a construção do eu simbólico, onde sentimentos e
experiências se assomam na jornada. Conectando aos contextos estéticos, o
aluno exerceria o ato de redescrever as obras e aliá-las à sua própria criação
biográfica, ou seja, apreenderia mais léxicos em seu eu, um eu em melhoria.
Estes nutrientes auxiliariam a configuração da identidade, dos imaginários
juvenis e, consequentemente, a transformação do seu entorno vital.
O exercício de redescrição de si e do outro vai criando o juízo do que é
bom, do que se pode e deve incorporar em si, baseando-se nas virtudes
lexicais de outrem. Nesta junção constitutiva, o educador ironista assessoraria
as redescrições, impactaria a razão e emoção, criaria um novo espaço
educativo, estético, de trocas solidárias, porém, como frisa Aguirre, seria
necessário “um tipo de docente em sintonia com tais métodos e propósitos”
(2009, p.180).
A partir da vivência espanhola, avalia que a proposta educacional para a
escola pública está minando o poder criativo dos docentes, em virtude de
134
interesses políticos e editoriais, modelando-os em “meros transmissores de
conhecimentos pré-fabricados e pré-digeridos, já prontos para uso” (p.180).
Complementa problematizando a prática docente num momento no qual a
sociedade se caracteriza pela informação e pelo conhecimento, no entanto, a
escola não possibilita o despertar de um mediador que saiba usar
intencionalmente os saberes, a ponto de contagiar os alunos em um sentido
emancipatório, em prol da formatação de uma sociedade ideal na qual as
oportunidades sejam ofertadas para todos.
Contudo, Aguirre (p.181) não mergulha nos meandros políticos do
sistema educacional e societário que cerceiam a prática docente; natural e
ironicamente, motiva o leitor à percepção, talvez, mais que óbvia, que a
essência pedagógica e os desdobramentos deste singular educador, seja
perpetrar as raízes para além das salas de aula, ainda assim, enfatiza que não
é do bojo dos educadores ironistas, a transmissão de verdades, o
desvelamento de significados, sejam artísticos ou de artefatos da cultura visual.
O nosso autor condensa as suas ideias no que tange à atuação do
educador contemporâneo, do bom professor anteriormente visto, apontando
ações intrínsecas que contribuam com o desenvolvimento dos alunos:
[...] convém começar a imaginar-nos como docentes pesquisadores, versáteis, capazes de trabalhar com a contingência e dispostos a nos deixarmos enredar por ela, pelas obras e pessoas que passem por ela. Nosso papel como docentes deveria ser o de enlaçadores, o de provocadores de interferências e relações, que têm o eixo da sua ação formativa na tomada de consciência sobre a grande interação cultural, que existe por detrás, ou no seio de cada artefato estético e, mais particularmente, das relações que se produzem entre estes artefatos, a cultura visual, os produtos estéticos canonizados e o devir de ideias, crenças e desejos dos seus criadores e usuários (AGUIRRE, 2009, p.181).
Esclarece que o educador ironista é o educador artístico mais edificante
para a escola presente e futura, perfilando-o como um conspirador contra as
narrativas fechadas nas interpretações e usos da cultura. Entende a arte como
contingência, representação da realidade, não como manifestação superior do
135
espírito humano. Concebe tanto a arte como os produtos da cultura como
elementos simbólicos de experiência. Propicia projetos identitários
entrelaçando com projetos alheios e impulsiona a destreza na identificação
imaginativa dos outros, para incrementar a sensibilidade e não permitir a
propagação da humilhação de si e do outro. A sua atitude compreensiva é vista
como um ato criativo, uma oportunidade de se exercitar a crítica cultural
(AGUIRRE, 2009, p. 182).
O educador artístico calcado nas estruturas ironistas de Rorty (1989),
conforme Aguirre, é um mediador estético aberto e propositor de novos léxicos,
um “tramador” “aberto às emergências”, um potencializador de territórios,
imaginários e identidades em construção. Se importa em destruir os
estereótipos que possam viver nas imagens estéticas dos alunos, com o fim de
oferecer mais possibilidades dentro da vastidão das artes visuais e suas
correlatas contingências. Intuindo a mudança dos objetivos formativos, atraindo
a aprendizagem à experiência dos jovens, Aguirre, proposita-nos uma reflexão
da reinvenção do ensino de artes perante um currículo engessado, porém, que
possa ser alterado de forma a corresponder às necessidades da sociedade;
fala-nos de um “currículo motivador” que faça os jovens se engajar nas artes
visuais, configurar com criticidade a sua identidade e “reconhecer as
identidades alheias” (p.183).
Aguirre demonstra profunda reflexão ao revelar que o ensino de artes por
si mesmo não é o bastante para um educador artístico; a intervenção docente
sempre tocará níveis vitais se estiver compromissada com o capital humano
em processo formativo. Enfatiza a necessidade de o ensino-aprendizagem
estar correlato à “formação de pessoas capazes, competentes ou bem
preparadas para os novos mundos que vamos habitar”, e deliberadamente
sentencia que “o fato de que os estudantes saibam mais ou menos de arte é
tão irrelevante, quanto o fato de que saibam muita álgebra, trigonometria ou
nomes de reis godos” (2009, p.184).
136
Neste contexto, percebemos que os limites de uma atuação irônica são
indeterminados, e se projetam a todos os estratos da educação pública
contemporânea, urdida e sistematizada verticalmente, até o ponto de um dia se
reconfigurar. Aguirre se atém ao ironismo como um libelo que rompa com a
estrutura e conjuntura vigentes na forma de se compreender e realizar,
especificamente, o ensino de artes, embora, vislumbre-o proveitosamente
como um referencial oportuno e incisivo para todos os profissionais da
educação. Pretende para a ironia uma imanência mutável e polifônica que afete
salutarmente, uma arapuca para regenerar a intenção humilhante, uma força
benéfica e tão somente humanizante que ceda chaves para infindos léxicos: a
ironia a serviço da dignidade humana.
Aguirre (2003) aponta no artigo intitulado “¿Estamos impartiendo la
formación inicial que precisan los enseñantes de hoy? El Practicum de maestro
como ámbito para el desarrollo de proyectos de trabajo en educación de las
artes visuales” a necessidade dos futuros educadores em educação artística de
romperem com a prática que mais se assemelha com a qual foi-lhes ofertada
pelos seus próprios educadores à prática contemporânea que se manifesta
pela ordem da “inovação educativa” (p. 33).
Com este olhar, pondera sobre os agravantes que estão imbricados no
ensino de artes, como a baixa valorização social da arte e da própria educação
artística, assim como a escassa flexibilidade da escola para adaptar-se às
mudanças que a escola contemporânea requer. Cita que a educação artística é
contemplada como uma disciplina menor nos planos educativos em qualquer
nível escolar, além de pouco importar às competências administrativas e
acadêmicas. Cotejando com a realidade brasileira, podemos atestar
similaridades, inclusive do ponto de vista da sociedade e suas esferas.
Reflete sobre o círculo vicioso no qual a formação de arte educadores
incide, revelando que há escassa formação de sensibilidade artística, de
presença curricular e profissional, além da já citada falta de valorização social.
Neste redemoinho dificilmente haveria uma composição de um professorado de
137
arte que possua conhecimentos e atitudes adequadas para ultrapassar os
limiares desta conjuntura; portanto, Aguirre, discute que a questão necessita,
impreterivelmente, do apoio conjunto de professores universitários e dos
graduandos em artes, na direção de uma aprendizagem universitária com
vistas à “sensibilidade artística, em definitivo” (AGUIRRE, 2003, p. 34).
Ao mesmo tempo, discute que a escassez de materiais está mais
correlata às matérias “menos ‘necessárias’ para a formação da cidadania” (p.
35) e aprofunda ao observar os raros exemplos nos quais há espaços
apropriados para o ensino das atividades artísticas. Aguirre sugere que não é
apenas a falta de condições econômicas que faz com que a escola reaja com
lentidão em função das mudanças educativas, assomados a isto, implicam
também os próprios desenhos curriculares que anseiam por preparar o alunato
às futuras provas de acesso às universidades públicas, ou cursos técnicos, que
são seletivos e excludentes, como se fossem a razão primordial da Educação;
ao invés de proporcionar, de fato, uma sólida educação no presente.
Possibilidade para a inovação e renovação fica apenas exposta a quem,
voluntária e solitariamente, consegue se servir de meios reais e laboriosos para
construir-se profissionalmente, de forma que a sua sensibilidade artística vá se
aperfeiçoando, tornando-se um profissional mais conhecedor, estratégico,
inquieto e distribuidor de suas excelências adquiridas a duras penas. Aguirre
desenvolve estas afirmativas, somando a elas o fato de os conteúdos artísticos
não estarem respondendo à realidade educativa atual, nem mesmo às culturas
visuais que a sociedade vivencia (AGUIRRE, 2003).
Propõe aos futuros educadores em artes que sejam aplicadores de
debates, “de confrontação interdisciplinar de informações, de análises, de
criação de opinião ou de crítica” (p. 36). Interessa-se que o professor não
pronuncie “inequívocas verdades sobre as teorias”; faz-se prudente a
imaginação e raciocínio dos alunos ante à aprendizagem, daí o exercício crítico
de toda construção de pensamentos e aferições. A imutabilidade não está
presente nos processos criativos, nas análises de produção estética, portanto,
138
a dúvida e o questionamento a partir do senso comum será material constante
à reflexão artística.
Em outro artigo nomeado “Estudio sobre jóvenes productores de cultura
visual: evidencias de la brecha entre la escuela y la juventude”, Aguirre (2013,
p. 525-526) proposita-nos o educador artístico como um sujeito que possui
cumplicidade com os códigos tecnológicos do audiovisual, transcendente do
âmbito de mero receptor para projetar-se em um produtor da imagem, com
formatos, suportes e temáticas diversas, criador de estímulos e referências
audiovisuais. Esta persona educativa é a que se afina com o ironista
mencionado em meados de 2009 quando da escrita de “Imaginando um futuro
para a educação artística”.
Sinaliza o esforço premente ao mediador estético, o ironista, que maneje
junto aos alunos as suas respectivas construções da subjetividade e da
identidade, uma vez que se produza a aprendizagem em diálogo com a vida
presente e as necessidades que surgem; o educador ironista sabe que a
cultura visual está imanente à contemporaneidade e, portanto, inerente aos
jovens, por isto, sua ação didática-metodológica vai implicar em conscientizar,
desnudar, questionar todos os artefatos prontos e idealizados da sociedade,
com o objetivo dos alunos compreenderem o que está em seu entorno, o que é
produzido pela cultura visual como simples objeto de consumo, inclusive. O
ironista intenciona uma aprendizagem que manipule as produções visuais de
forma crítica, contudo, respeitando o desvelamento natural e contínuo dos
alunos que, ao passar do tempo, aglutinam, descontroem e reengendram suas
próprias identidades como agentes protagonistas (AGUIRRE, 2013, p. 532).
No artigo “Hacia una nueva narrativa sobre los usos del arte en la escuela
infantil”, Aguirre (2012) indica que as obras de arte, assim como outras formas
da cultura visual, são oportunidades de enriquecimento empírico para as
pessoas. Propõe uma reflexão na qual os arte-educadores necessitam
desmistificar o gênio criador dos grandes artistas, a não romantizar e, portanto,
não distanciar os artistas prodigiosos de determinada condição histórica na
139
qual os alunos estejam inseridos; ou seja, contextualizar sobriamente a
realidade dos artistas e suas obras, pode ser muito mais proveitoso, educativo
e crível para possíveis conexões com a vida dos alunos, como por exemplo, a
exemplificação da vida de Van Gogh e suas lutas.
Enfatiza que o recurso educativo de cunho artístico possibilita um jogo no
qual os papéis identitários se constroem e se confluem: o cultural com o
psicológico, o social com o privado, e os signos coletivos com as paixões
pessoais. Este condensamento de componentes que se processam em
interação entre a vida e a arte é chamado de experiência estética, que se
traduz em exercícios contínuos que possibilitarão rupturas com o status quo:
[...] é importante ter em conta que a arte e a cultura visual, além de ser objetos a conhecer, são terrenos propícios para a geração de emergências surpreendentes e de rupturas emotivas que podem se tornar em rupturas simbólicas, estéticas, éticas, ideológicas e políticas” (AGUIRRE, 2012, p. 166, tradução nossa).
Neste sentido, Aguirre (2008) assevera que a interação das artes com o
contexto é algo vivo e está em evolução, pois o mediador estético alimentará
sentidos e valores, histórias e interpretações. O ensino da arte vai ao encontro
das experiências vitais, às reestruturações intelectuais, sensíveis, de noções e
decisões. Assim, considerando a constante transformação social, seria implícito
ao ensino de arte a promoção de projetos curriculares mais versáteis,
adaptáveis à transição cultural, desde os conteúdos aos modelos de
ensino/aprendizagem.
Em seu artigo “La educación artística en el centro de un proyecto
humanista para la escuela” visualiza que o futuro da educação artística pós-
moderna incide sobre contínuas mudanças dos métodos educativos que
buscam por uma maior eficácia formativa, mobilizando como objetivos
principais o desenvolvimento humanista, a formação de valores, a formação
pessoal e o desenvolvimento da sensibilidade (2005, p. 373).
140
Aguirre (2007) regozija-se com a atitude ironista, metáfora desenvolvida
por Rorty (1989), por ser uma das mais frutíferas e que, inclusive, capacitou
uma regeneração de pensamento para com os modelos metodológicos de
intervenção na arte-educação. Com novos jogos de linguagem e a prática da
redescrição, com a ampliação dos léxicos e a anulação da humilhação, com o
saber partilhado e a solidariedade sendo convidada às descobertas estéticas; o
ironista cultivará em sua seara cotidiana os elementos de extrapolação,
influenciará experiências vitais, reinventará seus modus operandis sem apego
a qualquer certeza que outrora apontou, coibirá socraticamente os alunos que
por ignorância e/ou desventura histórico-circunstancial veem na descortesia
uma ação comum e indiferente, semeará entre os jovens a inquietação
intelectual ansiosa pela ciência e pelo refinamento ético, pois deseja-se entre
os sábios, reais produções de igualdade de oportunidade, independentemente
de grupo étnico, classe social, sexo e condição de necessidade especial (se
não há nada que impeça o desempenho da atividade pleiteada), já que a
colheita mais esperada por estes homens e mulheres pós-modernos é de uma
sociedade isenta de demagogia e falsas promessas políticas.
No artigo “Diversidad cultural e educación artística” são enunciadas
premissas que estão imanentes à diversidade e ao processo de ensino artístico
na escola pública. A contemporaneidade indica às instituições que a
multiculturalidade e a multitemporalidade são aspectos que precisam ser
atendidos; trânsitos e fluxos migratórios, inclusive, revelam o teor híbrido com o
qual a escola lida em sua rotina, portanto, a construção da cidadania passa
pela capacidade de reconhecer, respeitar e interagir com o distinto. Em síntese,
observemos esta reflexão que traduz o diálogo cultural:
1. Como convivência entre culturas. Quer dizer, olhando com respeito para o exterior das fronteiras do que consideramos o nosso entorno cultural, reconhecendo a diferença entre "nós" e os "outros", negando a uniformidade como um valor e promovendo o respeito pelos sistemas de valores dos grupos humanos diferentes dos nossos. 2. Como convivência dentro da mesma cultura. Reconhecendo a existência de desigualdades dentro do nosso próprio nicho, rejeitando a marginalização e promovendo a inclusão. (AGUIRRE; JIMÉNEZ, 2009, p.32, tradução nossa).
141
O pluralismo cultural remodela os programas educacionais. Nesta esfera,
a educação artística, presentificada pelo ironista, promoveria a multiplicidade
de perspectivas e estratégias cognitivas; geraria atitudes críticas analisando
épocas, estilos, correntes estéticas, tomando por fundamento a equidade
(idem, p.34). A diversificação cultural que se trabalha em sala de aula permite a
incorporação de formas culturais antes excluídas, desta forma há um
reequilíbrio das forças culturais a despeito de apenas um saber hegemônico.
Podemos compreender que a prática e assimilação da diversidade cultural
objetiva por uma restauração social que nos conduza, verdadeiramente, à uma
educação democrática (p.42).
No tocante às culturas juvenis e os ambientes escolares, nota-se que o
imaginário estético do estudante da educação básica é regado por um
repertório visual configurado por meios eletrônicos, televisivos e gráficos de
difusão massiva. Nunca houve tamanha acessibilidade às imagens, aos
recursos icônicos e sonoros, no entanto, não vêm acompanhados de
variedade, assim, os jovens estão impregnados pela redundância:
característica da cultura de massa. Nesta retroalimentação que produz culturas
visuais e musicais é comum indeterminar qual referencia qual. Há
desconhecimento da parte dos jovens quanto a procedência dos parentescos
temáticos, formais e conceituais, da mesma forma, há uma inclinação pelo
pitoresco, grotesco, humorístico, por sentimentos e sensações de muita
intensidade emotiva, relativas à cultura do espetáculo, excetuando a sutileza ou
delicadeza de outras expressões. A experiência estética juvenil não requer a
beleza em si mesma como determinante; a narrativa densa e a intensidade
emotiva são mais comuns entre os produtos visuais que são arquetípicos para
a cultura juvenil (AGUIRRE, 2009, p. 47).
Com estes parâmetros culturais que a sociedade contemporânea produz
e consome, o ironista intervirá provocando uma interação entre as culturas,
incluindo as feituras da alta cultura e de cunho popular. A ideia é que não se
permita a permanência de uma única voz cultural no ambiente educativo-
142
formativo, pois a reprodução de saberes hegemônicos consolidaria a
impossibilidade de mudanças sociais.
Conforme analisamos, o educador ironista age desconfiando de todos os
discursos pressupostos e ativos no sistema educacional, pois sabe que a
cultura escolar é permeada de jogos léxicos, de poder e de barreiras
construídas para que se diferencie o status social, os códigos de conduta e de
submissão. O ironista buscará por meio da sua metodologia, da sua postura
pedagógica e irônica, ações que integrem e não excluam os já excluídos em
enes sentidos, trabalhará estoicamente procurando dignificar os estudantes,
para que não se sufoquem talentos singulares, criatividades infantis e juvenis.
143
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O educador ironista assim como o seu processo formativo, além das suas
ações pedagógicas e possibilidades de atuação, foram alvos da nossa
pesquisa, que intentou correlacionar os posicionamentos ideológicos e de
pesquisa dos autores apresentados aos trabalhos e estudos de Aguirre. Sem
dúvida, encontramos inúmeros aspectos que se assemelham às qualidades do
educador ironista quando o referenciamos ao lado dos arquétipos docentes
apresentados pelos autores. Pudemos notar que o bom educador está em
constante perspectiva de aprendizagem (formação contínua), é um
pesquisador incansável das suas práticas e das teorias que se ligam às
didáticas e metodologias; possui tenacidade e alteridade, além de ser
conhecedor profundo da sua disciplina e, imperiosamente, almeja a realização
de pontes entre os saberes disciplinares e de vida.
O ironista trabalhará inserido na história brasileira que avançou
introduzindo leis que oportunizaram o ensino-aprendizagem à sua população,
no entanto, não garantiram condições de aprendizagem adequadas e justas.
São necessários investimentos na formação contínua dos profissionais, de
forma que se preparem profunda e conscientemente dos desafios da sua
profissionalização; que haja uma remodelagem das estruturas arcaicas dos
prédios que mais se assemelham à prisões a locais de ensino-aprendizagem; a
escola não é convidativa da forma que se anuncia às classes populares, é um
organismo ideológico que inicia a população ao jogo penoso de punição e
submissão, propagando a ideia de que o esforço, o mérito, lhe serão o
bastante. Contudo, enfatiza-se: a escola ainda é passível do jogo de forças, de
resistência, foco de luta quando há um mínimo de consciência da divisão social
do trabalho, por exemplo; assomado ao contexto escolar, ainda temos o tema
do fracasso escolar que é complexo, multifacetado e multideterminado; o
currículo não responde sozinho as razões do fracasso, que pode estar nos
âmbitos estruturais e conjunturais.
144
É notório que o ambiente escolar está inculcado ideologicamente, há
seleção, competividade, classificação e distinção de classes. O fato, é que a
população da escola pública terá muita dificuldade ao competir com os alunos
da escola particular, pois as condições de aprendizagem não são equânimes,
muito embora há um crescente ingresso de alunos da escola pública nas
universidades públicas. Perante à realidade, quais seriam as reais eficiências
e/ou possibilidades de atuação do ironista, já que ele está envolto às pressões
burocráticas, de gestão, de tempo-espaço, de efeitos da inculcação há muito
presente na comunidade a qual serve? Projeta-se, neste caso, o que lhe
compete, dentro das macroestruturas seculares e conservadoras: atuará em
uma micro dimensão – o que poderia verdadeiramente ser, senão isto?,
liquidamente, se infiltrando com o seu melhor instrumento, a ironia, adotando
uma postura irônica que fustigue com maestria pedagógica, os discursos
hegemônicos, pré-idealizados e pseudo-equitativos.
O ironista (o mestre) deseja ofertar aos seus estudantes (seus discípulos),
a história real da humanidade, sem máscaras ilusórias, com o seu know-how
multicultural e agora sim, sob o ponto de vista da hegemonia, perfidamente. O
ironista é um ser pedagógico em prontidão, à espera dos momentos precisos e
preciosos que conseguiu engendrar, pré-disposto a colocar em cheque,
indubitavelmente, as intenções maquiadas do Estado que, inclusive,
contemporaneamente, tem se servido de um banquete composto de corrupção
e impunidade; o Estado em todas as suas autarquias tem servido muito pouco
aos interesses dos cidadãos, e com brutalidade, perfídia, paliativos, indiferença
e preconceitos, faz o convite à ceia. Contudo, há pessoas com honestos
propósitos, atuantes nas Câmaras e Senado? Para o nosso bem, que haja
ironistas, tal qual nos propusemos a estudar, em suas devidas proporções, nos
corredores legislativos, executivos e judiciários do nosso país.
O ironista, o arte-educador, intentará pedagogicamente intervir no
universo cultural dos alunos da periferia; a marginalização cultural não será
permitida em seus poucos minutos de aula, ele usará todos os ambientes
estruturais e digitais dentro e fora da escola, conforme for possível a si e ao
145
estudante; mesmo com o contínuo declínio da autonomia docente, garimpará a
sua metodologia ironista para atrair os seus discípulos tal qual Sócrates. Aqui
está uma questão que não nos foi possível tratar com maior acuidade: a filiação
pedagógica anunciada no capítulo dois, que em um futuro próximo
mergulharemos intuindo descortinar os elos entre o mestre e o discípulo, ou
seja, como o ironista (mestre) lançaria luz e com maior eficácia sobre o
processo de aprendizagem de seu aluno (discípulo).
Como apreciamos no desenvolvimento da dissertação, somos conduzidos
à compreensão de que o ironista incitará atitudes cooperativas e não
comparativas no processo de aprendizagem. A dialética do contexto escolar
permitirá com que atue empossado da sua confiança para desbravar novas
relações e consciências que podem se graduar política e qualitativamente. O
ironista é uma potente, radical, persuasiva e contumaz voz que brada: não ao
racismo, não à desumanização, não ao estigma! Ele mostrará a importância em
dissociar os conceitos que envolvem as aparências e os valores, pois
herdamos mais de trezentos anos de escravidão, e esta marca, explícita e
vergonhosamente, ainda reverbera em todos os níveis da nossa sociedade.
Consequentemente, vemos as implicações do escravagismo atreladas ao
modus vivendi dos alunos da periferia, o quão é laborioso adquirir o
conhecimento científico que pouco é assimilado diante às condições de ensino-
aprendizagem que o Estado gesta. O educador precisa saber do seu papel e
de seus objetivos ante este cenário truculento, malicioso e por quê não, de uma
arena viciosa? A consciência pode ser um fardo para muitos, mas só é um
alívio para quem realmente sabe.
Buscamos trazer um olhar sobre a perspectiva ironista dentro da
Educação, no entanto, há muito o que discutir acerca da atuação do educador
ironista no sistema econômico neoliberal, que muitas vezes se mascara
grotescamente atrás de mensagens e apelos que procuraram se assemelhar,
que buscam aderência juntos aos anseios populistas, a exemplo do Brasil,
contudo, mais que comprovadamente, não se interessa em provocar mudanças
radicais na sociedade e se alinha aos princípios eurocêntricos. O Brasil ainda
146
não se descobriu, não aprendeu que as suas lições de casa devem estar,
primeiramente, voltadas à valorização e à formação dos seus cidadãos e, ao
mesmo tempo, conectado sobriamente com as relações globais.
Concluindo, entendemos que a Escola desvela um jogo entre ideologia e
conhecimentos, as carências sociais são avistadas em seu interior e papéis
substitutivos são endereçados a ela sem ao menos capacitá-la para absorver
tamanha ordem de serviço; o que já bastaria para colocarmos em
questionamento a sua eficácia em ensinar e produzir ciência. Intentamos
problematizar a seara de trabalho na qual o educador ironista brasileiro está
inserido, e que busca brechas com a sua postura pedagógica no desenho da
escola contemporânea estratificada.
Em seu campo estético, agirá transformando o cotidiano de tônica
alienante, provocando-o às questões extraordinárias e prementes. Podemos
asseverar que o educador ironista propositará uma aula com Skholé: “...a alma
em festa que se abre para o saber”, conforme Lauand (2013, p.4). O nosso
ironista, em certa medida, fulguraria ao lado do perfil rebelde de educador
(SAES, 2011, p. 14), no entanto, expomos ao longo da dissertação a
possibilidade de sua intervenção em nossa atual conjuntura, ao contrário do
perfil psicossocial do rebelde que “... só mesmo numa situação de profunda
crise das instituições sociais e do modelo de sociedade” poderia existir. O
nosso educador ironista, atua em qualquer disposição/modalidade de palco,
modifica os elementos de cena, inclui novos adereços, problematiza o jogo
cênico, faz com que os atores compreendam a sua importância intransferível, a
sua protagonia; por fim, o ironista transbordará e irrigará as mentes com todo o
seu manancial científico-humanista.
147
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152
APÊNDICE 1
Histórico do arte-educador no Brasil
A história do ensino de artes no Brasil possui as suas idiossincrasias que
estão indissociáveis ao processo formativo da República. Neste subitem,
atentaremos aos aspectos correlatos da implantação do ensino artístico e as
ações políticas que mobilizaram as vias para o surgimento da atual disciplina
curricular chamada Artes.
Ana Mae Barbosa (1991) nos elucida sobre a organização da Academia
de Belas-Artes no estado do Rio de Janeiro, identificando inúmeros artistas de
origem francesa que pertenciam ao Instituto de França e à Academia de Belas
Artes que, curiosamente, sendo bonapartistas, aceitaram ao convite de vir ao
Brasil com o intuito também de se esquivar da perseguição antibonapartista.
Joachim Lebreton (1760-1819), foi o líder que agrupou artistas renomados
franceses para implantar e pôr em funcionamento a Escola Real de Ciências,
Artes e Ofícios no ano de 1816 que, após algumas mudanças de nome por
meio de designações, finalmente, posterior a Proclamação da República,
determinou-se o nome: Escola Nacional de Belas-Artes. Este grupo francês foi
chamado, posteriormente, de A Missão Francesa. Dom João VI, o rei, fugindo à
responsabilidade pública de tê-lo oficialmente convidado, não desejava ser
vinculado à condição política destes artistas, como cita Barbosa (1991, p.18).
A vinda da Missão Francesa foi mal digerida por muitos brasileiros e
portugueses, pois, além de Portugal não possuir uma Academia de Arte de alto
nível, como a erigida por Lebreton aqui no Brasil, “a colônia portuguesa”;
assoma-se a este fato a probabilidade factível dos artistas franceses da Missão
Francesa poderem (supostamente) participar do plano de fuga de Bonaparte
para a América! Por trás desta aparente jogada “estratégica” mui jocosa,
concebeu-se uma ojeriza preconceituosa (que, aliás, como dimensioná-la
enquanto reflexo em nossa contemporaneidade?) por parte da oposição
política, entre outros segmentos, a respeito do ensino da arte no Brasil.
153
A condição estética nacional também enfrentou um desconforto com a
vinda da Missão Francesa, pois ela propunha saberes neoclássicos e a nossa
tradição pregava o barroco-rococó, que já assumia propriedades brasileiras de
produção e concepção, portanto, o nosso barroco não era o barroco português.
Os nossos artistas populares eram vistos apenas como artesãos pelas
camadas superiores; estes especiais “artesãos” brasileiros assumiam uma
estética particular, fugindo dos moldes jesuíticos. O resultado foi a debandada
do povo em relação à Arte. Houve apenas interesse da burguesia, porque o
neoclassicismo injetado no Brasil propositava uma forma de ascensão na
sociedade, de entrar em uma classificação social privilegiada (Barbosa, 1991,
p. 20).
A possibilidade de uma construção autêntica, nacional, mestiça da arte foi
fustigada com a implementação forçada do neoclassicismo; a massa se afastou
da arte e aos seus olhos tornou-se algo de fora para dentro e não o contrário: a
arte foi compreendida desde então, como afirma Barbosa (1991, p. 20) “uma
atividade supérflua, um babado, um acessório da cultura”.
A Missão Francesa intencionava o ensino técnico, voltado para ofício
artístico e mecânico. Porém, a literatura era entendida como a alta cultura, e as
artes manuais sofreram “rebaixamento” frente à linguagem tão enraizada pelos
jesuítas em nossa cultura. Outras razões também cooperaram com a rejeição
de atividades manuais e técnicas, como a exploração do trabalho escravo e a
falta de atividades industriais; porém, quando as classes mais abastadas
utilizaram em suas horas vagas a criação em artes manuais, simbolicamente,
passou-se a aceitá-las numa proporção maior. Barbosa (1991, p. 27) em uma
análise cabal aponta que “o preconceito contra a atividade manual teve uma
raiz mais profunda, isto é, o preconceito contra o trabalho, gerado pelo hábito
português de viver de escravos.”
No tocante ao ensino na Academia de Belas-Artes em 1855, o seu
dirigente, Araujo Porto Alegre, pretendeu um elo entre a cultura de elite e a
cultura de massa propondo duas classes de alunos, o artesão e o artista, que
154
frequentavam as mesmas disciplinas básicas, porém, a formação do artista
possuía mais disciplinas e ligadas à teoria em contraponto às aplicações do
desenho e na prática mecânica aos artificies. O desenho figurado, “a
valorização da cópia fiel e a utilização de modelos europeus” (GUERRA,
PICOSQUE, MARTINS, 1998, p. 10) constituíam-se de cópia de estampas,
método oriundo da pedagogia neoclássica.
Com esta Reforma que pretendia instaurar, Araujo questionou-se: “O
novo sistema de educação artística ordenado pela Reforma preencherá os
seus fins ou será necessário um novo método?” (BARBOSA, 1991, p. 29).
Nós, contemporâneos, fazendo jus às reflexões realizadas no século XIX,
não nos caberia perguntar, se no século XXI, a educação artística está sendo
aplicada com eficácia? Se a metodologia aplicada pelo ensino público
responde à altura das exigências e demandas tanto dos alunos quanto dos
professores e seus métodos de ensino? Haveria espaço para repensar novas
estratégias metodológicas e didáticas para uma mediação provocativa e
condizente com os anseios e expectativas dos atores/discentes? Tais
questionamentos serão tratados ao longo desta exposição.
Apenas no fim do século XIX, com o fim tardio da escravidão no país
(1888) e o início da República (1889), modifica-se a perspectiva do uso das
Artes aplicadas à indústria e à técnica. A classe obreira, agora, alvejada com
outros fins, poderia apreender as Artes e contribuir com os avanços
econômicos do país.
O início do século XX é marcado por influências filosóficas, estéticas e
pedagógicas, por exemplo, que embasaram o movimento republicano de 1889.
Estas mesmas influências foram sentidas quanto aos objetivos do ensino da
Arte na escola primária e secundária; ressaltam-se o desenvolvimento das
habilidades técnicas e o domínio da racionalidade (FERRAZ e FUSARI, 1993,
155
p. 30). Estes embriões atingiram o grau máximo com o Modernismo a partir da
Semana de 2214.
O desenho era a linguagem artística que predominava no ensino artístico,
devido ao encontro com a indústria e o processo de cientifização da Arte. As
profissões liberais utilizavam o desenho como um recurso importante, daí a
necessidade do mesmo ser oferecido à escolarização como parte do currículo,
ainda que “o objetivo primordial do seu ensino fosse a preparação do povo para
o trabalho” (BARBOSA, 1991, p. 41).
Segundo Ferraz e Fusari (1993), nas primeiras décadas do século XX, o
ensino da arte estava condicionado à preparação técnica com fins trabalhistas,
de profissionalização; os desenhos nas escolas primárias e secundárias
estavam análogos ao universo do trabalho, caracterizados pela valorização dos
traçados, do contorno e a repetição dos modelos europeus. A cópia e o
desenho geométrico visavam a futura relação entre o estudante e sua vida
profissional, fosse dentro de fábricas ou com serviços artesanais.
Destacavam-se os programas de desenho natural, decorativo e
geométrico objetivando as representações convencionais de imagens.
Tecnicamente, tratavam das proporções, perspectiva, composição, assim como
dos esquemas de luz e sombra. Do ponto de vista metodológico, Ferraz e
Fusari (1993) indicam:
[ ] os professores, seguindo essa “pedagogia tradicional” (que permanece até hoje), encaminhavam os conteúdos através de atividades que seriam fixadas pela repetição e tinham por finalidade exercitar a visão, a mão, a inteligência, a memorização, o gosto e o senso moral. O ensino tradicional está interessado principalmente no produto do trabalho escolar e a relação professor e aluno mostra-se bem mais autoritária. Além disso, os conteúdos são considerados verdades absolutas (p. 30).
14 A Semana de Arte Moderna ocorreu entre os dias 11 a 17 de fevereiro em 1922 no Teatro
Municipal de São Paulo. Representou uma renovação de linguagem, na busca da
experimentação, na liberdade pela ruptura. Novas ideias e conceitos artísticos foram
propositados, de forma que o Modernismo se iniciou a partir deste marco histórico.
156
Como é interessante observar, certos matizes tradicionais estão
presentes no ensino da arte em pleno século XXI, sob o ponto de vista da
metodologia de ensino, intrinsecamente, corresponderá a determinada didática
no ensino-aprendizagem. Provavelmente, encontrar-se-á uma matriz de
mediação obsoleta que resiste aos novos encaminhamentos e demandas da
sociedade pós-moderna; assunto este, que será tratado no decorrer dos
capítulos.
Ainda correlacionada à Pedagogia Tradicional, a partir dos anos 1950,
junto com o Desenho no currículo escolar, são inseridas as matérias de
Música, Canto Orfeônico e Trabalhos Manuais, porém o caráter e a
metodologia do ensino-aprendizagem anterior permanecem como
“transmissão” de conteúdos reprodutivistas, desvinculados da realidade social
e das óbvias diferenças individuais dos alunos. O professor continua a inserir
hábitos de precisão, organização e limpeza nas aprendizagens (FERRAZ E
FUSARI, 1993).
Ferraz e Fusari (2010) descrevem a Pedagogia Tradicional nas aulas de
arte como idealista, pois crê que os indivíduos são “libertados” pelos
conhecimentos adquiridos e que, por esta razão, podem organizar a sociedade
em uma sociedade democrática. Seu ensino é mecanizado e sem relação com
o cotidiano; o professor professa “verdades” como se fossem as únicas.
De outra perspectiva, a “Pedagogia Nova”, conhecida por Movimento da
Escola Nova também, iniciou-se na Europa e Estados Unidos no século XIX,
porém, aqui no Brasil, chegou a partir de 1930 e sua disseminação se deu
entre 1950/1960 com as escolas experimentais. Conforme Ferraz e Fusari
(1993) elucidam:
Sua ênfase é a expressão, como um dado subjetivo e individual em todas as atividades, que passam dos aspectos intelectuais para os afetivos. A preocupação com o método, com o aluno, seus interesses, sua espontaneidade e o processo do trabalho caracterizam uma pedagogia essencialmente experimental, fundamentada na Psicologia e na Biologia. (p. 31).
157
Alguns autores influenciam, com a “Pedagogia Nova”, a atuação dos
arte-educadores brasileiros até hoje, tais como John Dewey, Viktor Lowenfeld e
Herbert Read, este último em especial, com a publicação do seu livro
Educação pela Arte contribuiu com a formação de um movimento artístico
importante, encabeçado por Augusto Rodrigues: a criação da “Escolinha de
Arte”, no Rio de Janeiro em 1948. A aprendizagem artística se dava no fazer,
na possibilidade de entender a criança com um ser criativo, a quem deveria
receber todos os estímulos e oportunidades para a sua expressão artística; o
fato de “aprender fazendo”, capacitaria o potencial das crianças em saber
coletivamente trabalhar em sociedade, em cooperação.
A Pedagogia Nova também é conhecida por movimento Escolanovismo
ou movimento da Escola Nova; Ferraz e Fusari (2010) posicionam-na
opostamente à educação tradicional, pois estaria a um passo de organizar a
sociedade com mais justiça. Os professores com esta tendência, romperiam
com as “cópias” de modelos e de ambientes, valorizando os aspectos
psicológicos do aluno, tais como: estruturação de experiências individuais de
percepção, de integração (psicologia cognitiva); expressão, revelação de
emoções, de insights, de desejos (estética de orientação expressiva, apoiada
na Psicanálise).
Cronologicamente, chegamos ao período conhecido como o da
“Pedagogia Tecnicista”. Iniciou-se na segunda metade do século XX e,
especificamente no Brasil, a partir de 1960/1970. Nesta “Pedagogia”, tanto o
professor quanto o aluno estão numa posição secundária, pois, “o elemento
principal é o sistema técnico de organização da aula e do curso”, segundo
Ferraz e Fusari (1993, p. 32).
A Pedagogia Nova assim como a Pedagogia Tecnicista estão ainda
presentes em sala de aula, como destacam Ferraz e Fusari (1993), pois o
ensino da educação artística reflete o período histórico e, portanto, está
coadunado às transições sócio-políticas, às influências externas, às demandas
históricas.
158
Os professores operavam mecanicamente no sentido de planejar os
planos de aula com objetivos que eram operacionalizados minuciosamente. O
uso irrestrito de recursos tecnológicos e audiovisuais se remetiam à
“modernização” do ensino, ao passo que, o “saber construir” é reduzido nas
aprendizagens apenas aos aspectos técnicos e à utilização de materiais
diversificados como a sucata, por exemplo, e o “saber exprimir-se” com
espontaneidade, caracteriza o descompromisso pedagógico com os saberes
das outras linguagens artísticas.
A falta de base teórica fez com que os professores utilizassem atividades
de livros didáticos que nas décadas de 1970 e 1980, vendiam-se em grandes
quantidades, mesmo que não representassem, necessariamente, qualidade e
aprimoramento dos conceitos artísticos (FERRAZ e FUSARI, 1993, p. 33).
Assim como a falta de condições de trabalho desses profissionais,
formação insuficiente, a insegurança, a falta de tempo para explicitar, discutir e
praticar um planejamento mais sofisticado para o ensino de arte, demonstraram
a fragilidade na qual este educador foi concebido (FERRAZ e FUSARI, 2001, p.
42).
A tendência tecnicista nasce em um momento de apelo, pois a educação
não conseguia preparar os profissionais, tanto os de nível médio quanto de
superior, para atender a expansão tecnológica no mundo. Esta tendência
pretendeu preparar os indivíduos “competentes e produtivos” para o mercado
de trabalho. Toda a lógica organizacional como documentos, planos de curso e
aulas, visa:
[ ] estabelecer mudanças nos comportamentos dos alunos que, ao saírem do curso, devem corresponder aos objetivos preestabelecidos pelo professor, em sintonia com os interesses da sociedade industrial (FERRAZ e FUSARI, 2001, p. 41).
Entre 1961/1964 surge um trabalho progressista, a “Pedagogia
Libertadora”, que promove o diálogo entre o educador-educando, a consciência
crítica dos envolvidos; a sua maior parte está relacionada a pessoas que foram
alfabetizadas já adultas, visando libertá-las da opressão da ignorância e da
159
opressão. “Alunos e professores dialogam em condições de igualdade,
desafiados por situações-problemas que devem compreender e solucionar”,
conforme Ferraz e Fusari (2001, p.44). Os movimentos populares, assim como
a educação não-formal foram base para este trabalho realizado pelo educador
Paulo Freire.
A “Pedagogia Libertadora”, a tradicional, a nova e a tecnicista foram
analisadas e debatidas com o interesse de captar os seus pontos positivos
para que houvesse uma pedagogia mais realista e crítica. Com este propósito
de possibilitar acesso aos saberes artísticos-históricos e à promoção da
autonomia e do protagonismo dos alunos, Saviani (1983), indicará que a
escola, nestes moldes de emancipação:
[...] estará interessada em métodos de ensino eficazes. Tais métodos se situarão para além dos métodos tradicionais e novos, superando por incorporação as contribuições de uns de outros. Portanto, serão métodos que estimularão a atividade e iniciativa dos alunos, sem abrir mão, porém, da iniciativa do professor; favorecerão o diálogo dos alunos entre si e com o professor, mas sem deixar valorizar o diálogo com a cultura acumulada historicamente; levarão em conta o interesse dos alunos, os ritmos de aprendizagem e o desenvolvimento psicológico, mas sem perder de vista a sistematização lógica dos conhecimentos, sua ordenação e gradação para efeitos do processo de transmissão-assimilação dos conteúdos cognitivos. Não se deve pensar, porém, que os métodos acima indicados terão um caráter eclético, isto é, constituirão uma somatória dos métodos tradicionais e novos. Não. Os métodos tradicionais assim como os novos implicam uma autonomização da pedagogia em relação à sociedade. Os métodos que preconizo mantêm continuamente presente a vinculação entre educação e sociedade. Enquanto no primeiro caso professor e alunos são sempre considerados em termos individuais, no segundo caso, professor e alunos são tomados como agentes sociais (SAVIANI, 1983, p. 72-73).
Nesta tendência Realista-Progressista, há a Pedagogia Libertária que, por
sua vez, importa-se com as “experiências de auto-gestão, não-diretividade e
autonomia vivenciada por alunos e seus professores”, segundo Ferraz e Fusari
(2001, p. 45). Acreditavam na independência teórica e metodológica, livres de
amarras sociais.
160
Outra vertente pedagógica se deu nos anos 1980 com a Pedagogia
Sociopolítica, que precisou superar o posicionamento unilateral de que a escola
é apenas reprodutora de desigualdades sociais. Por fim, compreendeu-se que
a educação escolar pública competente precisa ser efetivada como um ato
público, pois a escola é direito de todos; além do entendimento de que a
educação escolar sofre determinantes sociais, históricos, porém, é capaz de
influenciá-los, de intervir na transformação social.
Por fim, a tendência histórico-crítica ou crítico-social dos conteúdos não
era otimista como os “idealistas-liberais”, nem tão pessimista como os “críticos-
reprodutivistas”; portanto, nesta tendência “realista-crítica”, o educador atuará
fornecendo o instrumental necessário para que o aluno exerça uma cidadania
consciente, crítica e participante (FERRAZ e FUSARI, 2001, p. 46).
Em 1971 a Educação Artística foi incluída no currículo escolar pela Lei
5692, com o intuito de melhorar o ensino de Arte na educação escolar e,
naturalmente, de oficializá-la. O movimento da Arte-Educação se dá no final da
década de 1970 em meio a um quadro emergencial drástico da
profissionalização em Artes, pois os professores desinformados estavam sendo
preparados por cursos de curta duração, em detrimento de uma formação
aprofundada, o que acabou por tornar-se um problema já que não poderiam
exercer a sua profissão no ensino fundamental e médio, conforme esclarece
Ferraz e Fusari (2001, p. 20).
A Arte-Educação baseada na Escola Nova e na Educação Através da
Arte (difundida pelo britânico Herbert Read na década de 1940) propõe uma
ação educativa com caracteres de criação ativa centrada nos alunos. O
movimento da Arte-Educação contribuiu para que a presença da Arte na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação fosse efetivada15 (FERRAZ e FUSARI, 2001).
15 A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394, de 20 de dezembro de 1996,
estabelece a obrigatoriedade da arte na educação básica (educação infantil, ensino
fundamental e ensino médio): Cap. II, Art. 26, 2º parágrafo – “O ensino da arte constituirá
componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a
promover o desenvolvimento cultural dos alunos.”
161
Enquanto a Educação Artística mostrava-se apenas interessada quanto à
expressividade individual, com técnicas, e insuficiente no aprofundamento do
conhecimento da arte, a Arte-Educação apresentava a busca de novas
metodologias de ensino e aprendizagem de arte nas escolas (FERRAZ e
FUSARI, 2001).
Ana Mae Barbosa, no início dos anos 1990, desenvolveu e pesquisou em
São Paulo, no Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP) e no sul do
país, pela Fundação Iochpe e Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) uma proposta teórico-metodológica conhecida por “Metodologia
Triangular”, que visa interferir qualitativamente no processo e melhoria do
ensino de arte. Este trabalho pedagógico integra três abordagens do
conhecimento da arte: o “fazer artístico”, a “análise de obras artísticas” e a
“história da arte”.16 A sua metodologia possui grande aderência pelos
profissionais da Arte-Educação, inclusive, é adotada pela Rede Estadual de
Ensino de São Paulo.
O Currículo do Estado de São Paulo propõe um pensamento curricular
estruturado numa cartografia que inclui as aprendizagens em territórios que se
conectam, conjuntamente os conceitos e conteúdos que gerarão processos
educativos (Currículo do Estado de São Paulo, 2010, p. 143). No sentido de
parcerias com instituições culturais, cursos, materiais educativos, a Cenp
(Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas) da SEESP tem ofertado
continuamente ao professor, para que a sua profissionalização seja burilada.
Pelo viés pedagógico, o Currículo do Estado de São Paulo proposita por
meio do arte-educador, o acesso dos alunos aos processos de criação que
envolve uma operação poética, pesquisa da materialidade e procedimentos
que ofereçam forma-conteúdo à composição artística. Nesta mediação cultural
cabe ao professor articular as gamas que se entrelaçam, desenvolvendo
16 O projeto D.B.A.E. (Disciplined Based Art Education), incentivado pela Getty Foundation,
embasa as fundamentações da “Metodologia Triangular”. Este projeto prevê quatro momentos
educativos: ”fazer artístico”, “história da arte”, “estética” e “crítica da arte”.
162
saberes estéticos e culturais, o sentimento de pertinência, e a aproximação dos
alunos com a arte e suas múltiplas linguagens artísticas.
No tocante à metodologia de ensino-aprendizagem dos conteúdos
básicos, direcionados pela Proposta Curricular do Estado de São Paulo de Arte
(2008), e o Currículo do Estado de São Paulo: linguagens, códigos e suas
tecnologias (2010), encontram-se três eixos metodológicos:
Criação/produção em arte - o fazer artístico
Fruição estética - apreciação significativa da arte e do universo a
ela relacionado, leitura, crítica.
Reflexão - a arte como produto da história e da multiplicidade de
culturas.
A junção filosófica da proposta triangular com a concepção dos territórios
de Arte e Cultura, oportunizam mergulhos em conceitos, conteúdos e
experiências estéticas nas linguagens da Arte (Currículo do Estado de São
Paulo, 2010, p. 153).
A aprendizagem ocorre com o subsídio do Caderno do Professor e o
Caderno do Aluno, de forma a contemplar os processos educativos em Arte da
5ª série/6ºano do Ensino Fundamental à 3ª série/3º ano do Ensino Médio. Em
cada linguagem artística (teatro, música, dança e artes visuais) os conteúdos e
habilidades vão se entrecruzando por bimestre. O professor pode oferecer
destaque à linguagem artística da sua formação, procurando atender durante o
ano letivo as outras linguagens.
Distingue-se a Proposta Triangular de Ana Mae Barbosa acerca da
capacidade metodológica, da inteireza da proposição. Sua contribuição ao
ensino-aprendizagem é de suma relevância no cenário nacional e internacional.
Ao mesmo tempo, quando analisamos de um ponto de vista socioeconômico a
condição educacional contemporânea, sabemos dos fragmentos, das
incongruências, dos fracassos que a escola enfrenta, e não basta uma
163
metodologia certeira para que se dissolvam os problemas inerentes ao
aparelho ideológico representado pela escola contemporânea.
164
APÊNDICE 2
Principais produções de Imanol Aguirre
Aguirre representou como pesquisador responsável muitos projetos que
se delimitam na área de sua investigação, destacando-se “O muro: um projeto
educativo” e “Do we live in Public? Debate aberto sobre como vivemos as
redes sociais” pela Fundação Centro de Arte Contemporânea de Huarte no ano
de 2011. Dentro destes limites temáticos encontram-se “Jovens produtores de
cultura visual: competências e saberes artísticos na educação secundária”
(2012) movido pelo Ministério de Ciência e Inovação; “Relatório sobre a
situação e as práticas de interesse da educação artística na Iberoamérica”
(2010) pela Organização dos Estados Iberoamericanos; “Isto não é uma
exposição” (2009) pelo Centro Huarte de Arte Contemporânea e Fundação
Ordoñez; relatório “O valor do trabalho educativo com as artes para o
desenvolvimento humano: a criatividade e a formação em valores” (2008) pelo
Grupo Xabide S.L.; “Desenho e validação de um documento conceitual, técnico
e metodológico, que contenha as orientações pedagógicas em Educação
Artística para a Educação básica e média” (2008) pelo Ministério da Educação
Nacional da Colômbia; “A formação em artes visuais nas instituições sociais e
culturais da cidade de Montevideo” (2006) pelo Ministério de Assuntos
Exteriores e Cooperação; “Estética das identidades modernas. Narrativa,
poética e retórica do eu” (1998) pela Universidade do País Vasco e “Metáforas
e espaços qualitativos da imaginação cultural vasca: o caso nacionalista”
(1992) pela Universidade do País Vasco.
Contribuiu com capítulos em dezenas de livros em seu próprio país, assim
como no estrangeiro. Entre as obras brasileiras, destacam-se “Cultura das
Imagens: desafios para a arte e para a educação” (2012) com o capítulo
“Experiência estética e transmissão dos saberes associados ao graffiti juvenil”;
“Educação da Cultura Visual: conceitos e contextos” (2011) com o capítulo
“Cultura visual, política da estética e educação emancipadora”; “Educação da
Cultura Visual: narrativas de ensino e pesquisa” com o texto “Imaginando um
futuro para a educação artística” (2009).
165
Na Europa e em Montevidéu, Aguirre, participou dos livros “Infância,
mercado e educação artística” (2011) com o capítulo “O mercado midiático e a
configuração dos critérios e experiências estéticas dos adolescentes”;
“Investigar com os jovens: questões temáticas, éticas, metodológicas e
educaticas” (2011) com o texto “Efeitos da reflexão em uma prova piloto sobre
uma investigação com jovens”; “Educação artística, cultura e cidadania” (2009)
com os capítulos “Diversidade cultural e educação artística” e “Culturas juvenis
e ambientes escolares”; “O acesso ao patrimônio: desafios e debates” (2008)
com o texto “Novas ideias de arte e cultura para novas perspectivas na difusão
do patrimônio”; “A educação artística pré-universitária” (2005) com o capítulo
“Educar desde e para a experiência estética: a educação artística e a formação
dos sujeitos” em Montevidéu; “Os valores da arte de ensinar” (2002) com o
texto “Estimar a experiência para apalpar o futuro da educação artística” e
“Educação artística e arte infantil” (2000) com o capítulo “Estereótipo,
integração cultural e criatividade”.
Por meio das publicações dos seus artigos percebe-se uma coerente e
contínua pesquisa em sua área de concentração. Destacamos “The role of the
learner in the construction of meaning at Tate Britain17” e “Concepts of art and
interpretation with educators from Tate Britain18” ambos de 2013; “Por uma
nova narrativa sobre os usos da arte na escola infantil” (2012); “Um aparato
metodológico para analisar as ideias de arte e interpretação que subjazem em
discursos e práticas educativas de museus de arte” (2010); “As artes na trama
da cultura: fundamentos para renovar a educação artística” (2008); “Beyond the
understanding of visual culture: a pragmatist approach to Aesthetic Education19”
(2004); “Estamos dando a formação inicial que precisam os estudantes de
hoje? O estágio do professor como campo para o desenvolvimento de projetos
de trabalho na educação das artes visuais” (2003); “A escola vasca de
escultura e a construção do sujeito vasco: a arte na configuração das
17 “O papel do estudante na construção de significado na Tate Britain” (tradução nossa).
18 “Conceitos de arte e interpretação com educadores da Tate Britain” (tradução nossa).
19 “Além do entendimento da cultura visual: uma abordagem pragmatista para a Educação
Estética” (tradução nossa).