John Le Carré - Um Espião Perfeito (1) (1)
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Transcript of John Le Carré - Um Espião Perfeito (1) (1)
UM ESPIÃO PERFEITO John Le Carré
Título original: A Perfect Spy Tradução: Ana Luísa Faria e Miguel Serras Pereira © 1986, Authors Workshop
©1986, Ana Luísa Faria e Miguel Serras Pereira e Publicações Dom Quixote
© 2003 MEDIASAT / Promoway Portugal Comércio de
Produtos Multimedia, Lda. para esta edição.
JOHN
LE CARRÉ
Um Espião Perfeito
Impressão Printer, Industria Gráfica, S.A. Barcelona
Data de impressão
Dezembro de 2003
ISBN 84-9789-217-8 Depósito Legal B. 51 289-2003
PÚBLICO COMUNICAÇÃO SOCIAL SA
Rua João de Barros 265
4150-414 Porto
Tradução de Ana Luísa Faria e Miguel Serras Pereira
Este livro é vendido exclusivamente com o jornal PÚBLICO. Todos os direitos reservados.
Colecção Mil FOLHAS
Para R., meu companheiro de jornada, que me emprestou o cão
e contou alguns episódios da sua vida.
Um homem com duas mulheres perde a alma. Mas um homem com duas casas perde a
cabeça.
Provérbio
Às primeiras horas de uma manhã ventosa de Outono, numa pequena cidade costeira do
Devon que parecia abandonada pelos seus habitantes, Magnus Pym saiu de um velho
táxi rural e, depois de pagar ao motorista e esperar que ele se fosse embora, atravessou o
largo da Igreja. Dirigia-se para um conjunto de pensões vitorianas mal iluminadas, que tinham nomes como «Bela Vista», «O Comodoro» ou «Eureka». Era um homem bem
constituído, mas solene: via-se que devia representar alguma coisa de importante.
Andava agilmente, com o corpo inclinado para a frente, na melhor tradição da classe
administrativa anglo-saxonica. Nessa mesma atitude, ingleses estáticos ou em
movimento hastearam bandeiras em colónias distantes, descobriram as nascentes dos grandes rios ou permaneceram firmes nos convés de navios que se afundavam. Já há
dezasseis horas que Magnus Pym estava em viagem, mas não trazia sobretudo nem
chapéu. Levava numa das mãos uma volumosa pasta preta de executivo e na outra um
saco verde dos armazéns Harrods. Um vento forte, vindo do mar, açoitava o seu fato
citadino, uma chuva salgada picava-lhe os olhos, bolhas de espuma espalhavam--se pelo caminho. Pym ignorou tudo isto. Chegado à porta de uma casa onde se lia, num letreiro,
«Não há quartos vagos», tocou à campainha e esperou que acendessem a luz exterior e
desprendessem as correntes de segurança do lado de dentro. Enquanto esperava, o
relógio da igreja começou a bater as cinco. Como se respondesse ao seu chamamento,
Pym voltou-se e olhou para o largo de onde viera. Olhou a torre desgraciosa da igreja baptista que se recortava num fundo de nuvens movediças, as araucárias do Chile
retorcidas, orgulho dos jardins ornamentais, o coreto vazio, a paragem de autocarro
abrigada, as zonas escuras que eram as ruas laterais, as portas uma a uma.
Ah, é o senhor, Mr. Canterbury protestou a voz agreste de
uma senhora de idade, ao mesmo tempo que a porta se abria. Que mau que o senhor é. Aposto que apanhou outra vez o comboio da noite. Mas
porque é que não telefonou?
Olá, miss Dubber disse Pym. Como está a senhora?
Não se preocupe com a minha saúde, Mr. Canterbury. Entre
depressa, senão morre de frio. Mas a feia praça varrida pelo vento parecia ter enfeitiçado Pym.
Julguei que a vivenda Sea View estava à venda, miss D. ob
servou ele enquanto ela tentava arrastá-lo para dentro de casa , a se
nhora disse-me que Mr. Cook se tinha mudado quando a mulher mor
reu, e que não queria pôr lá mais os pés. E não quer. Ficou alérgico à casa. Entre imediatamente, Mr.
Canterbury, e limpe os pés, que eu já lhe vou fazer chá.
Mas então o que é aquela luz no quarto dele no primeiro an
dar? perguntou Pym, permitindo que ela o puxasse pelas escadas
acima. Como muitos tiranos, miss Dubber era baixinha. Era também velha, empoada e
assimétrica, com uma corcunda que lhe deformava o roupão e fazia com que tudo à sua
volta parecesse igualmente assimétrico.
Mr. Cook alugou o andar de cima a Célia Venn, que o usa para
pintar. Essas perguntas são mesmo suas e fechou uma das correntes da porta. Desaparece durante três meses, regressa a meio da noite e preo
cupa-se com uma luz numa janela qualquer fechou outra corrente.
O senhor não vai mudar nunca. Nem sei para que é que me ralo.
Mas quem é essa Célia Venn?
É filha do doutor Venn, seu tonto. Ela quer ver o mar e pintá-lo e, alterando abruptamente o tom de voz: Oh Mr. Canterbury,
está maluco? Tire já isso.
Presa a última das correntes, miss Dubber endireitara-se o melhor que pudera e estava a
preparar-se para um abraço relutante. Mas em vez do habitual ar carrancudo que não
convencia ninguém, o seu ros-tozinho exibia uma expressão de pânico. Que horrível gravata preta, Mr. Canterbury. Não quero a
morte nesta casa, muito menos trazida pelo senhor. Por quem é que
pôs luto?
Pym era um homem bonito, com um ar infantil, mas distinto. Com cinquenta e poucos
anos estava em plena forma, activo e pressuroso,
num lugar que não conhecia nem uma nem outra dessas qualidades. Mas o que ele tinha
de melhor para miss Dubber era o sorriso lindo, quente e verdadeiro que a fazia sentir-se bem.
Foi só um antigo colega de Whitehall, miss D. Ninguém de es
pecial. Ninguém de próximo.
Na minha idade toda a gente é próxima, Mr. Canterbury. Como
é que ele se chamava? Eu mal conhecia o sujeito disse Pym enfaticamente, tirando
a gravata e enfiando-a no bolso. E é claro que não lhe vou dizer o
nome dele para depois a senhora o ir procurar na necrologia; portanto,
acabou-se. Ao dizer isto olhou para o livro de registo dos hóspedes
que estava aberto em cima da mesa de entrada, por baixo da luz ala ranjada que ele próprio instalara no tecto durante a sua última visita.
Tem tido hóspedes de passagem, miss D.? perguntou ele en
quanto examinava a lista. Casais em fuga, princesas misteriosas? O
que é que aconteceu aos dois rapazinhos apaixonados que aqui estive
ram na Páscoa? Não eram rapazinhos apaixonados nenhuns corrigiu severa
mente miss Dubber já a caminho da cozinha, a coxear. - Tinham
quartos separados e à noite ficavam a ver o futebol na televisão. O que
foi que disse, Mr. Canterbury?
Mas Pym não dissera nada. Às vezes os seus momentos de comunicação eram como telefonemas interrompidos por uma espécie de censura interior antes de chegarem a
acontecer. Virou uma página, depois outra.
Acho que não quero mais hóspedes de passagem disse miss
Dubber da cozinha, acendendo o fogão. Às vezes toca a campainha
e eu fico aqui sentada com o Toby e digo-lhe: «Vai tu abrir, Toby». Cla ro que ele não vai. Um gato malhado não pode abrir portas. E conti
nuamos aqui sentados. Ficamos sentados e esperamos até que os passos
se afastem. E, olhando-o com ar malicioso: O nosso Mr. Can
terbury não está nada com mau aspecto, pois não, Toby? perguntou
ela jocosamente ao gato. Estamos muito contentes hoje. Muito res plandecentes. Com este casaco, o nosso Mr. Canterbury parece dez anos
mais novo. Como o gato não lhe respondeu dirigiu-se ao canário.
Mas ele não nos vai dizer nada, pois não, Dickie? Vamos ser os últimos
a saber. Tzuktzuk? Tzuktzuk?
John e Sylvia Illegible de Wimbledon disse Pym, ainda a examinar o registo dos hóspedes. - *
John fabrica computadores, Sylvia programa-os e vão-se embora os dois amanhã disse
ela, amuada. É que miss Dubber detestava ter de confessar que havia outras pessoas no
seu mundo para além do adorado Mr. Canterbury. Ah, mas o que é que foi fazer desta vez? exclamou zangada. Não quero. Devolva-o.
Mas miss Dubber não estava zangada, queria o presente que ele lhe estava a dar e Pym
não ia devolvê-lo: era um xaile espesso de caxemira branca e dourada, ainda na sua
caixa dos armazéns Harrods e embrulhado no papel de seda Harrods que ela parecia
apreciar ainda mais do que o conteúdo. Tirou o xaile para fora, alisou o papel e dobrou-o pelos vincos, tornou a pô-lo na caixa, e depois arrumou a caixa na prateleira do
armário onde guardava os seus maiores tesouros. Só então deixou que Pym a envolvesse
no xaile e a abraçasse, enquanto o repreendia pela sua extravagância.
Pym bebeu o chá de miss Dubber, Pym apaziguou-a, Pym provou os biscoitos que ela
tinha feito e elogiou-os copiosamente apesar de miss Dubber afirmar que estavam queimados. Pym prometeu consertar o lava-loiça e desentupir o cano e, já agora, dar
uma olhadela à cisterna do primeiro andar. Pym estava activo e extremamente atento e a
satisfação que miss Dubber tão bem adivinhara não o tinha abandonado. Pôs o gato no
colo e deu-lhe palmadinhas, coisa que nunca antes fizera e que Toby não pareceu
apreciar especialmente. Ouviu as últimas notícias sobre a velha tia Al, quando normalmente lhe bastava ouvir esse nome para ir a correr para a cama. Fez, como
sempre, perguntas sobre a vida da terra desde a sua última visita, e escutou com ar
aprovador a lista de queixas de miss Dubber. Muitas vezes, enquanto lhe dizia que sim
com a cabeça no meio das respostas dela, sorria para consigo mesmo sem motivo
aparente ou então ficava sonolento e bocejava com a mão à frente da boca. Depois, repentinamente, pousou a chávena e ergueu-se como se tivesse de ir apanhar outro
comboio.
Vou cá ficar bastante tempo, se a senhora não se importar, miss
D. Tenho muito que escrever.
O senhor diz sempre isso. Da última vez ia cá ficar a viver para sempre. E depois acorda de manhã cedo e regressa a Whitehall, sem se
quer tomar o pequeno-almoço.
Talvez duas semanas. Pedi uma licença para poder trabalhar em paz. miss Dubber
fingiu-se aterrorizada.
O que não irá acontecer ao país? Como podemos eu e o Toby es tar seguros sem um Mr. Canterbury ao leme para nos guiar?
Então quais são os planos de miss D.? perguntou ele, encan
tador, ao mesmo tempo que agarrava a pasta que, pelo esforço necessá rio para a levantar, devia pesar como chumbo.
Planos? repetiu miss Dubber, com um bonito sorriso de per
plexidade. Na minha idade já não faço planos, Mr. Canterbury. Dei
xo que seja Deus a fazê-los. Ele é melhor a fazer planos do que eu, não
é, Toby? Mais digno de confiança. Então e o cruzeiro de que está sempre a falar? Já é tempo de a se
nhora se divertir um pouco, miss D.
Não seja tonto. Isso foi há anos. Perdi a vontade.
Ainda estou disposto a pagar.
Bem sei, Deus o abençoe! Se quiser, faço eu os telefonemas. Vamos juntos a uma agência
de viagens. Até já procurei e tudo: o Orient Explorer parte de Sou-
thampton daqui a uma semana. Tem uma vaga: eu informei-me.
Está a tentar ver-se livre de mim, Mr. Canterbury?
Pym riu, mas não imediatamente. Nem eu e Deus juntos conseguiríamos desalojar a senhora, miss
D. disse ele.
Miss Dubber ficou na entrada a vê-lo subir as escadas estreitas, a admirar a elasticidade
juvenil do seu passo, que se mantinha apesar do peso da pasta. Ele vai a uma reunião
muito importante. Uma reunião de peso. Escutou os passos ligeiros pelo corredor fora até ao quarto n° 8 com vista para o largo nunca ela tivera um quarto alugado durante
tanto tempo à mesma pessoa em toda a sua longa vida. A perda que ele sofreu não o
afectou, concluiu ela, aliviada, ao ouvi-lo abrir a porta e fechá-la devagar atrás de si.
Um antigo colega do ministério, ninguém de próximo. Miss Dubber não queria que
nada o perturbasse. Pym tinha de continuar a ser o cavalheiro perfeito que há anos lhe batera à porta, à procura daquilo a que chamava um santuário sem telefone (se bem que
ela tivesse um telefone em perfeito estado na cozinha). E desde então tinha-lhe pago o
aluguer adiantado de seis em seis meses, em dinheiro, sem recibos. E tinha-lhe
construído o murozinho de pedra junto ao caminho do jardim, numa única tarde: para
lhe fazer a surpresa no dia de anos até tinha tratado mal o pedreiro e o ladrilhador. E tinha, com as suas próprias mãos, tornado a pôr as lousas no telhado depois da
tempestade de Março. E tinha-lhe mandado flores e frutas e chocolates e recordações de
lugares incríveis do estrangeiro, sem nunca explicar convenientemente o que lá estava
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a fazer. E tinha-a ajudado com os pequenos-almoços quando havia muitos hóspedes de
passagem, e tinha-a ouvido falar do sobrinho que arranjava sempre esquemas para
ganhar dinheiro que nunca davam nada: o último era abrir uma sala de bingo no Exeter,
mas primeiro precisava de capital para o cheque sem cobertura. E não recebia correio
nem visitas e não tocava instrumentos a não ser a rádio em línguas estrangeiras, e nunca se servia do telefone a não ser para fazer encomendas aos fornecedores locais. E nunca
lhe dissera nada sobre si próprio a não ser que vivia em Londres e trabalhava em
Whitehall, mas viajava muito, e que o seu nome era Canterbury como o da cidade. '
Filhos, mulheres, pais, amantes a ninguém chamava seu, senão à sua miss D., a única.
Até já pode ter recebido o título de cavaleiro e nós sem sabermos disse ela em voz alta ao Toby, levando o xaile ao nariz e aspirando o cheiro da lã. Podia ser primeiro-ministro
e só íamos saber pela tele-
visão.
Indistintamente, miss Dubber começou a ouvir por sobre o ruído do vento uma voz que
cantava. Uma voz masculina, desafinada mas agradável. Primeiro pareceu-lhe que era alguém a cantar o «Greenslee-ves» no jardim, depois que esse alguém estava na praça e
cantava o «Jerusalém», e quase chegou à janela para o mandar calar. Mas então
percebeu que era Mr. Canterbury no seu quarto, e ficou de tal maneira espantada que
desistiu de o repreender e deixou-se estar a ouvir. Ele parou de cantar sem que ela
dissesse nada. miss Dubber sorriu. Agora é ele que está à escuta para ver o que eu faço. É mesmo típico de Mr. Canterbury.
Em Viena, três horas antes, Mary Pym, mulher de Magnus, estava à janela do seu quarto
a olhar um mundo que, contrariamente ao mundo escolhido pelo marido, era uma
maravilha de serenidade. Não fechara a janela nem acendera a luz. Estava vestida para
receber, como diria a sua mãe, e já há uma hora que ela e o seu fato azul não saíam de ao pé da janela, à espera do carro, à espera do toque da campainha, à espera da maneira
especial que o marido tinha de fazer girar a chave na fechadura. E agora havia na sua
cabeça uma corrida desleal entre Magnus e Jack Brotherhood: qual dos dois ia receber
primeiro? Uma neve precoce de Outono cobria ainda o alto da colina, e a lua cheia
passeava-se acima dela enchendo o quarto de listas brancas e
pretas. Nas vivendas elegantes da avenida, as últimas fogueiras das recepções
diplomáticas iam-se apagando uma a uma. Frau Meierhof, mulher do ministro, tinha
dado um baile com um conjunto de quatro músicos, para o qual convidara todos os
participantes nas conversações sobre a redução dos armamentos. Mary devia ter estado presente. Os Van Leymans tinham oferecido um jantar volante aos velhos amigos de
Praga, de ambos os sexos, semplacement.2 Ela devia ter ido, deviam ter ido os dois e ter
ficado até tarde, arrastando os retardatários para um último whisky com soda vodka,
para Magnus. Deviam ter ligado o gira-discos e ficado a dançar até agora ou até mais
tarde os descontraídos Pyms diplomáticos, tão populares , exactamente como tinham feito em Washington, onde a sua maneira de receber ficara famosa, na altura em que
Magnus era directo r-adj unto da delegação e tudo corria pelo melhor. E Mary teria
preparado ovos com bacon, enquanto Magnus gracejava e se apropriava das ideias dos
outros e descobria novos amigos, tudo coisas que ele tão bem e incansavelmente sabia
fazer. Porque era a estação alta de Viena, durante a qual as pessoas, que todo o ano se tinham fechado na sua concha, falavam do Natal e da Ópera com excitação, e largavam
por toda a parte indiscrições como se fossem roupas velhas.
Mas tudo isso acontecera há mil anos. Antes de quarta-feira passada. E agora a única
coisa que interessava era que Magnus subisse a avenida no Austin Metro que deixara no
aeroporto e chegasse à porta da rua antes de Jack Brotherhood. O telefone estava a tocar. Junto à cama. Do lado dele. Não corras, idiota, olha que cais.
Não vás devagar de mais senão pára de tocar. Magnus, meu amor, oh meu Deus, faz
com que sejas tu, erraste uma vez, mas estás melhor, e eu nunca te vou perguntar sequer
o que aconteceu, nunca mais vou duvidar de ti. Pegou no auscultador e, por uma razão
que não conseguiu formular, atirou-se para cima do edredão, pumba, agarrando o bloco e a caneta com a mão livre para o caso de ser necessário anotar moradas, horas,
instruções. Não disse abruptamente Magnus? porque iria revelar que estava preocupada
com ele. Não disse Olá porque não tinha a certeza de conseguir disfarçar o nervosismo
da sua voz. Disse o número de telefone em alemão para Magnus saber que era ela,
perceber que ela estava bem e despreocupada, e de modo nenhum zangada com ele, que tudo estava óptimo e ele podia voltar. Nem cenas nem problemas, estou aqui à tua
espera como sempre.
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Sou eu disse uma voz masculina. Mas não era «eu». Era Jack Brotherhood.
Esse emplastro não disse nada, não? perguntou Brotherhood
no inglês rico e confiante da classe militar.
Ninguém disse nada. Onde estás?
Daqui a meia hora estou aí, ou até antes, se conseguir. Espera por mim, está bem?
A lareira, pensou, de repente. Meu Deus, a lareira. Desceu à pressa, já incapaz de
distinguir entre pequenos e grandes desastres. Tinha dispensado a criada essa noite e
esquecera-se de espevitar o lume na sala de estar. De certeza que já estava apagado.
Mas não estava. Ardia alegremente, e precisou apenas de mais uma acha para tornar menos fúnebres as primeiras horas da manhã. Depois de a acender, vagueou pela sala,
arrumando as coisas as flores, os cinzeiros, a bandeja do whisky de Jack , tornando
perfeito tudo o que havia fora de si, porque dentro de si nada estava nem de perto nem
de longe perfeito. Acendeu um cigarro e soprou em beijos irritados o fumo que não
chegava a inalar. Depois serviu-se de um whisky bem cheio fora principalmente para isso que descera. Afinal de contas, se ainda estivéssemos a dançar, já teria bebido
vários.
A nacionalidade inglesa de Mary, tal como a de Pym, era uma característica evidente.
Era loura, persistente e decidida. O seu único tique, herdado da mãe, era a inclinação
ligeiramente cómica que dava ao corpo quando se dirigia aos outros, especialmente aos estrangeiros. A vida de Mary era um arquivo de belas mortes. O avô morrera em Pass-
chendaele; o seu único irmão morrera mais recentemente em Belfast, e durante um mês
ou mais Mary pensara que a bomba que tinha destruído o jipe de Sam tinha também
matado a alma dela, mas afinal não foi Mary, e sim o pai quem morreu de desgosto.
Todos os homens da família tinham sido soldados. No conjunto, deixaram-lhe uma herança decente, uma alma ferozmente patriótica e uma pequena mansão no Dorset.
Mary era ambiciosa e inteligente, teria sido capaz de sonhos, desejos e grandes
projectos. Mas as regras da sua vida já tinham sido definidas antes dela nascer, e foram-
se entrincheirando cada vez mais a cada uma das mortes: na família de Mary, os homens
guerreavam enquanto as mulheres socorriam, carpiam e continuavam a viver. A sua fé, os seus jantares, a sua vida com Pym, tudo se tinha guiado por este sólido princípio.
Até Julho passado. Até às nossas férias em Lesbos. Magnus, volta
para casa. Desculpa eu ter feito uma cena no aeroporto quando tu não apareceste.
Desculpa ter berrado ao funcionário da British Airways com a voz que tu chamas a minha «voz de três hectares» e desculpa ter mostrado a toda a gente o meu passaporte
diplomático. E desculpa oh, desculpa eu ter telefonado ao Jack a perguntar «onde raio
está o meu marido?» Por favor volta para casa e diz-me o que hei-de fazer. Nada mais
interessa. Só estares aqui. Agora.
Deu por si de pé em frente à porta dupla da sala de jantar; empurrou-a, acendeu os candelabros e, com o copo de whisky na mão, inspeccionou a longa mesa vazia que
brilhava como um lago. Mogno. Reprodução de uma peça do século XVIII. Categoria
de conselheiro, estilo insípido. Catorze lugares à vontade, dezasseis se se puserem duas
cadeiras em cada uma das extremidades arredondadas. Bolas para aquela marca de
queimadura, já tentei tudo. Tenta lembrar-te, disse para consigo mesma. Obriga o pensamento a recuar. Esclarece a história toda na tua cabecinha estúpida antes de o Jack
Brotherhood bater à porta. Sai para fora de ti e olha lá para dentro./i. É uma noite como
a de hoje, viva e agitada. É quarta-feira e é a nossa noite de receber. E a lua está como
hoje, só com um bocadinho a menos num dos lados. No quarto, aquela tola da Mary
Pym que conseguiu um «nível A»3 e nunca chegou a ir para a universidade, está de pé, com os pés muito afastados, a pôr ao pescoço as pérolas da família, enquanto o brilhante
Magnus, seu marido, um Primeiro em Oxford, já vestido para o jantar, lhe beija a nuca e
faz o seu número de «gigolô dos Balcãs» para ela ficar bem disposta para a festa.
Magnus, esse, está sempre na disposição em que precisa de estar.
Por amor de Deus explode Mary, mais abruptamente do que queria. Deixa-te de parvoíces e prende-me o raio do broche.
Às vezes, nota-se pela minha linguagem que sou de uma família de militares.
E Magnus faz o que lhe é pedido. Magnus faz sempre o que lhe é pedido. Magnus
repara, arranja e transporta melhor do que qualquer mordomo. E depois de fazer o que
eu lhe tinha pedido põe-me as mãos nos seios e murmura ardentemente junto ao meu pescoço nu:
Por favor, minha querida, não temos tempo para momento di
vino perfeito? Não? Sim?
Mas, como de costume, Mary está nervosa de mais até para sorrir e manda-o descer para se certificar de que Hérr Wenzel, o criado contratado, foi buscar o gelo à peixaria
Weber. É Magnus vai. Magnus vai sem-
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pre. Mesmo nos momentos em que desfechar um golpe violento nas costelas de Mary seria a atitude mais sensata, Magnus vai.
Interrompendo-se, Mary ergueu a cabeça e pôs-se à escuta. O motor de um carro. Com
esta neve, os carros que aparecem são como más recordações. Mas, ao contrário de uma
má recordação, o carro passou.
É hora de jantar, a melhor hora do dia para os diplomatas, estamos tão bem como em Georgetown no tempo em que Magnus ainda era um director-adjunto da delegação com
possibilidades de promoção, com o posto de director de Serviço perfeitamente ao seu
alcance, e tudo se compôs entre Magnus e Mary, tudo excepto uma nuvem sombria que
paira dia e noite sobre o coração de Mary, mesmo quando dela se esquece: essa nuvem
chama-se Lesbos, uma ilha grega do Mar Egeu envolta em recordações horríveis. Mary Pym, esposa de Magnus, conselheiro para Certos Negócios Pouco Recomendáveis na
embaixada britânica em Viena (e funcionando na realidade como director da delegação
nessa cidade, como sabem todas as pessoas pouco recomendáveis), está orgulhosamente
sentada em frente do marido, que vê por entre os seus candelabros de prata, enquanto os
criados servem a carne de veado estufada (receita da mãe de Mary) a doze membros do serviço de informações austríaco, todos extraordinariamente distintos.
E o senhor também tem uma filha lembra Mary com segurança a um certo
Oberregierungsrat4 Dinkel do Ministério da Defesa austríaco, no seu alemão impecável.
Chama-se Ursula, não é? Da última vez que tive notícias dela estava a estudar piano no
Conservatório. Fale-me dela. E, para a criada que passa, diz em voz baixa: Frau Wenzel: Mr. Lederer, dois lugares mais à frente, não tem molho de tomate. Trate disso.
Que noite agradável, pensara Mary, enquanto ouvia o Oberregie-rungsratdesfiar o
rosário das desgraças da família. Ela esforçava-se por conseguir noites assim sempre se
esforçara, ao longo de toda a sua vida de casada, em Praga e em Washington, quando
estavam em ascensão, e agora aqui, num compasso de espera. Estava feliz, estava im-pante, era como se a nuvem sombria de Lesbos tivesse desaparecido. O Tom estava a ter
bons resultados no colégio interno e em breve viria a casa passar as férias do Natal, o
Magnus alugara um chalet em Lech para irem fazer ski, os Lederers tinham dito que
iriam com eles. O Magnus andava tão cheio de ideias agradáveis, tão atencioso para
com ela apesar de ter o pai doente. E antes de Lech, levá-la-ia a Salz-burgo para o
Parsifal e, se ela insistisse, acompanhá-la-ia ao baile da Ópera, porque, como se
costumava dizer na família de Mary, uma rapariga gosta sempre de dar um pezinho de
dança. E com um pouco de sorte, os Lederers também os acompanhariam até Salzburgo
as crianças podiam passar a noite juntas com a mesma baby-sitter e de certa maneira nestes últimos tempos com Magnus, era reconfortante ter pessoas de fora à sua volta.
Encontrando o olhar de Pym por entre as velas, sorriu-lhe no momento exacto em que
ele desviava os olhos para se dirigir a um surdo-mudo à sua esquerda. O que o sorriso
dizia era: desculpa ter sido tão susceptível há bocado. Já esqueci tudo, respondia ele. E
quando se forem todos embora faremos amor, ficaremos sóbrios e faremos amor, e tudo será perfeito.
Foi então que Mary ouviu tocar o telefone. Exactamente nesse instante. Enquanto estava
a transmitir o seu amor a Magnus em pensamento e a sentir-se extraordinariamente feliz
com isso. Ouviu-o tocar duas, três vezes, começou a ficar irritada, e depois, para seu
alívio, ouviu Herr Wenzel atender. Herr Pym telefona-lhe mais tarde, a menos que seja urgente ensaiou ela mentalmente. Herr Pym não deve ser incomodado a não ser que seja
indispensável. Herr Pym está mais do que ocupado a contar uma anedota no seu alemão
perfeito que tanto arrelia a embaixada e tanto surpreende os austríacos. Herr Pym até
consegue, quando instado, reproduzir o sotaque austríaco, ou, mais divertido ainda, o
suíço, que adquiriu quando lá esteve no colégio. HerrVym consegue alinhar uma série de garrafas e, percutindo-as com uma faca, fazê-las soar como os sinos dos velhos
comboios suíços, enquanto anuncia os nomes das estações entre Interlaken e o
Jungftaujoch com a entoação dos chefes de estação locais, e o público desfaz -se em
lágrimas de alegria nostálgica.
Mary ergueu os olhos e contemplou a outra extremidade da mesa vazia. E Magnus o que estava a fazer nesse momento, para além de namorar com a Mary?
Estava envolvido em grandes manobras, eis a resposta. Ao seu lado estava sentada a
terrível Frau Oberregierungsrat Dinkel, uma mulher tão feia e malcriada (mesmo pelos
padrões das mulheres dos altos funcionários) que tinha já várias vezes reduzido a um
silêncio atordoado alguns dos mais duros e resistentes cavaleiros da embaixada. No entanto, Magnus atraíra-a como o sol atrai uma flor, e ela não se cansava de o ouvir. Às
vezes, ao vê-lo representar desta maneira, Mary sentia uma compaixão involuntária"
provocada pelo facto de a sua
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dedicação ser tão total. Ela queria ver nele espontaneidade, mesmo que só por um
momento. Queria que ele soubesse que já tinha feito o suficiente para merecer a paz,
que a teria assim que quisesse, que não precisava de continuar a dar, sempre a dar. Se
ele fosse um verdadeiro diplomata, chegaria facilmente a embaixador, pensou ela. Grant
Le-derer tinha-lhe garantido em privado que, em Washington, Magnus exercera uma influência bem maior do que o director da delegação ou o detestável embaixador. Viena
embora ele aqui fosse também extremamente respeitado e influente era, obviamente, um
anticíí-max. Pelo menos era o que se pretendia que fosse; mas quando as coisas
esfriassem, Magnus retomaria a sua carreira; o que era preciso era ser paciente. Mary
gostaria de não ser tão mais nova do que Magnus. Às vezes ele tenta descer ao meu nível, pensou. À esquerda de Magnus, igualmente hipnotizada, estava Frau Oberst1
Mohr; o seu marido, alemão, estava ligado ao serviço de comunicações que funciona na
Neus-tadt vienense. Mas a verdadeira conquista de Magnus era, como sempre, Grant
Lederer III, «o homem da barbicha negra, dos olhinhos negros e dos pensamentozinhos
negros», como lhe chamava Magnus, o homem que seis meses atrás assumira a chefia do Departamento Jurídico da embaixada americana (o que não devia ser tomado à letra,
já que, na realidade, Grant era o novo homem da CIA em Viena), isto apesar de se tratar
de um já velho amigo de Washington.
O Grant é um artista da treta queixava-se Magnus, como sem
pre se queixava de todos os seus amigos. Uma vez por semana põe- nos à volta de uma mesa enorme a inventar palavras para dar nomes a
coisas que já há vinte anos fazemos sem precisar das palavras para nada.
Mas ele é divertido, meu amor lembrava Mary e a Bee é
incrivelmente bonita.
O Grant é um alpinista disse Magnus noutra ocasião. Está a fazer connosco uma fila muito certinha, para depois trepar por cima
das nossas costas. Vais ver.
Mas pelo menos é inteligente, meu amor. Pelo menos está ao
teu nível, não é?
E a verdade era que, tendo em conta as limitações de toda e qualquer amizade diplomática, os Pyms e os Lederers constituíam um dos grandes quartetos; só que fazia
parte da maneira perversa que Magnus tinha de gostar das pessoas, resmungar e criticá-
las e jurar que nunca mais as queria ver. Becky, a filha dos Lederers, tinha a mesma
idade que Tom e os dois já eram praticamente namorados; entre Bee e Mary houvera
desde o
início um entendimento perfeito. Quanto à relação de Bee com Magnus
bem, às vezes Mary chegava a perguntar-se se não haveria ali um pou
quinho de amizade a mais. Mas ela também sabia que nos quartetos há
sempre uma diagonal mais forte, mesmo que nada chegue a acontecer. E se alguma coisa chegasse realmente a acontecer entre eles um dia, bom,
para ser totalmente franca, Mary estaria perfeitamente disposta a vingar-
-se com Grant, cuja força oculta achava cada vez mais excitante.
Mary, à tua saúde, está bem? Que festa óptima. Estamos a
adorar. Era a Bee, sempre a fazer brindes a toda a gente. Trazia brincos de diamantes e um
decote que Mary tinha estado a espreitar durante toda a noite. Três filhos e um peito
assim: bolas, era injusto. Mary ergueu o copo, retribuindo o brinde. A Bee tem dedos de
dactilógrafa, com as extremidades tortas, observou Mary.
Então, meu velho Grant, vá lá dizia Magnus meio a sério meio a brincar. Tenta lá ser honesto, caramba. Se tudo o que o vos
so galante presidente nos diz sobre os países comunistas é verdade,
como é que podemos ter alguma hipótese de negociar com eles?
Mary viu de relance o sorriso jocoso de Grant abrir-se até quase parecer estalar de
admiração divertida pela agudeza do espírito de Pym. Magnus, se fosse eu a mandar punha-te num daqueles tapetes
grandes da embaixada com um shaker de Martini seco e um passapor
te americano, e com um passe de mágica, enviava-te outra vez para
Washington para te candidatares pelos democratas. Nunca vi um caso
tão claro de rebelião. Escolher o Magnus para presidente? ronronou Bee, sentada
muito direita a fazer sobressair os seios, como se alguém lhe tivesse ofe
recido um chocolate. - Que óptimo!
Neste ponto apareceu Herr Wenzel, ostentando o seu ar servil, e, fazendo uma vénia
correctíssima junto de Magnus, murmurou ao seu ouvido esquerdo que o chamavam com urgência perdão, excelência
ao telefone, de Londres Herr conselheiro, desculpe.
Magnus desculpou. Magnus desculpa toda a gente. Magnus escolheu o caminho até à
porta com delicadeza, por entre obstáculos imaginários, sorrindo e falando com ênfase e pedindo desculpas, enquanto Mary tagarelava com grande animação para cobrir a sua
retirada. Mas quando a porta se fechou atrás dele, aconteceu uma coisa imprevista.
Grant Lederer olhou furtivamente para Beé, e Bee Lederer olhou furtivamente para
Grant. E Mary viu esséblhar e o sangue gelou-lhe nas veias.
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Porquê? O que se passara entre eles naquele único olhar sincero? Será que Magnus
afinal dormia mesmo com Bee e que Bee tinha contado a Grant? Estariam os dois
momentaneamente unidos numa admiração perplexa pelo seu anfitrião que acabava de
sair? Nos dias confusos que se seguiram, a resposta de Mary a estas perguntas não mudara em nada. Não era sexo, não era amor, não era inveja e não era amizade. Era
conspiração. Mary não era o tipo de pessoa que imagina coisas. Tinha visto e sabia:
eram um casal de assassinos dizendo um ao outro «já falta pouco», e esse «já falta
pouco» dizia respeito a Magnus. Já falta pouco para o apanharmos. Já falta pouco para a
sua hubris6 ser castigada e a nossa honra reparada. Eu surpreendi-os a odiarem-no, pensou Mary. Pensou-o naquela altura, e ainda agora pensa o mesmo.
O Grant é um Cássio à procura de um César dissera Mag
nus. Se não descobrir rapidamente umas costas para apunhalar, a
CIA acabará por confiar a adaga a outra pessoa.
Mas em diplomacia nada é duradouro, nada é absoluto, e uma conspiração entre assassinos não é motivo para interromper o fluxo da conversa. Tagarelando
activamente, falando dos filhos e das compras procurando desesperadamente uma
explicação para o terrível olhar dos Lederers , acima de tudo esperando que Magnus
regressasse à festa e recomeçasse a enfeitiçar o seu lado da mesa em duas línguas ao
mesmo tempo , Mary ainda arranjou tempo para se interrogar sobre se aquele telefonema urgente de Londres seria a chamada que o marido esperava há já várias
semanas. Ela sabia desde há algum tempo que algo de importante se estava a preparar, e
rezava para que fosse a prometida reintegração.
E foi nesse preciso momento, recordava Mary, enquanto ela ainda estava a tagarelar e a
torcer para que a sorte do marido mudasse, foi nesse momento que sentiu as pontas dos dedos dele passarem sabiamente por sobre os seus ombros nus no caminho de regresso
ao seu lugar à cabeceira da mesa. Mary nem sequer ouvira o ruído da porta, embora
tivesse estado à escuta o tempo todo.
Está tudo bem, meu amor? disse ela em voz alta por sobre os
candelabros, fazendo jogo franco (é que os Pyms eram um casal perfei tamente feliz).
Sua majestadezinha está em forma, Magnus? perguntou
Grant na sua voz insinuante e pausada. Nada de raquitismo, nem
difteria, nem nada?
O sorriso de Pym era radioso e descontraído, mas isso nem sempre queria dizer grande
coisa, e Mary sabia-o.
Foi só uma das explosõezinhas habituais de Whitehall retorquiu com um ar de perfeita
indiferença. Parece-me que eles devem ter aqui um espião que os informa das datas em que dou jantares. Já não há clarete, minha querida? Devo dizer que acho estas rações
muito mirradas.
Oh, Magnus, seu jogador, pensou ela com excitação.
Eram horas de levar as senhoras até ao primeiro andar para um xixi antes do café. Frau
Oberregierungsrat, que se considerava moderna, quis resistir. O ar carrancudo do marido acabou por expulsá-la. Mas Bee Lederer, que nesta altura do serão costumava
comportar-se como a grande feminista americana Bee saiu como um cordeiro,
peremptoriamente empurrada pelo seu maridinho sexy.
Agora é que vai ser o grande choque diz Jack Brothcrhood
com satisfação, na imaginação de Mary. Não há choque nenhum.
Então porque é que estás a tremer, minha querida?
Não estou a tremer. Estava só a tomar uma bebida enquanto não
chegavas. Bem sabes que estou sempre a tremer.
Quero o meu simples, como tu. Conta-me tudo exactamente como se passou. Sem gelo, sem água, sem tretas.
Está bem, caramba, se é isso que queres eu conto-te.
A noite está a acabar, de um modo tão perfeito como começou. No hallàt entrada, Mary
e Magnus ajudam os convidados a vestir os casacos e Mary não consegue deixar de
notar que Magnus, para quem a vida é serviço, enrijece os braços e enrola os dedos a cada rnanga que consegue dominar. Magnus convidou os Lederers para ficarem mais
um bocado, mas Mary contrariou encapotadamente esta sugestão dizendo a Bee, com
um risinho, que Magnus precisava de se deitar cedo. O hall esvazia-se. Os Pyms
diplomáticos, ignorando o frio afinal de contas, são ingleses , permanecem valentemente
a porta e acenam a dizer adeus. Mary pôs o braço à volta da cintura de Pym e está secretamente a enfiar ó polegar no cós das calças ele, descendo por entre as nádegas.
Magnus não lhe resiste. Mag-
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nus não resiste nunca. A cabeça dela está ternamente encostada no seu ombro, e Mary murmura pequenos nadas afectuosos junto ao mesmo ouvido que Herr Wenzel usou
para o chamar ao telefone; Mary espera que Bee repare na atitude de namorados dos
dois. Sob a luz da entrada Mary luminosamente juvenil no seu longo vestido azul,
Magnus tão distinto no seu smoking devemos ter sido a imagem perfeita do casamento
harmonioso. Os Lederers são os últimos a sair e são também os mais efusivos. Caramba, Magnus, já há muito tempo que não me divertia tanto diz Grant no seu curioso tom de
indignação, um pouco amaneirado. Segue-os o guar-da-costas, noutro carro. Lado a
lado, os inglesíssimos Pyms vivem em comum um momento de desdém pelo american
way.
Bee e Grant são realmente divertidíssimos diz Mary. Mas será que tu andavas com um guarda-costas se o Jack to propusesse?
Não era só simples curiosidade o que a levava a fazer esta pergunta. Ul
timamente andava preocupada com os indivíduos estranhos que pare
ciam andar a rondar a casa sem razão aparente.
Acho que não responde Pym, estremecendo. A menos que ele prometa proteger-me do Grant.
Mary retira o polegar, os dois voltam-se e entram em casa de braço dado.
Está tudo bem? pergunta ela, pensando no telefonema.
Tudo perfeitamente bem responde ele. Quero-te murmura Mary impetuosamente,
acariciando-lhe o sexo. Pym diz que sim com a cabeça, sorrindo, e desaperta a gravata, como que preparando--se. Na cozinha, os Wenzels estão à espera que os mandem
embora. Mary sente o cheiro a cigarro, mas decide ignorá-lo porque eles trabalharam
bem. No seu leito de morte, ainda se lembrará de que ignorar o fumo de cigarro foi uma
decisão consciente; de que a sua vida naquele momento era tão serena, Lesbos estava
tão distante, ela tinha a tal ponto a sensação de ter sido bem servida que não estava disposta a preocupar-se com assuntos tão incrivelmente triviais. Pym tem já num
envelope o dinheiro para pagar aos Wenzels, com uma bela gorjeta. Mesmo que só
tenha uma nota de cinco libras, Magnus há-de gastá-la numa gorjeta, pensa Mary com
indulgência. Ela aprendera a amar aquela generosidade, mesmo quando o seu ponto de
vista burguês, mais frugal, a leva a pensar que ele exagera: é que é tão raro Magnus ser trivial, ser vulgar. Apesar de às vezes Mary se perguntar se ele não estará a gastar mais
do que aquilo que tem, e se não deveria oferecer-lhe uma parte dos
seus rendimentos pessoais. Os Wenzels vão-se embora. Na noite seguinte, terão outra
festa numa outra casa. Em perfeita harmonia, os Pyms deslocam-se até à sala de estar, dando as mãos e separando-as e movendo-as livremente, iniciando o ritual preparatório
da última bebida da noite e da conversa em que se dissecam os acontecimentos do serão.
Pym serve-lhe um whisky e prepara um vodka para si próprio, mas contrariamente ao
seu hábito, não despe o casaco. Mary acaricia-o decididamente. Às vezes nestas
ocasiões, eles não chegam a subir ao primeiro andar. O veado estava óptimo, Mabs diz Pym. É sempre a primeira
coisa que ele faz: elogiá-la. Magnus passa o tempo todo a elogiar toda a
gente.
Eles pensaram todos que tinha sido a Frau Wenzel a cozinhá-lo
diz Mary, procurando desapertar-lhe o fecho das calças. Então manda-os à fava diz Pym galantemente, rejeitando
por ela todo o vão mundo diplomático com um simples gesto da mão.
Por um momento, Mary receia que Magnus tenha bebido um copo a
mais. Espera que não, porque na realidade não está a fingir: depois de
todas as preocupações e frivolidades da noite, deseja-o muitíssimo. Dando a Mary um dos copos, Magnus ergue o seu num brinde silen
cioso; parabéns minha querida. Sorri-lhe, os seus joelhos, firmes, ro
çam os dela. Mary sente a tensão que dele se desprende e deseja-o ur
gentemente aqui e agora; as suas mãos demonstram-no de modo cada
vez mais explícito. Se Grant Lederer é o terceiro pergunta ela, recordando uma
vez mais aquele olhar assassino , como é que seriam os dois primei
ros?
Sou livre diz Pym.
Mary não entende. Pensa que ele está a contar uma piada mais divertida do que a sua, mas que ela não entende.
Não percebo diz, com algum descaramento. Sou tão lenta em
relação a ele, pobre querido. Subitamente, uma ideia terrível. Não
estás a querer dizer que eles te despediram, não?
Magnus faz sinal com a mão. O Rick morreu explica.
Quem? Qual Rick? O Rick de Berlim? O Rick de Langley?
Qual é o Rick que ao morrer libertou Magnus e, quem sabe, deixou
talvez vago um lugar que poderá ser pj^a-elé?
Magnus recomeça. Com um ar "perfeitamente razoável. É notório
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que a pobre pequena não percebeu. Está cansada do longo serão. Bebeu uns copos a
mais.
Rick, o meu pai, morreu. Morreu de um ataque cardíaco hoje às seis da tarde, ao mesmo tempo que nos estávamos a vestir para o
jantar. Julgou-se que ele estava outra vez bem depois do último ata
que, mas afinal não estava. O Jack Brotherhood telefonou-me de
Londres. Só gostava de saber porque raio é que o Serviço de Pessoal
pediu ao Jack para ser ele a comunicar-me a notícia, em vez de o fa zerem directamente: é um mistério que a minha compreensão não
alcança. Mas foi o que aconteceu.
Mesmo depois desta explicação, Mary continua sem compreender.
O que é que queres dizer com isso de «livre»? grita bem alto,
deixando de lado todo o constrangimento. Livre de quê? E de pois, dando provas de grande sensatez, desata a chorar. Chora bem alto
porque chora pelos dois. Bem alto para afogar as suas terríveis pergun
tas sem resposta, de Lesbos até aqui.
E quase lhe apetece chorar agora outra vez pelo Jack Brotherhood, no momento em que
a campainha da porta ressoa pela casa como um toque de clarim, três toques curtos, como sempre.
Pym fechou as cortinas com um só gesto, e acendeu a luz. Parara de cantar. Sentia-se
desperto. Pousando a pasta com um pequeno grunhido, olhou à sua volta com
satisfação, deixando que todos os objectos o saudassem um por um. A cama de latão.
Bom dia. O bordado emoldurado à cabeceira que o exortava a amar Jesus: bem tentei, mas Rick nunca me deixou. A secretária com tampo de correr. O rádio de baquelite que
ainda ouvira o velho Winston Churchill. Pym não impusera a este quarto nada de si
próprio. Era um hóspede, não um co-lonizador. O que é que o teria chamado até aqui,
numa época obscura, várias vidas atrás? Mesmo agora, com tantas outras coisas claras
na sua cabeça, sentia-se dominado por uma grande sonolência quando procurava recordar. Foram muitos dias solitários e passeios sem destino em cidades estrangeiras
que me trouxeram até aqui, uma grande quantidade de tempo desocupado e só.
Apanhara vários comboios, à procura de um sítio, fugindo de outro. Mary estava em
Berlim não, estava em Praga , tinham sido transferidos uns dois meses antes, deixando
bem claro que, se ele se portasse bem em Praga, o próximo posto seria Washington. Tom meu Deus, Tom ainda mal tinha larga-
do as fraldas. E Pym estava em Londres numa conferência não, num curso de três dias
sobre os mais modernos métodos de comunicação clandestina, numa casinha feiosa próxima de Smith Square que era usada para treinos. Depois do curso, apanhara um táxi
para a estação de Paddington. Quase sem parar, deixando-se guiar pelo instinto. Ainda
tinha a cabeça atravancada com conhecimentos inúteis sobre ânodos e transmissões
camufladas. Saltou para um comboio que estava quase a partir na estação de Exeter,
atravessou a plataforma e apanhou outro. Haverá maior liberdade do que a de não se saber para onde se vai nem porquê? Foi parar a um lugar meio desértico, viu um
autocarro que se dirigia para uma terra de nome vagamente familiar e fez-lhe sinal.
Estava na terra das avozinhas. Era domingo, e as tias dirigiam-se para a igreja com
moedas de colecção dentro das luvas. Da sua nave espacial no andar de cima do
autocarro, Pym olhou com ternura para as chaminés, para as igrejas, para as dunas e para os telhados de ardósia que pareciam estar à espera de ser içados para o paraíso. O
autocarro parou, o condutor disse: «É aqui o fim da carreira, sir» e Pym apeou-se com
uma estranha sensação de plenitude. Cheguei, pensou. Encontrei finalmente, e sem
sequer procurar. A cidade, a praia, exactamente iguais ao que eram quando as deixei
tantos anos atrás. Estava sol e o mundo parecia vazio. Provavelmente seria hora de almoço. Já não fazia ideia das horas. O que era certo era que os degraus de miss Dubber
estavam tão imaculadamente limpos que era uma pena pisá-los, e que partiam da casa os
acordes de um hino religioso, juntamente com um cheiro a galinha assada, a detergente,
lixívia e devoção.
Vá-se embora! gritou uma voz fininha. Estou no degrau de cima e não consigo chegar ao fusível e se me esticar mais um bocadinho que seja rebento.
Cinco minutos depois, aquele quarto era dele. O seu santuário. O seu refugio seguro,
longe de todos os outros refúgios seguros. Can-terbury. Chamo-me Canterbury ouviu-se
dizer quando, depois de ter consertado o fusível, a obrigou a aceitar um depósito. Uma
cidade encontrara o seu lar. Avançando até à secretária, fez deslizar a tampa e começou a espanar o conteúdo dos
bolsos na superfície de napa. Ia fazer um inventá-10 preliminar da sua mudança de
personalidade e cenário. Um exame Prospectivo dos acontecimentos do dia até ao
momento presente. Um Passaporte com o nome de Mr. Maghus Richard Pym, cor dos
olhos:
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verde, cabelo: castanho claro, funcionário do ministério dos Negócios Estrangeiros de
sua majestade, nascido há tempo de mais. Era sempre um choque para ele, depois de
toda uma vida de símbolos e nomes de código, ver o seu próprio nome, nu e sem disfarces, exibido num qual- J quer documento de viagem. Uma carteira de pele,
presente de Natal j de Mary. Do lado esquerdo, os cartões de crédito; do lado direito,
dois j mil xelins austríacos e trezentas libras inglesas em notas velhas e variadas o
dinheiro da sua fuga que acumulara cuidadosamente, e que I agora ali ficava à mão na
secretária. As chaves do Austin Metro. Ela tem j as outras. Fotografia de família em Lesbos, todos perfeitamente bem. i A morada escrita à pressa de uma rapariga que
encontrara algures e já! esquecera. Pôs a carteira de lado e, prosseguindo o inventário,
tirou do j mesmo bolso um cartão de embarque verde ainda válido para o voo da j noite
anterior da British Airways, para Viena. Intrigou-o ver e tocar o I cartão. Foi então que
Pym resolveu pôr-se a andar, pensou. Talvez o pri-1 meiro gesto inteiramente egoísta que fizera em toda a sua vida, com a j nobre excepção da escolha do quarto onde agora
estava. A primeira vez .j que dissera «quero» em vez de «devo».
Na cerimónia da cremação, num silencioso bairro suburbano, co- j meçara a suspeitar de
que havia espiões a empolar artificialmente os I efectivos do pequeno cortejo fúnebre.
Não podia provar nada. Na sua j qualidade de parente mais próximo do falecido, não podia pôr-se à S porta da capela mortuária e exigir a cada um dos visitantes que expli- j
casse o que estava ali a fazer. E também era verdade que a vida desor- ■ denada que
Rick levara tinha atraído uma quantidade de indivíduos ] que Pym nunca vira ou não
queria voltar a ver. Mesmo assim, as sus-', peitas não se desvaneceram; cresceram até,
no seu caminho para o aeroporto de Londres, e transformaram-se praticamente numa certeza/j no momento em que devolveu o carro à companhia de aluguer de j automóveis:
dois homens cinzentos que lá estavam, demoraram real-1 mente tempo de mais a
preencher os formulários dos contratos. Re- j solutamente, entregou a mala de viagem
no balcão correspondente ao voo para Viena, e, com este mesmo cartão de embarque na
mão, pas- i sou pelos Serviços de Imigração e sentou-se na sala de espera insalubre, escondendo-se atrás do seu exemplar do Times. Quando anunciaram j que o voo estava
atrasado, fez como se quase conseguisse esconder a | sua irritação, mas de modo, apesar
de tudo, a deixá-la transparecer. Quando chamaram os passageiros, avançou
obedientemente e juntou- j -se à multidão desordenada que se dirigia para o local de
embarque: f
ele era a perfeita imagem do conformista respeitador. Ao fazer tudo isto sentiu, mesmo
sem os ver, que os dois homens tinham desistido de o seguir e regressavam à base para
tomar chá e jogar pingue-pon-gue: os filhos da mãe de Viena que tratem dele, e boa
viagem, diziam um ao outro. Chegou a uma esquina e virou, avançando para uma passagem rolante; mas não chegou a entrar nela. Deu alguns passos lentos, espreitando
para trás como se estivesse à espera de um companheiro atrasado, e depois,
imperceptivelmente, deixou que a corrente de passageiros que se movia em sentido
inverso o trouxesse de novo ao ponto de partida. Momentos mais tarde, estava a mostrar
o passaporte no balcão das chegadas, e a receber o Bem-vindo ao país que os funcionários reservam aos portadores de determinados números de série. Como última
precaução, que tomou quase sem pensar, dirigiu-se à secção dos voos domésticos e fez
perguntas gerais e imprecisas sobre voos para a Escócia, no tom mais adequado para
irritar qualquer empregado com muito que fazer. Não, Glasgow não, só Edimburgo.
Espere aí, talvez seja melhor dar-me também informações sobre os voos para Glasgow. Ah, óptimo, um horário impresso. Olhe, muitíssimo obrigado. E se eu decidir comprar
um bilhete pode passar--mo já? Ah, está bem. Daquele lado. Óptimo.
Pym rasgou o cartão de embarque em pedacinhos e pô-los no cinzeiro. Quanto do que
fiz foi planeado, quando foi espontâneo? Não interessa. Estou aqui para agir, não para
meditar. Um bilhete de camioneta, Heathrow-Reading. Chovera durante a viagem. Um bilhete de comboio só de dia, Reading-Londres, por usar, comprado para despistar. Um
bilhete de carruagem-cama Reading-Exeter, vendido no próprio comboio. Pusera uma
boina e mantivera a cara na zona de sombra no momento de o comprar ao funcionário
bêbado. Rasgou também todos estes bilhetes em pedacinhos e juntou-os aos outros no
cinzeiro; por uma questão de hábito ou por um motivo mais agressivo, deitou-nes rogo e olhou fixamente para as chamas sem pestanejar. Apeteceu-" he queimar também o
passaporte, mas um resíduo de escrúpulos im-pediu-o de o fazer: esse escrúpulo
pareceu-lhe ao mesmo tempo estranho e enternecedor. Planeei tudo até ao mínimo
pormenor eu, que nunca na minha vida tomei uma decisão consciente. Comecei a fazer
^nos numa zona esconsa da minha cabeça no dia em que entrei para rnia, mas só o soube quando o Rick morreu. Planeei tudo menos o cruzeiro de miss
Dubber.
chamas diminuíram, Pym desfez a cinza, despiu o casaco e co-
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locou-o nas costas da cadeira. Tirou da cómoda um velho casaco de malha tricotado por
miss Dubber, e vestiu-o.
Hei-de tornar a falar com ela sobre isso, pensou. Hei-de descobrir! uma coisa que ela
aprecie mais. Escolherei melhor o momento. É im-j portante para ela mudar de cenário,
pensou. Um lugar onde não tenha j de se preocupar com nada. Sentindo subitamente a necessidade de se mover, acendeu as luzes,.] deslizou até à
janela, abriu as cortinas e pôs mãos à obra, vigiando o pe-| queno largo, ser vivo por ser
vivo e janela por janela, à medida que a ma- j nhã o despertava, à procura de sinais
reveladores da presença de espiões. I Na sua cozinha, a mulher do pastor baptista, no
seu roupão de lovat, está 1 a tirar da corda da roupa o equipamento de futebol do filho, preparan- i do-o para o jogo de hoje. Pym recua prontamente. Viu um brilho de j aço no
portão do presbitério mas afinal é só a bicicleta do pastor ain-1 da acorrentada ao tronco
de uma araucária como precaução contra a co- j bica contrária aos mandamentos de
Cristo. Pela janela coberta de geada j da casa de banho da vivenda Sea View, viu uma
mulher de calcinhas cin-1 zentas curvada sobre o lavatório, ensaboando os cabelos. É evidente que Célia Venn, a filha do médico que quer pintar o mar, espera hoje com-1
panhia. Na porta ao lado, no número 8, Mr. Barlow, o construtor civil,! e a mulher
assistem ao programa da manhã na televisão. O olhar de Pym■■} avança
metodicamente, até que uma carrinha estacionada lhe chama a 1 atenção. Abre-se uma
porta, e uma figura de rapariga escapa-se furtiva- í mente pelo jardim central, desaparecendo no número 28. Ella, a filha | do cangalheiro, está a descobrir a vida.
Pym tornou a correr as cortinas e a acender as luzes. Criarei a minha j própria noite e o
meu próprio dia. A pasta continuava onde a tinha deixado, estranhamente rígida com o
seu revestimento interior de aço. Todos andavam de pasta, lembrou-se ao olhar para a
sua. A de Rick era de pele de porco, a de Lippsie era de cartão, a de Poppy era uma coisa cinzenta com mau aspecto, coberta de marcas impressas para parecer pele
verdadeira. E Jack querido Jack , tu tens a tua velha pasta mara-1 vilhosa, tão fiel como
o cão que foste obrigado a abater.
Sabes, Tom, algumas pessoas legam os corpos a um hospital uni* ] versitário. As mãos
vão para uma aula, o coração para outra, os olhos | para outra ainda, toda a gente recebe alguma coisa, toda a gente fica gra-1 ta. Mas o teu pai só tem os seus segredos. São a
sua origem e a sua mal-1 dição.
Pym sentou-se bruscamente à secretária.
Contar exactamente como foi, ensaiou ele. A verdade nua e crua. Sem evasões, sem ficções, sem expedientes. Apenas a minha libertação, que tanto prometi a mim próprio.
Dirigir-se a todos e a ninguém em particular. A todos vós que sois meus donos, a quem
eu me dei com impensada liberalidade. Aos meus treinadores e chefes. À Mary e a todas
as outras Marys. A todos os que receberam uma parte de mim, a quem foi prometido
mais e agora estão legitimamente desapontados. E ao que eventualmente tenha restado de mim próprio no fim da grande partilha de Pym.
A todos os meus credores e co-proprietários associados, aqui têm finalmente os
pagamentos em atraso, o acerto de contas com que Rick tanto sonhou e que agora vai
ser levado a cabo pelo seu único filho legítimo. Quem quer que Pym tenha sido para si,
seja você quem for ou tenha sido, aqui tem a ultima das muitas versões do Pym que julgou conhecer.
Pym respirou fundo.
Fá-lo de uma vez por todas. Uma vez na vida, e pronto. Sem revisões, sem polimento,
sem evasões. Nada de talvez-fosse-melhor-assim. És como o zangão. Fá-lo uma vez e
morre. Agarrou numa caneta e numa única folha de papel. Escrevinhou algumas linhas, o que
lhe veio à cabeça. Trabalha, Jack, trabalha que espião tão chato que és. Poppy, Poppy,
em cima do muro. Miss Dubber tem de ir a um cruzeiro. Como o pão que é meu,
coitado, Rickie morreu. Ric-kie-Tickie pai. A mão avançava regularmente, sem riscar
nada. Às vezes, Tom, é preciso fazer as coisas para perceber porque as fazemos. Às vezes os nossos actos são perguntas e não respostas.
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II Foi um dia sombrio e tempestuoso, Tom, como costumam ser quase sempre os
domingos por estes sítios. Vivi centenas deles em criança e não me lembro de um único
em que houvesse sol. Quase não recordo o mundo fora de casa, a não ser nos momentos
em que me arrastavam à pressa através desse mundo como se eu fosse um delinquente
infantil a caminho da igreja. Mas já me estou a adiantar, porque nesse dia preciso Pym ainda não era nascido. A data obtém-se recuando todo o tempo da vida do teu pai mais
meia dúzia de meses, o local é uma cidadezinha costeira não muito afastada desta de
onde estou a escrever, um pouco menos plana e com uma torre mais larga mas esta
chega perfeitamente. Uma manhã ventosa e molhada, carregada de maus p resságios
podes crer que é verdade e eu, como já disse, era ainda um fantasma por nascer, ainda não encomendado nem entregue, nem pago, com certeza: um microfone surdo, já
instalado, mas inactivo em todos os sentidos excepto o puramente biológico. Folhas
secas, caruma e confetti velhos vão ficando agarrados aos degraus molhados da igreja, à
medida que a massa humilde dos crentes vai entrando para receber a sua dose semanal
de perdição ou de salvação, embora sempre me tenha parecido que a diferença entre as duas coisas não era tão grande como isso. E eu era um espião fetal e mudo, cumprindo
inconscientemente a minha primeira missão num local onde não costumava haver
objectivos.
Mas hoje alguma coisa se passa. Circulam rumores, e é Rick quem está no seu centro.
Hoje há na devoção uma centelha maléfica que ninguem consegue disfarçar, que vem do íntimo de cada um, do centro oculto do lado sombrio de todos osindivíduos: e Rick é
o dono, a ongem e o instigador de tudo isto. É um fenómeno visível em toda
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a parte: no passo portentoso e rebolado do diácono de vestes castanhas, no alvoroço das mulheres que chegam, pressurosas, de chapéu na cabeça, pensando que estão atrasadas,
e depois se sentam, corando sob a brancura do pó de arroz porque afinal vieram cedo de
mais. Todos impacientes, todos a porem-se nas pontas dos pés para verem melhor, uma
reunião de primeira, como diria e provavelmente disse com orgulho o próprio Rick; ele
adorava enchentes, fosse qual fosse o pretexto até podia ser o seu enforcamento. Alguns vieram de automóvel maravilhas da época tais como Lanchesters e Singers , outros de
troley, outros a pé; e a chuva do mar enviada por Deus gelou-lhes o peito sob as estolas
baratas de pele de raposa, e o vento do mar enviado por Deus atravessa agora a sarja
puída dos fatos de domingo. Mas todos eles, independentemente do meio de transporte
que utilizaram, desafiam o mau tampo por mais um segundo, para olharem atentamente o quadro onde se afixavam as notícias, e confirmarem com os seus próprios olhos aquilo
de que já há dias vinham sendo informados oficiosamente. Há dois cartazes afixados,
ambos esborratados pela chuva, ambos tão atraentes para os transeuntes como chávenas
de chá frio. Mas para os que conhecem o código transmitem um sinal electrizante. O
primeiro proclama em caracteres cor--de-laranja a subscrição de cinco mil libras organizada pela Liga das Mulheres Baptistas para criar uma sala de leitura embora todos
saibam que nunca ninguém lerá um livro que seja nessa sala, e que este será um local
para expor bolos caseiros e fotografias de crianças leprosas do Congo. Um termómetro
de contraplacado, desenhado pelos melhores artífices de Rick, está preso ao
gradeamento, revelando que o primeiro milhar já foi obtido. O segundo cartaz, verde, declara que a alocução de hoje será proferida pelo pastor, e que todos são bem-vindos.
Mas esta informação foi corrigida. Foi pregado sobre o cartaz um cartão duro,
dactilografado com todas as palavras por extenso como um documento legal, com letras
maiúsculas fora do lugar (o que nesta região é interpretado como presságio), produzindo
um efeito bastante cómico: Devido a Circunstâncias imprevistas, SirMakepeace Watermaster, Juiz] de Paz e
Deputado Liberal por este Círculo, proferirá a Mensagem de hoje.' Pede-se à Comissão
de Apelo que Permaneça no local após a cerimónia para uma reunião Extraordinária.
Makepeace Watermaster em pessoa! E eles bem sabem porquê! Noutro ponto do mundo, Hider prepara-se para deitar fogo ao universo, na América e na
Europa as misérias da Grande Depressão alastram como uma doença incurável, e os
antepassados de Jack Brothe-rhood comportam-se ou não como cúmplices de tudo isso
consoante a doutrina mais ou menos falsificada que num dado momento prevalece nos
corredores secretos de Whitehall. Mas a congregação não tem a pretensão de se querer pronunciar sobre tais aspectos impenetráveis dos desígnios divinos. Todos pertencem a
uma Igreja dissidente, cujo chefe temporal é Makepeace Watermaster, o maior pregador
e o maior liberal de todos os tempos, e um dos Grandes da Terra, que lhes oferecera este
mesmo edifício construído a expensas suas. É claro que na verdade não foi ele. Foi o pai
dele, Goodman, que ofereceu a igreja à comunidade; mas desde que herdou o feudo, Makepeace faz por esquecer que o pai alguma vez existiu. O velho Goodman era um
galês, um miserável oleiro viúvo que pregava e cantava e que tinha três filhos:
Makepeace e dois outros, vinte e cinco anos mais novos. Goodman chegou aqui,
examinou a argila, cheirou o mar e construiu uma fábrica de loiça. Alguns anos depois,
construiu outras duas e importou mão-de-obra migrante e barata para trabalhar para si: primeiro, naturais do Baixo País de Gales como ele, e depois, irlandeses perseguidos,
ainda mais baixos e mais baratos. Goodman atraiu-os com as casinhas que mandara
construir, explorou-os com os salários de miséria que pagava e infundiu-lhes com as
suas pregações o medo do Inferno, até ao momento em que ele próprio foi levado para o
Paraíso, como testemunhava o modesto monumento de seiscentos pés de altura que lhe era dedicado e se erguia no pátio da fábrica até que, há alguns anos, todo o edifício foi
arrasado para dar lugar a um conjunto de bungalows e boa viagem.
E hoje, devido a Circunstâncias imprevistas, o mesmo Makepeace, filho único de
Goodman, vai descer da sua torre de marfim é claro que só para ele é que as circunstâncias são imprevistas, as circunstâncias são tão palpáveis como os bancos de
igreja em que esperamos por ele, tão imóveis como os azulejos Watermaster a que os
bancos estão nxados, tão fatais como o relógio irritante que arfa e assobia entre o soar
das horas, como um porco tentando adiar o seu terrível fim. Imaginem a tristeza deste
mundo imaginem como imbecilizava e de-pnmia os jovens, vedando-lhes todas as coisas interessantes que gostariam de ter: dos jornais de domingo ao- catolicismo, da
psicologia à arte, da roupa interior transparente* ao bom e ao mau humor, do amor
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ao riso e do riso ao amor, parece-me que nenhuma parcela da condição humana escapava à sua desaprovação. Porque se vocês não perceberem a tristeza de tudo isto,
não compreenderão o mundo de que Rick fugiu nem o mundo para onde ele fugiu, nem
o prazer perverso que agita e inquieta todos aqueles corações humildes neste domingo
sombrio, em que as últimas badaladas do sino se fundem com o tamborilar da chuva e
em que se inicia o primeiro grande julgamento da vida do jovem Rick. Rick Pym vai finalmente dar o grande salto é a frase que anda de boca em boca. E haveria carrasco
mais temível do que Makepeace em pessoa, o maior dos Grandes da Terra, juiz de paz e
deputado liberal, para lhe ajustar a corda ao pescoço?
Como a última badalada, desvaneceram-se também os esforços dos voluntários. A
congregação sustém a respiração, começa a contar até cem e procura com os olhos os seus actores preferidos. As duas mulheres da família Watermaster chegaram cedo. Estão
sentadas lado alado, no banco dos notáveis que fica mesmo por baixo do púlpito. Em
qualquer outro domingo, Makepeace estaria ali empoleirado entre elas, com todo o peso
dos seus seis pés e seis polegadas de altura, com a cabeça comprida inclinada para um
dos lados, escutando os voluntários com as suas orelhinhas redondas e viscosas. Mas hoje não, porque hoje é uma ocasião especial; hoje Makepeace está numa das naves a
conferenciar com o nosso pastor e com alguns membros especialmente preocupados da
Comissão de Apelo.
A mulher de Makepeace, conhecida por Lady Nell, ainda não tem cinquenta anos, mas
já está disforme e enrugada como uma bruxa, e tem o hábito de dar inesperadamente pequenos piparotes na cabeça grisalha como se estivesse a enxotar moscas. E a seu lado
uma estátua pequenina e séria junto aos gestos bruscos e à estupidez de Nell está
sentada Dorothy, a quem com propriedade todos costumam chamar Dot7, e que é uma
senhorazinha minúscula e imaculada, com idade para ser filha de Nell, mas que na
realidade é irmã de Makepeace e que reza, reza ao Criador, comprime os olhos com os punhos fechados, prometendo-Lhe a sua vida e a sua morte se ele a ouvir e resolver tudo
pelo melhor. Os baptistas não se ajoelham perante Deus, Tom. Acocoram-se. Mas a
minha Dorothy ter-se-ia estendido ao comprido nas lajes de fabrico Watermaster e teria
beijado o dedo grande do pé do Papa nesse dia, se Deus a tivesse tirado daquele aperto.
Só tenho uma fotografia dela e houve alturas agora já não, juro, agora ela para mim está
morta em que daria a alma para ter mais uma. Encontrei-a numa velha Bíblia muito
gasta quando tinha a idade de Tom, numa mansão suburbana de onde nos estávamos a
mudar à pressa. «Para a Dorothy, com o meu amor muito especial, Makepeace», era o
que estava escrito na primeira página. Única no mundo. Uma fotografia de cor sépia, manchada, tirada como que numa pausa entre fugas ela está a descer de um táxi cuja
matrícula se não vê, e traz na mão um ramo de pequenas flores, talvez silvestres; os seus
olhos grandes dizem coisas de mais para que possamos ficar tranquilos a contemplá-los.
Será que ela vai a um casamento? Ao seu próprio casamento? Irá visitar um parente
doente? talvez Nell? Onde é que ela está? Para onde vai fugir desta vez? Tem as flores junto ao queixo, e os cotovelos juntos. Os antebraços formam uma linha vertical que vai
da cintura ao pescoço. Mangas compridas apertadas nos punhos. Luvas de musseli-na,
cobrindo eventuais anéis mas parece-me que adivinho uma saliência junto à terceira
articulação do terceiro dedo da mão esquerda. Um chapéu em forma de sino cobre-lhe
os cabelos, e a sombra das abas esconde como uma máscara os seus olhos assustados. Os ombros inclinados, como se ela estivesse prestes a perder o equilíbrio, e um pezinho
voltado para fora para evitar que isso aconteça. As meias claras têm o brilho
ziguezagueante da seda, os sapatos são de verniz, pontiagudos, abotoados. E, não sei
porquê, sinto que a magoam, que foram comprados à pressa como o resto do traje, numa
loja onde ela não é conhecida nem pretende vir a sê-lo. A parte inferior do seu rosto é pálida como uma planta que cresceu no escuro lembrem-se da vivenda The Glades*, a
casa onde ela cresceu! Filha única, como eu, vê-se logo o irmão, vinte e cinco anos mais
velho, não conta.
Querem que lhes diga o que encontrei um dia na casinha que ficava no meio do grande
pomar sombrio dos Watermasters, por onde eu (então criança, como ela) andava a vaguear? O livro com figuras para colo-nr que ela ganhara na escola dominical, A Vida
do Nosso Salvador em Imagens. E sabem o que a minha querida Dot lhe tinha feito?
Tinha obliterado todas aquelas caras de santos com riscos selváticos. Comecei por içar
chocado, até que percebi. Aqueles eram os rostos temidos do mun-o real a que ela não
pertencia. Eles tinham recebido toda a solidarieda-e e tQdos os sorrisos benevolentes a que ela nunca tivera direito. Por isso °s fez desaparecer. Não por raiva. Nçm ódio. Nem
sequer inveja. Mas Porque a atitude calma deles perante a vida estava para além do que
ela
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iinrn»u*<ii*tnpitHt i •
conseguia compreender. Olhem outra vez para a fotografia. O maxilar. O maxilar rígido
e sério, impedindo a expressão de sentimentos. A boca pequenina, que se conserva
fechada e com os cantos voltados para baixo à custa de um grande esforço, a fim de manter secretos os seus segredos. Este rosto não consegue libertar-se de nenhuma má
recordação ou má experiência, porque não tem com quem as partilhar. Está condenado a
armazená-las todas, até ao dia em que não aguente mais.
Basta. Estou a adiantar-me. Dot, também conhecida como Do-
rothy, apelido Watermaster. Sem ligações com nenhum outro organis mo. Uma abstracção. Minha. Uma mulher irreal e vazia em permanente ;
fuga. Se ela estivesse com as costas voltadas para mim em vez da cara,
eu não a conheceria pior nem a amaria mais por isso. í;í'
E atrás das senhoras Watermaster, muito atrás, tão longe quanto o , permite o
comprimento da longa nave, mesmo ao fundo da igreja, no banco junto às portas fechadas, está a fina-flor da nossa juventude, de gravatas impecáveis e colarinhos
rígidos, com o cabelo lustroso dividido ao meio por uma risca perfeitamente rectilínea.
São os Rapazes da Escola Nocturna é assim que são afectuosamente denominados , os
nossos apóstolos do Tabernáculo de amanhã, a nossa esperança dourada, os nossos
futuros pastores, os nossos médicos, missionários e filantropos, os nossos futuros Grandes da Terra, que irão um dia por esse mundo fora, Salvando-o como ele nunca
antes foi Salvo. Foram eles que pelo seu zelo se apoderaram das tarefas habitualmente
confiadas a homens mais velhos: a distribuição dos livros de cânticos e de avisos
especiais, a colecta de dádivas e a arrumação dos sobretudos. São eles que
semanalmente fazem, de bicicleta ou nos automóveis de pais benevolentes, a distribuição da revista da paróquia por todos os lares tementes a Deus, incluindo o do
próprio sir Makepeace Watermaster, que deu ordens à cozinheira para ter sempre uma
fatia de bolo e um copo de limonada prontos para oferecer ao portador; são eles que
cobram os parcos xelins de renda das casas que \ a igreja construiu para os pobres, que
pilotam os barcos de recreio na lagoa de Brinkley quando há excursões de crianças, que orientam os con-1 cursos de bolos de Natal da Congregação da Esperança e dão vida à
semana de actividades do Esforço Cristão. E foram eles que tomaram sobre ■ si, como
se se tratasse de um trabalho que lhes fosse directamente confiado por Jesus, o fardo do
Apelo da Liga das Mulheres, que pretendia atingir as cinco mil libras numa época em
que duzentas chegavam para
sustentar uma família durante um ano. Não houve porta a que eles não batessem na sua
longa peregrinação. Não houve janela que eles não se oferecessem para limpar, canteiro
que não se propusessem expurgar de ervas daninhas e cavar por amor de Jesus. Dia após
dia, os jovens soldados saíram de casa, para voltarem, cheirando intensamente a hortelã, muito depois de os pais terem adormecido, sir Makepeace entoou loas em seu louvor, e
o nosso pastor também. Nenhum domingo fica completo sem que seja lembrado a
Nosso Senhor a que ponto eles são devotos. E, corajosamente, a linha vermelha no
termómetro de contraplacado preso ao portão da igreja foi subindo, das dezenas e
centenas até ao primeiro milhar, onde agora permanecia há já algum tempo, mau grado os seus esforços renovados. Não porque eles tenham perdido o seu ímpeto, longe disso.
A ideia de fracasso nem lhes passa pela cabeça. Makepeace Watermaster não precisa de
lhes lembrar a aranha de Bruce, embora muitas vezes o faça. Os Rapazes da Escola
Nocturna são fora de série, como diz o ditado. Os Rapazes da Escola Nocturna são a
vanguarda do próprio Cristo, e serão um dia os Grandes da Terra. São cinco, e é Rick quem está sentado no lugar do meio Rick, o fundador,
administrador, chefe e tesoureiro do grupo, ainda a sonhar com o seu primeiro Bentley.
Rick, nome completo: Richard Thomas como o seu querido pai, o adorado TP, que
esteve nas trincheiras da Grande Guerra e depois foi nosso presidente da Câmara, e que
morrera há sete anos mas parece que foi ontem, e que maravilhoso pregador ele era até o Criador o chamar à sua presença! Rick, o teu avô, Tom o teu avô nominal que eu
nunca quis que conhecesses pessoalmente.
Possuo duas versões da Mensagem de Makepeace, ambas incompletas, ambas sem
indicação de data, lugar ou proveniência: notícias de jornal amareladas, aparentemente
recortadas com uma tesoura de unhas da página eclesiástica dos jornais locais, que nesse tempo relatavam os feitos dos nossos pregadores tão fielmente como hoje os dos nossos
futebolistas. Encontrei-as na Bíblia de Dorothy, juntamente com a fotogra-
a. Makepeace não acusava ninguém directamente, não formulava C aramente uma
acusação. Esta é a terra dos subentendidos; falar clara- ente é uma coisa de pecadores. «Deputado lança Aviso Severo contra iça, Ganância
Juvenil», reza a primeira. «Perigos da Ambição dos jovens magnificamente
Apontados». Naíigurá imponente de Makepeace, «reunem-se a graça céltica do poeta, a
eloquência do estadista e o férreo
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sentido da Justiça do legislador», declara o autor anónimo do artigo. A 5 congregação
ficou «enfeitiçada até ao mais humilde dos seus membros» ! e nenhum mais enfeitiçado
do que o próprio Rick, que, num transe ' extasiado, abana a volumosa cabeça de acordo
com a cadência da retó- ' rica de Makepeace, apesar de todas aquelas palavras pronunciadas com | sotaque galês para todos os ouvidos e olhos excitados à sua volta se
dirigirem pessoalmente a Rick, percorrendo a nave até ao fundo, j como que empurradas
até ao seu destinatário pelos gestos desajeitados] do dedo indicador do lúgubre
Watermaster.
A segunda versão adopta um tom menos apocalíptico. O Grande! da Terra não tinha verberado os pecados da juventude, longe disso. Ofe-1 recera auxílio ao jovem pecador.
Exaltara os ideais da juventude, com-1 parando-os a estrelas. A crermos nesta última
versão, ficaríamos con-1 vencidos de que Makepeace era absolutamente louco por
estrelas. Não ] conseguia deixar de falar delas, e o autor da notícia também não. Es-i
trelas que são o nosso destino. Estrelas que guiam os Homens Sábios! pelos desertos até ao Berço da Verdade. Estrelas que alumiam a noite doj nosso desespero, sim, até
mesmo no abismo do pecado. Estrelas de to- j dos os feitios, para todas as ocasiões.
Reluzindo acima de nós como a| própria luz de Deus. O autor devia ser pago por
Makepeace Water-1 master, ou então era Makepeace em pessoa. Mais ninguém
consegui-, ria dourar desta maneira aquela aparição terrífica e ameaçadora nc púlpito. Embora nesse dia eu ainda não tivesse aberto os olhos, consigo vê-1 -Io, como o vi mais
tarde em carne e osso e como sempre o verei: alto ] como uma das chaminés da sua
fábrica e tão afunilado como ela. Como j um boneco de borracha, de ombros estreitos e
pouco pronunciados e a 1 cintura ampla e curva. Um braço de uma só peça estendido
para nós j como um sinal ferroviário, e uma mão flácida pendendo na sua extre- j midade. E a boca pequenina, húmida e flexível que ficaria melhor numa \ mulher,
pequena de mais até para ele ingerir alimentos através dela, dilatando-se e franzindo-se
em contracções para dar à luz vogais cheias de indignação. E quando por fim, passado
muito tempo, já foram pronunciadas suficientes ameaças aterradoras, e as penas
reservadas aos pecadores já foram descritas com suficiente pormenor, vejo-o retesar-se, encostar-se na cadeira e humedecer os lábios para o beijo de despedida por que nós,
crianças, ansiávamos desde que começara a falar, há quarenta minutos; e cruzávamos as
pernas e morríamos de vontade de fazer xixi, independentemente de termos ou não feito
xixi antes de sair
de casa. Um dos recortes cita por inteiro a seguinte passagem final, perfeitamente
absurda, que reproduzo aqui o texto é deles, não é meu , apesar de todos os sermões de
Watermaster a que assisti mais tarde terminarem assim, e apesar de essas palavras se
terem incorporado na própria natureza de Rick, permanecendo para toda a vida nele e,
através dele, para toda a minha vida (admirar-me-ia muito se não tivessem retinido aos seus ouvidos no momento da morte, acompanhando-o no caminho até ao Criador, dois
velhos amigos enfim reunidos):
« Os ideais, meus jovens irmãos! aqui vejo Makepeace fazer uma pausa, olhar
fixamente para Rick e recomeçar. Os ideais, meus queridos irmãos jovens e menos
jovens, devem ser comparados às estrelas esplêndidas que estão lá no alto vejo-o erguer os olhos tristes e sem brilho em direcção ao telhado de pinho: não podemos alcançá-los.
Milhões de milhas nos separam deles vejo-o estender os braços pendentes como que
para amparar um pecador na sua queda. Mas oh, meus irmãos, como beneficiamos com
a sua presença!».
Lembra-te delas, Tom. Jack, vais pensar que sou doido, mas essas estrelas, por muito tolas que pareçam, são um exemplo notável de inteligência operacional, porque
fornecem a Rick uma primeira imagem da sua confiança inabalável no destino
confiança que, aliás, não acabou com Rick; e como poderia tal acontecer, se um filho de
profeta não é mais do que uma profecia (mesmo que ninguém na terra descubra o que
poderão ser tais profecias)? Makepeace, como todos os grandes pregadores, tem de passar sem o cair do pano e sem aplausos finais. Todavia, e num tom bastante audível
no silêncio geral tenho testemunhas que juram que é verdade , Rick murmura duas
vezes «magnífico». Makepeace Watermaster também ouve faz um ruído indistinto com
os pés enormes e detém-se nos degraus do púlpito, olhando a sua volta de olhos
semicerrados como se alguém o tivesse insultado. Makepeace senta-se e o órgão ataca o cântico «A determinação que enche os nossos corações». Makepeace ergue-se de novo,
sem saber onde por o traseiro ridiculamente pequeno. Canta-se o hino até aos lúgubres
acordes finais. Os Rapazes da Escola Nocturna, com Rick no meio, ainda atingido por
tantas estrelas, avançam ao longo da nave e, num movimento de conjunto previamente
ensaiado, dirigem-se para os lugares combinados. Rick, elegantíssimo, hoje como todos os domingos, estende a bandeja das esmolas às senhoras Watermaster, com um bri-0
"eJnteligência divina nos olhos azuis-. Quanto é que elas vão dar?
o-ao depressa? O silêncio dá mais peso a estas graves questões. A pri-
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meira é Lady Nell, que o faz esperar enquanto revolve a mala, p jando, mas Rick hoje é
só paciência, só amor, só estrelas, e todas as s nhoras, independentemente da idade ou
beleza de cada uma, receb o seu sorriso encantado e beatífico. Mas enquanto a tonta da
Nell so ri parvamente para ele e tenta despentear-lhe o cabelo liso, puxand -lho para a
testa ampla de Cristão, a minha pequenina Dot só olha p o chão, ainda a rezar, a rezar mesmo de pé, e Rick vê-se obrigado a t car-lhe no braço com o dedo para a advertir da
sua proximidade, q se idêntica à de Deus. Ainda agora o sinto tocar o meu próprio bra
era uma descarga benéfica de tédio e devoção submissa que me a vessava. Os rapazes
perfilam-se diante do Altar do Senhor, o pastor cebe as oferendas, abençoa com
palavras breves a assistência e ordena todos os presentes, excepto a Comissão do Apelo, que abandonem o I cal imediatamente e em silêncio. As Circunstâncias Imprevistas vão
meçar, e com elas o primeiro grande julgamento de Richard T. Pym o primeiro de uma
longa série, é verdade; mas foi este que lhe abriu apetite para o Juízo Final.
i Li
Devo tê-lo visto uma centena de vezes tal como ele estava naqu manhã. Rick, meditando sozinho à porta de uma sala apinhada. RickJ digno filho do seu pai, com a
glória de uma grande herança a cavar-lhe rugas na testa. Rick, como Napoleão antes da
batalha, à espera de qu o Destino faça soar as trombetas, dando sinal para o assalto.
Nunca nal sua vida fez uma entrada frouxa, nunca desleixou a encenação nem o!
impacto. Fosse qual fosse o assunto em que estávamos a pensar, esque- | ciamo-lo: acabou de entrar o assunto do dia. O mesmo acontece no tabernáculo, neste domingo
chuvoso, com o vento do Senhor a fazer um grande ruído nas traves de pinho lá em
cima, e a triste massa humana dos bancos da frente a esperar acanhadamente por Rick.
Mas todos sa- j bemos que as estrelas são como os ideais: difíceis de atingir. Algumas
ca-j becas começam a voltar-se, há cadeiras que rangem. Nada de Rick. Os i Rapazes da Escola Nocturna, já no banco dos réus, humedecem os lábios e mexem nervosamente na
gravata. Rickie pôs-se a andar. Rick não j está à altura. Um diácono de vestes castanhas
avança, coxeando, com a misteriosa inquietação de um artesão, até ao vestiário onde
Rick pode-1 ria ter-se escondido. E depois, um ruído. Todas as cabeças se voltam
rapidamente, procurando detectar a origem do som, até que os seus olhos se dirigem para a grande porta do lado oeste, que uma mão misteriosa j
briu pelo lado de fora. Recortada num fundo de nuvens cinzentas de adversidade, a
silhueta de Rick T. Pym, até agora o mais óbvio dos herdeiros de David Livingstone,
curva-se solenemente perante os seus juizes e o seu Criador, fecha a porta atrás de si, quase se tornando uma vez mais invisível, uma figura escura junto à escuridão da porta.
Há um recado da velha Mrs. Harmann para o senhor, Mr. Phil
pott; Philpott era o nome do pastor. A voz era a de Rick, e todos fo
ram, como de costume, sensíveis à beleza daquela voz, aderindo a ela,
adorando-a, ao mesmo tempo assustados e atraídos pela sua segurança inabalável.
Ah, sim? diz Philpott, intimidado por lhe dirigirem a palavra
tão calmamente e de tão longe. Philpott também é galês.
Ela gostaria que alguém lhe desse boleia até ao Hospital Geral
de Exeter para ver o marido antes da operação, que é amanhã, Mr. Phil pott diz Rick deixando transparecer na voz alguma desaprovação.
Ela acha que ele não vai resistir. Se o senhor não puder, é claro que um
de nós pode tratar do assunto, não é, Syd?
Syd Lemon é um cocknef, cujo pai veio para o sul há pouco tempo para se tratar da
artrite e que, na opinião de Syd, vai morrer de tédio em vez de se curar. Syd é o lugar-tenente preferido de Rick, um lutador pequenino e enérgico, com a esperteza e a
agilidade do citadino, e Syd há-de ser sempre Syd para mim, mesmo agora: a pessoa
que mais se aproximou de um confessor, exceptuando Poppy.
Ficamos com ela a noite toda se for preciso afirmou Syd, com
uma rectidão convincente. E o dia seguinte também, não é, Rickie? Silêncio. Rosna Makepeace Watermaster. Mas não se diri
ge a Rick, que está a trancar as portas da igreja pelo lado de dentro.
Mal o divisamos, nos contrastes de luz e sombra da entrada. Clang, a
primeira tranca, lá em cima (tem de esticar-se para lhe chegar), já está.
Clang, a segunda, lá em baixo, e ele curva-se para ela. Finalmente, para grande alívio dos mais sensíveis, condescende em iniciar a sua
caminhada em direcção ao cadafalso. Neste momento já os mais fra
cos de entre nós estão dominados por ele. Neste momento, os nossos
corações pedem que nos seja concedido um sorriso, dele, do filho do
velho T.P.; chamam-no explicando que não se trata de nada de pes soal, pedindo notícias da sua pobre mãe, dessa senhora adorável
Porque a adorável senhora, como todos sabem, não se sente hoje mui
to bem, e ninguém conseguiu fazer com'que ela saísse de casa. Está
enfada, com a majestade própria de uma viúva, na sua casa em Air-
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dale Road, com as cortinas corridas, junto à enorme fotografia retocada de T.P., em que
ele aparece com as insígnias de presidente da Câmara; e se num minuto chora e reza
para que o seu falecido esposo regresse a esta vida, no minuto seguinte reza para que
fique quieto onde está e seja poupado à vergonha, e depois incita Rick, como velha jogadora que no fundo é: «Mostra-lhes como é, filho. Vence-os antes que eles te
vençam a ti; faz como o teu pai fez e melhor ainda». Neste momento, já os membros
menos mundanos do nosso tribunal improvisado se converteram (ou corromperam) à
causa de Rick. Como que para minar mais ainda a autoridade deles, o galês Philpott
cometeu em toda a inocência o erro de colocar Rick junto ao púlpito, precisamente no lugar onde ele outrora fizera a leitura do dia com enorme brio e fé. Pior ainda, o galês
Philpott conduz Ri< ao local e ajeita a cadeira para ele se sentar. Mas Rick não se deixa
nobrar com essa facilidade. Continua de pé, com uma das mãos nhosamente apoiada nas
costas da cadeira, como se tivesse decidi< adoptá-la. Entretanto, consegue trocar com
Mr. Philpott algumas lavras mais informais. E o que me diz ao azar do Arsenal no sábado? pergunta Ru
Em momentos mais favoráveis, o Arsenal era o segundo dos grani
amores de Mr. Philpott, como também o fora de T.P.
Deixa lá isso agora, Rick diz Mr. Philpott, muito atrapall
do. Bem sabes que temos assuntos sérios a discutir. Com um ar infeliz, o pastor retoma o seu lugar ao lado de M: peace Watermaster. Mas
Rick atingiu o seu objectivo. Criou laços qi Philpott quereria evitar, e apresentou-se-nos
como um homem coi sentimentos em vez de um vilão. Satisfeito com esta proeza, Rick
son| O seu sorriso dirige-se a todos nós; não é impertinente; impressioi -nos, com a sua
compaixão pelas forças da falibilidade humana que n< trouxeram a este difícil transe. Só o próprio sir Makepeace e Perce Loi o grande advogado de Dawlish, conhecido
como Perce-das-senten< que está sentado ao seu lado com os papéis, mantêm a mesma
dei provação granítica. Mas Rick não tem medo deles. Nem de Makep< ce e muito
menos de Perce, com quem nos últimos meses estabeli excelentes relações, baseadas,
segundo se diz, na compreensão e resj to mútuos. Perce quer que Rick estude advocacia. Rick está decidido isso, mas entretanto quer que Perce lhe dê conselhos sobre certas
sacções que tem em vista. Perce, sempre altruísta, oferece os seus pr< timos
gratuitamente.
A mensagem de hoje foi magnífica, sir Makepeace diz Rick. Nunca ouvi melhor. As suas palavras hão-de soar na minha cabeça
como os sinos do Paraíso enquanto o Senhor me der vida. Olá, Mr.
Loft.
Perce Loft é formal de mais para responder. Quanto a sir Makepeace, não é a primeira
vez que o adulam, e ele recebe os elogios com a maior das naturalidades. Senta-te diz o deputado liberal pelo nosso Círculo e juiz de
paz.
Rick obedece imediatamente. Rick não é inimigo da autoridade. Pelo contrário, é ele
próprio um homem de autoridade, como nós, os indecisos, já tivemos ocasião de
constatar; um chefe e um justiceiro numa só pessoa. Onde está o dinheiro do Apelo? perguntou Makepeace Wa
termaster, sem rodeios. Só no mês passado, os donativos quase atin
giram quatrocentas libras. E trezentas no mês anterior, e outras trezen-
las em Agosto. As vossas contas para esse período mostram uma receita
de cento e doze libras. Não puseram nada de lado e não têm dinheiro em caixa. O que é que fizeste com ele, rapaz?
Comprei uma camioneta diz Rick; e Syd, sentado no banco
dos réus como os outros (e para usar palavras do próprio Syd) tem uma
certa dificuldade em não cair para o lado.
Rick falou durante doze minutos contados pelo relógio do pai de Syd, e quando acabou Syd sabia que só Makepeace Watermaster continuava a ser um obstáculo à sua vitória
completa: O pastor já tinha cedido mesmo antes de o teu pai abrir a boca, Titch.
Também não podia ser de outra maneira: foi ele que deu a T.P. o seu primeiro púlpito.
O velho Perce Loft bom, o Perce nessa altura tinha mais que fazer, nao e. Rick tinha-lhe
calado a boca. Quanto aos outros, era tão fácil aze-los mudar de posição como tirar as calcinhas a uma puta: estavam à ^P™* de ver o que fazia O Grande Senhor Makewater.
Kick começa por chamar a si magnanimamente a responsabilidade
tudo o que aconteceu. Se há censuras a fazer, diz Rick, eu é que devo
ser objecto dessas censuras. As estrelas e os ideais não são nada ao lado
metáforas com que ele nos mimoseia: Se é preciso apontar a e o, apontem para aqui um golpe noséu próprio peito. Se há um
P eço a pagar, eis a morada. Aqui estou. Enviem-me a conta. E deixem
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que eles aprendam com os erros daquele que os colocou nesta situação, se erros houve diz em tom de desafio, obrigando a língua inglesa ai submeter-se, a título
exemplificativo, ao gesto autoritário da sua mão] gorda. Até ao fim da vida de Rick, as
mulheres sempre admiraram aque-J Ias mãos. Costumavam tirar conclusões a partir do
tamanho dos seusj dedos, que nunca se afastavam quando ele fazia um gesto.
Onde é que ele foi buscar aquela retórica? perguntei reveren-J temente a Syd, uma vez que estava a tomar uma «golada», como ele e|
Meg diziam, à lareira da casa deles, em Surbiton. Quem foram osl
modelos, para além de Makepeace?
Lloyd George, Hartley Shawcross, Avory, Marshall Hall, Nor-1
man Birkett e outros grandes advogados do tempo dele respondeu j Syd prontamente, como se recitasse os nomes dos cavalos e jóqueis das!
corridas de Newmarket. Nunca conheci ninguém que tivesse tanto
respeito pelos juristas como o teu pai, Titch. Estudava os discursos de-|
les, seguia-lhes a forma, melhor ainda do que seguia os cavalos. Teria
sido um juiz de primeira, se T.P. lhe tivesse dado essa oportunidade, na achas, Meg?
Teria sido primeiro-ministro afirma Meg com unção. Ha-f
via mais alguém além dele e de Winston?
Depois, Rick passa à sua Teoria da Propriedade, que tantas vezes e de tantas maneiras
diferentes o ouvi expor mais tarde mas penso que foi j aqui que ela se revelou. O refrão é o seguinte: todo o dinheiro que passa; pelas mãos de Rick está sujeito a uma
redefinição das leis da proprieda- , de, pois, faça ele o que fizer com esse dinheiro, vai
contribuir para que a j humanidade de que ele é o principal representante viva melhor.
Por-1 outras palavras: Rick não tira, dá, e aqueles que não compreendem isto | são
homens de pouca fé. O desafio final é constituído por um bombar- j deamento de crescente intensidade de frases pseudo-bíblicas gramatical- j mente enervantes e
proferidas num tom apaixonado. E se algum dei vós hoje aqui presente vê sinais de uma
única vantagem que seja 1 de um único benefício quer no passado, quer reservado para
o futuro j que advenha directa ou indirectamente desta empresa criada por mim por
muito ambiciosa que tenha sido, isso é o que menos impor-1 ta que esse indivíduo se erga, de coração puro e aponte o que devei ser apontado.
A partir daqui, só falta um passo para se chegar à sublime visão dal Companhia de
Camionagem Pym & Salvação, Lda., fazendo lucrar a j devoção e os adoradores do
nosso amado Tabernáculo.
A caixinha das surpresas está já aberta. Erguendo a tampa, Pym exibe uma confusão
estonteante de promessas e estatísticas. O preço actual da viagem de autocarro de
Farleigh Abbott até ao nosso Tabernáculo é dois pence. O trolky de Tambercombe custa
ttès pence, quatro pessoas num táxi vindo de qualquer destes dois lugares pagam seis
pence; uma camioneta Granville Hastings custa novecentas e oito libras com o desconto por se pagar a pronto, e tem trinta e dois lugares sentados e oito de pé. Só aos domingos
os meus assistentes fizeram um estudo extremamente aprofundado, meus senhores ,
mais de seiscentas pessoas percorrem, no seu conjunto, mais de quatro mil milhas para
virem rezar neste magnífico Tabernáculo. Porque amam este lugar. Como Rick. Como
todos nós, todos os homens e mulheres aqui presentes não tenhamos dúvidas sobre isso. Porque eles querem sentir-se atraídos da circunferência para o centro, de acordo com o
espírito da sua fé. Esta é uma das expressões do próprio Makepeace Watermaster, e Syd
diz que foi um bocado descarado da parte de Rick devolver-lha assim. Em três outros
dias da semana, meus senhores o dia da Congregação da Esperança, o do Esforço
Cristão e o do Grupo Bíblico da Liga das Mulheres , são percorridas mais setecentas milhas, deixando livres três dias para a exploração comercial normal, e se não acreditam
em mim, olhem para o meu braço, afastando os cépticos do caminho com uma série de
cotoveladas enérgicas, e os dedos sempre unidos, em concha. Torna-se evidente que só
há uma conclusão a tirar destes números:
Meus senhores, se cobrarmos metade da tarifa em vigor e deixarmos viajar de graça todas as pessoas inválidas e idosas, e todas as crianças com menos de oito anos; com um
seguro contra todos os riscos; respeitando todos os excelentes regulamentos que muito
justamente regem a exploração dos veículos de transporte comercial nesta nossa época
cada vez mais febril; com condutores profissionais perfeitamente conscientes das suas
responsabilidades, indivíduos tementes a Deus recrutados entre nós; tendo em conta o desgaste, o pagamento de uma garagem, a manutenção, o combustível, a instalação das
paragens os acessórios, e partindo do princípio de que a camioneta andará com uma
lotação de cinquenta por cento nos três dias de exploração co-ercial temos um benefício
líquido de quarenta por cento para o ^eo e ^nda fica margem de manobra para satisfazer
toda a gente. m Makepeace Watermaster faz perguntas. Os outros sentem-se ou de- •ado cheios ou demasiado vazios parajdizerem seja o que for.
~- E vocês compraram-na?
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Sim, sir. Pelo menos metade de vocês são menores.
Usámos um intermediário, sir. Um excelente advogado da região
que, na sua modéstia, deseja manter o anonimato.
A resposta de Rick provoca um dos raros sorrisos que alguma vi apareceram nos lábios
incrivelmente pequenos de sir Makepeace termaster. É a primeira vez que oiço falar de um advogado que queira
ter o anonimato diz ele.
Perce Loft fita a parede com um olhar carrancudo, mas distraído.
Então e onde é que ela está agora?
O quê, sir? A camioneta, rapaz.
- Está a ser pintada diz Rick. De verde, com letras douradas.
Mas quem é que vos deu autorização para se meterem neste pro
jecto? pergunta Watermaster.
Vamos pedir a miss Dorothy que seja ela a cortar a fita, sir Ma kepeace. Já temos o convite preparado.
Quem é que vos deu autorização? Aqui o Mr. Philpott? Os diá
conos? A comissão? Eu? Para gastar novecentas e oito libras de fundos
do Apelo, constituídos por pequenos donativos, numa camioneta?
Quisemos jogar com o elemento surpresa, sir Makepeace. Qui semos levar a banca à glória. Se espalhássemos a notícia antecip;
mente, se contássemos a toda a gente, perdia-se todo o impacto. |
C.P.S. vai ser lançada como algo de perfeitamente inesperado. )'■
Agora é que Makepeace entra naquilo a que Syd chama «a p; mais arriscada da
questão». Onde estão os livros de contas?
Os livros? Que eu saiba só há um livro...
Os arquivos. Os números. Foste só tu que te encarregaste da
tabilidade, segundo nos disseram.
Dê-me uma semana, sir Makepeace, e eu dou-lhe contas modo como foi gasto cada.penny.
Isso não é encarregar-se das contas. É forjá-las. Não apreni
nada com o teu pai, rapaz?
A rectidão e a humildade perante Jesus, sir.
Quanto é que gastaste? Não gastei: investi.
Quanto?
Mil e quinhentas. Em números redondos.
Onde está neste momento a camioneta? Já lhe disse, sir; está a ser pintada.
Onde?
j<fa oficina dos Balhams de Brinkley. São fabricantes de camio
netas, e dos melhores liberais do condado. Comportam-se cristãmente
com uma pessoa. Eu conheço os Balhams. T.P. vendeu-lhes madeira durante dez
anos.
Estão a cobrar-nos o preço de custo.
E vocês dizem que querem dedicar-se à exploração comercial da
camioneta? Três dias por semana.
Usando as paragens das carreiras normais?
Claro.
Já pensaram qual vai ser a atitude da Companhia de Transpor
tes Dawlish & Tambercombe de Devon em relação a esta aventura? Uma exigência popular como esta esses fulanos não podem
impedir-nos de a satisfazer. É Deus que nos conduz. Quando assisti
rem a uma vaga de fundo, quando auscultarem a situação, hão-de re
cuar, deixando-nos o caminho livre para avançarmos até ao fim. Não
podem deter o progresso, sir Makepeace, nem a marcha do povo de Cristo.
Ai, não podem diz sir Makepeace, rabiscando números numa folha de papel à sua
frente. Também faltam oitocentas e cinquenta libras do dinheiro das rendas observa,
enquanto escreve.
Também investimos o dinheiro das rendas, sir. Então foram mais de mil e quinhentas libras.
Digamos duas mil. Em números redondos. Há pouco julguei que se referia só ao
dinheiro do Apelo.
E o dinheiro das colectas?
Investimos uma parte dele. y No conjunto, contando com todos os dinheiros de todas as proveniências, qual é o
vosso capital? Em números redondos.
Incluindo os investidores particulares, sir Makepeace... watermaster endireitou-se:
Ai, então também temos investidores privados, hem? Caramba, z. andaste a gastar à
larga. Quem são eles?
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Clientes particulares.
De quem?
Perce Loft ostenta o ar de quem está prestes a adormecer de puro tédio. As pálpebras descaem-lhe sobre os olhos, e a sua cabeça, que lembra a de uma cabra, vai-se
inclinando para a frente.
Sir Makepeace, não estou autorizado a revelá-lo. Quando a
C.P.S. promete segredo, respeita a promessa. A integridade é o nosso
lema. A companhia já foi registada? A
Não, sir. l?
Porquê?
Por uma questão de segurança. Para manter a coisa secreta, como ■
já lhe disse. Makepeace começa de novo a tomar notas. Toda a gente está à es-; pêra de mais
perguntas. Não houve nenhuma. Makepeace tem o ar, í desconfortável para a
assistência, de quem já tomou uma decisão; e Rick é o primeiro a senti-lo. Era como
estar no consultório do médico, Titch disse-me Syd e ele já ter percebido de que é que
uma pessoa está a morrer: só falta passar a receita para dar depois a bela notícia. Rick torna a falar. Por iniciativa própria. Com a voz dos momentos j em que estava
encurralado. Syd ouviu-a nesse dia, e depois disso, sóf mais duas vezes. Não era um
tom de voz nada agradável.
A verdade é que eu lhe podia apresentar as contas hoje à noite,
sir Makepeace. O problema é que estão num cofre. Teria de as ir bus car.
Entrega-as à polícia diz Makepeace, ainda a escrever.
não somos detectives, somos membros de uma igreja.
Mas talvez a opinião de miss Dorothy seja diferente, não
sir Makepeace? miss Dorothy não tem nada a ver com isto.
Pergunte-lhe. *
Então Makepeace pára de escrever e ergue a cabeça com um ar
tante irritado, segundo conta Syd; e olham um para o outro, e a in< teza paira nos
olhinhos infantis de Makepeace. E o olhar de Rickie sa a ter repentinamente o brilho de uma navalha no escuro. Syd nã tão longe como eu na descrição desse olhar, porque não
quer admii lado negro do herói de toda a sua vida. Mas descrevo-o eu. É um que
espreita para fora dele como uma criança através dos buraco: uma máscara. Que renega
tudo o que defendeu no instante an
O e é pagão. Amoral. Que lamenta as decisões das pessoas, e o facto de elas serem
mortais. Mas que não pode agir de outro modo.
Estás a dizer-me que miss Dorothy é um dos investidores do pro
jecto? diz Makepeace.
Pode investir-se mais do que dinheiro, sir Makepeace diz Rick, lá de longe, mas como se estivesse próximo.
Aqui, Syd diz precipitadamente que na verdade Makepeace nunca deveria ter obrigado
Rick a utilizar aquele argumento. Makepeace era um homem fraco a querer agir com
dureza, e são esses os piores, diz Syd. Se Makepeace tivesse sido razoável, se tivesse
acreditado como os outros e se tivesse ' Ao uma opinião um pouco mais favorável do pobre filho de T.P., em vez de desconfiar do negócio e levar todos os outros a
desconfiarem também, as coisas poderiam ter-se resolvido de modo amigável e positivo,
e todos teriam regressado a casa felizes e contentes, acreditando em Rick e na sua
camioneta, como ele queria e precisava que acreditassem. Mas assim, Makepeace era a
última barreira e não deixou outra alternativa a Rick que não fosse a de o derrubar. E foi o que Rickie fez, não é verdade? Bem, fomos obrigados a isso, Titch, as coisas são
assim mesmo.
Eu bem me esforço, Tom. Contraio todos os músculos da minha imaginação para
penetrar até onde ouso nas sombras densas da minha própria pré-história. Pouso a caneta e olho fixamente para a horrenda torre da igreja do outro lado do largo, e
oiço tão claramente como a televisão de miss Dubber lá em baixo as vozes contrastantes
de Rick e de sir Makepeace Watermaster travando o seu duelo. Vejo a saleta escura da
vivenda The blades onde tão poucas vezes me deixaram entrar, e imagino os dois
homens ali trancados nessa noite, e a minha pobre Dorothy tremendo no nosso quarto sombrio do andar de cima, lendo homilias bordadas à rnao como as que agora adornam
o patamar das escadas de miss Dub-"«> tentando consolar-se com as flores de Deus,
com o amor de Deus, °m a vontade de Deus. E seria capaz de reproduzir, sem falsear
mais
que uma ou duas frases, aquilo que eles então acrescentaram à conversa interrompida dessa manhã.
boa disposição de Rick voltou, porque a navalha nunca está à vis-
urante muito tempo e porque já conseguiu alcançar aquele que é o
principal objectivo em todos osriegócios humanos (mesmo que ele
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próprio ainda não tenha consciência disso). Conseguiu que Makepea-ce tivesse a seu
respeito duas, ou talvez mais, opiniões completamenteí divergentes. Mostrou-lhe a versão oficial e a versão oficiosa da sua personalidade. Ensinou-o a respeitar Rick na
sua complexidade e a lidai tanto com o seu mundo manifesto como com o seu mundo
secreto. Foi como se na intimidade daquela sala cada jogador tivesse mostrado as
muitas cartas (verdadeiras ou falsas, isso é o que menos importa) que constituíam o seu
jogo: e Makepeace tivesse ficado sem um tostão. Mas a verdade é que os dois homens já morreram e os dois levaram o segredo para a cova, fazendo-o sir Makepeace com trinta
anos de avanço. E a única pessoa que talvez ainda saiba, não pode falar, porque mesmo
que esteja ainda viva é sob a forma de fantasma, assombrando a sua própria vida e a
minha, morta há muito tempo pelas consequências daquele mesmo diálogo fatídico
entre os dois homens. A história regista dois encontros entre Rick e a minha Dorothy antes daquele domingo.
O primeiro foi quando ela fez uma visita régia ao Clube dos Jovens Liberais, de que
Rick era então um dos funcionários eleitos tesoureiro, segundo creio, valha-nos Deus. O
segundo, quando Rick era capitão da equipa de futebol do Tabernáculo e um tal Mor-rie
Washington, também Rapaz da Escola Nocturna e lugar-tenente de Rick, guarda-redes. Dorothy, na sua qualidade de irmã do Sócio Honorário, foi convidada para entregar a
taça. Morrie recorda a cerimónia da entrega, com Dorothy a passar revista às tropas e a
prender uma medalha em cada peito vitorioso, começando pelo próprio Rick, por ser ele
o capitão. Ela parece ter-se atrapalhado com a medalha, ou pelo menos Rick fez de
conta de que isso tinha acontecido. Seja como for, ele deu um grito de dor na brincadeira, e colocou um joelho em terra, agarrado ao peito e insistindo em que
Dorothy o atingira no coração. Era um número audacioso e de bastante mau gosto, e
admira-me que ele tenha ido tão longe. Mesmo no domínio do burlesco, Rick em geral
protegia muito a sua dignidade, e nos bailes de máscaras, tão na moda até ao início da
guerra, preferia disfarçar-se de Lloyd George a cair no ridículo. Mas nesse dia lá se ajoelhou Morrie lembrava-se como se tivesse sido ontem , e Dorothy riu, coisa que
nunca ninguém a tinha visto fazer: rir. Que encontros se seguiram a esse, não podemos
saber, mas, diz Morrie, que Rick uma vez se gabou de ter mais do que bolo e limonada à
espera quando entregava a revista da paróquia em The Glades. Acho que Syd sabe mais do que Morrie. Syd viu muitas coi pessoas contam-lhe coisas
porque ele não as divulga. Penso que S
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hecer quase todos os segredos que infestavam a casa de madeira a que K/lakepeace Watermaster chamava o seu lar, embora nos últimos anos de
da se tenha esforçado por os enterrar a seis pés de profundidade. Sabe orque é que Lady
Nell bebia e porque é que Makepeace se sentia tão
ai consigo mesmo, porque é que os seus olhinhos húmidos tinham uma expressão tão
atormentada, e a sua boca era menor do que os seus apetites, e porque é que era capaz de punir o pecado com tão apaixonada familiaridade. Sabe porque é que Makepeace se
referiu a um amor muito especial ao escrever o seu maldito nome na Bíblia da minha
Dorothy. E porque é que Dorothy tinha passado a dormir no recanto mais remoto da
casa, longe dos aposentos de Lady Nell e mais longe ainda dos de Makepeace. E porque
é que Dorothy acolheu tão favoravelmente o novo-rico bem-falante da equipa de futebol que parecia capaz de abrir um caminho por onde ela pudesse chegar a algum lado,
levando-a até lá na camioneta. Mas Syd é um homem bom, e é mação. Adorava Rick e
consagrou os melhores anos da sua vida a divertir-se ruidosamente com ele, umas vezes,
e a viver à sua sombra, o resto do tempo. Syd gosta muito de rir, de contar histórias,
desde que isso não fira especialmente ninguém. Mas Syd não quer falar do lado negro das coisas.
A História também regista que Rick não levou nenhum livro de contas para esse
encontro, apesar de Mr. Muspole, o grande contabilista e também Rapaz da Escola
Nocturna, se ter oferecido para o ajudar a fazê-las, como provavelmente acabou por
acontecer. Muspole tinha para inventar contas a mesma facilidade que outros têm para escrever postais durante as férias ou debitar anedotas para um microfone. A História
regista ainda que, para se preparar, Rick deu um passeio solitário ate Brinkley Cliffs: o
primeiro passeio dessa espécie de que há notícia na sua vida, embora Rick, e eu depois
dele, fosse o tipo de pessoa que sai de casa e se põe a vaguear em busca de uma decisão,
de uma voz. E que regressou de The Glades com um ar de importância não muito di-erente do de Makepeace Watermaster, apenas com a diferença de pos-uir em maior grau
aquele brilho natural que vem, segundo aprende-m°s, da pureza interior. A questão do
Apelo fora resolvida, confiou ele
s seus cortesãos. O problema da liquidez fora solucionado, acrescen-
u- Iodos iam ficar satisfeitos. Como? Suplicaram-lhe que explicasse, o, Rickie? Mas Rick preferiu continuar a ser o mago, e não permi-4 e ninguém espreitasse para ver o
que tinha na manga. Porque eu um eleito. Porque domino o curso des acontecimentos.
Porque o
CU destino é vir a ser um dos Grandes da Terra.
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Não lhes revelou a outra notícia, que era um cheque de quinhen libras, a debitar na
conta pessoal de Makepeace Watermaster, per tindo a Rick estabelecer-se na vida de
preferência lá longe na j trália, disse Syd. Rick endossou-o a Syd, que levantou o
dinheiro, j que a conta bancária de Rick estava então temporariamente indisp como tantas vezes veio a estar mais tarde. Alguns dias depois, e à c ta deste subsídio, Rick
presidiu a um banquete abundante, emh sombrio, no Hotel Brinkley Towers, em que
esteve presente toda a < te de então e várias Beldades locais que eram um elemento
indispe vel nestas ocasiões. Syd recorda que pairava no ar uma sensação de i dança
histórica, embora ninguém soubesse muito bem o que é i tinha terminado e o que é que ia começar. Houve discursos, quase t dos sobre o tema dos velhos amigos que
permanecem unidos e > nham com rectidão pela vida fora; mas quando beberam à
saúde1! Rick, este respondeu com uma brevidade contrária aos seus hábil sussurrou-se
então que era a emoção que o dominava, porque alg o viu chorar, coisa que fazia com
frequência, mesmo nesse tempo; i capaz de chorar litros de água e encharcar lenços atrás de lenços.'. Loft, o grande advogado, esteve presente na reunião, para grande í
presa de alguns; e para maior surpresa ainda, trouxe com ele uma j vem estudante de
música lindíssima, mas um pouco estranha, de no Lippschitz, nome próprio Annie, que
fez esquecer as restantes Bel< des, embora viesse extremamente mal vestida. Passaram
a chamar-l Lippsie. Era uma refugiada alemã que consultara Perce sobre uma qu tão relacionada com a imigração, e Perce, na sua bondade, decidira < tender-lhe a mão
generosa, como fizera com Rick. Para encerra sessão, Morrie Washington, o bobo da
corte, cantou uma canção^ Lippsie fez coro com as outras mulheres, apesar de cantar
demasiad bem e de não poder, por ser estrangeira, apreciar devidamente as pa
ordinárias. O dia estava a nascer. Um táxi suave e discreto levou Ric que não tornou a ser visto na região durante muitos anos.
A História regista ainda que um certo Richard Thomas Pym,: teiro, e Dorothy Godchild
Watermaster, solteira, ambos muito ter porariamente desta paróquia, casaram solene e
discretamente no dia s guinte, na presença de duas testemunhas escolhidas no momento,
nu registo recém-inaugurado junto ao caminho do Oeste, no ponto ori se vira à esquerda para ir ter ao aeródromo de Northolt. E cue um i pazinho que recebeu o nome de
Magnus Richard, e cujo pe? J pode s estimado numas escassas libras, nasceu não eram
ainda passados f
es Deus o proteja. O Registo Comercial, que tive oportunidade de sultar, também refere o acontecimento, mas em termos diferentes. Ouarenta e oito horas depois do
nascimento, Rick trazia à luz do dia a Companhia de Seguros Magnus. Estrela de
Rectidão, Lda., com um capital social de duas mil libras. O objectivo expresso da
companhia era Concessão de Seguros de Vida aos Necessitados, aos Inválidos e aos
Idosos. O contabilista era Mr. Muspole e o consultor jurídico, Perce Loft Morrie Washington era secretário da companhia e o falecido Al-derman Thomas Pym,
afectuosamente conhecido como T.P., o seu santo padroeiro.
Mas afinal havia alguma camioneta ou era tudo conversa?
perguntei a Syd.
Syd é sempre cauteloso a formular as respostas. Bem, épossível que tenha existido uma camioneta. Não vou di
zer que não existiu. Se o fizesse, estaria a mentir. Só digo é que nunca
ninguém ouviu falar de camioneta nenhuma até o teu pai se referir a
ela na igreja naquela manhã. É só isto que eu posso afirmar.
Então o que é que ele tinha feito ao dinheiro, se não havia ca mioneta nenhuma?
Syd não faz ideia. Desde então já tantos milhares de libras correram por sob as pontes.
Tantas visões magníficas se desvaneceram.
Talvez Rick o tenha dado diz Syd, embaraçado. O teu pai
não sabia dizer que não a ninguém, especialmente às Beldades. Nunca se sentia bem consigo próprio senão a dar. Talvez um aldrabão qualquer
lho tenha extorquido. O teu pai sempre adorou aldrabões. E de
pois, para meu grande espanto, Syd começa a corar. E ouço sair da sua
boca, baixinho mas com suficiente nitidez, o mt-tat-tat que ele costu
mava fazer quando eu, em criança, lhe pedia que imitasse o barulho dos cascos dos cavalos.
Estás a querer dizer que ele gastou o dinheiro do Apelo nas corridas? pergunto eu.
Titch, estou só a dizer que a tal camioneta, se calhar afinal era Puxada por cavalos. É só
isso que estou a dizer, não é, Meg?
Ail< mas a camioneta existia, sim senhor: È não era de modo nenhum Puxada por cavalos. Era a mais esplêndida e potente de todas as camio-
52
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netas. As letras douradas da Companhia de Camionagem Pym & vação resplandeciam nos seus flancos lustrosos, como os cabeçalhos ilj ■minados no início dos capítulos de
todas as Bíblias da juventude de Ri O seu verde era o verde das corridas, o verde da
Inglaterra. O próprio sir Malcolm Campbell ia conduzi-la. Os Grandes da Terra
deslocar-se--iam nela. Quando os habitantes da nossa cidade vissem aquela camio neta,
pôr-se-iam de joelhos, juntariam as mãos e agradeceriam em igua| proporção a Deus e a Rick aquela dádiva. Multidões comovidas reunir* -se-iam à porta de Rick, chamando-o
à varanda até altas horas da noite; Várias vezes o vi ensaiando acenos, preparando-se
para saudar essas multidões. Com as duas mãos, como se me balouçasse acima da sua
cabeça; e sorri largamente e diz com lágrimas na voz: «Tudo o que Fiz, devo-o ao meu
querido T.P.». E se, como por certo aconteceu, se veio a descobrir que os Balhams de Brinkley, dos melhores liberais do país, nunca tinham propriamente ouvido falar da
camioneta de Rick, nem a tinham pintado pelo preço de custo em virtude da
generosidade dos seus corações, é porque se encontravam no mesmo estado de realidade
provisória que era o da camioneta. Estavam à espera que a varinha de condão de Rick os
trouxesse à existência. Foi só quando descrentes intrometidos como Makepeace Watermaster resolveram não aceitar este estado de coisas que Rick se achou envolvido
numa guerra religiosa e, como outros antes dele, obrigado a defender a sua fé por meios
desagradáveis. Ele queria a totalidade do nosso amor. O mínimo que podíamos fazer
confiar-lho cegamente. E esperar que ele, o Banqueiro de Deus, o se duplicar em seis
meses.
III
Mary estava preparada para tudo excepto para isto. Excepto para o ritmo e a pressa da
intrusão e para o número de intrusos. Excepto para a dimensão e complexidade da ira de
Jack Brotherhood e para a perplexidade dele, que parecia ser ainda maior do que a sua própria. E para o enorme alívio que era ele estar ali.
Quando ela lhe abrira a porta e o fizera entrar no hall, Jack quase não a olhara.
Tiveste algum indício de que isto ia acontecer?
Se soubesse de alguma coisa tinha-te dito disse ela: mal ti
nham aberto a boca e já estavam a discutir. Ele telefonou?
Não.
; Recebeste algum outro telefonema?
Não.
Ninguém disse nada? Continua tudo na mesma? Não, ninguém disse nada.
Trouxe-te um casal de hóspedes apontou com o polegar duas sombras atrás de si.
Parentes de Londres, que vêm para te consolar por uns tempos. Hão-de vir mais. E
depois, passou por ela como um enorme falcão à procura de outra presa, deixando-lhe
um instantâneo 0 seu r°sto coberto de rugas e cicatrizes, e do seu cabelo branco desgrenhado, e avançou impetuosamente para a sala de estar.
tu sou Georgie, da Sede disse a rapariga, na soleira da porta, este é Fergus. Lamentamos
imenso o que se está a passar, Mary. faziam bagagem; Mary conduziu-os até às escadas.
Eles pareciam cer o caminho. Georgie era alta e angulosa, com os cabelos sen-s«amente
lisos. ora.
l^ n*° era exactamente do mesmo meio de Georgie; era assim eos Serviços costumavam
trabalhar agor
55
Lamentamos muito, Mary repetiu Fergus, subindo as <
das atrás de Georgie. Náo se importa que demos uma vista de oll
pela casa, não?
Na sala, Jack Brotherhood apagara as luzes e abrira violentame as cortinas das portas envidraçadas.
Preciso da chave desta coisa. Da fechadura de segurança, ou <
raio é isto que eles aqui têm.
Mary deu alguns passos rápidos até à lareira e procurou às ap padelas a taça de prata das
rosas onde guardava a chave sobresselen Onde é que ele está?
Num ponto qualquer do mundo ou fora do mundo. Está a s
vir-se dos truques do ofício. Dos nossos truques. Quem é que ele <
nhece em Edimburgo?
Ninguém. A taça das rosas estava cheia de pequenos obje variados que ela e Tom lá tinham posto. Mas não estava lá chave i
nhuma.
Eles acham que ele foi até lá disse Brotherhood. Ac
que ele apanhou o comboio das cinco, em Heathrow. Um homem al|
com uma mala pesada. Mas conhecendo o nosso Magnus como n(5 conhecemos, bem sabes que tanto pode estar em Edimburgo como«
Tombuctu.
Procurar a chave era como procurar Magnus. Ela não sabia ] onde começar. Pegou na
lata do chá e agitou-a. Estava a entrar coíj pletamente em pânico. Agarrou a taça de
prata que Tom ganhara j escola e ouviu um objecto metálico deslizar lá dentro. Ao levar a < a Jack, bateu com a perna com tanta força que os olhos se lhe ene ram. Raios partam
o banco do piano.
Os Lederers telefonaram?
Não. Já te disse que não. Ninguém telefonou. Só cheguei <
aeroporto às onze. Onde são as fechaduras?
Mary procurou a fechadura de cima e guiou a mão de Jack até| Devia ter sido eu a fazê-
lo, que assim não precisava de tocar nele. PM -se de joelhos e começou a tactear à procura da fechadura de baixo, tou praticamente a beijar-lhe os pés.
Ele já alguma vez antes tinha desaparecido, e tu não me <
taste? perguntou Brotherhood, enquanto ela continuava às apalj
delas.
Náo.
. Vamos ser francos, Mary. Tenho todo o pessoal de Londres à per-
a O Bo está deprimidíssimo e o Nigel está neste momento em reunião à porta fechada
com o embaixador. A R.A.F. não nos transporta assim a meio da noite sem uma boa
razão. Nigel é o carrasco de Bo Brammel, dissera Magnus uma vez. Bo diz o que bem lhe
apetece a toda a gente, e Nigel marcha atrás dele cortando cabeças.
Nunca. Não. Juro-te disse ela.
Havia algum lugar de que ele gostasse especialmente? Algum es
conderijo para onde ele falasse em ir? Ele falou uma vez da Irlanda. Queria comprar uma quinta per
to do mar e escrever.
Norte ou Sul da Irlanda?
Isso não sei. Sul, parece-me. Tinha era de ser perto do mar. E
depois, de repente, foram as Bahamas. Isso foi mais recente. Quem é que ele conhece lá?
Ninguém. Pelo menos que eu saiba.
Ele alguma vez falou em passar para o outro lado? Uma peque
nina dacha nas margens do Mar Negro?
Não sejas idiota. Com que então a Irlanda, e depois as Bahamas. Quando é que
ele falou nas Bahamas?
Não falou. O que ele fez foi assinalar os anúncios de proprieda
des do Times e deixá-los de modo a que eu os visse.
Uma espécie de sinal? Uma censura, um chamamento, um sinal de que ele gostaria de estar noutro lugar.
Magnus tem muitas maneiras de se exprimir.
Ele alguma vez falou em se matar? Eles vão-te perguntar isso, Mary. Bem posso
perguntar-te eu primeiro.
Não. Não, não falou. : Não pareces muito segura.
Não estou; preciso de pensar.
Lie alguma vez andou assustado, com medo de uma agressão fí-
Não posso responder a tudo de repente, Jack! Ele é um homem mphcado, preciso de
pensar! Mary procurou acalmar-se. Em ''0 ã ^
fe' 'u
' naO Para tCK^as ̂ perguntas. Tudo isto é um per-
Mas foste muito rápida a telefonar do aeroporto. Assim que per-
56
57
cebeste que ele não estava no avião, foste a correr telefonar: «Jack, Jack, onde está
Magnus?». E tinhas razão, ele tinha desaparecido.
Eu vi a mala dele às voltas no maldito tapete rolante, percebes? Ele tinha despachado a bagagem! Porque é que não vinha no avião?
E em matéria de bebida, como é que ele andava?
Melhor do que antes. | 4
Melhor do que em Lesbos? í| j
Muito melhor. -| j E as dores de cabeça? ?g»
Passaram-lhe. ^>
Outras mulheres?
Não sei. Mesmo que as houvesse, não saberia. Como é que eu ia
descobrir? Se ele diz que passa a noite fora, passa a noite fora. Podia ser uma mulher, podia ser um agente qualquer. Podia ser Bee Lederer. Ela
não o larga. Pergunta-lhe a ela.
Julguei que as esposas sabiam sempre disse Brotherhood.
Com Magnus não saberiam, pensou ela, começando a adaptar-se
ritmo de Jack. • Ele ainda traz papéis para casa para trabalhar à noite?
guntou Brotherhood, espreitando para o jardim coberto de neveu,-,
Uma vez por outra. <:
Deixou cá ficar alguns papéis? •.',
Que eu saiba não. . ' t Papéis americanos? Material de um agente de ligação?
Eu não leio essas coisas, Jack, não é? Por isso não sei.
Onde é que ele os guarda?
Ele trá-los à noite e volta a levá-los de manhã. Como toda
gente. E onde é que os guarda, Mary?
Ao pé da cama. Na secretária. No sítio onde esteve a trab
onde quer que tenha sido.
E Lederer não telefonou?
Já te disse que não! Brotherhood recuou. Dois homens, bem agasalhados contra o i da noite, entraram
precipitadamente na sala. Mary reconheceu Lu den, o secretário particular do
embaixador. Tinha-se zangado recenl) mente com a mulher dele, Caroline, quando se
discutia a ideia de < um depósito de garrafas no pátio da embaixada, a título de exemp
para os vienenses. Mary achava que era fundamental fazê-lo. Caroli
T msden achava a questão irrelevante e explicou porquê num desabafa |rritado, durante
uma reunião secreta da Associação das Esposas de Diplomatas: Mary não era uma
verdadeira Esposa, disse Caroline. Era ma das Pouco Recomendáveis, tolerada como
Esposa para proteger o disfarce tonto do marido, e só por isso. Devem ter vindo a marchar como soldados pelo caminho da escola pensou ela.
Caminharam com dificuldade através de uma camada de neve de meio metro de
espessura para virem até aqui manifestar a sua discrição relativamente a Magnus.
Salve, Mary disse alegremente Lumsden, na sua melhor voz
de chefe de escuteiros. Era católico, mas cumprimentava-a sempre assim, por isso fê-lo também naquela noite. Para tudo parecer normal.
Ele trouxe alguns papéis para casa no dia da festa? perguntou
Brotherhood, fechando uma vez mais as cortinas.
Não. Mary acendeu a luz.
„ ■ Sabes o que é que ele leva nessa tal pasta preta que tem com ele? ' Ele não a levou daqui, portanto, deve ter ido buscá-la à embaixada. A única coisa que ele levou de casa
foi a mala que está agora em Schwechat.
Estava disse Brodierhood.
O segundo homem era alto e tinha um ar doentio. Trazia um saco bojudo em cada uma
das mãos enluvadas. Entra em cena a abortadei-ra. O avião devia vir praticamente cheio, pensou ela estupidamente: a Sede deve ter uma equipa permanente especializada em
deserções, alerta vinte e quatro horas por dia.
Este é Harry disse Brotherhood. Vai colocar uns apare-
Ininhos nos teus telefones. Serve-te deles normalmente. Não penses em
nós. Alguma objecção? Que objecções é que eu posso pôr?
Tens razão: nenhuma. Estou só a ser bem educado, porque é que não hás-de fazer o
mesmo? Vocês têm dois carros. Onde é que eles estão?
O Rover está lá fora, e o Metro está no parque de automóveis do aeroporto à espera de
que ele o vá buscar. ~~ ara que é que foste ao aeroporto se ele tinha lá o carro? ■ i ensei que ele gostasse de
me ver, por isso apanhei um táxi e fui.
Porque não levaste o Rover?
queria voltar com ele, e não_propriamente fazer um cortejo.
Onde está a chave do Metro?
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Provavelmente no bolso dele. Tens outra?
Ela procurou na carteira até a encontrar. Brotherhood meteu-a i bolso.
Vou fazê-lo desaparecer disse. Se alguém perguntar, i
na oficina. Não o quero lá no aeroporto.
Ela ouviu um ruído surdo no andar de cima. Observou Harry enquanto este tirava as botas de borracha e as < locava muito bem
alinhadas sobre o capacho junto às portas envid çadas.
O pai dele morreu na quarta-feira. O que é que ele andou a i
zer em Londres além de tratar do enterro? prosseguiu Brotherho
Presumi que passaria pela Sede dos Serviços. Mas não o fez. Não telefonou nem nos visitou.
Então provavelmente estaria ocupado.
Ele tinha alguns planos para Londres, alguma coisa que te ten
contado?
Disse que ia visitar o Tom ao colégio. Bom, ele isso fez. Foi lá. Mais alguma coisa? Amigos, encont
marcados, mulheres?
Mary sentiu-se repentinamente muito farta dele.
Ele foi enterrar o pai e arrumar as coisas, Jack. Toda a visita 1
um longo encontro marcado com uma só pessoa. Se fosse o teu pai < tivesse morrido, saberias como é.
Ele telefonou-te de Londres?
Não.
Responde-me com segurança, Mary. Pensa melhor. Já pa
cinco dias. Não. Não telefonou. Claro que não telefonou.
E costumava telefonar?
Quando podia utilizar o telefone de serviço, sim.
E quando não podia?
Ela pensou antes de responder. Fez um grande esforço. Já estav pensar há tanto tempo. Sim admitiu. Telefonava. Ele está sempre a querer saberá
estamos bem. Preocupa-se imenso. Acho que foi por isso que fiz Io
tanto barulho quando ele não apareceu. Já estava preocupada.
Lumsden passeava-se pela sala, de meias, fingindo admirar as; relas de paisagens gregas
pintadas por Mary.
Você é muitíssimo talentosa disse ele com um ar maravilha-
■ co]ando o nariz a uma vista de Plomari. Estudou numa escola
de Belas-Artes ou pinta assim naturalmente, sem nunca ter aprendido?
Mary ignorou-o. Brotherhood também. Era uma aliança tácita entre os dois. Os únicos diplomatas aceitáveis são monges trapistas surdos costumava dizer Jack. Mary
começava a concordar com ele.
Onde está a criada? perguntou Brotherhood.
Disseste-me para me ver livre dela. Pelo telefone. Quando eu te
liguei. ■ Ela deu por alguma coisa?
Não me parece.
Não pode haver fugas de informação, Mary. Precisamos de todo
o tempo de que pudermos dispor para estudar o assunto. Sabes isso, não
sabes? Sim, deduzi que assim fosse.
Temos de pensar nos espiões dele, temos de pensar em imensas
coisas. Muito mais do que possas imaginar. Londres está cheia de teo
rias e quer que lhe dêem tempo. Tens mesmo a certeza que Lederer não
telefonou? Meu Deus disse ela.
O olhar de Jack fixou-se em Harry, que estava a desempacotar os aparelhos de escuta.
Eram caixinhas de um cinzento esverdeado, sem mecanismos de controlo visíveis.
Podes dizer à criada que são transformadores disse.
Umformer soprou Lumsden, solícito, do outro canto da sala. Transformador é Umformer. «Die Kleinen Biichsen sind Umformer».
Uma vez mais, ignoraram-no. O alemão de Jack era quase tão bom
como o de Magnus e aí umas trezentas vezes melhor que o de Lumsden.
Quando é que volta?
■ Quem? A tua criada, quem havia de ser? " Amanhã, à hora do almoço.
1 odias ser uma menina bonita e ver se consegues que ela só volte daqui a uns dois ou
três dias.
A esta hora?
~~ Quero lá saber da hora! Faz o que te digo. ary foi até à cozinha e telefonou para casa da mãe de Frau Bauer zburgo. Peço imensa desculpa por-télefonar a esta hora incrível,
quando morre alguém é assim," é uma grande confusão, disse ela.
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HerrVym vai ficar em Londres mais uns dias, acrescentou. Porque é que não aproveita a
ausência de Herr Pym para fazer umas feriazinhas? Quando Mary regressou à sala, foi a
vez de Lumsden fazer o seu discurso. Percebeu imediatamente onde ele queria chegar e, a partir daí, deixou deliberadamente de o ouvir.
Só para preencher as lacunas mais embaraçosas, Mary... Para fa
larmos todos a mesma língua... Enquanto Nigel ainda está fechado à
chave com o embaixas... Deus permita que isso não aconteça, mas se
essa imprensa odiosa souber do assunto antes de estar tudo esclarecido, Mary... Lumsden tinha frases feitas para todas as circunstâncias, e
era considerado um indivíduo esperto, vivo. Aliás seria esse o cami
nho que o embaixas gostaria que todos nós seguíssemos concluiu,
servindo-se das expressões mais recentes de um calão ousado. Só se
nos perguntarem alguma coisa, claro. Mas é preciso estarmos prepara dos para isso. E à Mary ele manda toda a sua afeição. Ele vai-lhe dar
todo o apoio que puder. E a Magnus também, claro. As mais sinceras
condolências, e tudo o mais.
E nem uma palavra ao clã Lederer disse Brotherhood. Não
dizes nada a ninguém, mas, por amor de Deus, peço-te especialmente que não digas nada ao Lederer. Não há desaparecimento nenhum, nada
de anormal. Ele foi até Londres para o enterro do pai, e vai ficar
uns tempos para conversações na Sede. Fim da mensagem.
É esse o caminho que eu já tenho estado a seguir disse
dirigindo-se a Brotherhood como se Lumsden não existisse. Só qi Magnus não requereu a licença antes de partir.
Sim, mas parece-me que essa é a parte que o embaixas não qi
que nós contemos, se não se importa disse Lumsden, com uma
metálica. Portanto, por favor, não fale nisso.
Brodierhood, então, enfrentou-o. Mary era da família. Ningui lhe dava ordens na presença de Brotherhood, e muito menos um la-caiozinho, bem educado de mais, do
ministério dos Negócios Estrangeiros.
Já fez o que tinha a fazer disse Brotherhood. Agora desa
pareça, está bem? Já.
Lumsden saiu por onde entrara, mas mais depressa. Brotherhood voltou para junto de Mary. Estavam sós. Ele era forte como os velhos
castelos e, quando queria, tão rude como eles. A ma' deixa da frente, branca, caíra-lhe
para a testa. Pôs-lhe as mãos nas ancas como outrora costumava fazer e puxou-a para si.
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Ora bolas, Mary disse-lhe enquanto a abraçava , Magnus
melhor dos meus rapazes. Que raio fizeste tu com ele?
Ela ouviu um chiar de rodízios e um novo baque no andar de cima.
É a cómoda de bojo saído. Não, é a nossa cama. Georgie e Fergus estão
a fazer a sua inspecção. A secretária estava no antigo quarto dos criados, junto à cozinha: era uma cave longa e
estreita e cheia de aranhas onde há quarenta anos não era alojado nenhum criado. Perto
da janela, no meio dos vasos de flores de Mary, estava também o seu cavalete e as
aguarelas. Junto à parede, a velha televisão a preto e branco, com um sofá agonizante à
sua frente Não há como um pouco de incomodidade gostava Magnus de dizer, com afectação , para nos ajudar a decidir se um programa vale ou não a pena ser visto. Num
recanto, debaixo do sítio por onde passavam as canalizações, ficava a mesa de pingue-
pongue, onde Mary Lzia as suas encadernações, e sobre ela estavam espalhadas as suas
peles, entretelas, colas, grampos, fios, papéis marmoreados, facas, os tijolos enfiados
em meias velhas de Magnus que ela utilizava em vez de pesos de chumbo, e os livros estragados que adquirira por alguns xelins no mercado de velharias. Ao lado da mesa,
junto ao esquentador já defunto, estava a secretária, a enorme secretária Hapsburg, toda
estragada, que fora comprada por um preço irrisório num leilão em Graz, partida aos
bocados para passar na porta e depois colada de novo, tudo isto proezas do habilidoso
do Magnus. Brotherhood puxou as gavetas. Chave? ,
Magnus deve tê-la levado. .
Brotherhood ergueu a cabeça.
Harry!
Harry trazia as gazuas penduradas numa corrente, exactamente como os outros homens trazem as chaves, e sustinha a respiração para ouvir melhor enquanto as experimentava.
Quando ele trabalha em casa, é sempre aqui ou também noutros sítios?
vJ papá deixou-lhe uma velha mesa de campanha. Às vezes é lá ^e ele trabalha.
Onde é que ela está?
No primeiro andar. ^'' ~~ Em que lugar do primeiro atttlãr?
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No quarto de Tom.
E também lá guarda os documentos dele, não? Papéis do ser- viço?
Não me parece. Não estou a ver onde.
Harry saiu sorrindo, de cabeça baixa. Brotherhood abriu uma das gavetas.
Isso é para o livro que ele estava a escrever disse ela, ao vê-lo
tirar de lá de dentro um dossier fininho. Magnus guarda sempre todos os objectos dentro de alguma coisa. Tudo tem de andar disfarçado para
ser real.
Ah, sim? Jack pôs os óculos, ajeitando-os primeiro a uma das
orelhas vermelhas, depois à outra. Jack também sabia do romance, pen
sou ela ao olhar para ele. Nem sequer se finge surpreendido. Sim. E bem podes tornar a pôr o raio dos papéis no lugar de
onde os tiraste, pensou. Ela não gostava da frieza que ele tinha adquiri
do, de toda aquela dureza.
Então ele desistiu de desenhar, hem? Julguei que vocês se dedi
cavam os dois a isso. O desenho não o satisfazia. Concluiu que preferia a palavra
crita.
Não parece ter escrito muito aqui. Quando se deu essa
dança?
Em Lesbos. Durante as férias. Ele ainda não está a escrever, a preparar o livro.
Ah. Brotherhood começou a ler outra página.
Ele chama a isso uma matriz.
Não me digas? e continuando a ler. Tenho de mostrar
gumas passagens ao Bo; ele é todo literário. E quando nos reformarmos enfim, quando ele se reformar 4
se ele pedir a reforma antecipada, vai-se dedicar à escrita e eu à pini
e às encadernações. O plano é esse. Brotherhood virou a página.
No Dorset?
Sim, em Plush. Bom, e ele sempre se decidiu pela reforma antecipada fo«i
comentário desagradável que Jack fez quando acabou de ler. Ni
houve também um tempo em que ele se dedicou à escultura?
Era pouco prático.
Sim, devia ser. - ífj
yocês é que fomentam essas coisas, Jack. Os Serviços. Estão sem-
a dizer que devemos ter hobbies e distracções.
" Sobre o que é o livro, então? Algum assunto em especial?
£|e ainda está à procura do tema. E não gosta de falar nisso. Ouve isto: «Quando pairava sobre aquele lar a mais horrível das
istezas; quando o próprio Edward estava desesperado, mas continuava a comportar-se
lindamente como só ele sabia». Isto nem sequer tem uma oração principal; pelo menos
que eu veja.
Não foi ele que escreveu isso. É a letra dele, Mary.
£ de Um livro qualquer que ele leu. Quando ele lê, sublinha cer
tas frases a lápis. E depois, quando acaba o livro, copia as suas passa
gens preferidas.
Ouviu um estalido seco vindo do andar de cima, como um rachar de madeira ou como um disparo de pistola nos primeiros tempos da sua aprendizagem.
O barulho vem do quarto de Tom disse ela. Não me pa
rece necessário que eles lá estejam.
Arranja-me um saco, minha querida disse Brotherhood.
Um saco do lixo serve. És capaz de ver onde é que há um? Mary foi à cozinha. Porque é que eu permito que ele me trate assim? Deixo-o entrar na
minha casa, no meu casamento e na minha cabeça para ele levar consigo tudo o que não
lhe agrada? Em geral, Mary não era assim tão complacente. Os comerciantes não a
enganavam duas vezes. Na Escola inglesa, na Igreja inglesa, na Associação das Esposas
de Diplomatas, ela era até considerada uma verdadeira fera. E, no entanto, bastava que os olhos azuis-claros de Jack Brotherhood se fixassem nela por momentos, bastava um
grunhido da sua voz sonora e descuidada para Mary lhe obedecer imediatamente.
E por ele ser tão parecido com o papá, pensou ela. Ele adora a nossa Inglaterra, a
Inglaterra à nossa maneira, e o resto que se lixe.
por eu ter trabalhado para Jack em Berlim quando não passava uma menininha de colégio desmiolada, mas com um pequeno ta-°- Jack foi o meu amante mais velho na
altura em que eu julgava Precisar de um amante mais velho.
por ele ter orientado Magnus, quando este estava ainda hesitan-> o seu processo de
divórcio e por depois me ter oferecido «para a so-^mesa», como ele dizia.
Porque ele também gosta muito de Magnus.
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Brotherhood estava a virar as páginas da agenda dela, que se en contrava na secretária.
Quem é este P.? perguntou ele, apontando para uma das f0.
lhas. Vinte e cinco de Setembro. Seis e trinta P. Também há um p no dia dezasseis. Não é P de Pym, pois não, ou estou a ser estúpido outr;
vez? Quem é este P. com quem ele se encontra?
Ela começou a ouvir o grito dentro de si própria e já não tinh; whisky para o abafar. De
todas as anotações, e são várias dúzias delas Jack tinha logo de ir escolher aquela.
Não sei. Um agente. Não sei. Foste tu que escreveste isto, não foste?
Foi Magnus que me pediu: «Escreve aí que eu tenho um encon
tro com P.». Ele não tinha uma agenda só dele. Dizia que era perigoso
E punha-te a escrever coisas na agenda por ele.
Ele dizia que, se alguém fosse ver, não teria maneira de sabei quais eram os compromissos dele e quais os meus. Fazia parte da SUÍ
maneira de partilhar. Sentiu o olhar fixo de Brotherhood. Ele está a
obrigar-me a falar, pensou. Está a querer ouvir a minha voz a tremer.
Partilhar o quê?
O trabalho dele. Explica-te. i
Ele não me podia contar o que fazia, mas podia mostrar-rjfe qu<
o fazia, e quando é que o fazia.
Foi ele que te disse isso? \':h
Era o que eu sentia. Sentias o quê? \,
Que ele tinha orgulho nisso! Que ele queria que eu soubesse
Que soubesses o quê?
Brotherhood conseguia pô-la fora de si, mesmo quando Mary sa bia que ele estava a
fazer de propósito. Que eu soubesse que ele tinha uma outra vida! Uma vida iro
portante. Que estava a ser utilizado.
Por nós?
Sim, por vocês, Jack. Pelos Serviços! Quem pensavas que fosse-
Os americanos? Porque é que referes os americanos? Ele, por acaso, estava obce
cado pelos americanos?
Porque é que havia de estar? Ele esteve em Washington em ser
viço.
jss0 nâo quer dizer nada. Até o podia ter encorajado. Vocês co
nheceram os Lederers em Washington?
Claro que conhecemos.
J^JS tornaram-se mais íntimos aqui, não? Ouvi dizer que ela é
uma mulher e pêras. Ele virou as páginas correspondentes aos dias que ainda faltavam suportar. Amanhã, e o
dia seguinte. E o fim-de-semana, que a fitava como um enorme buraco aberto no seu
universo destroçado.
Importas-te que eu fique com isto? perguntou Brotherhood.
Claro que Mary se importava, e bastante. Não tinha outra agenda, e também não tinha outra vida. Tirou-lha das mãos e fê-lo esperar enquanto copiava o seu futuro para uma
folha de papel: «Bebidas Lederers... jantar Dinkels... Início férias de Tom...» Chegou a
«Seis e trinta da tarde, P.», e não copiou.
Porque é que esta gaveta está vazia?
Eu não sabia que estava vazia. ' ' E antes estava cheia de quê?
Fotografias velhas. Recordações. Nada de especial.
Há quanto tempo está vazia?
Não sei, Jack. Não sei! Deixa-me em paz, está bem?
Ele meteu alguns papéis na mala? Eu não o vi fazer a mala.
Mas ouviste-o aqui em baixo, a fazê-la?
Ouvi.
O telefone tocou. A mão de Mary precipitou-se para atender, mas Brotherhood agarrou-
lhe imediatamente o pulso. Sem a largar, inclinou-se para a porta e gritou por Harry; o telefone continuava a tocar. Já eram quatro da manhã. Ora bolas, quem é que ia
telefonar às quatro da manhã senão Magnus? No seu íntimo, Mary rezava tão alto que
mal ouviu o grito de Brotherhood. O telefone continuava a chamá-la e ela sa-
agora que nada tinha importância excepto Magnus e a sua família, ode ser Tom! gritou
ela, lutando. Larga-me, raios! Também pode ser Lederer.
arry deve ter vindo a voar pelas escadas abaixo. Ela contou mais ^joques até ele se
apresentar à porta da cave.
i esta cnamada ordenou Brotherhood, lentamente e
I^an7 desapareceu. Brotherhood soltou a mão de Mary. inoo tC ° ma*s <lue puderes, Mary>Estica a conversa. Tu sabes bem Jgaresse)°g°-Éoquetensdefazer.
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gom, bom disse finalmente Brotherhood. Sentias-te me lhor se fosse isso, não é? Um rapto? Porque é que dizes isso, minha que
da? Fico a pensar o que é que há no mundo de pior que um rapto...
Mary levantou o auscultador e disse:
Residência Pym. Ninguém respondeu. Brotherhood guiava-a com o seu pulso pressionando-a,
compelindo-a a falar. Ela ouviu um estalido mi e tapou o bucal com a mão.
Erf
Talvez seja uma chamada em código sussurrou. Pôs um
no ar um estalido. Depois um segundo. Depois um terceiro, uma chamada em código. Eles tinham feito telefonemas assim em Ber-f
lim: dois para isto, três para aquilo. Pessoais e previamente combina
dos entre o agente e a base. Arregalou os olhos em direcção a Brothe-
rhood, como quem pergunta «e agora o que é que eu faço?» Ele abaru
a cabeça, como quem diz «também não sei». s Fala acabou por dizer.
Mary respirou fundo.
Está? Pode falar, por favor. Refugiou-se no alemão.
é i residência do conselheiro Magnus Pym, da embaixada britânl Quem fala? Quer fazer
o favor de dizer alguma coisa? Mr. Pym não está, de momento. Se quiser, pode deixar recado. Senão, é favor telefonar noutra altura. Está?
Mais, exigia Brotherhood. Quero mais. Ela recitou o número de telefone em alemão, e
repetiu-o em inglês. Não tinham desligado do outro lado, e ela ouvia um ruído de
trânsito e um som de disco riscado tocado devagar de mais, mas já não havia estalidos.
Disse outra vez o número em inglês. Faça o favor de falar. A ligação está péssima. Está? Está a ouvir-
-me? Quem fala, por favor? Faça-o-favor-de-falar. Então não conse
guiu evitá-lo. Fechou os olhos e berrou: Magnus, por amor de Deus
diz onde estás! Mas Brotherhood foi bem mais rápido. Com a sabe
doria do amante, sentira a explosão a preparar-se e batera com a mão no telefone, desligando-o.
Curto de mais, sir lamentou-se Harry, junto da porta. Pre'
cisava pelo menos de mais um minuto.
Era do estrangeiro? disse Brotherhood.
Podia ser do estrangeiro, podia ser da porta ao lado, sir. Não foi nada bonito o que fizeste, Mary. Não tornes a fazer
no género. Estamos do mesmo lado nesta história, e eu é que m
Alguém o raptou disse ela. Tenho a certeza.
Tudo gelou: ela própria, os olhos claros de Jack, até mesmo ri à porta do quarto.
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Ao tentar retribuir o olhar fixo dele, Mary experimentou uma violenta distorção no seu
sentido do tempo. Não sei nada. Quero estar em Plush. Dêem-me outra vez a terra pela
qual Sam e o papá morreram. Viu-se a si própria, finalista do liceu, sentada diante da
professora encarregada da orientação profissional, a meio do seu último período escolar. Está com ela uma outra mulher, de Londres, com um ar resoluto.
Esta senhora recruta pessoas para o ministério dos Negócios Es
trangeiros, minha querida. Para um departamento bastante espe
cial diz a mulher resoluta.
Ela está muitíssimo impressionada com a maneira como tu de senhas, minha filha diz a professora. Admira muito o teu talento
para o desenho, como todos nós admiramos. E queria saber se tu esta
rias interessada em levar a tua pasta até Londres por um ou dois dias,
para outras pessoas a poderem ver.
É para o bem do teu país, minha querida diz com ênfase a mulher resoluta à filha de patriotas ingleses.
Recordava a casa onde fora treinada, em East Anglia, raparigas
como ela, da nossa classe. Recordava as divertidas lições em que apren
dia a copiar, gravar e colorir, lições sobre papéis, cartões, tecidos e fios,
sobre o modo de fazer marcas de água e de as alterar, sobre como fa bricar carimbos de borracha, como fazer o papel parecer mais velho
ou mais novo, e procurou recordar o momento exacto em que com
preendeu que as estavam a ensinar a forjar documentos para espiões
«tanicos. E viu-se de pé diante de Jack Brotherhood, no seu mi-
usculo gabinete em Berlim, no primeiro andar de uma casa que fi- «J* quase junto ao Muro, Jack o Surripiador, Jack a Doninha, Jack
egro e todos os outros Jacks por que era conhecido. Jack que co-
m " ava a delegação de Berlim e que gostava de receber pessoal-
r- ,Os rec^m-chegados, em especial se se tratasse de bonitas rapa-
seu C V'nte an°S' ^ecorc^ava ° olhar branco percorrendo devagar o '^0' Vlnkancio-lhe as formas e o peso sexual, e recordava
ra> ao * ?UC ° ra a primeira vista, como queria detestá-lo ago-
^0- uma P^^ ̂ e correspondência familiar que tirara
69
»as I A
Espero que já tenhas percebido que metade de tudo isso são as
cartas que Tom escreve do colégio disse Mary.
Porque é que ele não escreve para vocês os dois?
Mas ele escreve aos dois, Jack. Tom e eu temos a nossa com pondência, e Magnus e Tom têm uma correspondência à parte.
Nada de interconsciência disse Brotherhood, utilizando urna
expressão do calão do ofício, que lhe ensinara em Berlim. Acendeu utn
dos seus grossos cigarros amarelos e observou-a através da chama, nuirç
gesto teatral. Em cada um deles há um poseur, pensou ela. Incluindo Magnus e Grant.
Estás a ser absurdo disse ela, irritada e nervosa.
A situação é que é absurda, e mais minuto menos minui
aparecer aqui o Nigel para a tornar mais absurda ainda. Qual a
de tudo isto? O pai dele. Se é que há alguma situação a explicar. ;
De quem é esta máquina fotográfica? | ■;
De Tom. Mas todos nos servimos dela. j
Há mais alguma máquina fotográfica cá em casa? | -f
Não. Quando Magnus precisa de uma para o trabalho, tra-la da embaixada.
E neste momento está cá alguma máquina da embaixada?
Não.
Talvez tenha sido o pai a causa, talvez tenham sido muitas 01
coisas. Talvez uma desavença conjugal que eu desconheço tenha causa.
Nós não temos desavenças disse Mary.
Os olhos experientes de Jack fitaram-na.
Como é que conseguem? Ele não dá luta, é só isso.
Mas tu dás. Tu consegues ser perfeitamente diabólica qi
decides a isso, Mary.
Isso era dantes disse ela, desconfiando do encanto dele.|j Nunca chegaste a conhecer o pai dele, pois não? disseíj
therhood, rodando a película na máquina. Havia um prob
qualquer com ele, se bem me recordo. ., ,
Eles não se davam um com o outro. ,. . •.
Ah. Nada de dramático. Tinham-se afastado progiessivame
tipo de família em que isso acontece.
Que ôpo de família é esse, minha querida?
Disperso. Homens de negócios. Magnus disse que os tinha dei- ado interferir no primeiro casamento e que uma vez bastava. Quase nâo falávamos
nisso.
O que é que Tom achava dessa situação?
Tom é uma criança.
Tom foi a última pessoa que Magnus viu antes de desaparecer, Mary. Para além do porteiro do clube dele.
Então prende-o sugeriu malcriadamente Mary.
Deitando a película para dentro do saco do lixo, Brotherhood pegou no pequeno
transístor de Magnus.
É o modelo novo que eles agora fazem, com toda a gama das on das curtas?
Creio que sim.
E ele levava-o para férias, não? ,
Levava, sim.
E ouvia-o regularmente? ; Se, como uma vez me disseste, ele era a única pessoa que se ocu
pava da Checoslováquia aqui em Viena, seria bastante surpreendente
que não o fizesse.
Jack ligou o aparelho. Uma voz masculina lia as notícias em checo. Brotherhood ficou a
olhar para a parede com um ar ausente, deixando o rádio ligado durante um espaço de tempo que pareceu durar várias noras. Desligou-o e pô-lo no saco. O seu olhar dirigiu-se
para a janela sem cortinas, mas esteve ainda bastante tempo sem dizer nada.
Não temos demasiadas luzes acesas para esta hora da manhã, nao> Mary? perguntou
distraidamente. Não queremos que os vizinhos comecem a falar, pois não? Eles sabem que Rick morreu. Sabem que estamos numa situado fora do normal.
Bem podes dizê-lo.
deio-o. Sempre o odiei. Mesmo quando me apaixonei por ele.
o quando ele me agitava para cima e para baixo e eu chorava e
e agradecia. Mesmo então odiei-o. Fala-me da tal noite, estava ele a to |, la"se a noite em <lue tinham sabido da morte de Rick. Con-
U" tudo exactamente como tinha ensaiado.
rotherhood encontrara o vestiário e estava de pé diante da velha
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canadiana pendurada entre o sobretudo de Tom e o ovelha de Mary. Vasculhava os
bolsos. Vinha um ruído monótono andar de cima. Extraiu um lenço imundo e o resto de um tubo de n filhas de mentol.
Deves estar a brincar comigo disse.
Então está bem, se é isso que pensas.
Duas horas na neve gelada com os sapatos de
meio da noite? O nosso querido Nigel vai pensar que o estptgKldra bar. O que é que ele fez durante essas duas horas?
Andou.
Andou para onde, minha querida?
Não me disse. Perguntaste-lhe?
Não, não perguntei.
Então como é que sabes que ele não apanhou um táxi?
Ele não tinha dinheiro. A carteira e o porta-moedas estavam li
em cima, no quarto de vestir, juntamente com as chaves. Brothe rhood tornou a pôr os rebuçados e o lenço na canadiana.
E aqui não tinha nenhum?
Não.
Como é que sabes?
Ele é metódico nessas coisas. Talvez tenha pago no lugar de destino^
Não.
Talvez alguém o tenha ido buscar.
Não. ..,-.■,
Não, porquê? Ele é um andarilho, e estava em estado de choque. A razão é essa.
O pai tinha morrido e isso não lhe era indiferente, mesmo que não gos
tasse muito dele. É uma coisa que cresce dentro de Magnus. A tensáa
ou seja lá o que for. Por isso é que ele anda a pé. E eu abracei-o quan
do ele voltou, pensou ela. Senti-lhe o frio nas faces e o tremor no pe't0 e o suor quente que lhe ensopava o casaco, resultado das horas de nw1'
cha. E vou abraçá-lo outra vez, assim que ele tornar a entrar por aqu^
Ia porta.
Eu disse-lhe: «Não vás. Não vás hoje. Embebeda-te. Vamo-n05
embebedar juntos». Mas ele foi. Estava com aquele olhar dele. jou não ter dito isto, mas por um momento a sua raiva contra
fora tão grande como a que sentia contra Brotherhood.
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Que olhar é esse, Mary? «Estava com aquele olhar dele». Acho e nâ0 estou a perceber o que queres dizer.
q rjm olhar vazio. Como um actor sem papel.
paptl> O pai tem um ataque e morre e Magnus fica sem papel?
Que diabo quer isso dizer?
Ele está a apertar comigo, pensou Mary, recusando-se deliberada-ente a responder. Daqui a um minuto vou sentir as suas mãos seguras no meu corpo, e vou encostar-me e
deixar que aconteça, porque já não consigo inventar mais desculpas.
Pergunta a Grant disse, procurando feri-lo. Ele é que é o
nosso psicólogo de serviço. Ele é que deve saber.
Tinham passado para a sala de estar. Jack estava à espera de alguma coisa. Ela também. À espera de Nigel, de Pym, do telefone. De Geor-gie e Fergus que continuavam no
andar de cima.
Não andas a beber demasiado disto, não? perguntou Bro
therhood, servindo-lhe outro whisky.
Claro que não. Quando estou sozinha, quase não bebo. Então não comeces agora. É fácil de mais. E enquanto o irmão
Nigel aqui estiver não bebes nada. Disfarças, escondes. Sim, Jack?
Sim, Jack. Ês um padre devasso a aproveitar os restos da gra
ça divina, disse-lhe Mary enquanto olhava os movimentos lentos e de
terminados que ele fazia ao encher o copo. Primeiro o vinho, agora a agua. E agora desce as pálpebras e ergue o cálice, num diálogo beato
com Aquele que te enviou.
t- ele é livre observou ele. «Sou livre». Rick morreu, logo Magnus é livre. Ele é um dos
teus tipos freudianos que não conseguem dizer «Pai».
b perfeitamente normal na idade dele, chamar o pai pelo nome pno. h mais normal ainda, se pai e filho não se vêem há quinze anos.
~ Gosto muito de te ver defendê-lo disse Brotherhood. Ad-
a tua lealdade. Eles também vão apreciar. E tu nunca me deixaste
Icarmal, essa é que é a verdade.
uade, pensou ela. Calar a minha boca tonta no serviço para a tua mulher não vir a saber de nada.
[jj ,. n°raste. Continuas a ser a mesma choramingas, Mary, não sa-serv so- Mary chora,
Magnus consolada.-Estranho, isso, para um ob-wnparcial: Rick era o paizinho dele, não
o teu. Uma inversão
73
de papéis e uma vingança, ou seja: tu é que pões o luto que ele devi Por quem eram as
lágrimas, exactamente? Tens ideia? O pai dele tinha morrido, Jack. Não me sentei a pensar «Vou
chorar por Rick, vou chorar por Magnus». Chorei, pronto.
Acho que podia ter sido por ti.
O que é que queres dizer com isso?
Falaste de toda a gente menos de ti própria. Só isso. Pareces es. tar permanentemente na defensiva.
Mas não estou!
Falara alto de mais. Percebeu-o, e de novo Brotherhood também percebeu, e ficou
interessado.
E quando Magnus acabou de consolar Mary continuou, agar rando num livro que estava em cima da mesa e folheando-o , enfia a
canadiana e vai dar uma volta, de sapatos de baile. Tu tentas retê-lo, su
plicas-lhe, o que me custa a visualizar, mas vou tentar, mas nada feito, ele
sai. Houve alguma chamada telefónica antes de ele sair?
Não. Nem recebida, nem feita?
Já disse que não!
Com um telefone directo, apesar de tudo, seria de espe:
um homem a quem morreu um parente próximo quisesse parti]
má notícia com outros membros da família. A família dele não é assim. Já te expliquei.
Para começar, há Tom. Magnus não lhe diria pelo menos a
Era tarde de mais para telefonar ao Tom, e de qualquer maneifl
Magnus achou melhor contar-lhe pessoalmente.
Brotherhood observava o livro. Sublinhou aqui mais uma pérola: «Se não existo para
prio, quem o faz por mim; e, existindo para mim próprio, o
Se não agora, quando?». Bom, bom. Estou esclarecido. E tu?
Eu não. f
Nem eu. Ele é livre. Fechou o livro e tornou a pô-lo na mes* Quando foi passear não levou nada com ele? Uma pasta
exemplo?
Levou um jornal.
Estás a ficar surda. Reconhece que estás. Tens medo que um a] lho para a surdez destrua
a imagem que tens de ti própria. Fala, boi Ela tinha dito aquilo. Sabia que tinha. Esperara toda a noite o dizer, preparara-se de
todas as maneiras possíveis, treinara,
74
eara, esquecera, recordara. E agora a frase ecoava na sua cabeça uma explosão, enquanto bebia com ar extremamente descon-(do um gole de whisky. Mas os olhos de
Jack fitavam-na directamente, à espera.
\jm jornal repetiu. Só um jornal. O que é que tem?
Que jornal?
__ O Presse. ISSo é um jornal diário.
Correcto. Die Presse é um diário.
Um jornal diário aqui. E Magnus levou-o. Para ler às escuras.
Com os sapatos de baile calçados. Conta-me a história toda.
Foi o que acabei de fazer. Não foi, não. E vais ter de o fazer, Mary, porque quando aqui
chegar a artilharia pesada bem vais precisar de ajuda.
Lembrava-se perfeitamente. Magnus estava de pé junto à porta, a um passo do lugar
onde agora se encontrava Brotherhood. Estava pálido e intocável, a canadiana enfiada
de qualquer maneira, e percorria a sala com os olhos numa sequência de momentos distintos: lareira, mulher, relógio, livros. Ela ouviu-se a si própria dizendo-lhe as coisas
que já contara a Brotherhood, e outras que não contara. Por amor de Deus, Magnus.
Fica. Não te deprimas, fica. Não te deixes afundar numa das tuas crises de melancolia.
Fica. Vamos fazer amor. Vamo-nos embebedar. Se quiseres companhia, digo a Bee e a
Grant para voltarem, ou vamos nós até casa deles. Viu-o sorrir um sorriso rígido e luminoso. Ouviu-o falar com a sua voz estranhamente calma. A sua voz de Lesbos. E
ouviu-se a si própria repetindo agora a Brotherhood o que ele dissera, palavra por
palavra.
Ele disse «Mabs, minha querida, onde está o raio do jornal?» Julguei que ele queria o
Times para ver os anúncios de propriedades na Es-°cia, e disse «Está onde tu o deixaste quando voltaste da embaixada». ~- Mas não era o Times que ele queria disse
Brotherhood.
tle foi até à cesta dos jornais, ali olhou na direcção corres-r° ente, mas não apontou para
lá, porque a aterrorizava a ideia de dar asiado peso ao gesto. E tirou o que lhe
interessava. Die Presse. amos sempre ali o Presse. Até ao fim de cada semana. Magnus r ^ue eu guarde os números atrasados. E depois, saiu disse Mary, ° com que a história
parecesse perfeitamente normal, e não era?
H V °^°U ̂ ara ° Jorna^ quancío P tir0'u do cesto? m so a data. Para ver se era o jornal
certo.
75
Para que é que achas que ele o queria?
Talvez houvesse alguma sessão especial de cinema. • nunca na sua vida tinha ido ao cinema àquela hora da noite. . Talv«
quisesse ter alguma coisa para ler no café. Sem levar dinheiro ne,
nhum, pensou ela, preenchendo o vácuo do silêncio de Brotherhoo^
Talvez estivesse só a procurar distrair-se. Como qualquer um de nój
poderia fazer. Ter feito. Qualquer um poderia fazer o que ele fez, se l^ morresse um parente próximo.
Ou se fosse livre sugeriu Brotherhood. Mas não explicou o
que queria dizer com isso.
Além disso, ele estava de tal maneira perturbado que levou o jornal do dia errado disse
ela alegremente, encerrando o assunto. Então foste verificar, minha querida?
Só quando deitei os jornais fora. ',.-
Quando foi isso? í sfa i
Ontem. . ■ .. ■: : ' :|ra í
Que jornal é que ele levou? ; ■>'■■ 14 O de segunda-feira. Um jornal já com três dias. Por isso é que me
parece evidente que estava em estado de choque.
Evidentíssimo.
Está bem, é claro que o pai não era o grande amor da vida dele.
Mas tinha morrido. Ninguém age racionalmente quando acontece uma coisa assim. Nem mesmo Magnus.
E o que é que ele fez a seguir? Depois de ter verificado a
levado o jornal do dia errado?
Saiu de casa. Como eu já te disse. Foi passear. Tu não
ção ao que eu digo. Nunca deste. Ele dobrou o jornal?
Francamente, Jack! Para que é que te interessa saber com<
uma pessoa transporta o jornal?
Engole lá o teu ego por um minuto e responde. O que é
fez ao jornal? , .,. .. ■•„ Enrolou-o.
E depois?
E depois nada. Levou-o na mão.
E trouxe-o quando soltou?
Para casa? Não. Como é que sabes que não o trouxe?
Eu estava à espera dele no hall.
76
E notaste: nada de jornal. Disseste para contigo: nada de jornal enrolado.
por puro acaso, sim.
por acaSo, uma ova, Mary. Tu já tinhas pensado em verificar. Sa-
,. e e[e tinha saído com o jornal e reparaste logo que tinha voltado sem ele. Não foi
acidental. Estavas a espiá-lo. Escolhe a versão que mais te agradar.
Brotherhood estava irritado.
Xu é que vais ter de agradar, Mary disse ele, devagar e em voz
.j]ta Vais ter de agradar ao irmão Nigel, daqui a uns cinco minutos,
pouco mais ou menos. Eles estão aflitos, Mary. Estão a sentir de novo 0 chão a fugir-lhes debaixo dos pés e não sabem o que fazer. Não sabem
literalmente o que fazer. A irritação passou. Jack era assim. E mais
tarde, assim que tiveste oportunidade, revistaste-lhe acidentalmente os
bolsos. E o jornal não estava lá.
Eu não fui àprocura do jornal; só reparei que tinha desapareci do. E é verdade que não estava nos bolsos.
Ele costuma sair muitas vezes com jornais velhos?
Quando precisa de estar a par das notícias, por causa do traba
lho, Magnus é um funcionário consciencioso, leva um jornal.
Enrolado? Às vezes.
E volta alguma vez a trazê-los? .
Que eu me lembre, não.
-Alguma vez lhe fizeste qualquer observação sobre isso?
Não. Nem ele a ti?
Jack. E um hábito que ele tem. Olha, não vou fazer uma cena conjugal contigo!
Nós não somos casados.
1 e enr°la um jornal e passeia-se com ele. Como uma criança
... Pau ou qualquer outra coisa. É algo que o reconforta. Como as N de outro dia?
P em semPre> não dês tanta importância a tudo!
f Pwde-os «sempre»?
k
e uma vez. Está beta? a C01sa que lhe acontece em ocasiões especiais? Quando há 77
P Whas de mentol. Aí tens. Ele tinha pastilhas de mentol no bolso. É a mesma coisa.
Lua cheia? Na última quarta-feira de cada mês? Ou só quando lhe m re o pai?
Descobriste alguma regularidade nessas saídas? Vá lá, f^ eu sei que descobriste!
Espanca-me, pensou ela. Agarra-me. Tudo menos esse olhar fixo gelado.
Às vezes é nos dias em que ele se encontra com P. disse ela, & forçando-se por adoptar o tom de voz de quem acalma uma criança mi. mada. Jack, por amor de Deus, ele tem
agentes sob as suas ordens, é essa a vida dele, foste tu que o treinaste! Eu não lhe
pergunto quais são os seus truques, o que é que ele anda a fazer e com quem. Eu tam
bém fui treinada!
E quando ele regressou, como é que estava? Estava óptimo. Calmo, perfeitamente calmo. Senti que tinh
passeado até o mal-estar desaparecer. Estava absolutamente bem em to
dos os aspectos.
Não houve telefonemas enquanto ele esteve fora?
Não. E depois?
. Mas ai
Houve um. Muito tarde. Mas nós não atendemos. '
Só muito raramente ela tinha visto Jack surpreender-;
ouvir aquilo, ele ficou quase espantado. Não atenderam?
Porque havíamos de atender?
Porque não? É o trabalho dele, como tu disseste. O pai tinha ac
bado de morrer. Porque é que vocês não atenderam o telefone? Magnus disse para eu não atender.
Porque é que ele disse isso?
Estávamos a fazer amor! disse ela, e sentiu-se a pior das pi*
titutas.
Harry apareceu outra vez à porta. Tinha vestido um fato-macaC azul e a sua cara estava vermelha de esforço. Trazia na mão uma cM' de parafusos comprida e parecia
vergonhosamente satisfeito.
-"
Não se importa de dar um saltinho ao primeiro andar, therhood? disse ele.
a O nosso quarto está como na altura da venda de caridade d posas de Diplomatas, com as
nossas roupas velhas espalhadas em da cama, pensou ela. Magnus, meu querido, achas
que precisas m
ês casacos de malha no fio? Roupas nas cadeiras. No toucador alheiro. O meu blazer de verão, que já não visto desde Berlim.
6 kine de Magnus pendurado no espelho móvel e que parecia uma
I secar. Não havia nada no chão porque não havia chão. Fergus e C reie tinham
levantado a alcatifa e também a maior parte das tábuas . o£jho, empilhando-as como
sanduíches junto à janela, deixando barrotes e uma prancha mais larga para se poder passar. Tinham desmontado os
candeeiros das mesinhas de cabeceira e as próprias mesinhas, o telefone e o rádio-
despertador. Na casa de banho, era outra vez o chão, a parte lateral da banheira, o
armário dos medicamentos, e a porta inclinada que conduzia ao sótão inclinado onde
Tom se escondera durante uma longa meia hora no último Natal, a brincar aos Assassínios, quase morrendo de medo à força de ser tão corajoso. No lavatório, Georgie
examinava as coisas de Mary, uma a uma. O creme da cara. O diafragma.
Para eles, o que é teu é dele, e vice-versa, minha querida dis-
oe Brotherhood quando os dois pararam em frente ao vão sem porta.
Para eles, não há o que é dele e o que é dela, nem pode haver. Para ti também não disse ela.
O quarto de Tom era em frente ao de Mary e Magnus, do outro lado do corredor. O
Super-Homem fosforescente estava estendido na cama, juntamente com os trinta e um
Strumpfes e os três Tiggers. A mesa de campanha do pai dela estava dobrada, encostada
à parede. A arca dos brinquedos tinha sido deslocada para o meio do quarto, deixando à vista a lareira de mármore que ficava por trás. Era uma bela lareira. O Departamento de
Obras tinha querido tapá-la para reduzir as correntes de ar. mas Magnus não permitira.
Em vez disso comprara aquela velha arca P a por em frente da abertura, deixando
visível a parte superior para om poder ter um bocadinho da velha Viena só para ele.
Agora a larei-va desimpedida, com Georgie, que envergava uma túnica de pra-e e luta livre de primeira, respeitosamente ajoelhada diante dela. den Tte GeorS'e estava uma
caixa de sapatos branca sem tampa, e IL . Caixa de sapatos, havia um molho de trapos
com vários mo-°Smf Pequenos à volta.
gus.
^contrámo-la na saliência por cima da grade, sir disse Fer-o sido onde desemboca na conduta principal. ° tlnha um grão de pó que fosse disse Georgie.
em- ^a estlcar ° braço para a alcançar disse Fergus. Bes-c"te prático.
78
79
Nem sequer é preciso afastar a arca, depois de se apanhar ©<
disse Georgie.
Já tinhas visto isto alguma vez? perguntou Brotherhi
É evidente que deve ser alguma coisa de Tom disse As crianças gostam de andar sempre a esconder coisas.
Já tinha visto isto alguma vez repetiu Brotherhood.
Não.
Sabes o que está lá dentro?
Como é que havia de saber se nunca a vi? É fácil.
Brotherhood não se curvou, mas estendeu os braços. Georgie passou-lhe a caixa e
Brotherhood levou-a até à mesa onde Tom brincava com o Spirograph e os Legos e
fazia os seus desenhos sempre iguais de aviões alemães a serem abatidos sobre um
fundo de pôr-do-sol como os que havia em Plush, e a família em segundo plano, todos a acenar, todos felizes. Brotherhood pegou primeiro na trouxa maior; os outros olhavam-
no enquanto ele começava a desembrulhá-la, até que mudou de ideias.
Toma disse ele, entregando-a a Georgie. Dedos femini
nos.
Ela é mais uma das amantes dele, compreendeu Mary repentinamente. Ficou a pensar porque é que essa ideia não lhe teria ocorrido antes.
Georgie ergueu-se com elegância até ficar de pé, esticando primeiri uma perna, depois a
outra, e, depois de prender o cabelo liso atrás daí orelhas, aplicou os seus dedos
femininos à tarefa de desembaraçar as ri* ras de lençol que Magnus dissera querer para
o automóvel, acabando jx* revelar uma pequena máquina fotográfica com um ar engenhoso, e uffl engenhoso revestimento de aço. E depois da máquina, um objecto s»
melhante a um telescópio com um suporte que, quando esticado até aO seu
comprimento máximo, formava uma base a que se podia prender* máquina, voltada
para baixo e a uma distância fixa, para fotografar o* cumentos na mesa de campanha do
sogro de uma certa pessoa. Dq de telescópio, apareceu uma sucessão de películas e lentes e filtros e outras peças que Mary não era capaz de identificar à primeira debaixo
de tudo isto um bloco de papel especial muito fininho, coi lunas de números na primeira
folha e as bordas revestidas de uma mada espessa de borracha que só deixava visível a
primeira página. M conhecia bem aquele tipo de papel. Tinha trabalhado com ele em
80
Derretia-se e mirrava assim que se acendia um fósforo perto dele. LI c0 já ia a meio.
Ainda debaixo deste bloco, havia um velho bloco , apontamentos militar que tinha
escrito «Propriedade do D.G.», sen-A D G o Departamento da Guerra; o bloco era
constituído de folhas das j0 papel manchado e de má qualidade que se utilizava duran- guerra. Não tinha nada escrito. Mas quando Brotherhood prosseguiu a pesquisa,
encontrou entre as folhas duas flores vermelhas prensadas há muito tempo, papoilas, ou
talvez rosas, Mary não tinha a certeza absoluta, e além disso nesse momento estava já a
gritar.
Isso é para os Serviços! É para o trabalho que ele faz para vocês! Claro que é. Vou dizer isso ao Nigel. Não há problema.
Lá porque ele não me falou disto, não quer dizer que seja algu
ma coisa de errado! É para o caso de ele ter problemas com os docu
mentos em casa! Nos fins-de-semana! E depois, percebendo o que
tinha acabado de dizer: É para os agentes dele eles podem-lhe tra zer documentos, idiota! Para o caso de Grant lhe trazer papéis e de ele
ter de os devolver rapidamente! Merda, o que é que há de tão sinistro
nisso?
Fergus apalpava o bloco meio usado, voltava-o de todos os lados, examinando-o à luz
da lanterna Anglepoise de Tom. Parece-se mais com os seus checos, francamente, senhor disse Fergus, inclinando o
bloco em relação à luz. Podia ser russo mas acho que é mais provável ser checo,
francamente. Sim disse com ar satisfeito, ao deparar com uma característica qualquer,
que não explicou, do revestimento de borracha. t, isso. Checo. Mas atenção: isto é só o local de fabrico. Quem é que os anda a distribuir,
é outra história. Especialmente nos dias que correm.
otherhood estava mais interessado nas flores prensadas. Tinha-
coiocado na palma da mão e olhava-as como se nelas lesse o seu futuro.
j. Começo a achar que és uma menina mal comportada, Mary e calmamente. Acho que sabes muito mais do que aquilo que
L lss<jste- Não me parece que ele esteja na Irlanda ou no raio das Ba-
• sso era só para disfarçar. Acho que ele é um traidor e não sei se a^erásCumplidl
ele se etes~me nojo! e tentou bater-lhe com a mão aberta, mas a- Agarrou-a
escontrolou-se completamente. Berrou: ete e tentou bater-lhe co
81
a com um dos braços e ergueu-a do chão como
se ela não tivesse pernas para andar. Levou-a pelo corredor fora até ao quarto de Frau
Bauer que era o único que ainda não tinha sido desmontado. Largou-a na cama e tirou-
lhe os sapatos, exactamente como dantes fazia no apartamento sórdido, mas seguro,
para onde levava as amantes. Enrolou-a no edredão, servindo-se dele como de uma
camisa de forças. Depois deitou-se sobre ela, mantendo-a presa até a submeter, enquanto Georgie e Fergus continuavam as buscas. Mas, não se percebia bem como, no
meio de todos estes gestos teatrais e dramáticos, Jack Brotherhood conseguira não
largar as duas papoilas prensadas, que continuavam no seu punho esquerdo fechado; e
não as largou nem mesmo quando tocaram outra vez à porta, um toque longo e
autoritário.
IV
iy..
«Para estar acima da refrega», escreveu Pym para si próprio numa folha à parte «um
escritor deve ser rei. Deve olhar o seu tema com amor, mesmo que o tema seja a sua pessoa.»
A vida começou com Lippsie, Tom, e Lippsie aconteceu muito antes de apareceres tu ou
qualquer outra pessoa, e muito antes de Pym ter atingido aquilo a que os Serviços
chamam a idade núbil. An-les de Lippsie, Pym só se lembrava de uma caminhada sem
rumo por casas de cores diversas e muita gritaria. Depois de ela surgir tudo parecia correr para um destino inevitável, e ele só tinha de se sentar no barco e deixar que a
corrente o levasse. De Lippsie a Poppy, de Rick a Jack, era tudo o mesmo alegre ribeiro,
muito embora serpenteasse e se dividisse ao longo do curso. Começou com ela não só a
vida, mas também a morte, já que foi o corpo morto de Lippsie a verdadeira iniciação de
Pym, embora ele nunca tenha chegado a vê-lo. Outros o viram, e Pym poderia ter feito o mesmo, porque o corpo estava no pátio junto à torre do sino, e demoraram imenso
tempo a tapá-lo. Mas ° rapazinho atravessava então um período difícil e egocêntrico e
achava que, se não visse o corpo, ela afinal poderia não estar morta, as apenas a fingir.
Ou que a sua morte era um castigo por ele ter re-emente participado na matança de um
esquilo dentro da piscina ia. A caçada tinha sido dirigida por um professor de matemática e olhar impenetrável a
quem chamavam Corbo o Corvo. Quando
quilo estava já definitivamente encurralado, Corbo mandou des-rcs rapazes pela escada
da piscina com sticks de hóquei; Pym era a . orÇa, Pymmie. Dá-lhe! disse Corbo, encorajando-o. Pym vira (jer .|̂ ra Mijada
coxear em direcção a ele. Assustado por aquela dor, Vir Uma V1° ta pancada, com
mais-fórça do que era sua intenção. er ^^Pultado até ao jogador seguinte e ficar muito
quieto.
83
- Boa, Pymmie! Belo golpe. Para a próxima fazes o mesmo aos Hl
nos!
Outra ideia que lhe passara pela cabeça fora que o grupo de Sefton Boyd tinha
inventado a história de uma ponta à outra para o arreliar, o que não era de todo impossível. Por isso, para preencher o compasso de espera, Pym confiou a si próprio o
trabalho de recolher descrições e de formar, na confusão inicial que precedeu o silêncio
de toda a escola, uma imagem tão fiel quanto possível de Lippsie. Ela estava caída em
posição de corrida, de lado, sobre as lajes, com uma mão fechada e voltada para a meta
e um pé voltado ao contrário. Sefton Boyd, que foi o primeiro a avistá-la e que avisou o director durante a hora do pequeno--almoço, chegou a julgar que Lippsie estava mesmo
a correr, até que reparou no pé partido. Julgou que ela estava a fazer um exercício
especial, deitada de lado, um exercício que consistisse em dar pontapés ou em andar de
bicicleta. E julgou que o sangue que a rodeava era uma capa ou uma toalha sobre a qual
se tivesse deitado, até notar que as folhas secas do castanheiro se agarravam a ele e não se desprendiam com o vento. Não se aproximou, porque o pátio da torre do sino ficava
fora da área autorizada, mesmo para os alunos do sexto ano, por causa do telhado
perigoso que o cobria. E gabou-se de não ter vomitado, tudo porque os Sefton Boyds
são donos de terras imensas e eu já cacei montes de vezes com o meu pai e estou
habituadíssimo a ver sangue e tripas. Mas correu pela escada do sexto ano acima até à janela da torre, de onde mais tarde a polícia disse que ela caíra; devia ter-se debruçado
por alguma razão. E deve ter havido uma razão urgente e importante para ela assim se
debruçar, porque estava de camisa de noite, e tinha percorrido de bicicleta, a meio da
noite, o caminho de uma milha que partia de Overflow House11. A bicicleta dela, com o
selim coberto de fazenda axadrezada, ainda estava encostada à cabana dos caixotes do lixo por trás das cozinhas.
A teoria de Sefton Boyd, alegremente decalcada do estilo de vida ao pai, era que ela
estava bêbeda. Só que ele não dizia «ela» e sim Shitlips i> que era o trocadilho do grupo
a partir de Lippschitz. Bom, ou então se calhar Shitlips era uma espia alemã que se tinha
esgueirado para a torre para enviar mensagens depois do blackout, sir. Porque da janela da torre vê-se o vale todo até ao Casal das Perdizes, o que a torna um lugar mag' nífico
para fazer sinais aos bombardeiros alemães, sir. O problema é qi11-ela não tinha
nenhuma lanterna, a não ser a da bicicleta, que continua va presa entre as hastes do
guiador. Mas talvez a tivesse escondido na Vil
gina, órgão que Sefton Boyd afirmava ter visto claramente, porque a queda lhe tinha
arregaçado a camisa de noite.
Assim foram circulando as mais variadas histórias nessa manhã; entretanto, Pym
encontrava-se de pé em cima do belo banco de madeira da casa de banho dos
professores, que escolhera como refugio logo a seguir ao primeiro momento de confusão, sustendo a respiração, corando, empalidecendo em frente ao espelho, numa
série de esforços perplexos para conseguir que a sua cara se adaptasse ao seu desgosto.
Servindo-se do canivete suíço que trazia no bolso, cortara uma pequena madeixa do seu
próprio cabelo, como uma espécie de tributo inútil; e depois andou por ali a brincar com
as torneiras, desejando que toda a gente estivesse à procura dele Onde está Pym? Pym fugiu! Pym também morreu! Mas Pym não tinha fugido nem estava morto, e no caos
que era estar o corpo de Lippsie caído no pátio e a ambulância e a polícia a chegar,
ninguém procurava ninguém, e muito menos na casa de banho dos professores que era o
mais inacessível dos locais da escola, tão interdito que até ■Sefton Boyd receava lá ir.
As aulas foram canceladas, e esperava-se que, depois de toda a gritaria e de todo o barulho, os alunos se dirigissem em silêncio para a sala do respectivo ano e fizessem
revisões excepto os do segundo ano, como Pym, porque a sala deles dava para o pátio
da torre: esses foram mandados para a sala das artes e ofícios. Esta sala era um barracão
de chapa construído por soldados canadianos e que fora adaptado às suas novas funções:
era lá que Lippsie dava aulas de música e pintura e teatro, e punha os rapazes com pé chato a fazer exercícios correctivos. Também era lá que escrevia à máquina e tratava da
papelada que lhe competia na sua qualidade de pau para toda a obra da escola: recebia
as mensalidades, pagava as contas em vez do tesoureiro, chamava táxis para os rapazes
que tinham aulas para preparar o crisma e, como costuma acontecer em casos como o
seu, praticamente dirigia o estabelecimento sem ajuda e sem que ninguém lhe agradecesse. Mas Pym também não quis ir para
a de artes e ofícios, embora lá tivesse um modelo de um avião Dor-er °^sa que ainda
precisava de uns retoques de canivete, e apesar de
es oçado um plano para copiar alguns poemas obscuros de um livro
PP -^ter v'st0 ̂ vre e Pym chegara a esta situação difícil? Como adquirira o
0 que lá havia e depois dizer que eram dele. O que ele tinha de fazer, quando arranjasse
ocasião e coragem, era ir até Overflow House, onde até lá ' IVCra C°m ^PPs'e e com os
outros onze Rapazes das Cheias. Até ' ^ter v'st0 ̂ vre d^ cartas, não podia ir a mais lado
nenhum, por-
85
treino que lhe permitiu portar-se tão bem nesta sua primeira operação clandestina?
Explicar isso seria quase o mesmo que contar a história da sua vida até então, uma vida de dez anos e três períodos escolares no co-
;io interno.
Ainda hoje, tentar localizar Lippsie na vida de Pym é como perseguir uma luz errante no
meio de um matagal espesso e impenetrável. Para Perce Loft, também ele já falecido,
ela simplesmente não existiu chamava-lhe «a ficção de Thitch», ou seja, uma invenção minha, uma construção, nada. Mas Perce, o grande advogado, seria capaz de fazer da
Torre Eiffel uma ficção depois de ter esbarrado com ela, se isso fosse necessário. Era o
trabalho dele. Apesar do testemunho de Syd e de outros de que fora Perce o primeiro a
servir-se dela, e ainda Perce quem a apresentara à corte nos tempos obscuros e remotos
anteriores ao nascimento de Pym. Mr. Muspole, o maravilhoso contabilista, igualmente já falecido, confirma, o que é compreensível, aversão de Perce. Naturalmente. Também
ele estava enterrado na questão até ao pescoço. Até Syd, a única testemunha que
sobreviveu, não ajuda muito. Ela era uma Four-by- Twoi3 alemã, contava ele, usando a
expressão cockney afectuosa e musical com que eram designados os judeus. Supunha
que ela era de Munique, mas também ser de Viena. Ela sentia-se sozinha, Thitch. Adorava os miúdos. Adi va-te. Syd nunca disse que Lippsie adorava Rick, mas na corte
isso considerado um facto evidente. Ela era uma Beldade, e na ética da era para isso que
as Beldades serviam; para Rick lhes fazer justiça e se banharem na sua glória. E Rick,
na sua bondade, fê-la aprender & tariado e adquirir qualificações, diz Syd. E a tua
Dorothy adorava sie e ensinou-lhe inglês, cheia de boa vontade, diz de novo Syd e pois não adianta mais nada; comenta apenas que foi uma pena e todos nós devíamos
aprender a lição, e talvez o teu pai a tenha feito balhar um bocado de mais, porque ela
nunca teve as vantagens que tu tiveste. Sim, reconhece ele, era muito bonita. E tinha um
toque de classe que, diga-se em abono da verdade, muitas vezes as outras não tinham*
Thitch. E adorava que lhe contassem piadas, a não ser quando começava a pensar na sua pobre família e no que os Jerries14 lhe tinham feito-As minhas investigações
clandestinas nos arquivos não foram mais esclarecedoras. Quando me puseram a dirigir
o Registo por um curto espaço de tempo, como oficial de serviço durante a noite e não
foi" muitos anos , procurei no índice geral: Lippschitz, nome próprio Ai1'
86
■
' mas não encontrei nada em nenhuma das ortografias possíveis. O velho Dinkel, que
dirige o departamento de pessoal do serviço austríaco, Viena, efectuou uma pesquisa semelhante a meu pedido, quando lhe contei a história; e
o seu homólogo alemão fez o mesmo noutra ocasião, em Colónia. Nenhum deles
descobriu quaisquer vestígios.
Na minha memória, todavia, Lippsie é bem mais do que um vestígio É uma rapariga
alta, cheia de vida, de cabelos macios e olhos grandes e assustados, que anda aos solavancos, e com quem nada acontece deva-ear e gradualmente. E lembro-me deve ter
sido numas férias grandes numa casa qualquer onde estávamos temporariamente
abrigados , lembro-me de como Pym ansiava por vê-la nua, e consagrava as horas em
que não dormia a procurar satisfazer esse anseio. E Lippsie deve ter percebido, porque
uma tarde sugeriu-lhe que tomasse banho com ela para poupar água quente. Ela até mediu a água com a mão; os patriotas tinham direito a cinco polegadas e Lippsie nunca
quis ser menos do que os patriotas. Inclinou-se, toda nua, e deixou-me ficar a olhá-la
enquanto metia a mão na banheira, lembro-me perfeitamente, e tornou a tirá-la:
Olha, Magnus! e mostrava-me a mão aberta e molhada. Assim podemos ter a certeza de
não estar a ajudar os alemães. Pelo menos eu acredito fervorosamente que Lippsie era assim, embora por muito que
tente me não consiga até hoje recordar como ela era. E sei que na mesma casa ou noutra
semelhante, o quarto dela era em frente ao de Pym, do outro lado do corredor, e lá
dentro estava a sua mala de cartão e fotografias do irmão barbudo e das irmãs solenes de
chapéus pretos, enquadradas por molduras de prata, como pequeninas pedras tumulares bem polidas colocadas sobre o toucador. E havia o quarto onde ela tinha gritado com
Rick e o tinha avisado de que preferia morrer a roubar, e Rick rira com as suas
gargalhadas graves e sonoras, aquelas garga-nadas que se prolongavam para além do
que seria necessário e faziam com que tudo ficasse bem até à próxima. E embora Pym
não se conseguisse lembrar de uma única lição, Lippsie deve ter-lhe ensinado alemão, porque anos mais tarde, quando começou formalmente a aprender a lín-°~ esco'Miu que
trazia na cabeça todo um repositório de informações ^ re ° akmão Aaron tuar mein
Brude?5 mein Vater warArchiteki6
u o no tempo pretérito a que Lippsie então também já pertencia, preendeu, mais tarde
ainda, que quando ela lhe chamava o seu , m queria dizer o seu «pequeno monge», e aludia ao duro cami-m' K tln Lutero «pequeno^rnerige, segue o teu próprio ca-O>>" ̂ a
^tura julgou que Lippsie estava a dar-lhe o papel do i
imaca-
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quinho do tocador de realejo, sendo Rick o tocador de realejo. A descoberta encheu-o de
orgulho, até que percebeu que o que ela lhe tinha estado a dizer era que ele devia
aprender a passar sem ela.
E eu sei que a nossa vida com Lippsie era o Paraíso, porque sem Lipp. sie não havia Paraíso. O Paraíso era uma terra dourada entre Gerrards Cross e o mar, onde Dorothy
vestia uma camisola de lã angora para passar a ferro e uma gabardina azul para ir as
compras. O Paraíso era o lugar para onde Rick e Dorothy fugiram a seguir ao casamento
clandestino, uma terra maravilhosa onde se começava do zero e o futuro era atraente;
mas não me lembro de nenhum dia dessa vida em que Lippsie não aparecesse nalgum lado, ou não me dissesse o que eu devia e não devia fazer numa voz que tornava
agradáveis essas recomendações. Para leste, a uma hora de caminho no Bendey, ficava a
Cidade, e na Cidade ficava o West End e era aí que Rick tinha o seu escritório; o
escritório tinha uma enorme fotografia retocada do avô T.P. com o colar de presidente
da Câmara, e o escritório era também o que mantinha Rick ocupado até altas horas da noite, o que era excelente para o pequenino Pym, porque assim podia subir para a cama
com Dorothy e aquecê-la: ela era tão minúscula e trémula, mesmo para uma criança. Às
vezes Lippsie ficava em casa connosco, outras vezes ia para Londres com Rick, porque
tinha de adquirir qualificações isto só hoje o compreendo , justificar a sua sobrevivência
quando tantos da sua raça estavam mortos. O Paraíso era uma série de cavalos de corrida reluzentes a que Syd chamava os
«Imbatíveis», e uma sucessão de Bendeys ainda mais reluzentes que, como as casas, se
gastavam tão depressa como os empréstimos com que eram pagos, tendo de ser trocados
com espantosa rapidez po' modelos mais recentes e ainda mais caros. Às vezes os
Bentleys eram tão preciosos que era preciso dar a volta à casa com eles e escondê-los no jardim das traseiras, não fosse o olhar dos infiéis embaciar-lhes o brilho. Outras vezes
Pym conduzia-os a mil milhas à hora ao colo de Rick, por estradas ainda inacabadas,
cheias de areia e ladeadas por misturadoras de cimento, e tocava ininterruptamente a
buzina grande e sonora aos homens que as construíam, enquanto Rick gritava Como vai
isso, rapa' zes? convidando-os para irem a nossa casa beber um copo de espu' mame. E Lippsie estava ali ao nosso lado no lugar da frente, direita com'1 um cocheiro e
igualmente distante, até Rick decidir dirigir-lhe a palavfJ ou dizer uma piada. E então o
sorriso dela era como o sol nas férias e VK'' -se que Lippsie gostava muito de nós.
O Paraíso também era St. Moritz de onde vinham os canivetes si
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A exército, apesar de os Bendeys e esses dois Invernos anteriores à guer-passados na
Suíça se terem de algum modo confundido na minha memória num único lugar. Ainda
hoje, basta-me cheirar os assentos de couro de um desses grandes carros para me sentir
gostosamente transportado até aos vastos salões dos hotéis de St. Moritz, na esteira do amor desenfreado que Rick sentia pelos ambientes festivais. O Kulm, o Suvretta House,
o Grand Pym conhecia-os como se fossem um único palácio gigantesco com diferentes
equipas de criados, mas sempre com a mesma corte: o seu acompanhamento privativo
de bobos, acrobatas, conselheiros e jóqueis; Rick não ia a p arte nenhuma sem os levar.
Durante o dia, porteiros italianos com longas vassouras sacudiam a neve das nossas botas cada vez que passávamos pelas portas do hotel. Ao fim da tarde, quando Rick e a
corte se banqueteavam com Beldades locais e Dorodiy estava demasiado cansada, Pym
passeava de mão dada com Lippsie por caminhos cheios de neve, agarrando firmemente
o canivete que levava no bolso e fingindo que era uma espécie de príncipe russo que a
protegia de rudos os que riam dela por causa do seu ar sério. E de manhã levantava--se cedo e ia pé ante pé, sozinho, até ao patamar da escada, espreitar através da balaustrada
o seu exército de servos a mourejar no grande hallAe. entrada, lá em baixo; e aspirava o
fumo dos cigarros da véspera e o perfume das senhoras e o cheiro da cera que ficava a
luzir como orvalho no chão de madeira, à medida que eles lhe iam puxando o brilho,
deslocando os esfregões com grandes gestos. E foi esse o cheiro que passaram a ter os Bendeys de Rick: cheiro a Beldades, a cera, ao fumo dos seus charutos de milionário. E
também vagamente dos passeios de trenó na floresta gelada ao lado de Lippsie o cheiro
a frio e a esterco de cavalo, enquanto ela tagarelava em alemão com o cocheiro.
Voltavam a casa, e o Paraíso eram pirâmides de tangerinas polidas embrulhadas em
papel prateado, e candelabros cor-de-rosa na sala de ) tar, e visitas ruidosas a longínquas pistas de corridas onde íamos de-en er ^ cotes dos nossos Proprietários e víamos batidos
os «Imbatíveis», a minúscula televisão a preto e branco enquadrada numa enorme de
mogno onde víamos a regata atrás de um véu de pontos bran-'e ^ando víamos o Grand
National17, os cavalos estavam lá tão lon-4 TTO não percebia como é que eles
conseguiam chegar ao fim, mas e e P^^"016 que os de Rick realmente muitas vezes não chegavam, com <TJ 1SS° ^UC ^ ̂ es cnamava «Imbatíveis». E o críquete no jardim sal,
J st*sPence se não derrotasse Thiteh' em seis bolas. E o boxe na e estar com Morrie
Washington" o especialista da corte no Des-
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porto da Luta, e nosso ministro das Artes: ele já tinha falado com Bu<j Flanagan e
apertado a mão de Joe Louis, e tinha sido assistente no pjj. co do Homem do Olhar
Raio-X. E Mr. Muspole, o grande contabilista a tirar-me das orelhas moedas de meia-
coroa, embora Mr. Muspole nun. ca tenha sido o meu preferido; gostava muito de me mandar fazer corç. tas de cabeça. E torrões de açúcar a desaparecerem debaixo do
chapéu de jurista de Perce Loft: eram transformados em ficções mesmo debaj* xo do
meu nariz. E andar às cavalitas à roda do jardim nos ombros dos jóqueis de colete, que
se chamavam Billie, Jimmy, Gordon e Charlie ç eram os melhores mágicos do mundo e
também os melhores duende e que liam todas as minhas bandas desenhadas e me deixavam as dei depois de as terem lido.
Mas Lippsie continuava a estar sempre presente, num ou noutro lu, gar deste cortejo,
umas vezes como mãe, outras como dactilógrafa, músit ca, jogadora de críquete, e
sempre como tutora moral privativa de Pym, saltitando pelo campo fora em perseguição
de uma bola alta com toda a gente a gritar-lhe Achtung\ e upa, cuidado com os canteiros. Também foi no Paraíso que Rick deu um pontapé numa bola de futebol bem
grande e novinha em folha e ela foi bater no jovem rosto de Pym: era como ser atingido
pelo interior de todos os Bendeys ao mesmo tempo, a mesma sensação do couro e a
mesma velocidade vertiginosa. Quando voltou a si, Dorothy estava curvada sobre ele
com um lenço entre os dentes e gemia Oh, não, por favor, meu Deus, não porque havia sangue por todo o lado. A bola só lhe tinha feito um golpe na testa, mas Dorothy
teimava que lhe tinha enfiado o globo ocular para dentro da cabeça, e que aquilo nunca
mais ia sair outra vez. Pobrezinha, estava demasiado assustada para limpar o sangue;
portanto, teve de ser Lippsie a fazê-lo: Lippsie sabia tocar--me como tocava nos animais
e pássaros feridos. Nunca conheci mulher com tanto tacto nas mãos. E hoje acho que para ela eu era isso mesmo: urna coisa para tocar, acarinhar e proteger, depois de tudo o
resto lhe ter sido tirado. Eu era o seu bocadinho de esperança e de amor na gaiola
dourada onde Rick a tinha presa.
No Paraíso, quando Rick estava em casa não havia noite e ninguém se deitava a não ser
Dorothy, que se designara a si própria para o cargo & Bela Adormecida da nossa corte. Pym podia entrar na festa sempre quC lhe apetecesse, e lá estavam eles todos, Rick,
Syd, Morrie Washingt°n> Perce Loft, Mr. Muspole, Lippsie e os jóqueis, deitados no
chão por en' tre montes de moedas, olhando a bola da roleta que pulava sobre as oí*1'
sórias de lata, com T.E revestido das suas insígnias a mirá-los pelo 1uC
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bém devia existir um retrato dele lá em casa. E vejo-nos todos a dan-ao som do
gramofone e a contar histórias sobre um chimpanzé cha-do Pequena Audrey, e a rir, a
rir muito de piadas que ultrapassavam a capacidade intelectual de Pym. Mas ele ria mais
alto que todos os outros, que gstava a aprender a agradar, a fazer vozinhas e números e a contar anedotas para chamar as atenções. No Paraíso, toda a gente gostava de toda a
gente, e uma vez Pym encontrou Lippsie sentada ao colo de Rick, e outra vez ele estava
a dançar muito agarrado a ela, com um charuto entre os dentes e a cantar « Underneath
theArches» de olhos fechados. E era mesmo uma pena Dorothy estar uma vez mais
demasiado cansada para pôr o vestido pregueado que Rick lhe comprara cor-de-rosa para Dorothy, branco para Lippsie , e vir até cá abaixo divertir-se um bocado. Mas
quanto mais alto Rick gritava pelas escadas a chamá-la, mais profundamente ela dormia,
como Pym acabou por descobrir quando Rick lhe deu instruções para ir convencê-la.
Bateu à porta e não teve resposta. Avançou silenciosamente até à cama enorme e
afastou da face dela aqui-!o que à primeira vista pareciam teias de aranha. Primeiro murmurou--lhe ao ouvido, depois experimentou dar uns berros, mas sem resultado.
Dorothy estava a chorar durante o sono, informou ele quando voltou a descer. Mas na
manhã seguinte, estava tudo bem outra vez, porque estavam os três juntos na cama com
Rick no meio, e deixaram Pym enfiar-se ao lado de Lippsie quando Dorothy desceu
para fazer as torradas; e Lippsie abraçou-o gravemente, e franziu-lhe o sobrolho com um ar que era ao mesmo tempo perturbado e reprovador: penso hoje que era essa a
maneira de ela me dizer que se envergonhava da sua fraqueza e da sua paixão e queria
resgatar-se através da sua preocupação comigo.
E verdade que no Paraíso Rick gritava, mas nunca com Pym. Não levantou a voz para
mim uma vez que fosse; a sua vontade era suficientemente forte para se impor sem precisar disso, e o seu amor, maior ainda que a sua vontade. Gritava com Dorothy,
adulava-a e punha-a em guar-contra coisas que Pym era incapaz de perceber. Por mais
de uma vez u-a ao colo até ao telefone e obrigou-a a falar para várias pessoas o tio
Makepeace, para as lojas, para indivíduos que de algum modo içavam, e só Dorothy os
podia apaziguar, porque Lippsie recu-p.e a ~'0> e de qualquer modo tinha sotaque. Penso que foi então r^ C ^ OUV1U Pe'a primeira vez o nome de Wentworth: lembro-me
de Mr W a^arrar a mmria mão para ganhar coragem, enquanto dizia a tod entWortn que
a questão do dinheiro se resolveria, se não fizessem S tanta Pressão sobre eles. Por isso
o nome de Wentworth era para
91
Pym, desde muito cedo, um nome feio. Tornou-se um sinónimo de medo e do fim das
coisas. ■ Quem é esse Wentworth? perguntou Pym a Lippsie, e foi essa a única vez que ela o
mandou calar.
E lembro-me de como Dorothy sabia os nomes de todas as telefonis
tas da central, e o que faziam os respectivos maridos e noivos, e em que
escola andavam os filhos, porque, quando estava sozinha com Pym, a tremer dentro da camisola de angora, pegava no telefone branco e taga
relava um bocado com elas, e aquele mundo de vozes descarnadas pare
cia conseguir reconfortá-la. Rick também gritava com Lippsie quando ela
lhe fazia frente, e acho que, à medida que fui crescendo, ela passou a fazê-
-lo com mais frequência. E às vezes gritava com as duas, fazendo-as cho rar ao mesmo tempo, até que tudo se compunha na grande cama onde
ele comia as torradas ao pequeno-almoço, sujando de manteiga os lençóis
cor-de-rosa. Mas ninguém magoava Pym ou o fazia chorar. Já naquele
tempo, Pym percebia que Rick avaliava as suas relações com as mulheres
a partir da sua relação com Pym, e as achava deficientes por comparação. Às vezes Rick levava Dorothy e Lippsie a patinar. Rick vestia um casaco
preto de abas compridas e uma gravata branca, mas Dorothy e Lippsie
mascaravam-se como os rapazinhos nas pantomimas, dando-lhe ambas
o braço e evitando olhar uma para a outra. .*
. ■ • ■-■%; A Queda ocorreu na escuridão. Tínhamo-nos mudado muitas vezes nos últimos tempos,
numa ascensão vertiginosa através do mercado imobiliário local, e nessa altura o nosso
palácio era uma mansão numa colina: o momento foi uma tarde sombria de Inverno
perto do Natal. Pym tinha estado a fazer enfeites de papel com Lippsie, e tenho ideia
que, se fosse capaz de encontrar a casa e no caso de ela não ter sido convertida em pr°' priedade camarária ou demolida para construir uma estrada ainda veria os enfeites
pendurados precisamente como os deixámos, estrelas oe David e estrelas de Belém ela
explicou-me qual era a diferença exac a brilhar em enormes quartos vazios. Primeiro
apagaram-se as luzes n amplo quarto de Pym, depois a lareira eléctrica extinguiu-se,
depois comboio eléctrico Hornby «O» com dez circuitos, novinho em folha, CL xou de trabalhar, e depois Lippsie deu uma espécie de guincho e desap' receu. Pym desceu as
escadas e abriu a porta de nogueira do armário <-•■ bebidas, luxuoso e novo em folha.
O interior revestido de espelhos re-1 sou iluminar-se e não tocou «Someones in the
kitchen with Dinah».
92
De um momento para o outro, em toda a casa só as bolas de latão , reiógio barométrico
perpétuo mantinham a sua energia. Pym cor-
l Cki18 M Rl jdii , reiógio barom pp g y
até à cozinha. Não estavam lá Cookie18 nem Mr. Roley, o jardinei-cujos filhos lhe
roubavam os brinquedos, mas não se podia censurá-los porque não tinham os privilégios
que ele tinha. Correu outra vez nara o primeiro andar e, sentindo muito frio, fez um
reconhecimento rápido dos longos corredores, chamando «Lippsie, Lippsie», mas ninguém respondeu. Pelos vidros sujos da janela do patamar, espreitou para o jardim e
distinguiu a custo alguns automóveis no caminho que levava até casa. Não eram
Bentleys; eram dois Wolseleys da polícia. E condutores da polícia, com bonés de pala,
sentados ao volante. E homens de impermeáveis castanhos à volta dos carros a falar
com Mr. Roley, enquanto Cookie torcia o lenço e as mãos, como a senhora da pantomima do Crazy Gang que Rick tinha levado a corte a ver na semana anterior. As
pessoas sobem quando estão cercadas, sei-o hoje, e isso pode explicar porque é que a
reacção de Pym foi correr pela escada estreita até ao sótão. Aí encontrou Rick, muito
agitado, com dossiers e papéis no chão a toda a sua volta, e enfiando-os às braçadas
num velho ficheiro verde muito estragado, que Pym nunca vira em nenhuma das suas muitas explorações.
Não há luz e Lippsie assustou-se e veio a polícia e estão a prender Mr. Roley no jardim
disse Pym a Rick, sem parar para respirar.
Disse isto várias vezes, cada vez mais alto, por causa da grande importância da sua
mensagem. Mas Rick não o ouvia. Corria dos papéis para o armário, enchendo as gavetas. Por isso Pym aproximou-se dele e deu-lhe um murro com força na parte
superior do braço, com toda a força de que era capaz, na parte mole mesmo acima da
mola metálica que usava para manter esticada a manga da camisa de seda, e Rick virou-
e bruscamente para ele, levantando a mão para lhe bater, com a cara como a de Mr.
Roley quando dava o último golpe num tronco, partin-p° em "°'s: vermelha, contraída e suada. Depois baixou-se e agarrou . P s ombros, com as mãos espessas e côncavas. E o
seu rosto inquietou Pym muito mais do que o golpe de machado, porque Rick ti-o nos
assustados e chorosos sem que o resto da cara o reflectisse, ea sua voz soava doce e
piedosa.
«mo t d ^ mais me tornes a bater>meu flmo- Quando eu for julgado, o to os o seremos um dia, Deus há-de julear-me pela maneira como
ei> Podes estar certo disso. !
°rque é que está cá a polícia? disse Pym.
93
O teu velhote está com um problema temporário de liquidez
Agora arranja um caminho até àquele armário e abre-nos a porta como
um menino bonito. Depressa. O armário estava num canto atrás de um monte de roupas gastas ç objectos velhos. Sem
saber bem como, Pym abriu caminho até à porta e puxou-a até se abrir. Com uma série
de estrondos, Rick estava, entretanto, a fechar violentamente as gavetas do ficheiro.
Fechou-o à chave, agarrou Pym pelo braço e enfiou-lhe a chave no fundo do bolso das
calças, pequeno e lanoso, e onde não cabia mais do que uma chave e um pa-cotinho de rebuçados.
Dás isso ao Mr. Muspole, estás a ouvir, filho? A mais ninguém se
não a ele. Depois mostras-lhe onde está o ficheiro. Trá-lo aqui e mostra-
-lhe. E a mais ninguém. Gostas do teu velhote?
Sim. Pois então.
Orgulhoso como uma sentinela, Pym segurou a porta enquanto Rick fazia girar o
ficheiro sobre os rodízios, metendo-o dentro do armário, e depois no recanto escuro da
parede que ficava por trás. Por fim, atirou para cima dele uma data de lixo que o
escondeu por completo. Viste onde ficou, meu filho? , ;Í4 •;
VÍ. ■■ >i
Fecha a porta.
Pym fez o que o pai lhe disse, depois desceu as escadas ruidosamente e de peito
espetado, porque queria dar mais uma olhadela aos carros da polícia. Dorothy estava na cozinha com o casaco de peles novo e os chinelos felpudos, também novos, mexendo
uma lata de sopa de tomate. Tinha na boca uma daquelas bolas de ar que as pessoas
fazem quando estão demasiado engasgadas para poderem falar. Pym odiava sopa de
tomate, e Rick também. Rick está a consertar os canos da água anunciou ele pomposa
mente, para manter intacto o seu segredo. Era o único significado que
conseguia atribuir à referência de Rick à «liquidez». Berrando ainda mais
alto por Lippsie, avançou para o corredor, atravessando-se no caminh"
de dois polícias esmagados pelo peso de uma grande secretária, que era o local de trabalho de Rick quando este estava em casa.
Isso é do meu pai disse ele agressivamente, pondo a mão a ©'
par o bolso onde tinha a chave.
Só me lembro do primeiro dos polícias. Era simpático e tinha um t"' godé como o de
T.P., e era mais alto que Deus. 94
pojs> bem, tenho muita pena mas agora é nosso, meu rapaz. Se-
-nos aquela porta, está bem, e tem cuidado com os pés.
Pym o segurador de portas oficial, condescendeu. O teu pai tem mais alguma secretária, tem? pergunta o polícia
grande.
Não.
E armários? Sítios onde guarde papéis?
Os papéis estão todos aí dentro disse Pym, apontando firme mente a secretária, sempre com a outra mão no bolso.
Queres fazer xixi?
Não.
Onde é que há cordas?
Não sei. Sabes, sim senhor. ;
No estábulo. Num gancho de pendurar selas junto à máquina
nova de cortar relva. É um cabresto. , ....:•
Como é que te chamas?
Magnus. Onde está Lippsie? Quem é Lippsie?
Éumasenhora. s v , :
E trabalha para o teu pai?
Não.
Dá uma corrida e vai-nos lá buscar a corda, está bem, Magnus, meu rapaz. Eu e aqui os meus amigos vamos levar o teu pai para passar
connosco umas férias de trabalho durante uns tempos e precisamos dos
papéis dele, senão ninguém vai poder trabalhar.
Pym foi a correr até à cabana, que ficava no outro extremo do terreno, entre a cerca do
pónei e a casinha de Mr. Roley. Na prateleira, havia uma •ata de chá verde onde Mr. Roley guardava os pregos. Pym colocou a cha-Ve "■ "entro, pensando: lata verde,
ficheiro verde. Quando voltou com a cor-. Rick estava de pé entre dois homens de
gabardinas castanhas. E lem-ro-me claramente da cena: Rick tão pálido que nenhumas
férias do undo o fariam recompor-se, exigindo-me lealdade com o olhar. E o po-la ê^de
a deixar que Pym experimentasse o seu boné achatado e carregasse no botão que fazia tocar a campainha no interior do Wolseley pre-• orothy com ar de quem ainda precisava
mais de férias do que Rick, ja engasgada, mas sim direita e quieta como uma imagem,
com as '«aos brancas cruzadas sobre o casaco de peies.
memória tem as suas tentações, Tom. Pintar um quadro trágico. O
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pequeno grupo, o dia de Inverno, o Natal já no ar. A fila de Wolseleys afaj tando-se aos
solavancos pelo caminho que Pym táo longamente patru lhara com o seu revólver de seis tiros recém-comprado nos armazéns Har rods. A secretária de Rick amarrada ao
último carro com a corda que e|e fora buscar ao estábulo. Imóveis, vêem o cortejo
desaparecer no túnel de árvores, levando o nosso único sustento, só Deus sabe para
onde. Mrs Roley a chorar. Cookie a gemer em irlandês. A cabecinha de Pym encostada
ao peito da mãe. Mil violinos tocando «Será que Nunca mais Voltareis?» . Opathos que eu poderia espremer a partir deste limão, se fizesse por isso, seria quase infinito. Mas a
verdade, quando me esforço por reconstituí-la, apresenta-se bem diferente. Com a
partida de Rick, uma grande calma invadiu Pym. Sentiu-se fresco e liberto de um fardo
intolerável. Viu partir os carros, com a secretária de Rick em último lugar. E ficou a
olhá-los ansiosamente, mas foi por medo de que Rick os conseguisse persuadir a deixarem-no regressar. Enquanto olhava, Lippsie saiu do meio da vegetação com um
lenço na cabeça e avançou até ele com dificuldade, devido ao peso da mala que continha
todos os seus pertences. Ao vê-la, Pym ficou ainda mais furioso do que quando
encontrara Dorothy a fazer sopa. Escondeste-te, acusou-a ele no diálogo secreto que os
dois cons-tantemente mantinham. Tiveste tanto medo que te escondeste na mata e perdeste o melhor da festa. Compreendo agora, claro mas na altura não compreendia
que Lippsie já antes tinha visto outras pessoas serem levadas assim: o irmão Aaron e o
seu pai, o arquitecto, para citar apenas dois. Mas Pym, e o resto do mundo com ele,
preocupava-se pouco com pogroms naquela época, e a única coisa que era capaz de
sentir era um profundo ressentimento por o grande amor da sua vida não ter estado à altura daquele momento histórico.
Muspole veio nessa noite. Apareceu à porta lateral com uma galinha já cozinhada para
nós e uma tarte de ruibarbo e leite-creme espesso e um j termo cheio de chá quente, e
disse que estava a tratar da nossa situação e | que no dia seguinte tudo estaria resolvido.
Para falar com ele a sós, Py111 disse: Venha ver o meu comboio Homby e Dorothy começou iflic diatamente a chorar, porque já não havia comboio Hornby nenhum: tinha
havido uma batalha campal entre os beleguins encarregados da P6" nhora e os lojistas
que queriam recuperar os seus artigos, e o Hornby n"* uma das primeiras coisas a
desaparecer. Mas Mr. Muspole seguiu Py10 na mesma, e Pym levou-o à cabana e deu-
lhe a chave, e depois conduziu ao sótão e mostrou-lhe o segredo. E todos ficaram uma vez mais a o® enquanto Mr. Roley e Mr. Muspole arfavam e sopravam, carregando o "
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■ até ao carro de Mr. Muspole. E uma vez mais acenaram quando M 'Muspole partiu de
automóvel em direcção ao crepúsculo com o chapéu na cabeça. Depois da Queda veio, como seria de esperar, o Purgatório, e no Purgatório não havia
Lippsies acho que ela fez então uma das suas tentativas de se afastar de mim,
aproveitando a ausência de Rick para cortar as amarras. O Purgatório foi o lugar onde
eu e Dorothy cumprimos a nossa pena, Tom, c o Purgatório é pertíssimo daqui, é do
outro lado da colina, são só algumas paragens da camioneta de Rick, seguindo sempre ao lon-eo da costa; mas os novos apartamentos de férias que lá construíram tiraram-lhe
em grande parte o ar terrífico. O Purgatório era o vale arborizado, cheio de fendas,
ravinas e de loureiros tristes onde Pym fora concebido, com praias vermelhas e ventosas
sempre na estação baixa, e baloiços que chiavam e areais molhados onde não se podia
brincar aos domingos, e onde Pym não podia brincar nunca. O Purgatório era a grande casa melancólica de Makepeace Watermaster, The Glades, onde Pym estava proibido de
sair do pomar murado quando o tempo estava seco e de entrar nos quartos melhores
quando chovia. O Purgatório era o Tabernáculo com os Rapazes da Escola Nocturna
definitivamente eliminados dos livros de história; e os sermões aterradores de
Makepeace Watermaster; e os sermões de Mr. Philpott; e os sermões de todas as tias, primos e filósofos das redondezas que sentiam dever pronunciar-se sobre o infortúnio
de Rick e viam no jovem delinquente o interlocutor mais adequado.
O Purgatório não tinha armário de bebidas, televisões, jóqueis, Ben-ueys nem
«Imbatíveis», e servia-se lá pão com margarina em vez de torradas com manteiga.
Quando cantávamos, entoávamos « There isagreen hllfaraway» e nunca « Underneath tbeArches» ou um dos Liederde Lipp-le' totografias dessa época mostram uma criança
sorridente, de den-s> Dem desenvolvida e com um ar bastante saudável, mas cur-
a como se vivesse numa casa de tectos muito baixos. Todas estão das; todas parecem ter
sido tiradas furtivamente e à pressa, e es-m^ Por amá-las apenas porque creio que foi
Dorothy quem as tilas"^ f°SSe de LiPPsie <lue pym sentia a falta-Em duas ou três de~ tom r'ança esta a Puxar pelo braço da mãe de ocasião que na altura consi a ^^ ^e'e>
Provavemiente tentando convencê-la a ir-se embora de fan , outra aparece com umas
luvas brancas e moles como mãos es> o que me leva a pensar que teria então sofrido de
uma
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doença de pele, a menos que fosse por Makepeace não querer quq deixasse impressões
digitais. Ou talvez Pym então quisesse vir a ser do de mesa.
As mães, todas volumosas, todas com o mesmo uniforme rígido, i um tal ar de
carcereiras que me pergunto seriamente se Makepeace nã terá contratado numa agência especializada em delinquentes. Uma d tem ao peito uma medalha semelhante à Cruz de
Ferro. Não quero isto dizer que não fossem bondosas. O sorriso delas resplandecia de
opg mismo piedoso. Mas alguma coisa, na sua maneira de me olharem, mefe estar certo
de que elas estão sempre alerta, vigiando a criminalidade latet» do rapazinho à sua
guarda. Lippsie não aparece e a minha pobre Dorotíi a única companheira de cela de Pym na ala escura e recôndita da casía que os dois estavam confinados, era ainda mais
inútil do que antes. Se Pym apanhava uma sova, Dorothy pensava-lhe as feridas, mas
nunca pt nha em causa a necessidade de o ferirem. Se lhe punham fraldas parle
envergonhar, como castigo por ter feito xixi na cama, Dorothy insisá para ele não beber
na segunda parte do dia. E se o privavam do chá, Ds-rothy guardava os seus biscoitos para ele, e dava-lhos na intimidade <fc quarto, lá em cima, fazendo-os passar um a um
por entre as grades inviáveis. Nos bons dias do Paraíso, Pym e Dorothy conseguiam rir
juntos d« anedotas do momento. Agora o silêncio pecaminoso da casa dela reclamava-a.
Cada dia ela se fechava mais em si mesma, e apesar de ele lhe coi tar as suas melhores
piadas e fazer os seus melhores números e pintar ( melhores desenhos de que era capaz, nada do que Pym fazia despertav por muito tempo o seu sorriso. De noite, gemia e
rangia os dentes, e quai do acendia a luz, Pym estava acordado na cama ao seu lado,
pensando ei Lippsie e vendo os olhos de Dorothy fitarem sem pestanejar a estrela d
Belém de pergaminho que lhes servia de abajur.
Se Dorothy estivesse a morrer, Pym seria capaz de continuar a cuiefa dela para sempre, sem dúvida. Mas não estava; portanto, ele começou ■ ficar ressentido com a sua atitude.
Na realidade, em breve ficou comp'e tamente farto dela e pôs-se a pensar se não teria
sido o membro errado * família a ir de férias, e se não seria Lippsie a sua verdadeira
mãe, se não & ria havido um erro terrível que explicasse tudo. Quando estalou a gue ra,
Dorothy foi incapaz de rejubilar com a excelente notícia. Makepe ligou o rádio e Pym ouviu um homem solene dizer que tinha feito to o possível para a evitar. Makepeace
desligou o rádio e Mr. Philpott-' tinha vindo tomar chá, perguntou com ar fúnebre onde,
oh, onde vT dar-se a batalha? Makepeace, que nunca se atrapalhava, replicou '
decidiria. Mas Pym, transbordando de excitação, atreveu-se por ̂ a vez a discutir com ele.
jv^aS) úo Makepeace! Se Deus pode decidir onde se vai dar a bata-
Ih porque é que Ele não faz com que não haja batalha nenhuma? E por-e não quer. Se
quisesse podia, era facílimo. Mas não quer! Ainda hoie não sei qual o maior pecado: se
discutir com Makepeace ou se discutir com Deus. Em qualquer dos casos, o remédio era o mesmo: ponham-no a pão e água como o pai.
Mas o pior dos monstros de The Glades não era o tio Makepeace com o seu ar de
boneco de borracha e as suas orelhinhas rosadas, mas a louca tia Nell com os seus
óculos escuros, que perseguia Pym sem motivo, ameaçando-o com a bengala e
chamando-o «meu canarinho», por causa da camisola amarela que Dorothy tinha conseguido tricotar para ele enquanto chorava. A tia Nell tinha uma bengala branca para
ver e uma bengala castanha para andar. Via perfeitamente, a não ser quando andava com
a bengala branca.
A tia Nell tem os passos trocados dentro de uma garrafa disse um dia Pym a Dorothy,
pensando que a faria sorrir. Eu vi. Ela tem uma garrafa escondida na estufa. Dorothy não sorriu; pelo contrário, ficou muito assustada e obrigou-o a jurar que nunca
mais diria aquilo. A tia Nell estava doente, disse ela. A doença dela era secreta e ela
tomava um remédio secreto para se tratar, e ninguém podia saber, senão a tia Nell
morria e Deus ficava muito zangado. Durante várias semanas, Pym transportou dentro
de si este saber maravilhoso, tal como transportara fugazmente o que Rick lhe transmitira, mas este era melhor e mais vergonhoso. Era como o primeiro dinheiro que
alguma vez possuíra, o seu primeiro bocadinho de po-er. Sobre quem havia de o
exercer? pensou. Com quem havia de o panilhar? Vou deixar viver a tia Nell ou vou
matá-la por me chamar o seu «narinho? Decidiu-se por Mrs. Bannister, a cozinheira. A
tia Nell tem os passos trocados dentro de uma garrafa disse ele a Mrs. Bannister, oo cuidado de repetir palavra por palavra a frase que tanto assusta-°rothy. Mas a tia Nell
não morreu e Mrs. Bannister já sabia da gar-tó ' ^ ° ou'° Pe'° descaramento. Pior ainda,
deve ter contado a his-da D •°_t10 M^peace, que nessa noite fez uma das suas raras
visitas à ala
^ o, que era Rick. Quando se foi embora, Pym rugir • ^ em nte ̂ P°rta para o caso de Makepeace decidir voltar para rn bocado, mas
não voltou; Todavia, o aprendiz de espião in-
an T'i ^est'cu^and°' rugindo, transpirando e apontando Pym en-to falava do Demónio,
que era Rick. Quando se foi embora, Pym
98
99
teriorizara precocemente uma lição sobre a difícil arte da espionagem-toda a gente fala.
A lição seguinte foi igualmente instrutiva e teve a ver com os perigos da comunicação
em território ocupado. Naquela altura Pym escrevia a Lippsie todos os dias e punha as cartas numa caixa de correio que ficava junto ao portão das traseiras da casa. As
missivas continham, pata sua vergonha futura, informações valiosíssimas, e quase
nenhumas delas em código. Como entrar em The Glades à noite. As horas em que era
levado a passear. Mapas. O carácter dos seus perseguidores. O dinheiro que tinha
poupado. A localização precisa dos guardas alemães. O caminho a seguir dentro do jardim das traseiras e o lugar onde eta guardada a chave da cozinha. Fui raptado e estou
numa casa perigosa, por favor vem buscar me depressa escreveu, e juntou à carta um
desenho da tia Nell com canários a saírem-lhe da boca, como uma espécie de aviso mais
claro ainda dos perigos que o rodeavam. Mas havia um senão. Como não tinha a morada
de Lippsie, Pym só podia esperar que alguém nos Correios soubesse onde encontrá-la. Depositou confiança em quem não devia. Um dia, o carteiro entregou pessoalmente a
Makepeace todo o maço ultra-secreto; este convocou a mãe do momento, que convocou
Pym e o conduziu até Makepeace como o prisioneiro que de facto era, para ser
castigado, apesar de ele ter sorrido e suplicado e adulado Makepeace o mais que pôde;
porque Pym, com bastante falta de desportivismo, é verdade, odiava o chicote e quase nunca apanhava sovas com valentia. Depois disso, contentou-se em procurar Lippsie
nos autocarros e, quando podia, negar depois que o fizera; em perguntar às pessoas, que
por acaso passavam junto do portão das traseiras, se a tinham visto. Perguntava
principalmente aos policias, a quem agora sorria rasgadamente sempre que via algum.
O meu pai tem uma velha caixa verde com segredos lá dentro disse ele a um polícia, uma vez que passeava no jardim em torno do monumento com uma das mães.
Ai sim, meu filho? Bom, muito obrigado por nos dizeres oisse o polícia, fingindo
escrever a informação no seu bloco de notas.
Entretanto, notícias de Rick (mas não de Lippsie) chegaram até Py01 como murmúrios
incompletos de uma transmissão de rádio a longa o1 tância. O teu pai está bem. As férias estão a fazer-lhe bem. Perdeu pes°' comida é óptima, não nos devemos preocupar,
ele faz exercício, T" os se livros de direito, voltou a estudar. A fonte destes inestimáveis
f> ayt foi a Outra Casa, que ficava numa zona mais pobre do Purg cório,
100
A fábrica de coque, e de que não se podia falar em frente do tio Make-
ce, porque fora essa a casa que gerara Rick e trouxera a desonra à fa-ília Watermaster,
para já não falar da memória de T.P. De mãos dadas, Dorothy e Pym iam lá no meio de
uma escuridão quase total, com os vidros do trolley cobertos por uma rede pegajosa por
causa das bombas, e luzes azuis no interior para enganar os pilotos alemães. Na Outra Casa, mna senhora irlandesa pequenina e firme, com o queixo bem desenhado, dava a
Pym uma moeda de meia coroa que tirava de um frasco de gengibre, apalpava-lhe os
músculos dos braços com ar aprovador e chamava-lhe «filho», tal como Rick; e na
parede havia outro exemplo da mesma fotografia retocada de T.P., com uma moldura
que não era dourada, mas sim de madeira escura. Tias de rostos risonhos faziam doces para Pym com as suas rações de açúcar e abraçavam-no, e choravam e tratavam
Dorothy como a rainha que ela em tempos fora, e davam gritinhos quando Pym fazia as
suas vozes esquisitas, e batiam palmas quando ele cantava «Underneath theArches» Vá
lá, Magnus, agora imita sir Makepeace! Mas Pym não ousava, com receio da ira de
Deus, que ele sabia, desde o caso da tia Nell, ser expedita e terrível. A tia de que ele mais gostava era Bess.
Diz-nos lá, Magnus murmurava a tia Bess, sozinha com ele na copa, puxando-lhe a
cabeça para mais perto da dela. É verdade que o teu pai teve um cavalo de corridas chamado Príncipe Magnus por tua causa?
Não é verdade disse Magnus sem hesitar, recordando toda a excitação do dia em que,
sentado na cama de Lippsie e ao lado dela, ouvira o relato da corrida em que o Príncipe
Magnus perdera. É uma mentira inventada pelo tio Makepeace para caluniar o meu pai.
A tia Bess beijou-o e riu e chorou aliviada, e abraçou-o com mais for-Ça ainda. Nunca digas que te perguntei. Promete. ^Prometo disse Pym. Pela minha saúde.
01 a mesma tia Bess que, uma noite gloriosa, conseguiu que Pym «e às escondidas de
The Glades pzrzh ao Pier Theatre onde viram Max • r e urna fila de raparigas de pernas
longas e nuas como as de Lipp-• ° trolley de regresso, transbordando de gratidão, Pym
contou-lhe K . ^ne sabia no mundo, e inventou o que não sabia. Disse que tinha 5c T ° ^e Shakespeare que estava numa caixa verde numa casa ^ç- ' m ™a havia de o
encontrar, e imprkriia-o e ganhava imenso di-isse que ia ser polícia e actor é jóquei, e
que havia de guiar um
101
Bendey como Rick e casar com Lippsie e ter seis filhos, todos chamado TE como o avô.
Isto agradou enormemente a Bess tudo menos a te que dizia respeito a jóqueis e ela foi
para casa dizendo que Magny, era um ponto, que era o que ele mais queria. O seu
deleite foi de pouc dura. Desta vez Pym tinha enfurecido Deus mais do que nunca, e,
com< de costume, Ele não demorou a ripostar. No dia seguinte, antes do pe queno-almoço, a polícia veio e levou para sempre a sua Dorothy, embo-ra a mãe reinante
dissesse que era apenas uma ambulância.
E uma vez mais embora Pym, cumprindo o seu dever, tivesse choi rado por Dorothy e
recusado comer por causa dela e batido com os pit| nhos nas mães resignadas , não
podia deixar de achar que tinham tido) toda a razão em a tirar dali. Levaram-na para um lugar onde ela ia ser felizj disseram as mães. Pym invejava-lhe a sorte. Não era o
mesmo lugar para onde tinham levado Rick, não, era um sítio mais agradável e mais
calmoj com pessoas simpáticas para se ocuparem dela. Pym planeou ir ter com ela. A
fuga, que até então era uma fantasia, tornou-se um objectivo sério.' Um epiléptico
célebre na escola dominical deu-lhe a conhecer os sinto-i mas. Pym esperou um dia, entrou na cozinha a correr e a revirar os olhos,! e desfaleceu teatralmente ante Mrs.
Bannister, metendo as mãos na bocae contorcendo-se como medida de precaução. O
médico, que devia ser umt perfeito imbecil, receitou um laxante. No dia seguinte, Pym
fez mais uma! tentativa para chamar sobre si as atenções: cortou a madeixa da frente
comi uma tesoura. Ninguém deu por isso. Passando então a improvisar, abriu a gaiola da catatua de Mrs. Bannister, encheu o interior do fogão de espuma de sabão e entupiu o
lavatório com um boa de penas que pertencia à tia Ne!,
Não aconteceu nada. Tudo tinha sido em vão. Do que ele precisas* era de um grande e
dramático crime. Esperou toda a noite, e depois, àt manhã cedo, quando a sua coragem
atingiu o ponto máximo, Pym ao* vessou toda a casa até chegar ao escritório de Makepeace Watermastet de roupão e chinelos, e aliviou-se abundantemente bem no
meio do tapete branco. Aterrorizado, lançou-se sobre a mancha que assim criar*
esperando secá-la com o calor do corpo. Uma criada entrou na sala e gf' tou. Foi
convocada uma das mães, e, da sua posição angustiosa no tap" te, Pym recebeu uma
lição instrutiva sobre o modo como a história é t& crita nos momentos de crise. A mãe tocou-lhe no ombro. Ele gemeu-
?
Ia>
perguntou-lhe onde é que lhe doía. Indicou a zona da virilha, que era> facto, a causa
literal do seu desespero. Foram buscar Makepeace wa* master. Para começar, o que é que estavas a fazer no meu escritório? A sir, a dor, queria dizer-lhe que tinha uma dor.
Um ruído de pneus
102
médico que voltava, e agora enquanto se curvava sobre Pym e lhe atoava o estômago com os seus dedos estúpidos, todos se lembravam , acontecera. O
desmaio diante de Mrs. Bannister. Os gemidos noc-
nos a palidez diurna. A loucura de Dorothy, discutida em termos ve-I dos Até o facto de
Pym fazer xixi na cama foi recordado e usado como argumento em seu favor.
Pobre rapaz, também teve aqui um dos seus ataques disse a mãe quando transportaram cuidadosamente o paciente para o sofá e mandaram a criada ir a
correr buscar desinfectante de Jeyes e um pano do chão. Tiraram a temperatura de Pym
e verificaram com inquietação que era perfeitamente normal. Não quer dizer nada disse
o médico, lutando agora para fazer esquecer a sua anterior negligência, e ordenou à mãe
que fizesse as malas do pobre rapaz. Ela obedeceu, e no decurso dessa actividade, deve necessariamente ter descoberto uma série de pequenos objectos que Pym retirara das
vidas de outras pessoas para melhorar a sua: os brincos de azeviche de Nell, as cartas do
filho da cozinheira que estava no Canadá e as «Viagens com um Burro» de Makepeace
Water-master, que Pym seleccionara por causa do título, única parte do livro que
chegara a ler. A crise era tão grave que até este negro testemunho da sua criminalidade foi ignorado.
O desenlace foi bem melhor do que Pym ousaria esperar. Menos de uma semana depois,
num hospital recém-equipado para receber as vítimas do blitzque se aproximava,
Magnus Pym, de oito anos e meio de idade, foi operado ao apêndice para despistar o
inimigo. Quando voltou a si, a primeira coisa que viu foi um koala azul e preto maior do que ele sentado aos pés da cama. A segunda foi um cesto de fruta maior que o urso, e
que parecia um pedaço de St. Moritz que tivesse caído por engano na Grã-Bretanha em
guerra. A terceira foi Rick, magro e elegante
mo um marinheiro, em sentido e a fazer continência com a mão direi-
• t ao lado de Rick, como um fantasma assustado trazido à força para °ra das sombras do reino doroformizado de Pym, estava Lippsie, com
ombros curvados sob uma capa de peles nova, e apoiando-se em Syd
"jon que parecia o irmão mais novo de si próprio.
'PPsie ajoelhou ao pé de mim. Os dois homens ficaram a vê-la abra-
Çar-me. r ASS'm mesmo é que é dizia Rick com ar aprovador. Dá-lhe ^ra?°à inglesa. Assim
mesmo. rOj Lj a osamente, como uma cadela a quem devolvem o seu cachor-examinou-
me, afastando os restos da minha madeixa da fren-
103
te e fitando-me gravemente nos olhos, como se receasse que algo de mau nos tivesse
contaminado.
Como eles comemoraram a libertação! Despojada de tudo, excepto
das roupas e do crédito que ia conseguindo obter, a corte reconstituída de
Rick vagueou de terra em terra; os seus membros tornaram-se cruzados na Grá-Bretanha em guerra. A gasolina era racionada, os Bentleys desa
pareceram por uns tempos, em toda a parte havia cartazes que pergunta
vam «Será que a Sua Viagem é Realmente Indispensável?», e cada vez que
passavam por um deles, abrandavam para gritar «É, sim senhor!» em coro
através das janelas abertas do táxi. Os motoristas ou se tornavam cúmpli ces ou fugiam apressadamente. Um tal Mr. Humphries largou-os todos
no meio da rua em Aberdeen ao fim de uma semana, chamando-
-lhes vigaristas, e foi-se embora sem receber o que lhe deviam, e nunca mais
foi visto. Mas um certo Mr. Cudlove que Rick conhecera durante as férias
e que obteve para toda a corte uma semana de crédito no Imperial de Torquay, através de uma tia que trabalhava na secção de contabilidade
ficou com eles para sempre, comendo a mesma comida e vivendo os mes
mos altos e baixos, e ensinando a Pym uma série de truques com cordéis.
Às vezes tinham só um táxi, outras vezes OUie, o grande amigo de Mr.
Cudlove, trazia o seu Humber e passavam o dia inteiro a fazer corridas, exclusivamente para deleite de Pym, com Syd debruçado da janela de trás
a chicotear o carro. Tiveram um fornecimento abundantíssimo e variado
de mães, e muitas vezes contratavam-nas tão em cima da hora que se viam
obrigados a sentar-se uns ao colo dos outros no banco de trás, com Pym
entalado num regaço excitante e desconhecido. Houve uma senhora cha mada Topsie, que cheirava a rosas e dançava com a cabeça de Pym encos
tada ao seu peito; houve Millie que, no seu fato de sereia, o deixava dor
mir com ela, porque ele tinha medo do armário negro do quarto de hotel,
e que o acariciava sem reservas quando lhe dava banho. E Eileens e Mó
beis e Joans, e uma Violet que bebeu cidra e depois vomitou no carro parte para dentro do estojo da máscara de gás e o resto para cima d P
E quando todas elas desapareciam, Lippsie materializava-se, aparecia im°'
vel no meio do fumo de uma estação de comboio, com a mala de carta
na sua mão fina. Pym amava-a mais do que nunca, mas não conseguia su
portar a sua melancolia crescente, e no turbilhão da grande cruzada o testava sentir essa melancolia concentrada sobre si. ,
A nossa velha Lippsie anda um pouco transtornada dizia JJ
afectuosamente, ao notar o desapontamento de Pym, e os dois, no fundo suspiravam de
alívio quando ela se ia embora. Lá está a nossa velha Lippsie outra vez a pensar nos seus judeus
disse Syd com tristeza de uma outra vez. Foram-lhe dizer que tinham dado cabo de mais
uma data deles.
E noutra altura:
A nossa Lippsie sente-se culpada por não estar morta como eles. As indagações intermitentes de Pym com respeito a Dorodiy não o conduziram a
qualquer conclusão. A tua mamã não está bem, dizia Syd; ela há-de voltar em breve e o
melhor que aqui o nosso Magnus pode fazer, entretanto, é não se afligir por causa disso,
senão ela acaba por saber e ainda fica pior.
Rick resolveu adoptar a táctica de se mostrar ofendido. Pois é, vais ter de aturar o teu pai sozinho por uns tempos. Julguei
que nos estávamos a divertir. Será que não nos divertimos?
Divertimo-nos imenso disse Pym.
Quanto à sua ausência recente, Rick era tão lacónico como o resto da cone; por isso
algum tempo depois, já Pym não tinha bem a certeza se as tais férias tinham mesmo existido ou não. Só algumas alusões ocasionais
0 convenciam de que tinham vivido juntos uma experiência que os uni
ra ainda mais. Winchester tinha sido pior que Reading por causa daque
les estuporados ciganos de Salisbury Plain, disse Morrie Washington a
1 erce Lort, numa conversa que Pym ouviu por acaso. Syd apoiou-o: Aquela ciganada era terrível; pior do que tudo o que possas imaginar disse Syd com
emoção. E os guardas também não eram melhores. E Pym reparou que as férias os
tinham transformado em grandes comilões. Vá, come as ervilhas, Magnus insistiu Syd,
entre risos. Há noteis bem piores do que este, olha que nós sabemos do que estamos a
falar. 5>o passado um ano ou pouco mais de um ano, quando o vocabulá-no e P)™ 'gualou a
quantidade de informações que fora recolhendo, é que compreendeu que tinham estado
a falar da prisão.
as o chefe não participava nestas brincadeiras, e elas cessaram abrup -
ente, porque a gravitas de Rick não era coisa com que se pudesse as- ncar de ânimo leve, e muito menos o podiam permitir-se aqueles
m .f Sldo escolhidos para a defenderem. A superioridade de Rick
mo VaSC em tU<^° ° °lue ^2a-la- ^a maneira como envergava, mes-
Os s^ ° Ovamos completamente tesos, a roupa branca impecável e
mja ^ muit:o limpos. Nos pratos que exigia e na maneira como os co- °S cluart°s que escolhia nos hotéis. No facto de o brandy lhe ser in-
104
105
dispensável quando jogava snooker, e no seu ar de meditação que cons trangia ao
silêncio todos os que estavam à sua volta. Na sua preocupação com as obras de
caridade, que incluíam visitar nos hospitais as pessoas que tinham tido acidentes graves
e ajudar os velhos enquanto os filhos estavam na guerra.
Também vais ajudar Lippsie, quando a guerra acabar? perguntou Pym um dia. - A nossa velha Lippsie é formidável.
Entretanto, fazíamos negócios. Em que ramo, eis uma coisa que Pym nunca chegou a
perceber e que eu ainda hoje não sei. Às vezes vendíamos bens raros como presuntos e
whisky, outras vezes, promessas, a que a corte chamava Fé. Outras ainda, não havia
nada mais sólido do que os horizontes cheios de sol que brilhavam à nossa frente nas estradas desertas do tempo da guerra. Um dia, próximo do Natal, alguém apareceu com
folhas de papel frisado de várias cores, milhares de folhas. Dias e noites a fio, ajudados
por mães supranumerárias recrutadas para esta tarefa de guerra absolutamente vital,
Pym e a corte permaneceram acocorados numa carruagem de comboio vazia em Didcot
a transformar o papel em petardos que não tinham brinquedos lá dentro e não estoiravam, contando uns aos outros histórias delirantes e fazendo torradas em cima do
fogão de parafina. É verdade que alguns dos petardos tinham lá dentro soldadinhos de
madeira, mas a estes chamavam amostras e não os misturavam com os outros. Os
restantes, explicava Syd, eram para enfeitar, Titch, com as flores de papel quando não
há flores a sério. Pym acreditou em tudo o que lhe diziam. Ele era o trabalhador infantil mais aplicado do mundo, desde que sentisse que o que estava a fazer ia merecer
aprovação.
Outra vez puxaram um reboque cheio de caixotes de laranjas, que Pym não quis comer
porque ouviu Syd dizer que estavam quentes. Venderam-nas a um bar junto à estrada para Birmingham. Houve um dia em que arranjaram um carregamento de galinhas
mortas que Syd disse só ser possível transportar à noite porque só então estava
suficienterne11' te frio talvez fosse isso o que correra mal com as laranjas. E há um fwg'
mento de filme que ficará sempre arquivado na minha memória. Nele ve--se uma colina
descarnada no meio da charneca, à luz da lua, e os nossos dois táxis ziguezagueando nervosamente até ao alto, de faróis apagados-E as figuras sombrias à nossa espera, de pé
junto à traseira de um camião-1 a lanterna oculta enquanto eles contavam o dinheiro
para Mr. Muspo'e' o grande contabilista, e Syd a descarregar o atrelado. E embora Pym
°"' servasse a cena à distância, porque odiava penas, nem as travessias n°c'
106
rle fronteiras em que veio a participar mais tarde foram para ele
tío emocionantes.
__ Agora já podemos mandar o dinheiro a Lippsie? perguntou
jw, Ela já não tem nenhum. Como é que sabes uma coisa dessas, filhote?
Pelas cartas que te escreveu, pensou Pym. Deixaste uma no bolso e
lia-a. Mas os olhos de Rick tinham aquele seu brilho metálico, por isso Pym disse:
Inventei e sorriu.
Rick não participava nas nossas aventuras. Estava a reservar-se. Para quê, eis uma pergunta que ninguém fazia à frente de Pym, e que ele por certo nunca fez a si próprio.
Rick dedicava-se as suas boas obras, aos seus velhos e às suas visitas aos hospitais.
Esse teu fato está passado a ferro, filho? perguntava Rick quan
do, por especial privilégio, pai e filho executavam juntos uma dessas no
bres tarefas. Meu Deus do céu, Muspole, olha-me para o fato do ra paz, está uma autêntica vergonha! Olha para o cabelo dele. Logo
mandavam uma mãe passar o fato a ferro, uma outra engraxar-lhe os sa
patos e limpar-lhe as unhas, uma terceira escovar-lhe o cabelo até este
estar ordenado e maleável. Já sem paciência, Mr. Cudlove batia com as
chaves na capota do carro enquanto Pym era submetido a um exame fi nal para eliminar todos os indícios involuntários de falta de respeito. E
depois finalmente lá iam até à casa ou leito de uma pessoa idosa e res
peitável, e Pym ficava fascinado a observar a rapidez com que Rick adap
tava a sua maneira de estar à deles, a naturalidade com que adoptava o
vocabulário e o ritmo que os punha mais à vontade, e o modo como o amor de Deus inundava o seu rosto bondoso quando falava do libera
lismo e da maçonaria e do seu querido pai morto, que Deus tenha, e a
taxa de lucro é de primeira ordem, dez por cento garantidos, para além
outros benefícios até ao fim dos seus dias. Às vezes trazia com ele um presunto para
oferecer, e era um anjo num mundo onde não havia presuntos. As vezes era um par de meias de seda ou uma caixa de nectari-
' porque Rick dava sempre alguma coisa, mesmo quando tirava.
guando podia, Pym colocava na balança o seu próprio encanto, reci-
0 Uma oração que compusera ou cantando « Undemeath theArches»
contando uma história divertida com uma gama variada de sotaques tonais que fora apanhando no decurso da cruzada.
, ^emães estão a matar os judeusfodos disse ele uma vez, fa-0 grande sensação. Tenho
uma amiga chamada Lippsie e todos
107
os outros amigos dela morreram. Se a sua exibição era defeituosa, Rick dizia-lhe sem
brutalidade.
Quando uma pessoa como Mrs. Ardmore te pergunta se te lem
bras dela, meu filho, não fiques a coçar a cabeça e a fazer caretas. Olha-a
bem nos olhos, sorri e diz «Sim!». É assim que se lida com os i assim que ajudas o teu pai. Gostas do teu velhote?
Claro que sim.
Pois então. O que é que achaste do teu bife de ontem?
Estava bestial.
Sabes que em toda a Inglaterra deve ter havido no i vinte rapazes a comer um bife ontem ao jantar, não sabes?
Sei.
Então dá-me lá um beijo.
Syd era menos reverente.
Se queres aprender a fazer a barba às pessoas, Magnus dizia ele, piscando o olho , tens de aprender primeiro a espalhar o creme de
barbear!19
Já próximo de Aberdeen, e sem aviso prévio, a corte passou a interessar-se
exclusivamente por farmácias. Nesse momento éramos já uma companhia limitada, o
que para Pym era tão bom como ser polícia. Rick encontrara mais um banqueiro cheio de Fé, e Ollie, o amigo residente de Mr. Cudlove, assinava os cheques. O nosso produto
era uma mistura de frutas secas que nós fabricávamos com uma prensa manual nas
cozinhas de uma grande casa de campo pertencente a uma nova mãe, viva e impetuosa,
chamada Cherry. Era uma casa enorme, com pilares brancos na porta principal e
estátuas brancas, todas semelhantes a Lippsie, espalhadas pelo jardim. Nem no Paraíso a corte vivera num sítio tão grandioso. Primeiro cozíamos os frutos e reduzíamo-los a
pasta na prensa, o que era a melhor parte do trabalho; depois juntávamos gelatina para
fazer uma espécie de pastilhas, que Pym cobria de açúcar da Companhia com a palma
da mão, lambendo-a nos intervalos entre as fornadas. Cherry tinha em casa refugiados e
cavalos, e dava festas para os soldados americanos; estes ofereciam-lhe »' tas de gasolina que ficavam guardadas no celeiro dos dízimos. Tinha quintas e um grande
parque com veados, e um marido ausente na marinha, a que Syd chamava o Almirante.
Ao fim da tarde antes do jafl' tar, uma matilha de spaniels King Charles entrava em
casa, conduzia pelo chicote de um velho guarda-florestal. Espalhavam-se pelos sota ■
latindo, até que os levavam embora outra vez. Em casa de Cherry, Pe'
imeira vez desde St. Moritz, Pym viu castiçais de prata à mesa do jantar, iluminando
ombros nus.
j-já uma senhora chamada Lippsie que está apaixonada pelo meu
ai e eles os dois vão casar e ter filhos disse Pym a Cherry, com grande proveito para esta última, uma tarde em que passeavam juntos pelo caminho; e ficou muito impressionado
com a seriedade de Cherry ao ouvir esta notícia, e com o número de perguntas que fez
sobre os talentos e actos de Lippsie. Já a vi no banho e é linda disse Pym.
E quando se foram embora, alguns dias mais tarde, Rick levou consigo uma parte da
dignidade do lugar, e também alguns dos pertences do proprietário: lembro-me dele a descer os grandes degraus de pedra com uma mala de couro branco em cada mão (Rick
sempre teve uma paixão pelas belas malas) e ostentando um elegantíssimo traje
campestre, que decerto não faria falta nenhuma ao almirante lá no mar. Syd e Mr.
Muspo-le seguiam-no como anõezinhos de circo, agarrando o ficheiro verde cheio de
mossas, um de cada lado, e gritando: Cuidado aí com a tua ponta, Deirdre! e Devagar, olha as es
cadas, Sybil!
Nunca mais tornes a falar sobre Lippsie com Cherry, meu filho
disse Rick, prevenindo Pym no seu tom mais moralista. Já é mais
que tempo de aprenderes que não é delicado falar de uma mulher a outra mulher. É que se não aprendes isso, desperdiças todas as tuas vantagens,
podes ter a certeza.
Suspeito que também terá sido através de Cherry que Rick tomou a decisão de fazer de
Pym um cavalheiro. Até então, tinha-se partido do princípio de que Pym já pertencia à
aristocracia. Mas Cherry, que era uma mulher enérgica e superior, ensinou a Rick que os verdadeiros privilegia-os ingleses se formavam no meio das privações, e que as
melhores privações se encontravam nos internatos britânicos. Ela tinha ainda um
sobrinho na academia de Mr. Grimble, de nome Sefton Boyd, mas a quem 6er mente
chamava «o meu querido Kenny». Uma segunda influência, a menos doce, foi o
exército. A primeira vítima foi Muspole, depois °me Washington, depois Syd. Cada um deles, com o triste sorriso de to em não teve sorte, fez a sua malinha e desapareceu, para
só voltar mui-de ri Cnte e com ° arjelo muito curto. E depois um dia, para sua gran-Mai
eS*prac^vel surpresa, o próprio Rick foi chamado a servir a pátria. Po c C> V1"a a
encarar com maior tolerância a mesquinhez do gru-Pequ ? a SUa er"la>mas ao ver a
convocatória em cima da mesa do ^o-almoço teve uma explosão dejusta ira.
108
109
Ora bolas, Loft, julguei que tínhamos arrumado este assunto de
vez disse, furioso, a Perce, que estava isento de tudo.
E arrumámos disse Perce, apontando na minha direcção. -^ Criança delicada, mãe no manicómio, é a compaixão a toda a prova
E onde diabo está agora a compaixão deles, dizes-me? pergun.
tou Rick, metendo o papel amarelado debaixo do nariz de Perce. Uma
perfeita vergonha, Loft, é o que é. Trata-me disto.
Nunca devias ter falado sobre Lippsie com Cherry disse mais tarde Perce, furioso, a Pym. Ela foi logo a correr denunciar o teu pai,
por despeito.
Mas o exército não consentiu em render-se, e consequentemente a corte desfalcada,
composta por Perce Loft, uma ninhada de mães, Ollie e Mr. Cudlove, transferiu-se para
um hotel feio e triste de Bradford, onde Rick era obrigado a conciliar a ignomínia dos exercícios da recruta com o fardo do generalato em matéria financeira. Usando a caixa
do hotel e o crédito do hotel, escrevendo à máquina e arquivando documentos nos
quartos de hotel, armazenando as suas misteriosas mercadorias na garagem do hotel, a
corte tentou uma nobre acção de retaguarda para evitar a dissolução, mas sem êxito. Foi
num domingo à tarde no hotel. Rick, no seu uniforme de soldado, acabado de passar a ferro, preparava-se para regressar ao quartel. Levava debaixo do braço um alvo novo
para o jogo das setas, que queria oferecer à messe dos sargentos, porque Rick cobiçava
o posto de encarregado dos abastecimentos, que lhe permitiria ajudar-nos quando nos
faltasse alguma coisa. Meu filho. Chegou a altura de meteres ombros à dura tarefa de te
tornares presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o orgulho do teu
velho. A vida tem sido demasiado fácil à tua volta, e tu já fazes parte des
sa vida. Cudlove, olha para a camisa dele. Nunca ninguém fez bons ne
gócios com a camisa suja. Olha para este cabelo. Quando dermos por isso. já ele vai ser um perfeito maricas. Vais para o colégio interno, meu filn°'
e que Deus te abençoe e me abençoe a mim também.
Mais um abraço apertado, um último limpar de lágrimas, um nobf£ aperto de mão para
as câmaras ausentes, e, de alvo em riste, o grande homem partiu para a guerra. Pym
ficou a olhá-lo até ele desaparecer, e àe-pois subiu furtivamente as escadas que conduziam ao Estado-Maior pr0' visório. A porta não estava trancada. Cheirava a
mulher e a pó de talc0 A cama de casal estava desfeita. Tirou a pasta de pele de porco
de bai*° dela, despejou o conteúdo e, como já muitas vezes fizera, ficou a matuc* sobre
aqueles dossiers e correspondência ininteligíveis. O fato de cafflp
Almirante, vestido durante algumas horas apenas e ainda quente, es-
durado n0 guarda-vestidos. Vasculhou os bolsos. O ficheiro ver-
, -s amolgado que nunca, lá estava escondido na sua escuridão ha-
htual Porque é que ele o guarda sempre dentro de armários? Pym puxou
vão as gavetas fechadas à chave. Porque é que é transportado sempre longe das outras coisas, como se tivesse uma doença?
A procura de dinheiro, hem, Thitch? perguntou uma voz fe
minina vinda da casa de banho. Era Doris, a dactilógrafa preferida de
Rick, bem simpática, por sinal. Se fosse a ti poupava-me a esse traba
lho Com o teu pai, é tudo a crédito. Eu já procurei. Ele disse-me que me tinha deixado um chocolate no quarto res
pondeu Pym resolutamente, e continuou a sua investigação, com ela a
olhar.
Há três grosas de chocolates de leite e avelãs do exército, lá em bai
xo na garagem. Serve-te aconselhou Doris. Também há senhas de gasolina, para o caso de teres sede.
Era um chocolate especial disse Pym.
Nunca cheguei a perceber através de que maquinações Pym e Lippsie foram enviados
para o mesmo colégio. Terão sido infiltrados separadamente ou em conjunto, um para
ser ensinado, a outra para pagar as mensalidades com o seu trabalho? Suspeito de que terá sido em conjunto, mas não tenho provas para além de um conhecimento genérico
dos métodos de Rick. Toda a sua vida Rick pôde dispor da força de trabalho de
mulheres dedicadas das quais se desfazia, para depois as recuperar de novo, a um ritmo
regular. Quando a sua presença não era necessária na corte, mandava-as trabalhar para
ele no mundo exterior, a fim de lhe facilitarem a cruzada com remessas de dinheiro que lhes custava arranjar, vendendo jóias por causa dele, depositando o que conseguiam
poupar e empresado o nome a contas bancárias de onde o nome de Rick fora banido. ^
Lippsie não tinha jóias nem crédito nos bancos. Só tinha o seu lindo fpo e a sua música
e o seu sentimento de culpa silencioso, e um rapazi-si °.ln8les que a prendia ao mundo.
Suspeito agora de que Rick vira já os e me começarem a acumular-se em Lippsie, e decidira passaria Para ser eu a tomar conta dela. Mas a nossa sociedade não deixava de
c r benencios, e escusado será dizer que Rick era um oportunista, dem' A* Un a^Suma
mstrução na altura em que se apresentou na aca-a de campo de Mr. Grimble para filhos
de cavalheiros, devia-o a
110
Lippsie e não aos onze ou doze infantários, escolas bíblicas e jardins-es-colas espalhados ao longo de percurso febril de Rick. Lippsie ensinou-0 a escrever, e ainda
hoje eu escrevo os «t» à alemã e ponho um traço nos «z» minúsculos. Ensinou-lhe
ortografia, e divertiam-se sempre muito os dois por não saberem quantos «d» há na
palavra inglesa «address»,20 e ainda hoje não consigo ter a certeza sem escrever
primeiro a palavra alemã. Tudo o resto que Pym sabia, para além de passagens incompreensíveis das Escrituras, estava dentro da mala de cartão dela; Lippsie nunca o
vinha visitar, fosse onde fosse, sem o enfiar no quarto para lhe impingir uma lição de
história ou geografia, ou para o mandar tocar escalas na flauta.
Sabes, Magnus, sem informação não somos nada. Mas, informados, podemos ir a
qualquer lugar do mundo, somos como tartarugas, temos a casa sempre às costas. Se aprenderes a pintar, podes pintar em qualquer sítio. Um escultor, um músico, um pintor,
não precisam de licenças. Só precisam da sua própria cabeça. O nosso mundo deve estar
dentro da nossa cabeça. E o único caminho seguro. E agora toca uma música bonita à
tua Lippsie.
O modo como as coisas estavam organizadas no colégio de Mr. Grim-ble permitiu que esta relação florescesse plenamente. O mundo estava, de facto, dentro das suas cabeças,
mas também estava contido na casa de pedra e tijolo do jardineiro, que ficava no início
do longo caminho de acesso ao colégio, designada por Casa das Cheias, e ocupada pelos
Rapazes das Cheias, de que Pym era o recruta mais recente. E Lippsie, a linda Lippsie
de toda a sua vida, era aí a melhor e a mais atenta das mães. Eles perceberam logo que eram proscritos. Se o não tivessem descoberto imediatamente, os oitenta rapazes que
moravam no outro extremo do caminho teriam tornado esse facto evidente. Tinham no
grupo o filho pálido de um merceeiro com um nome, sem agás, e os comerciantes eram
ridículos-Tinham três judeus que falavam uma mistura de inglês e polaco, e um gago
incurável chamado M-M-Marlin, e um indiano de pernas tortas cujo pai tinha morrido quando os japoneses tomaram Singapura. 1'' nham Pym com as suas nódoas e os seus
xixis na cama. E, no entanto, sob a direcção de Lippsie, conseguiram alcançar a glória
apesar de todas estas desvantagens. Se os rapazes do outro extremo do caminho eram
regimento impecável, os Rapazes das Cheias eram as tropas irregulareS' que, por isso
mesmo, ainda lutavam pelas medalhas com mais empe1111 Como pessoal docente, Mr. Grimble contentou-se com o que havia- £ que havia era aquilo de que o país não
precisava. Um tal Mr. O M^1. deu um murro tão forte na orelha de um dos rapazes que
ele desniai"
tal Mr. Farbourne costumava fazer chocar entre elas as cabeças dos I inos e uma vez fracturou o crânio de um deles. Um professor de ciên-. ensJnou que os miúdos da aldeia
que andavam a roubar eram bolcheviques, e disparou a caçadeira sobre os seus traseiros
em fuga. No léeio de Mr. Grimble os rapazes eram açoitados por serem lentos e
açoitados por estarem sujos, açoitados por serem apáticos e açoitados por serem
descarados, e açoitados por não ficarem melhores com os açoites. A febre da guerra encorajava a brutalidade, o sentimento de culpa dos nossos professores não-combatentes
intensificava-a, e os meandros do sistema hierárquico britânico forneciam um
enquadramento natural para a prática do sadismo. O Deus deles era o protector dos
gentlemen dos campos britânicos e a justiça deles consistia em punir os mal-nascidos e
desamparados; esta justiça era aplicada com a colaboração dos fortes, e o mais forte e belo de todos era Sefton Boyd. Ao pensar hoje na morte de Lippsie, acho que a mais
triste de todas as ironias é ela ter morrido ao serviço de um estado fascista.
Todos os dias de saída, seguindo as instruções permanentes de Rick, Pym apresentava-
se junto ao portão do colégio, pronto para a chegada de Mr. Cudlove. Quando ninguém
aparecia, corria, aliviado, para o bosque, em busca de privacidade e de morangos silvestres. Ao fim da tarde regressava à escola e gabava-se do dia estupendo que tivera.
Uma vez por outra, acontecia o pior: aparecia um carro cheio de gente Rick, Mr.
Cudlove, Syd em uniforme de soldado, e um ou dois jóqueis empilhados de qualquer
maneira , todos muito animados depois de uma paragem no Casal de Perdizes. Se estava
a decorrer um jogo na escola, punham-se a apoiar ruidosamente a equipa da casa e distribuíam laranjas inauditas
uma caixa que traziam no porta-bagagens. Se não havia jogo, Syd e
orne Washington recrutavam à força algum rapaz que por acaso pas-
de bicicleta, e organizavam um contra-relógio no campo de jogos;
y berrava o relato com as mãos em concha a fazer de altifalante. E Rick Pessoa, com o fato do Almirante vestido, dava o sinal de partida com
aceno solene do lenço, e Rick em pessoa oferecia uma caixa de cho-vam?
mimafinávelao vencedor, enquanto as notas de uma libra muda-xav 1 mâ°S ^ V°'ta ^°
pátia ̂ 1uand° chegava a noite, Rick nunca dei-p^ se instalar na Casa das Cheias, com
uma garrafa de espumante j^imar Lippsie, que estava tão sorumbática:
°uvia qUC é ^UC ^C ̂ eu> ^0? ^ ^ck an™ava'a mesmo; Pym bem mCadaS SUrdas>
rangidos e gritos, acocorado do lado de fora da to dela, em pijama, sem perceber se eles
estavam a lutar ou
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só a fingir. Já na cama, ouvia Rick a descer as escadas pé ante pé, embora os passos de
Rick fossem silenciosos como os de um gato.
Mas houve uma manhã em que Rick não saiu silenciosamente, pel0 contrário. A sua partida não passou despercebida a Pym nem aos outros Rapazes das Cheias, que ficaram
excitadíssimos por terem acordado com o barulho. Lippsie gritava e Rick tentava
acalmá-la, mas quanto mais simpático se mostrava, maior era o despropósito dela.
Fizeste de mim urna latina berrava, no meio de grande algazarra, quando conseguia
respirar. Fizeste-me lãdrra para me castigar. Eras mau padre, Rickie Pym. Fizes
te-me roubar. Eu era mulher honesta. Era refugiada, mas mulher honesta.
Porque é que ela falava como se tudo tivesse acontecido no ano anterior?
O meu pai era homem honesto. O meu irmão também era homem
honesto. Eles eram bons homens, não maus como eu. Fizeste-me roubar até ser criminosa como tu. Talvez Deus punir-te um dia, Rickie Pym. Tal
vez fazer-te chorar a ti também. Espero que sim. Espero, espero, sim!
A velha Lippsie está com um dos ataques dela, filho explicou
Rick a Pym, que encontrou nas escadas quando se preparava para sair.
Vai lá ao quarto e vê se a consegues fazer rir com uma das tuas histó rias. Grimble está-te a alimentar bem, lá em cima?
Sim, é bestial! disse Pym. >
O teu velhote está a ajudá-los, sabias? Esta é a escola mais saudá
vel de toda a Inglaterra. Pergunta ao ministério. Queres Hlda-coroa? En-
tão toma. Para chegar até à bicicleta de Lippsie, Pym adoptou um modo de andar que copiara de
Sefton Boyd. Punham-se as mãos atrás das costas, negligentemente agarradas uma à
outra, esticava-se a cabeça para a frente e fixavam-se os olhos nalgum objecto
vagamente agradável do horizonte. Depois era pavonear-se altivamente, com um ligeiro
sorriso nos lábios como se se estivesse a ouvir outras vozes: é assim que a nossa fina-flor ostenta a sua autoridade. Pym era baixo de mais para se poder sentar no selim
axadrezado, mas, como Sefton Boyd gostava de estar sempre a lembrar, uma bicicleta
de senhora tem um espaço livre onde as de homem têm urna barra metálica, e Pym lá foi
a gingar nesse espaço, apoiando-se ora num3 ora na outra perna, ao mesmo tempo que
ia virando o guiador para evita1 as crateras cheias de água da chuva no alcatrão do caminho. Sou o recolec tor oficial de bicicletas. À direita, ficava o jardim da cozinha
onde ele e LipP sie tinham lavrado pela Vitória; à esquerda, a mata onde caíra a bomba
ale
' lançando pequeninos ramos enegrecidos contra a janela do quarto tnS", jormiam ele próprio, o indiano e o filho do merceeiro. Mas atrás dele,
i imaginação aterrorizada, vinha Sefton Boyd com os seus liaores, gri-
do a plenos pulmões, imitando Lippsie porque sabiam que ele a amava:
__ Onde vais, mein pequenino mercado negro? O que é que estás a fezer à tua
queridinha, mein pequenino mercado negro, agora que ela estar morta? Ao fundo ficava o portão onde Pym esperara por Mr. Cudlove, e à esquerda do portão,
era a Casa das Cheias, já sem gradeamento de ferro à volta (fora confiscado para o
esforço de guerra), e com um polícia no fosso que indicava o lugar onde antes estivera o
gradeamento.
Mandaram-me buscar o meu livro de ciências disse Pym ao po lícia, olhando-o bem nos olhos, enquanto encostava a bicicleta de Lipp
sie a uma coluna de tijolos. Pym já tinha mentido antes a polícias e sabia
que, para isso. era indispensável parecer honesto.
O seu livro de ciências, é? disse o polícia. Então e como é
que se chama? Pym, sir. Eu vivo aqui.
Pym,quê? ', ^
Magnus. '■'■ >
Vá lá, então despache-se, Pym Magnus disse o polícia, mas Pym continuou a andar
devagar, evitando dar sinais de impaciência. A família de Lippsie, emoldurada a prateado, estava alinhada na mesinha de cabeceira, mas o grande rosto de Rick
dominava o conjunto, sensível e político na sua moldura de pele, e os olhos sábios de
Rick seguiam-no para onde quer que fosse. Abriu o guarda-vestidos de Lippsie e sentiu
o cheiro dela, arredou o roupão branco de folhos, a capa de peles e o sobretudo de lã de
camelo com capuz de duende que Rick lhe comprara em St. Moritz. Do nindo do guarda-vestidos, puxou a mala de cartão. Colocou-a no chão e abriu-a com a chave que
Lippsie guardava numa jarra em cima da lareira revestida de azulejos, junto ao
chimpanzé de peluche que se chamava Lit-e Audrey e não parava de rir. Tirou da mala
o livrinho que parecia uma Dlia, coberto de letras que pareciam pequeninas lâminas de espada, e os •vros de música
e sem ser de música que ele não percebia e o passaporte com a fotografia dela em nova,
e os maços de cartas em alemão da irmã
q g ,
° Presságio que fervilhava sob'o seu palavreado: quel, qUe jj^ se jj^ j^.^.gj e que nunca mais lhe tinha escrito, e,
d ^ P, ̂ xn^°' ^ cartas ^ Rick, arrumadas em pacotes atados com cor-
j -r sa^a quase de cor algumas delas, embora tivesse dificuldade em
81 ° Preái flh b ld
k».
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É uma questão de semanas, não, dias, minha querida, até as actuais nu. vens que me
cercam se dissiparem definitivamente. Lofi vai conseguir a mi-nha Exoneração e nós os dois poderemos enfim gozar essa merecida Recompensa. .. Toma contado meu rapaz
que te considera como Mãe e toma cuidado para ele não se tomar um maricas...
Compktamente deslocadas as tuas dúvidas em relação à Confiança... não devias meter
essas coisas na Cabeça, porque isso é mais uma preocupação para mim, aqui à espera
que o Clarim me chame. Talvez para nunca mais Voltar... o negócio em questão vai trazer lucros incalculáveis a Muitos, entre m quais Wentworth... não me estejas sempre
a incomodar com histórias de W. ou da mulher, essa fulana adora arranjar sarilhos,
nunca conheci ninguém assim...
Cumprimentos a Ted Grimble, que eu considero um grande Educador e um grande
Director. Diz-lhe que já vai a caminho mais um Carregamento de ameixas secas... eele que prepare a cozinha para receber também Duas grosas de laranjas frescas das
melhores. Lofi conseguiu que eu obtivesse três semanas de licença, o que significa que,
se me tornarem a chamar, começo tudo outra vez do zero. No que Respeita a um
Assunto Diferente, Muspole diz para continuares a mandar os artigos como de costume.
Faz--me esse favor rapidamente devido a problema de liquidez absolutamente Temporário aqui deste lado, que não nos permite pagar a pessoas respeitáveis como
Wentworth...
Se não mandas imediatamente mais cheques de mensalidades, este a mandar-me para a
Prisão, amime aos Rapazes, excepto Perce, como de costume; podes ter a certeza que é
assim mesmo... não fales de te matar que isso éperfeita Tolice, com tantas pessoas a Matarem-se umas às outras pelo Mundo fora nesta guerra Insensata e Trágica...
Muspole diz que se mandares í carta expresso para a posta-restante, ele vai amanhã,
sábado, aos Correios à hora de abertura efi-la seguir imediatamente para Wentworth... j-
i
A carta de Lippsie, que Pym deixou para o fim, era, por cor uma maravilha de concisão: Meu Magnus muito querido, , . ;?
Deves ser sempre bom rapaz, meu amor, e continuar a toear mú
firme como um homem para com o teu pai. i
Adoro-te >
Pym agarrou em todas as cartas, incluindo a de Lippsie, e enfiou-as A tro do livro de
ciências, que meteu no cinto. Passou devagar pelo poli ' sentindo como que um gato a
cravar-lhe as unhas nas costas. A cal-, jra ^Q colégio era uma fornalha na cave,
alimentada por uma conduta ' clinada que dava para o pátio da cozinha. Aproximar-se
da conduta era delito punido com uma sova, e queimar papel era um acto de Traição pelo qual os marinheiros eram executados. Dos Downs vinha uma chuva intensa, e as
colinas de greda estavam de uma cor verde-azeitona, contrastando com as nuvens da
tempestade. De pé diante da conduta aberta, com os ombros encolhidos, Pym atirou as
cartas lá para dentro e ficou a vê-las desaparecer. Deve ter sido visto pelo menos por
uma dúzia de pessoas, entre professores e colegas, e alguns deles seriam seguramente aliados fiéis de Sefton Boyd. Mas a franqueza com que procedeu levou--os a pensar que
estava a cumprir ordens. Pelo menos Pym ficou convencido disso. Atirou a última carta,
aquela que o aconselhava a ser firme, e afastou-se sem se voltar uma única vez para ver
se estava a ser observado. Precisava de voltar à casa de banho dos professores.
Precisava daquele St. Moritz secreto com o seu isolamento almofadado, precisava da majestade secreta das torneiras de latão e do espelho emoldurado a mogno, porque Pym
amava o luxo como só o ama aquele a quem foi tirado o amor. Alcançou a escada
proibida que conduzia à sala dos professores; subiu até ao patamar intermédio. A porta
da casa de banho estava entreaberta. Empurrou-a, esgueirou-se para o interior, fechou-a
à chave atras de si. Estava só. Olhou fixamente para o seu rosto, endurecendo-o, suavizando-o, endurecendo-o de novo. Pôs a água a correr e lavou a cara «é eta "car
brilhante. O seu súbito isolamento, somando-se à sua gran-
•osa proeza, fazia dele um ser extraordinário aos seus próprios olhos. Estava estonteado
com a vertigem da grandeza. Ele era Deus. Ele era Hi-
er. Ele era Wentworth. Ele era o rei do ficheiro verde, o nobre descen- nte *-P- Dali em diante, nada à superfície da terra devia acontecer
a sua intervenção. Tirou o canivete do bolso, abriu-o e ergueu-o à al-
° rosto, com a lâmina voltada para cima, fazendo um voto arturia-
não h ° ^ ca^ur- Tocou a sineta para o almoço, mas àquela hora
era ^ amat^a e ele não tinha fome; nunca mais ia ter fome, Pym , mas a
n° cole a° Cra C^emasiac'0 importante. Pensou em nomes. Quem é que Magnuf °
melhor família? Sou eu. Os Pyms são bestiais e o Prince sjç ,° «valo mais rápido do
mundo. Encostou o rosto às almofa-a eira que revestiam a parede e cheiravam a tacos de
críquete e sua ^°ra_Um «valeiro imortal. Pensou em esfaquear a garganta, i
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a florestas suíças. Ainda tinha o canivete na mão. Os olhos enevoaram -se-lhe; ouviu
uma música ao longe. A voz divina dentro dele mandou-n olhar, e ele viu as iniciais K.
S.-B. gravadas profundamente na mais bela das almofadas. Inclinou-se para apanhar as
lascas de madeira a seus pés c atirou-as para o lavatório, onde ficaram a flutuar. Tirou a tampa, mas mesmo assim continuaram a flutuar. Deixou-as lá ficar e foi até à cabana
das artes e ofícios acabar o seu bombardeiro Dornier.
Esperou durante toda a tarde, confiando que nada aconteceria. Não fui eu. Quando
regressei não fui para lá. Foi o Maggs, do terceiro ano. Foi o Jameson, aquele que tem
um kukri,21 eu vi-o entrar. Foi um tipo qualquer da aldeia, eu vi-o rondar estes sítios com um punhal no cinto; chama-se Wentworth. Às vésperas, rezou para que uma bomba
alemã destruísse a casa de banho dos professores. Tal não aconteceu. No dia seguinte,
ofereceu a Sefton Boyd o seu maior tesouro, o koala que Lippsie lhe oferecera a seguir à
operação ao apêndice. No intervalo, enterrou o canivete na terra solta por trás do
pavilhão de críquete. Ou, como eu diria hoje, escondeu-o. Foi só no momento da formatura, ao fim da tarde, que o nome completo do Ilustre Kenneth Sefton Boyd foi
pronunciado com voz lúgubre pelo professor de serviço, o sádico O'Mally. Sem
compreender, o jovem nobre foi conduzido ao gabinete de Mr. Grimble. Sem
compreender, também ele, Pym viu-se ser levado. O que é que quererão dele do meu
melhor amigo, do proprietário do meu koala? A porta de mogno fechou-se, e oitenta pares de olhos fixaram-se nas suas belas almofadas lavradas, incluindo os olhos de Pym.
Pym ouviu a voz de Mr. Grimble, e depois a de Sefton Boyd, protestando. Depois um
grande silêncio enquanto se administrava a justiça de Deus, golpe a golpe. Ao contá-los
Pym sentiu-se puro e vingado. Portanto, não foi Maggs, não foi Jameson e não fui eu.
Foi mesmo Sefton Boyd quem fez aquilo, senão nao lhe tinham batido. Começava a aprender que a justiça não é melhor do que os seus servidores.
Tinha um hífen disse-lhe Sefton Boyd no dia seguinte. ~~
Quem fez aquilo atribuiu-nos um hífen que nós não temos. Se encontro
esse paneleiro, mato-o.
Também eu garantiu lealmente Pym, acreditando plenarne'1 te no que dizia. Como Rick, ele estava a aprender a viver em vários p ■*
nos ao mesmo tempo. O segredo consistia em esquecer tudo, excepto
chão que se pisava e a cara que se adoptava para falar num dado momen
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Foram muitos os efeitos da morte de Lippsie sobre o jovem Pym, e - e pense que todos
negativos. O falecimento dela obrigou-o a con-fi m si próprio, confirmando o seu
conhecimento de que as mulheres ' volúveis e sujeitas a desaparecimentos súbitos.
Aprendeu a grande li-' do exemplo de Rick, nomeadamente a importância de se ter uma
apa-*ncia respeitável. Aprendeu que o único modo de estar seguro era simular a legitimidade. Desenvolveu a sua vontade de ser um motor secreto dos acontecimentos
da vida. Por exemplo, foi Pym que esvaziou os pneus do carro de Mr. Grimble e que
despejou três sacos de sal de cozinha, de seis libras cada um, na piscina. Mas foi
também Pym que chefiou a caça ao culpado, descobrindo indícios preocupantes e
lançando a dúvida sobre muitas reputações sólidas. Sem Lippsie ao seu lado, deixou uma vez mais de haver obstáculos ao seu amor por Rick; melhor, podia amá-lo à
distância, porque Rick desaparecera uma vez mais.
Estaria preso de novo, como anunciara a Lippsie? Teria a polícia encontrado o ficheiro
verde? Pym não o soube na altura e, decido porque prefiro que assim seja, que Syd
ainda hoje também não sabe. Os arquivos militares concedem a Rick abruptamente uma licença de seis meses antes do período em questão, remetendo o leitor em busca de
explicações para o Registo Criminal. Aí não se encontra explicação nenhuma, talvez por
Perce ter tido algum amigo ou amiga que lá trabalhasse, alguém que o achasse a pessoa
mais incrível do mundo. Qualquer que tenha sido o motivo, Pym ficou só outra vez, e
divertiu-se bastante. Nos fins-de-se-mana, OUie e Mr. Cudlove recebiam-no no seu apartamento numa cave em Fulham, e davam-lhe todos os mimos possíveis e
imagináveis. Mr. Uidlove, sempre em forma devido aos seus exercícios, ensinou-o a
lutar corpo a corpo, e quando iam os três passear de carro até ao rio, Ollie ves-&a-se de
mulher e imitava tão bem uma voz feminina que só Pym e Mr. aiove ficavam a saber
que havia um homem por baixo de tudo aqui-,' ^ renas grandes, Pym era obrigado a percorrer as vastas proprieda-e ^herry com Sefton Boyd, ouvindo histórias pavorosas
sobre o ex-c cc"egio para onde em breve ele iria: como os caloiros eram os nos cestos
da roupa suja e atirados pelas escadarias de pedra, e ob ' j01 a ^os a carros de cavalos
com anzóis enfiados nas orelhas
^gados a transportar os prefeitos à roda do pátio da escola. trjp ., meu 9a1 f°i preso e fugiu da prisão contou-lhe Pym, em con-
ginoun- ', m umí Pega de estimação que toma conta dele. Ima-
-Ite em C j!*0011^0 numa cave em Dattmõór, com Syd e Meg a levarem-
oes embrulhados em lenços, e cães de caça a cheirar-lhe o rasto.
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O meu pai está nos Serviços Secretos disse-lhe Pym de outt vez. Foi torturado até à
morte pela Gestapo, mas não estou autoriza do a contar a história. O nome verdadeiro
dele é Wentworth.
Surpreendendo-se a si próprio com esta declaração, Pym resolvei aperfeiçoá-la. Um nome diferente e uma morte gloriosa ficavam bem Rick. Davam-lhe a categoria que
Pym começava a suspeitar que lhe fjj tava, e acertava as contas com Lippsie. Por isso,
quando Rick voltou d repente, nem torturado nem diferente do que era antes,
acompanhai por dois jóqueis, um caixote de nectarinas e uma mãe novinha em foUu
com uma pena no chapéu, Pym pensou seriamente em começar a trab* lhar para a Gestapo e interrogou-se sobre o modo como seriam recruta, dos os agentes. E ter-se-ia
decerto alistado, se a paz não lhe tivesse iaa-portunamente vedado essa possibilidade.
Devo dizer aqui uma última palavra sobre a posição política de Pyii
durante este instrutivo período. ChurchiU estava sempre de mau humor
e era demasiado popular. De Gaulle, com a sua cabeça curvada em for ma de ananás, parecia-se demasiado com o tio Makepeace; Roosevelt, por
seu turno, com a bengala, os óculos e a cadeira de rodas, era claramente
a tia Nell disfarçada de homem. Hider era de tal modo detestado que Pym
tinha por ele um sólido respeito, mas foi José Estaline que ele escolhei)
como pai adoptivo. Estaline não amuava nem pregava. Passava o temjx a rir e a brincar com cães e a colher rosas nos documentários que passa
vam no cinema, enquanto as suas tropas fiéis lhe ganhavam a guerra nas
neves de St. Moritz. ^
Pousando a caneta, Pym ficou a olhar o que escrevera, primeiro coro receio, depois com
crescente alívio. Finalmente riu. Não cedi murmurou. Fiquei acima da refrega.
E serviu-se de um vodka bem grande, como os que Poppy costumava beber, em
homenagem aos velhos tempos.
V V),
A cama de Frau Bauer era estreita e cheia de altos e baixos, como as camas das criadas
nos contos de fadas, e Mary continuava lá deitada exactamente na posição em que
Brotherhood a deixara, enrolada no edredão, as pernas encolhidas em jeito de protecção,
as mãos agarradas aos ombros. Ele saíra de cima dela; já não sentia o cheiro do suor e do hálito dele. Mas sentia o volume de Jack aos pés da cama, e às vezes custava-lhe a
lembrar-se de que momentos antes não tinham feito amor, porque noutros tempos ele
costumava deixá-la a dormitar e sentava-se como agora, a fazer telefonemas, a verificar
as contas ou a executar qualquer outra tarefa que lhe devolvesse a ordem da sua
existência inteiramente masculina. Encontrara algures um gravador e Georgie tinha outro para o caso de o dele não funcionar.
Para carrasco, Nigel era baixinho, mas extremamente elegante. Trazia vestido um fato
cintado de riscas fininhas, e um lenço de seda no bolso.
Pede a Mary para prestar um depoimento voluntário, está bem, Jack? disse Nigel, com o
ar mais natural deste mundo. Voluntá-o mas formal, que é o tom que nos convém. Bem precisamos dele, infelizmente. A decisão não foi só de Bo.
Quem é que falou em voluntário? disse Brotherhood. Ela
mou o Decreto sobre o Segredo de Estado quando se alistou, e assi-
o outra vez quando saiu. Tornou a assiná-lo quando casou com
• udo o que sabes nos pertence, Mary. Quer tenha sido alguma que ouviste no andar de cima de um autocarro, quer tenhas visto
«"» a fumegar na mão dele.
Ni 1 a tua simpática Georgie pode servir de testemunha disse
^°qued'°UV1U"Se a si Própria a falar, mas"não percebeu grande parte e> porque tinha
um ouvido encostado à almofada e o outro
121
a escutar os sons matinais de Lesbos que entravam pela janela aberta d casinha castanha
com um terraço, a meia altura da colina onde ficav Plomari, a algazarra dos tolos e dos
barcos e a música de bukuzi, e 0 camiões a acelerar nas ruas estreitas. Os guinchos dos
carneiros, queo carniceiro degolava e o ruído dos cascos dos burros a escorregar nas
pedras da calçada, e os berros dos vendedores no mercado do porto. Se fechasse os olhos com força, conseguiria ver os telhados alaranjados do outro lado da rua, as
chaminés e os estendais de roupa e as açoteias cheias de gerânios, e a doca lá em baixo,
e o longo pontão com o farol vermelho na ponta a acender e a apagar, e os gatos
amarelos e malévolos a encharcar-se de sol e a olharem o navio que se ia desenhando na
neblina. E era assim que a partir de agora Mary passava a encarar a história que tinha contado a
Jack Brotherhood: como um filme aterrador de que ela só tinha coragem de ver alguns
bocados, e em que fazia o papel do pior dos vilões. O navio atraca, os gatos
espreguiçam-se, a prancha é colocada para o desembarque, a família inglesa Pym
Magnus, Marye o filho Thomas avançam em fila para terra, em busca de mais um lugar perfeito, longe de tudo. Porque já nenhum lugar está suficientemente longe, nenhum é
suficientemente remoto. Os Pyms tornaram--se os Holandeses Errantes do Mar Egeu,
parando num sítio para logo fazerem as malas outra vez, mudando de barcos e de ilhas
como almas penadas; mas é Magnus o único que conhece a maldição, o único que sabe
quem os persegue e porquê, e Magnus fechou esse segredo à chave atrás do seu sorriso, juntamente com todos os seus outros segredos. Ela vê-o marchar alegremente a passos
largos à sua frente, segurando o chapéu de palha, para o vento não o levar, com uma das
mãos e coma pasta a abanar na outra. Vê Tom a seguir-lhe as passadas, com as calças de
flanela cinzenta e o blazer do colégio com o emblema no bolso, trajo que ele insiste em
usar mesmo quando a temperatura ultrapassa os oitenta graus.22 E vê-se a si própria, ainda intoxicada da bebida da noite anterior e do cheiro a petróleo, planeando já trair os
dois. E a segi"1 a eles vê, descalços, os carregadores gregos com a bagagem excessi^
dos Pyms, as toalhas e a roupa de cama e as Weetabix de Tom e tooa l outra tralha que
Mary tinha emalado em Viena para «o grande 5a" bath», nome que Magnus dera a estas
férias, por uma vez na vida p#' sadas em família, com as quais todos eles aparentemente sonhava"1' embora Mary não se lembrasse de esse assunto alguma vez ter sido t° cado
senão escassos dias antes da partida, e com toda a franqueza flv&
122
ferido regressar a Inglaterra, ir buscar os cães à guarda do jardi-• <■ n eato a casa da tia Tab e passar aquele tempo em Plush.
Os carregadores pousaram os tardos. Magnus, generoso como sem-
distribui gorjetas a todos, tirando o dinheiro da carteira de Mary P ' ja at,riu para esse
efeito. Tolamente curvado para observar o co-
' de recepção dos gatos de Lesbos, Tom declara que as orelhas deles parecem alhos franceses. Ouve-se um apito, os carregadores galgam a assadeira e o navio é devolvido à
neblina. Magnus, Tom e Mary, a traidora ficam a olhá-lo fixamente como em todas as
histórias tristes do mar, com a bagagem de toda uma vida espalhada à sua volta e o farol
vermelho a incendiar-lhes lentamente as cabeças.
Quando sairmos daqui, podemos regressar a Viena? pergun ta jom- Gostava de ver Becky Lederer.
Magnus não responde. Magnus está demasiado absorvido pela tarefe de se mostrar
entusiástico. Há-de ser entusiástico até no seu próprio funeral, e Mary ama-o por isso,
como o ama por demasiadas outras coisas, sim, ainda o ama. Às vezes a bondade
perfeita dele é para ela como uma acusação. Cá estamos, Mabs grita ele, designando com um gesto ma
jestoso a colina cónica, despida de árvores e coberta de casas acasta
nhadas que é agora o novo lar deles. Achámos. Plush-sur-mer e
volta-se para ela com um sorriso que só nestas férias Mary lhe conhe
ceu, tão galante, tão cansado e alegre no seu desespero. Aqui estamos seguros, Mabs. Aqui ficamos bem.
Põe um braço à volta dela, que o deixa pôr. Puxa-a para si, abra-Çam-se. Tom mete-se
entre eles, abraçando-os também:
Eh, não quero ficar de fora diz ele.
^ Agarrados uns aos outros como os melhores aliados do mundo, os três abandonam o pontão, deixando lá ficar a bagagem até encontrarem
uni lugar para a guardar. Lugar que descobrem em menos de uma hora,
P°rque o talentoso Magnus sabe logo precisamente em que locanda há-
e entrar, quem há-de seduzir e quem há-de recrutar, graças a essa iden-
ade grega bastante sofrível que ele de algum modo tinha conseguido . ' ao '°ngo da viagem. Mas ainda não chegou a noite, e as noites es-
cada vez piores, pesam antecipadamente sobre Mary que, desde o
p ent0 em que acorda, as sente oprimirem-na durante todo o dia.
<j i. , ebrar a nova morada, Magnus comprou uma garrafa de vodka
acab n^a' emk°ra já várias vezes nos últimos dias tenham decidido com as bebidas fortes e limitarêm-se ao vinho local. A garrafa
123
está quase vazia e Tom, graças a Deus, lá acabou por ir dormir no quj to novo. Pelo
menos Mary assim o espera, porque nos últimos tempo, Tom tornou-se um «apanha-beatas», como diria o pai dela; andava sem' pre à volta deles a ver o que conseguia
apanhar.
Vá lá, Mabs, que cara é essa? diz Magnus, procurando ale.
grá-la. Não te agrada o nosso novo SchlossV^
Estavas a dizer uma piada e eu sorri. Não parecia um sorriso diz Magnus, sorrindo para lhe mos
trar como se faz. Visto daqui, parecia mais uma careta, minha que
rida.
Mas o sangue de Mary começa a ferver-lhe nas veias e, como de costume, não consegue
conter-se. A perspectiva do seu crime ainda por cometer já a faz sentir-se culpada. E sobre isso que estás a escrever, é? diz abruptamente. So
bre a maneira como desperdiças o teu espírito com a mulher errada?
Desolada por ter sido tão desagradável, Mary desata a chorar e agarra com força os
braços da cadeira de verga. Mas Magnus não está nada desolado. Magnus pousa o copo
e vem até junto dela, toca-lhe ao de leve no braço com as pontas dos dedos, esperando que Mary o deixe entrar. Afasta delicadamente o copo dela. Momentos depois, as molas
da cama nova estão a ranger e a chiar como um conjunto de metais a afinar os
instrumentos; é que ultimamente uma paixão erótica desesperada veio em auxílio de
Magnus. Ele faz amor com ela como se não a fosse ver nunca mais. Enterra-se nela
como se ela fosse o seu único refúgio, e Mary segue-o cegamente. Ela sobe, ele puxa-a atrás de si, ela grita-lhe:
Por favor, oh meu Deus! Ele acerta em cheio no alvo e, du
rante um instante abençoado, Mary estaria pronta a despedir-se desta
porcaria de mundo.
É verdade, desta vez somos os Pembroke diz Magnus um pouco mais tarde, mas não tão tarde quanto ela desejaria. De certe
za que não seria necessário, mas prefiro sentir-me seguro, para o caso
de acontecer alguma coisa.
Pembroke é um dos nomes falsos de Magnus. Traz o passaporte cor» o nome de
Pembroke na pasta; Mary já o localizou. Tem uma fotogf» fia habilmente desfocada, que tanto podia ser Magnus como outra p soa qualquer. Na oficina de falsificações de
Berlim, dava-se àquelas tografias o nome de flutuadores.
E o que é que eu digo a Tom? pergunta ela. ;;
Porque é que lhe havemos de dizer alguma coisa?
124
Q apelido do nosso filho é Pym. Ele poderá achar um pouco es-
ho ouvir dizer que se chama Pembroke.
Fica à espera, detestando-se por ser tão intratável. É raro Magnus ter
, ensar algum tempo para dar uma resposta, mesmo quando se tra- de explicar a Mary como há-de enganar o filho. Mas agora está a pen-
• ela sente-o a procurar uma solução, deitado, mas desperto, no escuro ao seu lado.
Bom, diz-lhe que os Pembrokes são os donos da casa em que es
tamos, acho que é o melhor. Por isso usamos o nome deles para enco
mendar coisas nas lojas. E só se ele te perguntar, naturalmente. Naturalmente.
Aqueles dois homens ainda lá estão diz, da porta do quarto,
Tom, que afinal esteve o tempo todo a ouvir a conversa.
Que homens? diz Mary.
Mas sente picadas na nuca, o seu corpo está suado de pânico. O que é que Tom terá ouvido e visto?
Aqueles que estão a reparar a moto ao pé do rio. Têm sacos-cama especiais, da tropa,
uma lanterna e uma tenda especial.
Há campistas por toda a ilha diz Mary. Volta para a cama.
Eles também estavam no barco diz Tom. Atrás do salva- -vidas, a jogar às cartas. A vigiar-nos. Falavam alemão.
Havia imensas pessoas no barco diz Mary. Porque é que não
dizes nada, filho da mãe? Berra ela mentalmente para Magnus. Porque
é que ficas aí como morto em vez de me ajudares quando ainda estou
toda molhada de ti? Lom Tom de um lado e Magnus do outro, Mary ouve os sinos de omari a darem horas.
Mais quatro dias, diz para si própria. No do-"go, lom regressa a Londres para recomeçar
as aulas. E na segunda, e" faço o que tenho a fazer e tanto pior.
rotherhood estava a sacudi-la. Nigel tinha-lhe dito alguma coisa: rgunta-lhe como foi o
princípio vê se a seguras. yueremos que voltes um pouco atrás, Mary. Pode ser? Estás a depressa de mais.
_ murmúrios, e depois o som de Georgie a mudar a fita do gra-_ ^ murmúrio era a sua
própria voz. «tá be n°S como ^ 9ue decidiram fazef essas férias, para começar, '
1Uen<la? De quem partiu a ideia? Ah, do Magnus? Estou a ver.
125
E o que é que foi isso que aconteceu aqui em casa? Foi... Boi horas do dia é que se
passou? Senta-te lá, está bem?
Então Mary sentou-se e recomeçou no ponto em que Jack
dou recomeçar: uma agradável noite do início do Verão, em Viena quando tudo ainda estava perfeitamente bem e nem Lesbos nem toda,
as ilhas anteriores a Lesbos se reflectiam nos olhos espertos de Magnus
Mary estava de fato-macaco na cave, a encadernar uma primeira edi
ção do livro Die Letzten Tage derMenschheit,2i de Karl Kraus, que Ma?
nus descobrira em Leoben quando lá fora encontrar-se com um infor mador e Mary... .
Isso é um dos sítios habituais Leoben? i|
Sim, Jack, Leoben era habitual. ê
Com que frequência é que ele lá ia?
Duas vezes ou três por mês. Era um velho húngaro que ele lá ti nha, ninguém de especial.
Foi ele que te disse isso, não? Julguei que ele guardava segredo
quanto aos agentes.
Era um negociante de vinhos húngaro bastante antigo no ramo,
com sucursais em Londres e Budapeste. Geralmente, Magnus guarda va os seus segredos. Às vezes contava-me coisas. E agora posso conti
nuar?
Tom estava no colégio, Frau Bauer tinha saído para ir à igreja, disse Mary. Havia uma
festa católica qualquer. Assunção, Ascensão, Oração e Contrição, Mary perdera-lhes a
conta. Magnus devia estar na embaixada americana. As reuniões da nova comissão tinham começado há pouco tempo e ela contava que ele regressasse tarde. Estava em
plera operação de colagem quando, de repente, sem ter ouvido o mínintó som, o viu à
porta do quarto, e só Deus sabe há quanto tempo ali estiva, com o ar de quem se sente
muito contente consigo próprio, olhando-a como gostava de a olhar. Como é isso, minha querida? Como é que ele te olhou? 'n
terrompeu Brotherhood.
Mary surpreendera-se a si própria. Hesitou.
Com um ar de certo modo superior. Superioridade ofend1""
Jack, não me obrigues a odiá-lo, por favor. Bom, está bem, ele está a olhar para ti disse Brotherhood'
Está a olhá-la e quando ela dá por ele, ele desata a rir e fá-la calar cP
os beijos apaixonados do seu número de Fred Astaire, e depois soi^ ao primeiro andar
para uma plena e franca troca de impressões, c°
us diz. Fazem amor, ele arrasta-a até à banheira, lava-a, arrasta-a fora e seca-a, e vinte
minutos depois Mary e Magnus iniciam a vessia do pequeno parque no alto de Dõbling
como o casal feliz que uase são, passam pelas caixas de areia e pela armação metálica
de tre-onde Tom já é grande de mais para brincar, pelo lugar do elefante
par - i restau-
para onde Tom atira a bola, e descem a colina em direcção ao i ante Teerão, que é opub
onde costumam ir, apesar de a sua aparência condizer pouco com eles; é que Magnus
adora os vídeos a preto e branco de romances árabes que eles lá passam, com o som
muito baixo, enquanto se come couscous e se bebe Kalterer. À mesa, agarra-lhe o braço com força e ela sente a excitação dele percorrê-la como uma descarga eléctrica; parecia
que tê-la possuído ainda o fazia desejá-la mais.
Vamos embora daqui, Mabs. Vamos embora a sério. Vamos vi
ver a vida, para variar, em vez de fingir que a vivemos. Levamos Tom,
eu peço todos os dias de férias a que tenho direito e piramo-nos o Ve rão inteiro. Tu pintas, eu escrevo o meu livro e fazemos amor até não
podermos mais.
Mary pergunta para onde, Magnus diz:
Que importa, vou amanhã à agência de viagens no Ring.
Mary diz: E então a nova comissão.
Ele tem a mão dela dentro da sua e está a tocá-la com as pontas dos dedos; e ela está de
novo louca por ele, que é o que ele quer.
A nova comissão, Mary declara ele solenemente , é a cha
rada mais cretina em que já alguma vez estive metido, e acredita que já «tive metido em bastantes. Não passa de conversa fiada, que só serve
para inchar o ego dos Serviços e para eles poderem dizer a quem quiser
ouvir que nos damos muito bem na cama com os americanos. O Le-
erer de certeza que não pensa que lhe vamos revelar as nossas redes, e Pe a parte dele,
bom, ele não diria nem sequer o nome do alfaiate, quan- 0 mais ° dos agentes (partindo do princípio de que tem alfaiate e agen-c«. coisa de que
eu duvido). Outra vez Brotherhood.
n disse-te porque é que o Lederer não estaria disposto a dizer-
-~ Não --disse Mary.
b Nigel, para variar: QUP nã° *°ram dadas outras razões^pSra explicar como e porquê é 4 eac°missão era
uma charada? ~"
126
127
Era uma charada, uma impostura, um logro. Foi só isso que e] disse. Perguntei-lhe o que é que ele fazia aos agentes, e ele disse que 0
agentes se governavam bem sozinhos, e que se o Jack estivesse preocu
pado com eles podia mandar um substituto. Perguntei-lhe o que é que
Jack ia ficar a pensar...
E o que é que Jack ia ficar a pensar? disse Nigel, todo ele cu riosidade.
Ele diz que Jack também é uma fraude: «Não casei com Jack
casei contigo. Os Serviços já o deviam ter reformado há dez anos. Esse
paneleiro». Desculpa lá, foi o que ele disse.
De mãos enfiadas nos bolsos, Brotherhood deu uma volta ao quartinho, observando as fotografias da filha ilegítima de Frau Bauer, e debruçando-se sobre a prateleira de
romances brochados.
Mais alguma coisa sobre mim? perguntou.
Jack já cavalgou tempo de mais. A era dos escuteiros acabou.
Agora o cenário é diferente, e ele não está à altura. Mais alguma coisa? disse Brotherhood.
Nigel apoiara o queixo na mão e estava a estudar atentamente um
sapato pequeno, mas de formato perfeito. ■<
Não disse Mary.
Ele saiu nessa noite? Encontrou-se com R? Tinha saído na noite anterior.
Eu disse naquela noite. Responde ao raio da pergunta!
E eu disse que foi na noite anterior! ;
Com um jornal, e essa história toda? S \
Sim. ■ | '■ Ainda de mãos nos bolsos e de cabeça erguida, Brothofaood voltou-
-se rigidamente para Nigel.
Vou-lhe contar disse ele. Achas mal?
Estás a perguntar-me oficialmente? .;■
Nem por isso.
É que se for oficial, tenho de falar com Bo e olhou respeito
samente para o seu relógio de ouro, como se também recebesse ordens
dele.
Lederer sabe e nós sabemos. Se Pym também sabe, quem é que fica de fora? insistiu Brotherhood.
Nigel meditou sobre o assunto.
Tu é que sabes. E um dos teus homens, a decisão é tua, ]
mar a iniciativa. Francamente.
128
Brotherhood curvou-se sobre Mary e aproximou a cabeça do ouvi-
ii £[a rememorou o seu cheiro: um cheiro a fazenda de lã e a pai.
__ Estás a ouvir?
Fez sinal que não com a cabeça. Não estou, não vou estar nunca, só queria nunca ter ouvido nada.
y^ nova comissão que o teu Magnus ridicularizou estava a come
çar a tornar-se uma arma muito poderosa. Foi talvez, potencialmente,
a melhor relação de trabalho que tivemos com os americanos, ao nível
do trabalho de campo, de há muitos anos a esta parte. O jogo chama va-se confiança mútua. Não é tão fácil de criar hoje em dia como dan
tes, mas nós conseguimos. Vais adormecer?
Ela fez um sinal afirmativo.
O teu Magnus não só tinha plena consciência disso, como foi
um dos principais autores da ideia, senão o principal autor. Até chegou a queixar-se em conversa comigo, quando ainda estávamos a negociar o acordo, da mesquinhez de
Londres na interpretação das cláusulas. Ele aliava que devíamos dar mais aos
americanos. Para recebermos mais. Isto é o primeiro ponto.
Não tenho absolutamente mais nada a dizer. Posso dar a morada
de casa e o nome do meu parente mais próximo, e é só isso que levas. Fos te tu próprio que mo ensinaste, Jack, para o caso de vir a ser apanhada.
O segundo ponto é que, por razões que na altura considerei fal
sas e insultuosas, os americanos se opuseram à presença do teu marido
na comissão, menos de três semanas depois do início das reuniões, e pe
diram-me que o substituísse por alguém mais do seu agrado. Como Magnus era o elemento-chave da operação Checoslováquia e de várias
outras operações menores na Europa de Leste, esta exigência era perfei
tamente irrealista. Eles tinham levantado as mesmas objecções em rela-
Ção a ele em Washington no ano passado, e Bo tinha-lhes feito a von-
a(ie, a meu ver erradamente. Eu não ia deixá-los repetir a façanha. ntece que não gosto que uns senhores americanos (ou seja lá quem
IK mC S8*11 como é que hei-de dirigir o meu departamento. Disse-
que não, e dei ordens a Magnus para meter licença e não aparecer
lena até eu o chamar. A verdade é esta, e parece-me que já é tempo
de ouvires a verdade. tudo isto é absolutamente secreto disse Nigel. u ,a nem sequer conseguiu ficar atónita.
Não protestou, não fez nha em°nstraÇão do famoso mau geniosa família. Brotherhood
ti-aproximado da janela e estava a"õlhar para o exterior. A manhã
129
chegara cedo por causa da neve. Ele estava com um ar velho e catisj do. A luz
atravessava-lhe o cabelo branco, e ela via-lhe a pele rosada 4 crânio.
Tu defendeste-o disse ela. Foste leal.
Pois, e parece-me que fiii um perfeito idiota, também.
A casa estava virada de pernas para o ar. Da sala de estar, no andai de baixo, vinham sons de móveis a serem deslocados. O lugar mais«. guro para se estar era este. No andar
de cima, com Jack.
Oh, não sejas tão duro para contigo mesmo, Jack disse Nigel
Brotherhood tinha feito Mary sentar-se na cadeira e dera-lhe um whisky. Só te dou um,
dissera; vê se o fazes durar. Nigel tinha passado para a cama e estava reclinado com uma perninha elegantemente vestida esticada para fora do colchão como se a tivesse
torcido ao subir os degraus do clube. Brotherhood voltara as costas a ambos. Preferia a
paisagem que se via da janela.
Então primeiro foram para Corfu. A sua tia tem lá uma casa
Você pediu-lha emprestada. Conte-nos essa parte. Com todos os por menores.
É a tia Tab disse Mary.
Como é o nome completo dela? perguntou Nigel.
Lady Tabitha Grey. É irmã do meu pai.
Também já trabalhou para os Serviços murmurou Brothe rhood para Nigel. Não deve haver quase nenhum membro da fa
mília dela que não tenha, num momento ou noutro, feito parte dos
nossos efectivos, agora que penso nisso.
Telefonara à tia Tab assim que regressara a casa depois de terem ido tomar uma bebida
naquela noite, e por milagre tinha havido uma desistência, e a casa estava livre. Ficaram com ela, telefonaram para o colégio de Tom e combinaram que ele apanharia um avião
directo pa13 lá, assim que acabassem as aulas. Logo que souberam, os Lederers
disseram que também queriam ir, claro. Grant disse que largava tudo, mas Magnus não
quis. Os Lederers são precisamente o tipo de adereço social de que preciso de me livrar,
dissera ele. Ora bolas, para que é <P vou levar o trabalho comigo para férias? Cinco dias mais tarde, esta vam instalados na casa de Tab e tudo corria pelo melhor. Tom tinha
ções de ténis no hotel ao fundo da estrada, nadava, dava de cornei cabras e andava de
volta do barco com Costas, que era quem toma
130
dele e regava o jardim. Mas o melhor de tudo eram as loucas par-
., je crfquete num campo já fora da cidade a que Magnus o levava
oite Magnus dizia que os ingleses tinham trazido o jogo para a ilha
altura em que a defenderam contra Napoleão. Magnus sabia dessas
coisas. Ou pelo menos fingia saber. Nunca Magnus estivera tão próximo de Tom como no críquete em Corfu. Eles
deitavam-se na relva, devoravam gelados, apoiavam ruidosamente os jogadores que
preferiam e tinham daquelas conversas masculinas que eram tão indispensáveis à
felicidade de Tom: é que Tom amava Magnus até à loucura; Tom era e sempre fora um
rapaz que gostava de homens. Quanto a Mary, começara a desenhar a pastel, porque Corfu no Verão era de facto quente de mais para as suas aguarelas, a tinta secava na
folha antes de Mary conseguir tocar-lhe. Mas estava a desenhar bem, a obter bonitas
formas e figuras, e além disso dava abrigo e alimento a metade dos cães da ilha, porque
os gregos não lhes dão de comer nem tratam deles nem nada. Portanto, todos estavam
felizes, todos se sentiam bem, e Magnus tinha uma estufa muito fresca para escrever, e passeios ao interior da ilha para acalmar a agitação que o invadia logo que acordava, e
de novo ao fim da noite, depois de a ter afastado de si durante o dia. Almoçavam tarde,
geralmente num restaurante, e muitas vezes a refeição era mais líquida do que sólida,
confesse-se, mas porque não? Afinal de contas estavam em férias. E depois longas
sestas sensuais em que Magnus e Mary faziam amor na varanda e Tom ia para a praia espiar as nudistas do outro lado da baía com o binóculo de Magnus, de modo que, como
Magnus dizia, cada um tinha a sua ração de carne. Até que um dia o relógio parou e
Magnus regressou de um passeio nocturno e confessou que a sua escrita tinha chegado a
um impas-e. tntrou, serviu-se de um ouziP sem água, deixou-se cair numa cadeira e
disse logo o que tinha a dizer: ~ Desculpa lá, Mabs. Desculpa, meu velho Tom. Mas, caramba, Kte SItl° é idílico de
mais. Preciso de um bocado de dureza. Preciso de as' Por amor de Deus. De fumo e
sujidade e um pouco de sofri-to a nossa volta. Aqui é como se estivéssemos na Lua,
Mabs. Ain-036 Pior do que Viena. A sério. v, °i simpático na maneira como disse aquilo, mas firme. Era ób-lnna estado a beber,
mas isso era a consequência e não a causa doseumal-estar.
Q0 . tou a "car maluco, Mabs. Isto-estã mesmo a dar cabo de mim. m. Não foi, Tom?
Disse-lhe que não conseguia aguentar
131
isto muito mais tempo, e sinto-me um merdas, porque vocês os dois estão a divertir-se
imenso. Pois foi, ele disse-me confirmou Tom.
Várias vezes. E hoje estoirei, Mabs. Vocês têm de me ajudar. Vo
cês os dois.
E é claro que eles disseram que sim, que o ajudavam. Mary telefonou imediatamente a
Tab para ela poder tornar a alugar a casa, os três abraçaram-se e foram para a cama sentindo que tinham resolvido a questão, e no dia seguinte, Mary fez as malas enquanto
Magnus ia à cidade tratar dos bilhetes e escolher a etapa seguinte da odisseia. Mas
enquanto Mary lavava a loiça, Tom, que gostava muito de aproveitar essa altura para
conversar, deu-lhe uma versão diferente das razões que os levavam a sair de Corfu. O
papá tinha encontrado um homem misterioso no campo de críquete. Era uma partida bestial, mamã, entre as duas melhores equipas da ilha, uma autêntica vendetta.
Estávamos en-tusiasmadíssimos a ver o jogo quando, de repente, apareceu aquele
homem cauteloso e enrugado, com um bigode triste de prestidigitador, a coxear, e o
papá ficou todo nervoso. Aproximou-se do papá a sorrir, conversaram um bocadinho e
andaram às voltas ao campo, com o homem magrinho a avançar lentamente como um inválido, mas era muito simpático para o papá, não percebi porque é que ele ficou tão
emanado.
Animado corrigiu Mary automaticamente. Não fales táo alto, Tom. Acho que o teu pai
deve estar a trabalhar algures.
E havia um jogador perfeitamente incrível disse Tom. Chamava-se Phillippi. Era de longe o melhor jogador que ele tinha vis
to em toda a sua vida. Marcou dezoito pontos numa série de bolas e
o público ficou completamente estarrecido, mas o papá não deu por
nada, porque estava ocupado a ouvir aquele homem simpático.
Como é que sabes que era simpático? disse Mary, estranha mente irritada. Fala baixo. Não havia luz na estufa, mas às veze
Magnus ficava lá, sentado às escuras.
Era como um pai para ele, mamã. Mais velho, muito calmo, i1*
tou-se de oferecer boleia ao papá no carro dele. O papá dizia sempre <5
não. Mas ele não se zangou nem nada, era demasiado avisado parai Procurou amansá-lo e sorriu.
Qual carro? Isso é tudo uma grande invenção, Tom. Sabes
que é.
Era o Volvo. O Volvo de Mr. Kaloumenos. Estava um
132
olante e outro no banco de trás. Iam-nos acompanhando do lado A fora do gradeamento,
à medida que eles iam andando às voltas a amar y^ sério, mamã. O homem magrinho
nunca se irritou nem nada, vê-se que gosta do papá. Não é só uma questão de boa
educação. São mesmo amigos um do outro. Muito mais do que o tio Grant. É mais comocomoTioJack.
Mary interrogou Magnus nessa noite. As malas estavam feitas, ela estava contente por ir
sair dali, entusiasmada com a ideia de ver os museus de Atenas.
Tom diz que foste importunado por um fulano maçador durante
o jogo de críquete disse Mary, enquanto tomavam a última bebida da noite, bastante forte, para compensar as fadigas do dia.
Ah sim?
Um homenzinho que te perseguiu à volta do campo. A mim pa
receu-me que devia ser algum marido furioso. Tinha bigode, a menos
que Tom tenha imaginado. Então Magnus lembrou-se vagamente.
Ah, é verdade. Era um inglês velhote e muito chato que queria
por força mostrar-me a casa dele. Queria ver-se livre dela. Uma autên
tica pestezinha.
Ele falava alemão disse Tom no dia seguinte ao pequeno-al- moço, durante o passeio de Magnus.
Quem é que falava alemão?
O amigo magrinho do pai. O homem que foi ter com o papá ao críquete. E o papá
respondeu-lhe em alemão. Porque é que o papá disse que ele era um velhote inglês?
Mary deu-lhe uma bofetada. Há anos que não se zangava assim com ele. ^e queres escutar as nossas conversas, então já agora entras e fi-aouvir em vez de te
esconderes atrás da porta como um espião, epois arrependeu-se e esteve a jogar ténis
com Tom até o barco • o barco, Tom enjoou terrivelmente, e quando chegaram ao
foHnf CCnt° C tfêS graUS de febre26> e ° sentimento de culpa de Mary jjçj. . ° °
hospital de Atenas, um médico grego diagnosticou uma e nu ^camarões, o que era absurdo, porque Tom odiava camarões c°mo i* tOCava seoiuer; e nessa altura já ele
tinha a cara inchada na Can^ amster, por isso foram para um hotel de luxo e meteram-no
nus fica °m U^ SaC° ^e ^e'°' e Mary-lia-lhe histórias enquanto Mag-ouvir ou ia escrever
para o quarto de Tom. Mas gostava mais
133
de ficar a ouvir, porque a melhor coisa da vida, segundo ele tfeia sem pre, era vê-la reconfortar o filho. Mary acreditava. íj':
Ele saiu alguma vez? ■■, $ t
A princípio, não. Não queria sair. ;^
Fez algum telefonema?
Sim, para a embaixada. Só para saberem onde ele estava, j
Foi ele que te disse isso? disse Brotherhood.
Foi.
Não estava no quarto quando ele telefonou? perguntou Nigel.
Não. Não o ouviu através da parede? Nigel, uma vez mais.
Não.
Sabe com quem ele falou? ainda Nigel.
Não.
Do seu lugar na cama, Nigel ergueu os olhos para Brotherhood. - Mas telefonou-te a ti, Jack disse, encorajando-o. Uma ou outra conversa com o bom
do patrão, de sítios bem remotos? Isso é praticamente obrigatório, não é? Para saber o
que se passa com os agentes. «Como está o nosso velho amigo não-sei-de-onde?»
Nigel é um dos novos elementos não-profissionais. Mary lembrava-se de Magnus lho
ter dito. É um dos idiotas de quem se espera que nos tragam uma lufada do realismo de Whitehall. «Realismo de Whi-tehall»: como contradição de termos não se arranja
melhor, dissera Magnus.
Nem um pio respondeu Brotherhood. O que ele fez foi
mandar-me uma série de postais idiotas que diziam: «Graças a Deus não
estás aqui», onde me dava a morada mais recente. Quando é que ele começou a sair? disse Nigel.
Quando a febre de Tom baixou respondeu Mary.
Uma semana? sugeriu Nigel. Duas?
Menos disse Mary.
Explica lá isso disse Brotherhood. Foi ao fim da tarde, provavelmente, do quarto dia. A cara de To* estava outra vez com
um aspecto normal, por isso Magnus sugeriu qu Mary fosse às compras enquanto ele
tomava conta de Tom para ela p der descansar um pouco. Mas Mary não tinha vontade
de desafiar s zinha as ruas de Atenas, portanto saiu ele; Mary iria visitar um mus na
manhã seguinte. Magnus regressou por volta da meia-noite, mu satisfeito, contando que descobrira, numa cave em frente ao Hilton»
■ divíduo maravilhoso, um velho agente de viagens grego, incrivel-culto; tinham estado
os dois a beber ouzo e a resolver os proble-
do universo. O velhote dirigia um serviço de aluguer de moradias ilhas, e esperava ter uma desistência dentro de mais ou menos uma mana, quando eles já
estivessem fartos de Atenas.
Julguei que tínhamos desistido das ilhas disse Mary.
Por um momento, foi como se Magnus se tivesse esquecido da razão porque haviam
saído de Corfu. Sorriu com ar embaraçado e murmurou qualquer coisa sobre as grandes diferenças que há entre as ilhas. E depois disso, Mary foi perdendo a conta aos dias.
Mudaram-se para um hotel mais pequeno; Magnus escrevia imenso, saía à noite, e
quando Tom ficou bom passou a ir também com ele à piscina. Mary fazia esboços da
Acrópole e levava Tom a um ou outro museu, embora ele preferisse ir nadar. Entretanto,
iam esperando que o velho grego lhes arranjasse uma casa. Brotherhood tornou a interromper.
Ele falava contigo sobre o que estava a escrever?
Queria guardar segredo. Só me lia pequenos fragmentos.
Como com os agentes. É a mesma história sugeriu Brothe
rhood. Ele queria manter-me na expectativa, para o momento em que
tivesse realmente alguma coisa para me mostrar. Não queria perder a
inspiração por falar de mais.
Foram dias calmos e, Mary relembrava-o agora, estranhamente furtivos; até que uma
noite Magnus desapareceu. Saiu depois do jantar dizendo que o rapaz estava a precisar de um estimulante. Na manhã seguinte ainda não tinha voltado, e à hora de almoço,
Mary começou a car assustada. Sabia que devia telefonar para a embaixada. Por outro a
0> nao queria lançar o pânico inutilmente, nem fazer nada que pudesse causar
problemas a Magnus. E> uma vez mais, Brotherhood interrompeu.
"~ Que tipo de problemas?
t ,~~ or exernplo, se ele tivesse ido fazer uma farra. Não ficava lá mui-na ficha dele,
logo numa altura em que estava à espera de ser promovido.
H M-)Á alguma vez tinna feito uma coisa dessas? a°'
s 'gel ergu
nem Pensar- Ele e Grant embebedavam-se juntos uma vez
eu vivamente a cabeça, "f
134
135
Mas porque é que ele havia de estar à espera de ser promovido^
Quem é que lhe falou em promoção?
Fui eu disse Brotherhood, sem remorsos absolutamente ne
nhuns. Achei que depois de todas as histórias que houve com ele lhe devíamos isso, quando fosse reintegrado.
Nigel fez uma anotação no seu livrinho, com a sua caligrafia primorosa, sorrindo
tristemente enquanto escrevia. Mary continuou.
De qualquer forma, esperou até à noite, e depois foi com Tom ao Hilton e exploraram
juntos todas as casas em frente, até encontrarem o velho grego letrado na sua cave, exactamente como Magnus o descrevera. Mas o grego não via Magnus há uma semana,
e Mary não quis ficar para tomar café. Quando regressaram ao restaurante, encontraram
Magnus com uma barba de dois dias e a mesma roupa com que desaparecera, sentado
no pátio a comer ovos com bacon, bêbado. Não um bêbado tonto, ele era incapaz de ser
tonto. Nem um bêbado irritado, ou sentimental, ou agressivo, e muito menos indiscreto, porque a bebida só conseguia fortalecer-lhe as defesas. Um bêbado cortês, portanto,
extremamente amável, como sempre, e com a sua versão dos acontecimentos
perfeitamente intacta, apenas com um erro.
Desculpem-me, malta. Apanhei um pifo com Dimitri. Aquela
besta fez-me beber até cair para o lado. Olá, Tom. Olá disse Tom.
Quem é Dimitri? perguntou Mary.
Tu sabes quem é Dimitri. O agente de viagens grego aue tem o
negócio em frente ao Hilton, do outro lado da rua.
O letrado. Esse mesmo.
Ontem à noite?
Tanto quanto me lembro, minha querida, foi ontem à noite, sim.
Dimitri não te vê desde segunda-feira. Foi o que ele nos disse ha
uma hora. Magnus ficou a pensar naquilo. Tom encontrara um exemplar o° Athens News e estava
de pé junto à mesa ao lado da deles, a estudar atentamente a página de cinema.
Andaste a controlar-me, Mabs. Não devias ter feito isso.
Não andei a controlar-te, andei à tua procura!
Não faças uma cena agora, menina. Por favor. Há mais pessoa a comer aqui, como podes ver.
Não estou a fazer cena nenhuma. Tu é que estás. Não fui eu
areei durante dois dias para reaparecer com uma mentira. Tom, ^para o quarto, meu
querido. Eu subo já. Tom foi-se embora, com um largo sorriso nos lábios para mostrar
não tinha ouvido nada. Magnus bebeu um grande gole de café. De-. agarrou a mão de
Mary e beijou-a e puxou-a suavemente, fazendo-a sentar-se na cadeira ao seu lado.
Q qUe é que preferes que eu te conte, Mabs? Que andei na pân
dega com uma puta ou que tive problemas com um dos meus homens? Porque é que não contas antes a verdade?
Esta sugestão divertiu-o. Não por crueldade ou cinismo. Simplesmente, recebeu-a com a
indulgência triste com que ouvia Tom quando ele aparecia com uma das suas soluções
para acabar com a pobreza ou com a corrida aos armamentos.
Sabes uma coisa? Beijou-lhe de novo a mão e encostou-a ao seu rosto. Nada na vida desaparece. Surpreendida, sentiu que a barba dele estava molhada e percebeu que
Magnus estava a chorar. Estou na Praça da Constituição, não é? Acabado de sair do bar
Grande Bretag-ne. Sem me meter com ninguém. E o que é que acontece? Dou de caras
com um agente checo que em tempos trabalhou para mim. Um tipo duro de roer,
aldrabão, que nos deu imensos problemas. Agarra-me no braço, assim: «Coronel Manchester! Coronel Manchester!». Ameaça chamar a polícia e denunciar-me como
espião inglês se não lhe der dinheiro. Diz que sou o único amigo que lhe resta no
mundo. «Venha beber comigo, coronel Manchester. Como dantes». E eu fui. Fi-lo beber
até ele cair da cadeira abaixo. E depois escapuli-me. Mas quer-me parecer que
também fiquei um bocado tocado. São os ossos do ofício. Vamos para a cama. t vao. E fazem amor. O amor desesperado dos estranhos, enquanto
°m le histórias no quarto ao lado. E dois dias depois, partem para
y fa> mas Hydra é pequena de mais, sinistra de mais, e o melhor sítio
e ir passa a ser Spetsai, nesta altura do ano não vamos ter proble-
a*- om pergunta se Becky pode ir ter com eles, Magnus diz que nem ter Porclue vão querer vir todos e ele não tem vontade nenhuma de
creve ^ ^° ̂ e ^ederers a atrapalhá-lo enquanto estiver a tentar es-
M " m tu"° ° resto, e exceptuando o problema da bebida, nunca
^us se mostrou tão atencioso e correcto como agora, dro Es ^ar°U <"omo se recuasse
um pouco para ver melhor um qua-Bbu UU and° atentamenre a parte da. história que já tinha contado. POUCO de whisky, acendeu um cigarro.
136
137
Meu Deus disse Brotherhood em voz baixa. E depois mais nada.
Nigel encontrara um bocadinho de pele morta na polpa de um d0 seus pequenos dedos e estava a extraí-lo meticulosamente.
Outra vez Lesbos, outro amanhecer, mas na mesma cama grega' Plomari acorda uma
vez mais, apesar dos ardentes votos de Mary para que tudo volte a adormecer, para que
os sons se desvaneçam e o sol desapareça atrás dos telhados de onde veio, porque é
segunda-fei-ra e ontem Tom voltou para o colégio. Mary tem as provas debaixo da almofada, no lugar onde prometeu pôr a pele de coelho que ele lhe deu para a proteger e
como se precisasse disso para confirmar a sua resolução a memória terrível das últimas
palavras dele quando a deixou. Mary e Magnus levaram-no de carro até ao aeroporto e
entregaram a bagagem para ser pesada, para mais uma nova partida. Tom e Mary andam
às voltas, incapazes de se tocarem, à espera da chamada para os passageiros; Magnus está no bar a comprar um pacote de pistácios para a viagem e, já agora, aproveitando
para tomar um ouzo. Mary já seis vezes confirmou que Tom tem o passaportee o
dinheiro e a carta para a directora sobre a alergia aos camarões, e a carta para a avó que
lhe vais entregar assim que te encontrares com ela no aeroporto de Londres, meu
querido, para não te esqueceres. Mas Tom está ainda mais distraído do que de costume; está a olhar para a entrada principal, observando as pessoas que entram fd® portas que
abrem nos dois sentidos, e há desespero no seu rosto, tanto que Mary chega a pensar se
ele não se irá pôr a correr em direcçã" à entrada.
Mamã? às vezes, quando está distraído, ainda a trata assina
Sim, meu querido. Eles estão aqui, mamã.
Quem são eles?
Os dois campistas de Plomari. Estão no parque de estacio
mento do aeroporto, numa moto, a vigiar o pai.
Vamos, meu querido, pára com isso respondeu MaT' , firmeza, decidida a afastar todos aqueles fantasmas. Pára com 1
uma vez, está bem? i,i
Mas é que eu reconheci-os, sabes? Hoje de manhã é que P ̂
tudo. Lembrei-me. Eram eles os homens que andavam a guiar o
i do campo de críquete em Corfu, enquanto o amigo do pai o ten-
convencer a ir dar um passeio com eles.
Apesar de Mary já ter passado por este cerimonial doloroso pelo me-s uma dúzia de
vezes, há um momento em que lhe apetece berrar: (Fica não vás, estou-me nas tintas
para essas tretas da tua educação, fica comigo». Mas em vez disso, aquela tola acena-lhe do lado de cá da barreira e guarda as lágrimas para a viagem de regresso, durante a qual
Magnus se mostra encantador para com ela, como sempre. E agora é a manhã do dia
seguinte, Tom deve estar a chegar ao colégio, e Mary olha as erades da prisão que são
as persianas meio apodrecidas de Kyria Kati-na, enquanto o céu vai clareando
implacavelmente nas frinchas e ela procura não ouvir o ruído das canalizações no andar de baixo e da água precipitando-se nas lajes: é Magnus que celebra o seu duche matinal.
Ena! Jesus! Estás acordada, rapariga? Aqui em baixo está um calor dos diabos,
acredita!
Acredito, repete ela para consigo, e enrola-se melhor nos cobertores Em quinze anos,
nunca se lembrou de me chamar rapariga, até chegarmos aqui. Agora, de repente, é rapariga de manhã à noite, como se ele tivesse despertado repentinamente e descoberto
que ela pertencia ao género feminino. Só o soalho de madeira a separa dele, e se Mary
ousar debruçar-se na cama conseguirá ver os contornos daquele corpo de um estranho
nu, através das frestas entre as pranchas. Como não recebe resp osta, Pym põe-se a
cantar a única canção que sabe, de Gilbert e Sulli-van, enquanto espalha água à sua volta.
Risingearlyinthe morning weproceedto lightthefire...27 Como e "íue me estou a sair?
diz ele, quando já cantou tudo o que sabia.
uma outra vida que não esta, Mary é conhecida pelo seu talento Para a música. Em
Plush dirigia um sofrível grupo de madrigalistas. guando trabalhava na Sede foi solista no coro dos Serviços. O pro-
•na toi que nunca ninguém te pôs a ouvir discos, costumava ela di-dia C' Cntlcando
veladamente a primeira mulher dele, Belinda. Um a voz de cantor há-de vir a ser tão boa
como a tua voz falada, me" querido.
i^P a todas ̂ suas forças para responder, e grita: Melhor que o Caruso!
che CSta troca de palavras, Magnus pode terminar o seu du-
^ Den feU Mabs. Mesmo bem.' Sete páginas de prosa imor-
138
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Óptimo. Começou a barbear-se. Ela ouve-o despejar o conteúdo da chaleira no alguidar de
plástico onde se lava a loiça. Lâminas de barbear, pensa ela: Oh meu Deus, esqueci-me
de lhe comprar a porcaria das lâminas Passara todo o caminho de ida e de regresso do
aeroporto com a consciência de que se tinha esquecido de alguma coisa, porque nestes
ultj. mos dias as pequenas coisas são tão terríveis para ela como as grandes Agora vou comprar queijo para o almoço. Agora vou comprar pão para comer com o queijo. Mary
fecha os olhos e respira fundo uma vez mais.
Dormiste bem? pergunta.
Como uma pedra. Não reparaste?
Reparei, sim. Reparei como te esgueiraste da cama às duas da manhã e desceste sorrateiramente até à tua sala de trabalho. Como andaste de um lado para o outro, e
depois paraste. Ouvi ranger a tua cadeira e murmurar a tua caneta de feltro, quando
começaste a escrever. A quem? Com que voz? Qual delas?
Uma explosão de música abafa os sons do barbear. Ele ligou o rádio para ouvir o
noticiário internacional da BBC. Magnus sabe sempre as horas exactas, durante todo o dia e toda a noite. Se olha para o relógio, é só para confirmar os horários que tem na
cabeça. Mary ouve, meio adormecida, uma lista de acontecimentos que ninguém é
capaz de controlar. Rebentou uma bomba em Beirute. Uma cidade foi destruída em El
Salvador. A cotação da libra desceu. Ou subiu. Os russos não vão aos próximos Jogos
Olímpicos, ou talvez acabem por ir. Magnus segue os acontecimentos políticos como um jogador tão prudente que nunca aposta. O som avoluma-se gradualmente: é Magnus
que sobe as escadas com o rádio na mão, slop, slop, vem completamente nu, só com os
chinelos. Curva-se sobre ela e ela sente o cheiro do creme da barba e dos cigarros
gregos achatados que ele se habituou a fumar enquanto escreve.
Ainda com sono? s Um bocadinho. ".,:
Como é que vai a ratazana?
Mary andava a tratar uma ratazana meio esventrada que tinha encontrado no jardim, e
que está agora numa caixa de palha no quarto <Je Tom. Não fui ver diz ela.
Beija-a junto à orelha, e é uma explosão; começa a acaricia seio em sinal de que a
deseja, mas ela protesta com brusquidão:
140
Agpra não e vira-se para o outro lado. Ouve-o dirigir-se para o
da-fatos, ouve a velha porta que resiste e acaba por se abrir de repen-
Se escolher uns calções, é porque vai passear. Se escolher uns jeans, vai
■ dade tomar uma bebida com os moribundos. O coronel Parker, «to-
, me.tratam-por-Parkie», com o meu amiguinho grego e o meu cão de ca Sealyham, cuja trela eu seguro como se fosse a asa de um bule. Elsie
Ethel professoras furas reformadas de Liverpool. Jock não-sei-quantos,
tenho um pequeno negócio em Dundee. Magnus tira do armário uma ca
misa e veste-a. Ela ouve-o abotoar os calções. '
Onde vais? diz. Dar um passeio.
Espera por mim. Vou contigo. Podes contar-me tudo.
Quem era esta pessoa que de repente falava pela boca dela esta mulher madura e
perspicaz?
Magnus está tão surpreendido como ela: Tudo o quê, meu Deus?
O que quer que te anda a preocupar, meu querido. Eu não me
importo. Seja lá o que for, conta-me, para eu não ter que...
Não ter que fazer o quê?
Controlar-me. Fingir que não vejo. Que disparate. Está tudo óptimo. Estamos só os dois um boca
do tristes, sem o Tom. Vem até junto de Mary e deita-lhe a cabeça
na almofada, como se ela fosse inválida. Dorme até ficares melhor,
que eu vou andar até ficar melhor. Encontramo-nos no restaurante por
volta das três. Só Magnus é que consegue que a porta de Kyria Katina se feche assim suavemente.
L>e repente, Mary sente-se forte. A partida dele libertou-a. Respira. M ate a janela do
lado norte, tudo está planeado. Já fez coisas destas an-> e embra-se agora de que as faz
bem, muitas vezes com mais firmeza 0 que os homens. Em Berlim, de todas as vezes
que Jack precisava de _■ . P^01 extra, Mary ficava de vigia, distraía porteiros para lhes sur-co H ■aVCS cluartos> devolvia documentos a escrivaninhas perigosas, me|i agentes
assustados a apartamentos seguros. Conheço o jogo ^ ̂ o que julgava, pensou. Jack
costumava elogiar a minha calma teand T ̂ V'Sta' ^a J^^a»ve a estrada nova de asfalto,
serpen-la e d k ^ C° ^ vezes e'e va' Por ali» mas noje não. Abre a jane- rU,r SC COm°
Se sak°reasse o local & a manhã. Aquela bruxa da ou ced° as cabras; quer dizer que foi ao mercado. Mary
141
só concede a si própria uma espreitadela furtiva na direcção do leito secn do rio, onde, à
sombra da ponte de pedra, os mesmos dois rapazes estãn a reparar a sua moto de
matrícula alemã. Se eles tivessem rondado assim casa de Viena, Mary teria contactado
imediatamente com Magnus, te lefonando-lhe para a embaixada, se necessário. Parece-me que os anjos andam a voar bastante baixo hoje . d;.
ria ela. E Magnus faria o que fosse necessário. Alertar a patrulha diplo
mática, mandar os seus homens investigar. Mas agora, nas suas vidas se
paradas, é como se os dois tivessem combinado que não se deve reparar
nos anjos, mesmo que sejam suspeitos. A sala de trabalho dele é no andar de baixo. Magnus não fecha a porta à chave, mas há
uma regra tácita entre os dois segundo a qual ela não entra lá senão quando ele lhe diz
expressamente para o fazer. Faz girar o puxador e entra. As persianas estão fechadas,
mas não cobrem os vidros superiores das janelas, por isso há luz suficiente para Mary
poder ver. Anda com firmeza, diz ela para si própria, recordando os treinos. Se fores obrigada a fazer ruído, faz um ruído brusco. O quarto tem poucos móveis, como
Magnus gosta. Uma secretária, uma cadeira, uma cama estreita para onde se atira nos
intervalos dos impulsos criativos da escrita. Ela afasta a cadeira e derruba uma garrafa
de vodka. A secretária está coberta de livros e papéis, mas ela não toca em nada. O
velho exemplar do Simplicissimus, encadernado de linho grosso, ocupa o lugar de honra, como de costume. É a mascote dele. Qualquer coisa assim. Para Mary, o facto de
ele não permitir que ela o encaderne é ura motivo de ofensa constante. É que gosto dele
tal como está, diz Magnus obstinadamente. Foi assim que mo ofereceram. Foi uma
mulher, de certeza. «Para sir Magnus, que nunca será meu inimigo», diz a dedicatória
em alemão. Merda para ela. E merda para as lindas alcunhas. Brotherhood interrompera uma vez mais.
Onde é que esse livro está agora?
Com dificuldade e com certo ressentimento, Mary regressou ao tempo presente.
Mas Brotlierhood insistiu:
Não está na secretária dele lá em baixo. Também não o vi na sai de estar. Não está no vosso quarto nem no de Tom. Onde é que estí-
Já te expliquei disse ela. Ele leva-o sempre com ele p**
toda a parte.
Não tinhas explicado, mas agradeço-te por o teres feito agora
retorquiu Brotherhood. 142
Mary traz umas luvas de algodão para evitar as marcas de suor e su-, Qeve haver um
truque qualquer. Ele já faz essas coisas instin-'• ente. A velha pasta de Magnus está no
chão, aberta, mas Mary bém não lhe mexe. Há mais livros espalhados como pisa-papéis a rar o manuscrito, aparentemente distribuídos ao acaso. Lê um dos ítulos É alemão:
«Liberdade e Consciência», de um autor de que ela unca ouviu falar. Ao lado deste, um
exemplar de «O Bom Soldado», de Madox Ford, que Magnus tem lido e relido
incessantemente nos últimos dias; é a sua Bíblia do momento. Junto a este último, um
velho álbum de fotografias. Cuidadosamente, ergue a capa desconhecida e, sem a deslocar, vira algumas páginas. Magnus aos oito anos, de equipamento de futebol, com
o resto da equipa. Magnus aos cinco anos num cenário alpino, agarrando um tobogã.
Magnus com a idade de Tom, já com o seu sorriso de simpatia excessiva, convidando
toda a gente para entrar sem esperar que lhe retribuam o convite. Magnus durante a lua-
de-mel com Belinda, nenhum dos dois parecendo ter mais de doze anos. Mary nunca antes tinha visto estas fotografias. Larga a capa e recua, observando de novo a
disposição dos objectos na secretária. Ao fazê-lo, compreende qual foi o truque que ele
usou. Cada um dos três livros, colocados sobre os papéis sem ordem aparente, está
alinhado em relação ao bico da tesoura que se acha no centro da secretária. Mary vai à
cozinha e traz a toalha de mesa, que estende no chão ao lado da secretária; depois mede as distâncias entre os objectos com a mão enluvada. Com tanta suavidade como se
estivesse a mudar a ligadura de um ferimento, coloca-os na mesma posição sobre a
toalha. Os papéis na secretária estão agora livres para ela os inspeccionar. Não tinha
contado que houvesse tanto pó. Bastou atravessar o quarto para levantar nu-ens de
poeira. Sou uma violadora de sepulturas, pensa, quando o pó e lnvade a garganta. Olha fixamente um monte de folhas manuscri-• A primeira página está coberta de rasuras.
Pega no monte, deixan-Pl i ° reSt° n° 'U8ar- Leva-o até à pequena cama, onde se senta.
Em ' 1uando era miúda, chamavam-lhe Jogo de Kim e jogavam-no passagem do ano,
juntamente com outras brincadeiras: representa-co • fatrais> ° assassínio, danças.
Durante os treinos, quando já era dei C a a^u'ta> chamavam-lhe Observação e jogavam-no pelas al-pint ° entas ̂ e Dedham, Manningtree e Bergholt: quem mandou prou "orta
"e C3sa- esta semana, quem podou as roseiras, quem com-mero J Carro novo> quantas
garrafas de leite estavam à porta do nú-O1to. Onde quer que o joguem, Mary é sempre,
de longe, a
143
melhor; a sua maldição é uma memória fotográfica, de que quase nad se consegue
apagar.
Bocados de um romance, disse ela a Brotherhood, tudo começos Uma dúzia de Capítulos Primeiros, alguns dactilografados, outro manuscritos, todos
cheios de rasuras. O tema principal era a infânci órfã de um rapazinho chamado Ben.
Rabiscos. Desenhos representando um braço estendido para roubai alguma coisa. Um
torso de mulher.
Notas pessoais, todas injuriosas: «tretas sentimentais» «reescre-ver ou destruir» «não conseguiste exprimir a maldição que transmitimos, de adulto para criança» «um dia, um
Wentworth qualquer há-de nos apanhar a todos».
Uma capa cor-de-rosa com a indicação «Passagens Soltas». Ben entrega-se às
autoridades. Ben descobre que existem outros Serviços Secretos, esses verdadeiros, e
alista-se mesmo a tempo. Uma capa azul de «Cenas Finais», várias delas dedicadas a Poppy, raios partam o querido Poppy. Uma folha de papel grosso roubada do bloco de
esboços dela, onde Magnus desenhou uma série de balões ligados entre si, formando um
esquema das suas ideias; é assim que mandam Tom preparar as composições na escola.
Balão: «Se toda a natureza tem horror ao vazio, o que é que o vazio pensa de toda a
Natureza?». Balão: «Duplicidade é agradar a uma pessoa em detrimento de outra». Balão: «Somos patriotas porque temos medo de ser cosmopolitas, cosmopolitas porque
temos medo de ser patriotas».
Bateram à porta, mas Brotherhood fez um sinal negativo a Georgie com a cabeça,
ordenando-lhe que o ignorasse.
Não era a verdadeira letra dele disse Mary. Era toda pon tiaguda. Fluía normalmente durante algum tempo, depois emperrava-
Parecia que lhe era doloroso continuar.
Brotherhood estava-se nas tintas para que fosse doloroso ou não.
Mais disse. Mais. Despacha-te.
Sou eu, sir grita Fergus do outro lado da porta. Mens3' gem urgente, sir. Muito urgente.
Eu disse para esperares ordenou Brotherhood.
«Os modos de vida de Ben estão todos a desfazer-se», continu"
Mary. «Toda a vida ele inventou versões fictícias de si próprio. MF
ra a verdade está a tentar apanhá-lo e ele anda fugido. O Wentwo1^ dele está de pé, junto à porta».
Mais ■ disse Brotherhood, dominando-a do alto da sua estatui
144
â
«Rick inventou-me, Rick está a morrer. O que acontecerá quan-do Rfck soltar a sua
ponta do fio?»
_ Continua.
__ Uma citação de São Lucas. Nunca o vi abrir uma Bíblia na sua ., <(Quem é fiel no
mínimo, também é fiel no muito.» __E depois?
«Quem é injusto no mínimo, também é injusto no muito.» Ele
luminou as margens da página durante horas a fio. Com várias cores.
E depois?
__ «Wentworth era a Némesis28 de Rick. Poppy era a minha. Ambos gastámr ; as nossas vidas a tentar reparar o mal que lhes fizemos.»
E mais?
«Agora todos me perseguem. Os Serviços perseguem-me, os
americanos perseguem-me, tu persegues-me. Até a pobre Mary me persegue, e ela nem
sabe que tu existes.» Quem é esse ttâ Quem é o tu deste poema?
«Poppy. Meu destino. Meu muito amado Poppy, o melhor de
entre os melhores amigos, tira o raio dos teus cães da minha porta
de entrada.»
Poppy, como as flores29 sugeriu Brotherhood, afastando o microfone de Georgie, ao ajoelhar junto dela. Como as flores da chaminé. Mas no singular. Uma só papoila.
Sim.
E Wentworth, como o lugar. O ensolarado Wentworth, no belo
condado do Surrey?
Sim. Conheces algum homem ou mulher... alguém com esse nome?
Não.
E com o nome de Poppy? -Não. Continua.
Havia um Capítulo Oito disse ela. Caído das nuvens. Não Estiam os Capítulos dois a
sete, só este Capítulo Oito, todo escrito 00111 a 'etra dele, sem uma única rasura. O título era «Contas por Ajus-'• efiquanto o Capítulo Primeiro não tinha título. Descrevia
um dia (\Ue °en se revolta contra tudo o que esperam dele. Deslizando da c«ra para a
primeira pessoa e mantendo-se nesta, enquanto no Ca-ty ° Primeiro era sempre «ele» e
«Ben». «Os credores batem à porta, fworth à cabeça, mas Ben não se Tala
absolutamente nada. Eu bai- 145
xo a cabeça e ergo os ombros, ataco-os, esmurro-os e malho neles e panco-os enquanto
eles me partem a cara. Mas mesmo sem cara, est a fazer o que devia ter feito há trinta e cinco anos, a Jack e a Rick e a das as mães e pais, por me roubarem a vida do prato, e eu
a olhar. PopDv Jack, todos os outros, a empurrarem-me para uma vida de... umavii de...
de...
Mary parou. Como se um torno de ferro lhe tivesse tirado o ar A porta abriu-se e Fergus
entrou de sopetão, numa infracção à disciplina pela qual seria certamente castigado. Nigel fitava-o inexpressivamentc Georgie arregalava-lhe os olhos, apontando a saída e
pronunciando em silêncio «sai, sai», mas Fergus resistiu.
Uma vida de quê, meu Deus? berrava-lhe Brotherhood ao
ouvido.
Mary murmurava. Mary gritava. Mary lutava com a palavra que tinha na boca, içando-a e empurrando-a, mas não saía nada. Brotherhood abanou-a, primeiro devagar, depois
com mais força, e depois com muita força.
Traição disse ela. «Traímos para sermos leais. A traição é
como a imaginação quando a realidade não é suficientemente boa.»
Ele escreveu isto. A traição como esperança e compensação. Como cria ção de um mundo melhor. A traição como amor. Como tributo às nos
sas vidas por viver. E assim por diante, havia imensos aforismos pro
fundos sobre a traição. A traição como fuga. Como acto construtivo.
Como afirmação de um ideal. Como culto. Como aventura da alma. A
traição como viagem: como poderemos descobrir novos lugares se nun ca sairmos de casa? «Foste a minha terra prometida, Poppy. Deste uma
razão de ser às minhas mentiras.»
E acabara precisamente de ler essa frase, explicou ela a frase sobre Poppy e a terra
prometida quando se voltou e viu Magnus, à calções em pé à porta do quarto, com um
grande envelope azul nunw das mãos e o telegrama na outra, a sorrir como se fosse o melhor alun" de um dos colégios que frequentara.
Havia outra pessoa dentro dele disse M ary, escandalizando'
-se a si própria. Não era ele.
Mas que diabo queres tu dizer com isso? Acabaste de dizer qu£
era Magnus, de pé à porta do quarto. Onde é que queres chegar? Ela também não sabia.
Foi qualquer coisa que lhe aconteceu em criança. Alguém de ™
à porta de uma sala, a olhar para ele. Ele estava de certa forma a re1
146
Eu via pela cara dele que Magnus estava a reconhecer a situa-
^O'___ Q qUe é que ele disse? sugeriu Nigel, prestável.
p, jmitou a voz de Magnus, ou talvez fosse só a expressão facial. Va-■ mas
impenetrável. Incansavelmente delicado:
' QJ£; meu amor. Estás a pôr-te a par do grande romance, hem? Receio que não seja propriamente a prosa de Jane Austen, mas uma par-
noderá ser aproveitável quando eu me empenhar mais a trabalhar
A toalha de mesa continuava estendida no chão, com os livros e metade dos papéis em
cima. Mas o sorriso dele irradiava vitória e alívio quando lhe estendeu o telegrama.
Mary agarrou-o e foi até à janela para o ler. Ou para desviar a atenção dele da secretária. Era o teu telegrama, Jack disse ela , em que usavas o teu
nome de código, Victor. Endereçado a Pym, ao cuidado de Pembroke. Regressa
imediatamente, dizias tu. Tudo foi perdoado. Comissão reúne Viena. Segunda-feira dez
da manhã. Victor.
Sem pressas, Brotherhood acabara por se dirigir a Fergus. Afinal o que é que queres, caramba? disse ele.
Fergus falou exactamente como Tom costumava falar quando se continha durante muito
tempo, à espera de que os grandes lhe dessem uma oportunidade.
Mensagem catastrófica do funcionário dos Serviços na delegação, sir disse ele
abruptamente. Ele fez o telefonema em código. Acabei agora de o decifrar. A caixa-destruidora da delegação desapareceu da casa-forte.
Nigel fez um gestozinho divertido para aliviar a tensão da atmosfera trgueu as suas
mãos bem-amadas com os dedos frouxamente volta-os para o céu, e sacudiu-os como se
estivesse a secar as unhas. Mas Bro-erhood, ainda ajoelhado junto de Mary, parecia
subitamente atingido etargia. Levantou-se devagar, e devagar passou a mão pela boca, 001110 se tivesse um
mau sabor na ponta da língua.
~~ Quando é que desapareceu?
Não se sabe, sir. Quem a levou não assinou. Estão à procura dela
a hora. Não conseguem encontrá-la. É só isso que sabem. Há ao de correio diplomático que anda sempre com a caixa. O car-
j^Dém desapareceu.
zaçj ainda não compreendera o qu^ srestava a passar. A sincroni-errada, pensou ela.
Quem "está à porta, Fergus ou Magnus?
147
Jack ensurdeceu. Jack, o que dispara perguntas como salvas de artilh ria, ficou sem
munições.
O guarda do arquivo diz que Mr. Pym passou pela embaixada terça-feira logo de manhã,
a caminho do aeroporto, sir. O guarda n" se tinha lembrado de falar nisso porque não anotou o nome dele no 1" vro. Foi subir, tornar logo a descer e receber os pêsames pelo
faleciment do pai. Mas quando desceu, trazia um saco preto e pesado.
E o guarda não se lembrou de o interrogar?
É natural, não lhe parece, sir? O pai dele tinha acabado de mor
rer e ele estava com pressa. Desapareceu mais alguma coisa?
Não, chefe, só a caixa-destruidora; pelo menos ainda não deram
pela falta de mais nada. Ah, e o cartão, como já disse.
Onde é que vão? disse Mary.
Nigel estava de pé, puxando as pontas do colete, enquanto Brothe-rhood enfiava objectos no bolso do casaco, preparando-se para uma longa viagem solitária. Os
cigarros amarelos. A caneta e o bloco de notas. O velho isqueiro alemão.
O que é uma caixa-destruidora? disse Mary, quase a entrar em
pânico. Onde é que vocês vão? Eu estou a falar com vocês! Sentem-se!
Finalmente, Brotherhood lembrou-se dela, e olhou fixamente para o lugar onde Mary continuava sentada.
Tu não podias saber, pois não? disse ele. Claro que não.
Eras do nível nove. Nunca subiste o suficiente para descobrir. Ex
plicar era uma tarefa penosa, mas Jack fê-lo em homenagem aos velhos
tempos. Uma caixa-destruidora é precisamente o que o nome indi ca. Uma caixinha de metal. No caso presente, é uma mala diplomática,
forrada a aço. Queima tudo o que está lá dentro assim que se lhe orde
na que o faça. É o lugar onde um chefe de delegação guarda as suas joi*
da coroa.
E o que é que está lá dentro? Nigel e Brotherhood trocaram um olhar rápido. Fergus ainda tinha os olhos bem
abertos.
O que é que está lá dentro? repetiu ela, com um medo d|te'
rente, mais difícil de definir, a invadi-la.
Oh. Nada de especial disse Brotherhood. Os agentes e funções. Todos os nossos checos. Alguns polacos. Um ou d">is hm*
ros. Praticamente, tudo o que é dirigido de Viena. Ou er?, até ag°
Quem é Wentwordi?
___ ,á perguntaste. Não sei. Um lugar. O que é que há mais na cai-xa-destruidora? __ Poise. Um lugar.
Fl perdera-o. Jack. Longe. Perdera-o como amante, como amigo,
o autoridade. Ele tinha agora a mesma cara que o pai dela quando
n^deu a notícia da morte de Sam. O amor desaparecera, e, com ele, o
qUe__ -j-u saDias disse ele inesperadamente. Estava já perto da por ta e falou sem sequer olhar para ela. Bolas, soubeste sempre, durante
anos.
Sabíamos todos, pensou. Mas não teve a coragem, ou sequer a vontade, de lho dizer.
Como se tivesse tocado a campainha que indica o fim da hora de visita, também Nigel
se preparou para sair. Olhe, Mary, vou-lhe deixar a Georgie e o Fergus para lhe faze
rem companhia. Eles depois combinam consigo que disfarce hão-de
adoptar, e dizem-lhe tudo o que deve fazer. Vão ficar sempre em con
tacto comigo. E a partir de agora, você também. Só comigo. Está a per
ceber? Se precisar de deixar um recado ou qualquer coisa assim, sou o Nigel, sou chefe do Secretariado, e a minha secretária chama-se Mar
eia. Não fale com mais ninguém dos Serviços. Tenho muita pena, mas
isto é uma ordem. Nem sequer com Jack acrescentou ele, querendo
com isso dizer que Mary também não devia contactá-lo a título pessoal.
O que é que há mais na caixa-destruidora? Nada. Nada de interesse. Papéis de rotina. Não se preocupe.
Aproximou-se dela e, encorajado pelo tom íntimo que Brotherhood
adoptava com Mary, pôs-lhe desajeitadamente a mão no ombro.
Uuça. Talvez isto tudo não seja tão grave como parece. Temos de to-
mar as nossas precauções, naturalmente. Temos de prever o pior e de- nder-nos. Mas Jack às vezes vê as coisas de uma maneira um bocado
^ ara. As vezes as explicações menos dramáticas estão bem mais pró-
a Cidade. Há mais pessoas com experiência para além de Jack.
148
<&■■
VI
Uma chuva negra vinda do mar envolvera a Inglaterra de Pym, que se passeava por ela
com prudência. Era o fim da tarde, e ele nunca tinha estado tanto tempo seguido a escrever a sua vida; agora ficara vazio, vulnerável e assustado. Soou uma buzina de
nevoeiro um som curto, dois longos , um farol ou um barco. Detendo-se sob um
candeeiro, Pym olhou uma vez mais, atentamente, para o relógio. Faltam ^ento e dez
minutos, passaram cinquenta e três anos. Coreto vazio, campo de bowlinginundado.
Montras das lojas ostentando ainda o celofane amarelo coberto de insecticida que servia de protecção contra o sol do Verão.
Dirigia-se para fora da cidade. Comprara uma capa de plástico ao capelista Blandy.
Ora muito boa tarde, Mr. Canterbury, em que é que lhe podemos ser úteis?
A chuva tamborilava no capuz, que ressoava à sua volta como um
telhado de folha. Debaixo das abas da capa, trazia as compras para miss ubber: o bacon de Mr. Aitken, mas não se esqueça de lhe dizer para o
"ar com a máquina no número cinco, assim talvez ele o corte mais
grosso. E diga a esse Mr. Crosse que três dos tomates que ele me vendeu
semana passada estavam podres; não estavam só tocados: realmente
«■ í>e ele não me der outros nunca mais lá volto. Pym seguira à letra struções dela, embora não com a ferocidade que ela desejaria, pois
, ° rosse como Aitken recebiam subsídios secretos enviados por ele,
°s 4ue mandavam a miss Dubber contas que correspondiam só
aind • f ^UC e^a 8astava- Na agência de viagens Farways, obtivera
Itáli ormaÇões detalhadas sobre uma excursão para pessoas idosas a dela M f ^VXlA ^e Carwick daí a seis dias. Vou telefonar para a prima
gaj.' , f°le que mora em Bognor, pensou"ele. Se me oferecer para pa-
m a viagem de Melanie, eh não vai poder recusar.
151
Cento e seis minutos. Só passaram quatro. Esqueceu miss Dubbc e a prima Melanie.
Das inumeráveis recordações vivazes que na sua ca beça exigiam vir à superfície, Pym
seleccionou Washington e o balão De todas as maneiras loucas que utilizámos para
conversar, realmente a do balão foi a melhor. Querias falar comigo, e eu não tinha
vontade de me encontrar contigo. Estava a ficar com medo e tinha-te nomeado minha não-pessoa. Mas tu não ias deixar que te reduzissem ao silêncio isso nunca. Para me
fazer a vontade, lançaste uma miniatura de um balão de gás, prateado, por sobre os
telhados de Washington D. C. Meio metro de diâmetro; às vezes, nos supermercados,
ofereciam gratuitamente balões desses a Tom. Enquanto conduzíamos cada um o nosso
carro em extremos opostos da cidade, disseste-me em alemão que era uma parvoíce da minha parte armar em Garbo contigo. Servindo-te dos nossos pequeninos aparelhos de
rádio que pulavam como percevejos de frequência para frequência, para desespero dos
ouvintes.
Pym subia o caminho da falésia, passando por vivendas iluminadas construídas nos
antigos jardins de uma grande mansão. Vou telefonar a esse tal médico de miss Dubber e ver se ele a convence que é de descanso que ela precisa. Ou então o pároco, de certeza
que ela lhe dá ouvidos. Lá em baixo, as luzes feéricas do Palácio das Diversões
reluziam como grandes bagas no meio do nevoeiro. Ao lado delas conseguia distinguir
as letras fluorescentes azuis e brancas do Cantinho dos Gelados Doces. Penny, pensou
ele. Nunca me vais tornar a ver, a não ser que a minha fotografia venha no jornal. Penny pertencia ao seu exército secreto de namoradas, tão secreto que não sabia que fazia parte
dele. Há cinco anos vendia peixe e batatas fritas no passeio público, e estava apaixonada
por um rapaz de blusão de couro chamado Bill, que lhe batia; até que Pym meteu a
matrícula de Bill no computador dos Serviços e descobriu que ele era casado e tinha
filhos em Taunton. Disfarçando a letra, mandou uma carta com todos os pormenores ao pároco da terra, e um ano depois Penny estava casada com um alegre vendedor de g£'
lados italiano chamado Eugênio. Mas esta noite não. Esta noite, quando Pym se
aproximou do café dela para receber a sua ração diária de notícias da região, Penny
estava em animada conversa com um horne"1 corpulento de chapéu mole cuja aparência
não agradou a Pym nem u1" bocadinho. Era só um viajante normalíssimo, disse para consigo pr°' prio, no momento em que uma rajada de vento lhe enfunou a capa o
plástico. Um vendedor de produtos alimentares, um cobrador de u" postos. Haverá
alguém hoje em dia que faça perseguições sozinho, p*
de Jack? E este não pode ser Jack, a diferença de idade é de uns trin- s Foi o carro, pensou ele. Aqueles guarda-lamas tão limpos, a
a. «ncia do desenho. A inclinação da cabeça dele ao escutar o que lhe
Akuma visita, miss Dubber? disse Pym, depositando os pa
cotes no aparador.
Miss Dubber estava sentada na cozinha a ver na televisão uma série americana e a tomar a sua bebida do dia. Toby estava deitado no colo
dela.
São todos tão mauzinhos, Mr. Canterbury disse ela. Não
gostávamos de ter cá nenhum deles, por uma noite que fosse, pois não, Toby? Que
marca de chá é que comprou? Eu disse Assam, seu tonto, vá-me lá devolver isso. E é Assam disse Pym carinhosamente, curvando-se para lhe
mostrar. É uma embalagem nova, com trêspence de desconto. Houve alguma visita
enquanto eu estive fora?
Só o funcionário que veio contar o gás.
O do costume, ou um novo? Novo, meu querido. Agora nunca vem o mesmo duas vezes se
guidas. Beijando-a ao de leve na face, Pym endireitou-lhe o xaile
novo nos ombros. Beba um bom vodka bem forte, meu querido
disse-lhe ela.
Mas Pym recusou, dizendo que tinha de trabalhar. Regressado ao quarto, observou os papéis na secretária. Agrafador
voltado para a asa da chávena. Livro paralelo ao lápis. Caixa-destruidora
alinhada pelo pé da mesa, ignorar. A miss Dubber não é nenhuma
Mary. Ao fazer a barba, deu por si a pensar em Rick. Vi o teu fantasma,
pensou. Não aqui, em Viena. Exactamente como costumava ver-te em carne e osso, em Denver, Seattle, São Francisco, Washington. Vi o teu
antasma em todas as montras e portas, no Outono, enquanto passea-
* para me acalmar. Trazias o casaco de lã de camelo e fumavas o teu
^aruto, franzindo a testa de todas as vezes que puxavas uma fumaça.
tavas a seguir-me, estavas, e os teus olhos azuis enevoavam-se como e um afogado, com as pupilas coladas à pálpebra superior para me assustar.
~~ Unde vais, meu filho, onde é que te levam as tuas belas pernas a
m \ °ra ^ n°Íte? J^Suma bonita mulher, hem? Alguém que te acha o
m or do mundo? Vá lá, meu filho, podes contar ao teu velhote. Dá-
■me um abraço. -
152
153
Estavas em Londres no teu leito de morte, mas eu não quis ir ver--te, não quis saber de
ti nem falar sobre ti, era o meu modo de te chorar
Não, não vou. Não, não vou dizia eu, de cada vez que o meu calcanhar batia na calçada.
Por isso vieste tu ter comigo. Vieste a Viena fazer-me o papel de Went-worth. Estavas
em todas as esquinas por onde eu passava. Até eu sentir o teu olhar carinhoso como um
calor nas costas de que nunca me ia conseguir livrar. Deixa-me em paz, raios,
murmurei. Que forma de morte é que eu desejava para ti? Todas as mortes, uma a uma. Morre, já te disse para morreres. Aí, no meio da rua, com toda a gente a ver. Pára de me
adorar. Pára de acreditar em mim. Querias dinheiro? Não, já nem isso. Tinhas
renunciado às tuas exigências de dinheiro para manteres a maior de todas as exigências.
Querias Magnus. Querias que o meu espírito vivo entrasse no teu corpo moribundo e te
devolvesse a vida que eu te devia. Estás a divertir-te, não é, meu filho? O velho Poppy está formi
dável, isso vê-se logo. O que é que estão aí a fazer, os dois juntos? Vá lá,
podes dizer ao teu velho compincha! É algum negociozito, não? Andas
a meter um dinheirito ao bolso, como o teu velhote te ensinou, não é?
Três minutos. Gosto de fazer sempre bem a barba. Pym limpou a cara e tirou de um bolso de dentro do casaco o seu fiel exemplar do Sim-plicissimus, de Grimmelhausen,
encadernado de linho castanho, já muito gasto e viajado. Colocou-o a postos na
secretária ao lado de um bloco de papel e de um lápis, atravessou o quarto e pôs-se de
joelhos diante do rádio do bom velho Winston, girando o botão da frequência, de ba-
quelite, até obter o comprimento de onda que pretendia. Baixar o som. Ligar. Esperar. Um homem e uma mulher discutem em checo a economia
de uma cooperativa de produção de fruta. A discussão é bruscamente interrompida, a
meio de uma frase. O sinal horário anuncia as notícias da noite. Atenção. Pym está
calmo. Calmo e pronto a entrar em acção.
Mas está também um pouco excitado. Há aqui uma serenidade que não é bem deste mundo, um toque de afinidade mística no seu sorriso juvenil e afável que diz «Olá» a
alguém que não pertence propriarneD' te a esta terra. De todos os que o conheceram,
além deste estranho et' traterrestre, talvez miss Dubber tenha sido a única a vê-lo com
es# expressão no rosto.
Ponto um, arenga contra os imperialistas americanos na sequênd do insucesso da última série de conversações sobre desarmamento. í>° de voltar de página, sinal para se pôr a
postos. Já percebi. Vais falai c
Estou-te muito grato. Aprecio devidamente a tua atitude. Vem ponto dois. O locutor
apresenta um professor universitário de n o Boa noite, professor, e como vão os Serviços Secretos checos? O fessor fala, uma passagem para decifrar. Todos os nervos
tensos, todo sou atenção. Primeira frase: As conversações terminaram num impas-
Ignorar. Numa nova proposta. Toma nota. Devagar. Não tenhas pressa Um pouco mais
de paciência, espera pelo primeiro numeral. Aqui está ele. Um operário soldador de
cinquenta e cinco anos, de Plzen. Desligou o rádio e, de bloco na mão, regressou à secretária, olhando fixamente em frente. Abriu o Grimmelhausen na página cinquenta e
cinco, encontrou a quinta linha sem precisar de contar sequer e copiou para uma folha
branca as primeiras dez letras dessa linha; depois converteu-as em números segundo a
sua posição no alfabeto. Subtrai sem fazer o transporte. Não raciocines, faz o que tens a
fazer. Agora está a somar de novo, também sem fazer o transporte. Está a converter números em letras. Não raciocines. NAO... OTE... PRE... OCU... Não se percebe nada.
É chinês. Experimenta agrupar as letras dez a dez, tenta uma nova leitura. Ele sorri.
Sorri como um santo depois do martírio. Vêm-lhe lágrimas aos olhos. Deixá-las. Está de
pé, segurando a folha com as duas mãos acima da cabeça. Chora. Ri. Mal consegue ler o
que acabou de escrever. NÃO TE PREOCUPES, E. WEBER CONTINUA A GOSTAR DE TI. POPPY.
Filho da mãe descarado murmurou Pym em voz alta, sacudindo mais lágrimas. Oh,
Poppy. Oh meu Deus.
Aconteceu alguma coisa, Mr. Canterbury? perguntou seve
ramente miss Dubber. Vim buscar o tal vodka, miss D. Vodka explicou ele. Vod-** com mais alguma coisa.
E já estava a preparar a bebida. '' i
Só esteve uma hora lá em cima, Mr. Cantabury. Isso não é pro-
pnamente trabalhar, pois não, Toby? Não admira que o país esteja na
Sltuaçãoemqueestá. ^sorriso de Pym alargou-se.
E que situação é essa?
ge- s fanáticos do futebol. Dão um péssimo exemplo aos estran-
• senhor nunca teria deixado que-ufna coisa assim acontecesse,
POIS não, Mr. Canterbury? -
154
155
Claro que não.
O sumo de laranja morno na garrafa, que maravilha! A água calca
ria da torneira, onde é que ainda se encontra água desta? Ficou sentad junto de miss Dubber durante uma hora, descrevendo pormenoriza
damente os encantos de Nápoles, e depois regressou à sua tarefa de sal
var o país. ■■ , , i ;
Como é que Rick alcançou a paz é uma coisa que eu nunca hei-de saber ao certo, Tom,
mas o caso é que a alcançou, de um dia para o outro, como era seu hábito, e nenhum de nós vai ter de tornar a preocupar-se, meu filho, há que chegue e sobre para todos e foi o
teu velho que o ganhou. Na febre da nova prosperidade, pai e filho escolheram a
profissão de nobres proprietários rurais. Com os cartazes que anunciavam a vitória na
Europa ainda frescos nos tapumes, um Pym recém--entrado na adolescência comprou
nos armazéns Harrods um fato preto com as tão cobiçadas calças compridas, uma gravata negra e um colarinho branco rígido, tudo para pôr na conta, e ganhou coragem
para furar as orelhas com os anzóis, de que Sefton Boyd lhe falara. Entretanto Rick, na
sua infinita maturidade, adquiriu uma mansão com vinte acres de terreno em Ascott,
com uma vedação branca a ladear o caminho de acesso, e uma série de fatos de
tweedmals vistosos que o do Almirante, e um par de setters dourados completamente loucos, e um par de sapatos de campo bicolores para os levar a passear, e um par de
caçadeiras Purdy para tirar um retrato com elas, e um bar enorme para o ajudar a passar
as suas noites rústicas com champanhe e roleta, e um busto de bronze representando T.
P. sobre um plinto no hallàt entrada, ao lado de outro busto maior que representava o
próprio Rick. Um pelotão de refugiados polacos foi contratado para fazer o serviço da casa, e havia uma nova mãe com imenso estilo que usava saltos altos nos relvados,
berrava com os criados e dava indicações a Pym sobre a higiene e a dicção das classes
superiores. Apareceu um Bendey, que não foi trocado nem escondido nas semanas que
se seguiram, embora um polaco rancoroso tenha conseguido enchê-lo de água com uma
mangueira que efl' fiou na fresta da janela, encharcando a dignidade de Rick quando este abriu a porta na manhã seguinte. Mr. Cudlove recebeu um unifor1116 cor de amora
e uma casinha dentro do terreno onde OUie cuidava d° gerânios, cantava «O Mikado» e
pintava a cozinha para acalmar os ne vos. Algum gado e um vaqueiro mal-encarado
davam à propriedade um
nta pois Rick era agora um contribuinte, e estava no momento 11 aeora ter sido o auge
da sua luta heróica pela liquidez: ^U É uma autêntica vergonha, Maxie declarou ele
orgulhosa-a um certo major Maxwell Cavendish, que fora incluído no grumo
conselheiro em matéria de corridas. Deus do Céu, se hoje dia um homem já nem sequer pode gozar o fruto do seu trabalho, então para que diabo
fizemos nós a guerra?
O major, que usava um monóculo fumado, disse:
Sim> na verdade, para quê? e franziu os lábios até parecerem
uma folha de azevinho. E Pym, concordando entusiasticamente, encheu o copo meio vazio do major.
Ainda à espera de que o mandassem para o colégio, Magnus, que estava a atravessar um
período de indefinição, teria concordado com qualquer outra coisa que tivesse sido dita.
Em Londres, a corte requisitou uma Reichskanzlei30 com pilares e tudo em Chester
Street, cujo pessoal era uma equipa de Beldades que ióin sendo substituídas à medida que se gastavam. Um boneco vestido de jóquei com as cores de Pym, a acenar-lhes com
o seu pequenino chicote, algumas fotografias dos imbatíveis de Rick e um Quadro de
Honra homenageando as companhias florescentes do novo império RickT. Pym & Filho
completavam o Muro da Fama. Os nomes dessas companhias parecem ter ficado em
mim para sempre, uma vez que durante anos e anos tive de negar em tribunal a sua existência e ainda hoje sei de cor a maior parte dos seus nomes. Na sua maioria, estes
celebram as vitórias que Rick julga ter conquistado sozinho: a Companhia Alamein de
Saúde e Doença, o Fundo de Pensões Militares e Permanentes, Sociedade Geral Mútua
de Dunquerque, Companhia Aliança dos Veteranos de T, P. todas aparentemente
ilimitadas, mas todas elas satélites do grande consórcio Rick T. Pym & Filho, cujas limitações legais
quanto depositário de pequenas poupanças só a pouco e pouco fo-sendo reveladas.
Investiguei, Tom. Perguntei a advogados compe-
ntes. Cem libras de capital declarado eram o suficiente. E tínhamos
Os "e contas, imagina! Winfield na Reparação, MacGilvray na Se-Ça, Snell na Equidade, outro qualquer na Roma: como velhos ad-
6 os respeitáveis que eram, foram sempre os primeiros a desapare-! a A momentos de
adversidade e os primeiros a regressar sorridentes L ° a *uta estava ganha. E por trás de
Chester Street ficavam os clu-M vf Slm ^os como cofres fortes nos jecantos mais
sossegados de ■ O Albany, o Burlington, o Regency e o Royalty os títulos
156
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nada eram em comparação com as glórias que nos esperavam lá de]. tro. Será que hoje
existem ainda lugares assim? Por conta dos Serviço, certamente que não, Jack. E se por
acaso existirem, será já num muj do consagrado ao prazer e sem a antiga austeridade. Não se aceitam apostas ilegais em salas de jogo ilegais. Não há mães ilegítimas com
ves. tidos baratos, capazes de jurar que iremos despedaçar um dia um sem número de
corações. Nem membros autênticos do nosso querido Craq Gang soturnamente
encostados ao bar, e que uma hora mais tarde nos fazem rir até às lágrimas nas
primeiras filas do teatro. Nem jóqueis correndo à volta da mesa de snooker, alta de mais para eles, jogando cem libras por cada taco. E Magnus, porque é que ainda não foste
para a escola? E onde é que está o raio do jigger dos cocktails? Nem um Mr. Cudlove lá
fora, no seu uniforme cor de amora, a ler Das Kapital, apoiado ao volante do Bentley, à
espera de nos levar a toda a velocidade até ao nosso próximo encontro decisivo com
algum cavalheiro ou senhora sem sorte, necessitando da visita da graça de Deus. Por trás dos clubes, ficavam os pubr. o Beadles em Maidenhead, o Sugar Island em
Bray, o Clock aqui, o Goat ali, o Bell um pouco mais para o lado, todos com os seus
gradeamentos prateados, os seus pianistas prateados e as suas senhoras também
prateadas no bar. Num deles, ura criado que Mr. Muspole tinha insultado, chamou-lhe
maldito explorador, e Pym conseguiu evitar a briga, metendo um gracejo de permeio entre os dois. Já não me lembro da piada, mas Mr. Muspole mostrara-me urna vez uma
soqueira de latão que costumava levar consigo quando ia às corridas, e sei que a
trouxera também nessa noite. E sei que o criado se chamava Billy Craft e que me levou
a sua casa onde conheci a mulher e os filhos subalimentados num apartamento
dickensiano, nos confins do Slough, e que Pym passou uma noite alegre na companhia deles, dormindo num sofá duríssimo, e tapando-se com a roupa de lã de todos o>
miúdos da família. Quinze anos depois, numa conferência sobre Re' cursos na Sede,
quem é que havia de aparecer no meio da multidão, #• não o mesmo Billy Craft,
comandante em chefe da secção de Vigilân01^ Interna? Achei melhor juntar-me a eles
do que alimentá-los, sir -^ disse-me ele com um riso envergonhado, mas apertando-me a mão co' exuberância. Repare que não estou a querer faltar ao respeito ao s pai, que era
um grande homem, naturalmente.
Afinal, não fora Pym o único a tentar emendar a atitude de & Muspole. Rick enviara-lhe
um caixote de garrafas de champanhe e^1 dúzia, de pares de meias para Mrs. Craft.
Depois dos pubs, quando as coisas corriam bem, seguia-se uma in-' matinal a Convent
Garden para uma boa dose de ovos com ba-e nos voltava a pôr em forma, antes de
arrancarmos dali a cem à , ' jjreitos aos estábulos onde os jóqueis enfiavam os seus
bonés cas-hos e as calças de montar e se transformavam nos cavaleiros do Tem-lo que
Pym sempre soubera que eles eram, cavalgando os imbatíveis as pistas geladas, rodeadas pelas vedações de madeira, até que, na sua imaginação confiante, os cavaleiros
levantavam voo, voltando a ganhar a batalha de Inglaterra.
Dormir? Só me lembro disso ter acontecido uma vez. íamos de carro, a caminho de
Torquay, para um fim-de-semana de folga no Imperial onde Rick montara um chemin
defer ilegal numa suite com vista para o mar, e devia ser uma dessas ocasiões em que Mr. Cudlove se demitira das suas funções, porque nos vimos de repente no meio de um
campo de milho, à luz da lua, que Rick, tresandando a álcool, confundira com a estrada.
Estendidos lado a lado na capota do Bentley, pai e hiho deixavam que o calor da lua
lhes chamuscasse os rostos.
Estás bem? perguntou Pym, querendo dizer: «Tens liqui dez?». Vamos para a prisão?
Rick apertou com força a mão de Pym:
Meu filho. Contigo ao meu lado e Deus sentado lá em cima no
meio das Suas estrelas e o Bentley por baixo de nós, não há quem se
sinta melhor do que eu em todo o mundo. E era verdade. Ele acreditava plenamente no que estava a dizer, e o <ua mais belo da
sua vida seria aquele em que Pym se encontrasse no ld Bailey, do lado certo da sala do
tribunal, com todas as insígnias e juiz do Supremo, proferindo sentenças como as que
outrora Rick ouvira proferir, num tempo que preferia não lembrar. Pai disse Pym, e não
continuou. U que é, filho? Podes contar tudo ao teu velhote. £ só que... bom, se não poderes pagar adiantado as propinas do eiró período do colégio, não faz mal nenhum.
Quer dizer, posso ir
ra escola. O que me parece é que devia ir para algum lado. ~~ E só isso que tens para
me dizer? _^ Não faz mal nenhum .Sério.
Iodaste a ler a minha correspondência, não andaste? ^ Não, claro que não. guma vez te faltou alguma coisa^Em toda a tua vida?
, nunca.
158
159
KF.
Então não te preocupes disse Rick, e quase partiu o pesa* de Pym com um abraço
apertado.
Mas então, de onde é que veio o dinheiro, Syd? continuo eu a insistir. E porque é que acabou? Ainda hoje com a minha ho.
nestidade incurável, tento encontrar a verdadeira explicação desses anos
de desgraça, o verdadeiro grande crime que, segundo Balzac, está por
trás de cada fortuna. Mas Syd não foi nunca um cronista objectivo. Tol
dam-se-lhe os olhos brilhantes, um sorriso distante ilumina-lhe o ros to de pássaro, enquanto toma um gole mais da sua bebida. Lá no fun
do, ele continua a ver Rick como um grande rio sinuoso, do qual cada
um de nós só consegue ver o troço que o destino nos consente.
O maior de todos era Dobbsie recorda ele. Não digo que
os outros não contassem, Titch, porque contavam. Havia excelentes projectos, alguns bastante fantasistas. Mas o velho Dobbsie era o maior.
Para Syd, tem sempre de haver um maior. Como os jogadores e os actores, foi à volta
disso que ele sempre viveu e ainda vive. Mas a história de Dobbsie, tal como me contou
nessa noite, no meio de sabe Deus quantas bebidas, é tão boa como outra qualquer,
apesar de os seus pontos mais obscuros terem ficado por esclarecer. Durante algum tempo, Titch diz Syd, e Meg dá-nos mais um
pedaço de empadão, espevitando o lume , à medida que as marés da
guerra, Titch, com a ajuda de Deus, naturalmente, iam favorecendo
cada vez mais os aliados, o teu pai esforçou-se muito por achar uma
nova abertura, mais adequada aos talentos espantosos dele, que todos nós bem conhecíamos. Em 1945, já não se podia esperar que a falta de
géneros durasse eternamente. A verdade, Titch, é que a falta de géneros
se tornara um negócio arriscado. Com as incertezas da paz à vista, o nos
so chocolate, as nossas meias de nylon, os nossos frutos secos e a nos*
gasolina poderiam inundar o mercado de um dia para o outro. O qu conta agora, Titch diz Syd imitando o ritmo de Rick, como niu11
música de que me não consigo libertar , é a Reconstrução. E o teu p
com aquela cabeça que é a dele, como todos os bons patriotas quer
a sua parte, e com toda a razão. O problema é, como sempre, arranj capital, pois nem
mesmo Rick conseguiria monopolizar o mercado propriedades britânico sem ter umpenny sequer. E, por puro acaso diz Syd , o capital inicial obtém-no inesperadamente
de Flora, if de Mr. Muspole. Lembras-te, com certeza, de Flora! Claro que te le
p. g- gXÊ) Os jóqueis adoram-na por causa dos seus seios opu-do uso generoso que ela
lhes dá. Mas, no fundo, Flora é re- A Svd fiel a um rá amo, chamado Dobbs, que trabalha para o
COf o Uma noite em Ascott, enquanto tomávamos um copo, e oai não estava porque
tinha ido a uma reunião, Flora deixa esca-fortuitamente que o seu Dobbsie é por
vocação um arquitecto e que conseguiu um emprego importante. E que emprego é esse,
minha uerida? Perguntamos delicadamente. Flora gagueja. As palavras mais compridas não são o seu forte: avaliar indemnizações, responde ela, citando uma expressão que
não compreende bem. Indemnizações de quê, minha querida? Pergunta a corte,
apurando o ouvido, porque as indemnizações são coisa que nunca fez mal a ninguém.
Indemnizações por danos sofridos durante os bombardeamentos, diz Flora, relanceando
à sua volta cada vez mais hesitante. Foi muito simples, Titch diz Syd. Dobbsie salta para a bi
cicleta, corre direito a uma casa bombardeada, leva a notícia a White-
hJl.
Daqui, Dobbs diz ele , preciso de vinte mil libras até quin-
ta-feira e nada de conversa. E o governo paga alegremente a quantia. Porquê? Syd espeta
o indicador no meu joelho: era o gesto que Rick endereçava habitual
mente à vida. Porque Dobbsie é imparcial, Titch, nunca te esqueças
disso.
Também me lembro vagamente de Dobbsie; era um homenzinho vencido e aldrabão, pendurado entre dois copos de champagne. Lem-ro-me de me mandarem ser simpático
para com ele e quando é que Pym alguma vez deixou de ser simpático?
Meu filho, se aqui o Mr. Dobbs te pedir alguma coisa, se quiser, P°r exemplo, aquele
belo quadro que ali está na parede, tu dás-lho no m«mo instante. Percebeste?
Tm passou, a partir de então, a ver com outros olhos o quadro que ntava alguns barcos num mar avermelhado, mas Dobbsie nun-« P«liu que lho dessem.
nae A° ° ° esPantoso segredo de Flora, continua Syd, as engre-cjj S, ° neg°cio começam
a funcionar a toda a velocidade. Rick é sie c • a reur»ião a que fora, combina-se um
encontro com Dobb-se uma companhia. Ambos são liberais, mações, filhos de ^ '
omens, são ambos adeptos do Arsenal, admiram Joe Louis, oel Coward é um maricas"e compartilham a mesma visão
JÈJ
160
161
1
de homens e mulheres de todas as raças em marcha e de braço dado ao Paraíso,
realmente tão grande que chega para todos nós, seja n for a nossa cor ou credo trata-se de um dos discursos modelo de Ru e que o faz sempre ficar em pranto. Dobbs passa a
ser membro honc rário da corte e dias depois, introduz nesta um seu muito querido cot
ga chamado Fox, que também gosta de beneficiar a espécie humana cujo trabalho
consiste em escolher terrenos de construção para a Um. pia do pós-guerra. Assim, as
ondas da conspiração crescem, se encon. tram e alastram. Perce Loft é o próximo a receber a bênção. Quando estava a ocupar--se de um negócio
qualquer nas Midlands, Perce ouviu falar de uma associação de socorros mútuos
moribunda por baixo da qual se encontra uma fortuna, e resolve investigar a questão.
Descobre que o presidem; da associação, que dá pelo nome de Higgs o destino decretara
que todos os conspiradores teriam nomes monossilábicos é um baptista empedernido. Rick também; e sem isso, nunca teria chegado onde die-gou. A origem da fortuna é um
legado administrado por um advogado de província chamado Crabbe, que partira para a
guerra logo que lhe fora possível fazê-lo, deixando o legado administrar-se por si
próprio, como melhor lhe parecesse. Na sua qualidade de baptista, Higgs náo pode
esbanjar fundos sem a cobertura de Crabbe. Rick consegue que Crabbe seja dispensado do regimento, despacha-o no Bentley para Chester Street, onde ele examina o Muro da
Fama, os livros de Direito e as Beldades, e daí expede-o para o nosso querido Albany,
onde Crabbe pode conversar a seu gosto e descontrair-se. Afinal, Crabbe é um
homenzinho intratável e idiota que se empertiga para tomar urna bebida, sacode o
bigode para exibir a sua competência e exige, ao fim «c alguns copos, saber, senhores, o que é que vocês, civis de um raio, a"' davam a fazer enquanto eu andava no jogo que
vocês sabem, arriscando a cabeça entre tiros e granadas? No Goat, algumas bebidas
mais tarde, porém, declara que Rick é a espécie de tipo que gostaria de ter tw como
comandante e pelo qual daria a vida se fosse caso para tant°> que esteve para se
verificar várias vezes, mas o melhor é não falar nis*1' Chega mesmo a chamar «coronel» a Rick, abrindo assim um lílteí dio bizarro na ascensão do grande homem,
porque Rick fica tão se° zido pela patente que decide seriamente adoptá-la para si, do
m^s modo que mais tarde se convencerá de que recebeu secretamente" tulo de cavaleiro
das mãos do duque de Edimburgo e terá uma so1' cartões de visita especiais para os que
se encontram a par desse segr
Mas nenhuma destas responsabilidades acumuladas interrompe m minuto a valsa
vertiginosa de Rick. Durante toda a noite, todo fim-de-semana, a casa de Ascott recebe
um cortejo de Grandes, Be-I e Ingénuos, pois Rick tornou-se um coleccionador de
celebridades, ara além de bobos e cavalos. Jogadores de críquete, jóqueis, futebolis-conselheiros famosos, parlamentares corruptos, brilhantes subsecretários dos ministérios
úteis de Whitehall, armadores de navios gregos, cabeleireiros cockney, marajás
desconhecidos, magistrados alcoólicos, presidentes da câmara venais, príncipes
reinantes de países que deixaram de existir, prelados com sapatos de camurça e cruzes
peitorais, artistas radiofónicos, cantoras, acompanhantes de aristocratas, milionários de guerra e estrelas de cinema todos passam pelo nosso palco, beneficiários embriagados
da grande visão de Rick. Directores de banco lúbricos e presidentes de companhias
imobiliárias que nunca na vida dançaram tiram os casacos, confessam que as suas
existências são estéreis e adoram Rick, senhor do seu sol e da sua chuva. As suas mu-
iberes recebem meias de nylon, perfumes, senhas de gasolina, abortos discretos, casacos de peles impossíveis de obter e, se a fortuna as bafejar, o próprio Rick porque todos têm
de receber alguma coisa, todos têm de ser ouvidos, todos têm de achar Rick o melhor do
mundo. Se têm economias, Rick duplica-as; se gostam de apostar, Rick oferece-lhes
condições melhores do que as dos agentes: «Passe-me o dinheiro que eu trato disso». Os
filhos são mandados para junto de Pym para se divertirem, são dispensados do Serviço Nacional pela intervenção do l-aro Fulano, recebem relógios de ouro, bilhetes para as
finais da Taça, cachorros setter e quando estão doentes, os melhores médicos para os
tratarem. Houve uma altura em que estas liberalidades desagradavam ao jovem Pym e
lhe causavam um sentimento de inveja. Hoje já não é 0 o que se passa. Penso agora que
tudo aquilo não era mais do que a rorma normal de assistência. E entre toda aquela gente, sorratei-s ^mo gatos, passeiam-se os membros discretos da corte alargada, os
omens de Mr. Muspole, com fatos de ombros largos, chapéus casta-parecidos com
empadões de porco, intitulando-se consultores e j*gajido no auscultador do telefone,
simulando que o estavam deveras zar- v.uem eram, como apareceram por ali e para
onde foram? Até ter)e>SÓ ° dlabo e ° fantasma de Rick o poderão saber, e Syd recusa-se acah ,antemente a f^ar deles, embora com o passar do tempo eu tenha tivid A ^°r
conseguir ter uma ideia aproximada a respeito das suas ac-es- Eram os algozes da
tragicòmédia de Rick, umas vezes de joe-
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lho em terra, escondidos atrás de sorrisos hipócritas, outras vezes H' pondo-se como
sentinelas shakespearianas no palco de Rick, com olhos brancos na escuridão, à espera
da altura de o matarem.
E passeando pé ante pé no meio deste grande jardim zoológico -^ como que esgueirando-se por entre as pernas dos outros, embora fos» já da altura de mais de
metade deles vejo de relance, uma vez mais o nosso Pym, moço de recados solícito,
pajem surpreendido, juiz indj. gitado para o Supremo Tribunal, aparando os charutos
antes de estes serem fumados e enchendo os copos. Pym, o orgulho do seu Velho, o
embrião de diplomata, precipitando-se sempre que o chamam: Ouve lá, Magnus, o que é que te fizeram nesse teu novo colégio?
Despejaram-te em cima algum fertilizante?
Ouve lá, Magnus, quem é que te cortou o cabelo?
Ouve lá, Magnus, conta-nos aquela do motorista de táxi que
engravidou a mulher. E Pym, o mais cativante dos narradores de histórias, atendendo à sua idade e peso, em
toda a Ascott e arredores, faz o que lhe pedem, sorri e evita aquelas massas anómalas e
em colisão recíproca, e para se descontrair, assiste a aulas de política radical a altas
horas da noite, em casa de Ollie e Mr. Cudlove, sessões onde comem canapés roubados
e bebem cacau, chegando sempre convictamente à conclusão de que todos os homens são irmãos, mas nada contra o teu pai. E embora as doutrinas políticas sejam hoje para
mim tão extremamente sem sentido como o eram então para Pym, recordo ainda o
humanismo singelo das discussões em que nos propúnhamos reparar as injustiças do
mundo e a bondade genuína com que, à hora em que nos íamos deitar, desejávamos paz
uns aos outros, inspirados por José Estaline, que na verdade, Titch, e isto em nada é contra o teu pai, ganhou a guerra em benefício destes filhos da mãe dos capitalistas.
As férias da corte voltam a constar do curriculum, porque ninguém pode fazer o seu
melhor sem se distrair. St. Moritz está fora de causa, na sequência da tentativa
infrutífera de Rick de comprar o hotel em vez de pagar as contas atrasadas que lhe
devia, mas em compensação (tal era agora um dos termos favoritos), Rick e os seus conselheiros aderiram a" sul da França, descendo até Montecarlo no Trai» Bleu, e
passando a viagem a banquetear-se num vagão-restaurante cheio de latão e veludos»
interrompendo-se apenas para darem uma gorjeta ao maquinista Frog gie, um liberal de
primeira, precipitando-se depois para o Casino c° os seus fundos ilegais a postos. Aí, de
pé atrás da cadeira de Rick» n 164
. ^ pym via por vezes desaparecer em poucos segundos as men-P* , ies je um ano inteiro
de colégio, sem que ninguém aprendesse ç o que fosse com a despesa. Quando preferia
o bar, Pym podia tro-., l3S com um tal major de Wildman, de só Deus sabe que exérci-nue se intitula camareiro do rei Faruk e proclama ter uma linha te-I Fnica directa para o
Cairo a fim de comunicar ao rei os números ncedores da roleta e dele receber ordens,
inspiradas por adivinhos, destinadas à dissipação das riquezas do Egipto. Para
preenchimento das nossas madrugadas mediterrânicas, temos a caminhada sombria até à
casa de penhores que se encontrava aberta toda a noite, nas docas, e onde o relógio de ouro, a cigarreira de ouro, a colher de ouro dos refrescos e os botões de punho de ouro
com as cores do clube de Pym são sacrificados à esquiva deusa Liquidez. Para as nossas
tardes de meditação, há o tir auxpigeons, durante o qual a corte, bem almoçada, se deita
de barriga para baixo diante dos alvos e acerta nos pobres pombos que saem das suas
gaiolas e se lançam no céu azul, para em seguida mergu-inarem, redemoinhando, no mar. E depois, é de novo Londres, com as contas por pagar, mas assinadas, tendo sido
feita já justiça aos porteiros e chefes de mesa, ou seja: tendo estes recebido gorjetas
principescas com o dinheiro que nos restava, enquanto em Londres recomeçam as
exigências crescentes do império Pym e filho.
Porque o mundo não pode parar, e quanto mais se tem mais se quer, como o próprio Syd reconhece. Não há rendimento suficientemente imponente para conter as despesas
possíveis; não há despesa tão grande que torne impossível pedir novos empréstimos
para evitar que 0 dique ceda. Uma vez que o boom da construção está temporariamente
fora de causa após a aprovação de um diploma desfavorável, o ma)or Maxwell
Cavendish tem um plano que cala fundo na alma des-P°ttiva de Rick: consiste em comprar todos os que têm cavalos no Irish eep e assim obter automaticamente o
primeiro, o segundo e o ter-• Prérnios. Mr. Muspole conhece o proprietário de um jornal
ao . ono que se meteu com gente duvidosa e precisa de se desfazer ra-ente de sarilhos;
Rick sempre se imaginou como um educador sas Umana. Perce Loft, o grande
advogado, quer comprar mil ca- ulham; Rick conhece uma companhia imobiliária, cujo pre-T C Um homem de Fé-Mr- Cudlove e Ollie são íntimos de um jo- Stureiro corn
uma aberta no projecto British Festival; não há nOss ̂ e ^ck mais goste de fazer
do^quedar uma oportunidade aos pazes de Inglaterra, e, Déús meu, se há alguém que
mereça
165
uma oportunidade são bem eles. O sobrinho de Morrie Washingt0. desenhou um carro
anfíbio; há a hipótese de lançar um concurso J apostas a nível nacional para o críquete
como complemento das apoj. tas de Inverno no futebol; Perce tem ainda o plano de
contratar utn, aldeia irlandesa para obter cabelo humano para o mercado de pi em plena expansão, graças à generosidade do recém-formado S Nacional de Saúde.
Descascadores de laranjas automáticos, ca que escrevem de baixo de água, bombas
usadas de guerras tem riamente interrompidas: todos estes projectos despertam o inten
grande pensador, atraem os seus peritos e os seus alquimistas, aci centam uma nova
linha ao quadro de honra de Pym e filho na casa' Chester Street. O que é que correu mal, então? pergunto de novo a Syd, an
tecipando o inevitável fim da história. Que reviravolta do destino
interrompeu dessa vez o avanço do grande homem? A minha per
gunta provoca uma irritação pouco habitual. Syd poisa o copo.
Foi com o Dobbsie que as coisas correram mal, foi esse o pro blema. Flora já não lhe bastava. Tinha de as ter todas. Aquelas mulhe
res todas deram-lhe volta à cabeça, não foi, Meg?
Dobbsie tratou bem de mais da sua pessoa diz Meg, que foi
sempre uma observadora severa das fraquezas humanas.
Veio a saber-se que o pobre Dobbs começou a sentir-se tão seguro de si que atribuiu cem mil libras de indemnização por uma casa que só fora construída passado um ano
após o fim dos bombardeamentos.
Dobbsie estragou o negócio a toda a gente diz Syd, vibrando
de indignação moral. Dobbsie era um egoísta, Titch. Era isso racs
mo que ele era. Um egocêntrico. Há uma nota de rodapé posterior que se refere a este ponto alto, breve mas glorioso, do
percurso de Rick. Sabe-se que em Outubro de 1947, ele vendeu a própria cabeça.
Tropecei nessa informação quando me encontrava nos degraus do crematório, tentando
adivinhar dissi-muladamente quem seriam certos membros menos familiares do cortejo
fúnebre. Um rapaz esbaforido, que afirmou representar um hospi" tal universitário, brandiu uma folha de papel na minha direcção e exigiu a interrupção da cerimónia.
«Mediante a soma de cinquenta libras e"1 dinheiro, eu, Richard T. Pym, de Chester
Street W., autorizo que, ap»5 a minha morte, a minha cabeça seja utilizada a bem dos
progressos d* ciência médica.» Chuviscava. Abrigado no pórtico, passei ao rapaz u"1
cheque de cem libras e disse-lhe que fosse comprar uma cabeça a tf 166
A qualquer. Se o tipo fosse um vigarista, pensei eu, seria Rick o primeiro a admirar a
sua ideia.
£ sempre algures no meio deste clamor, o nome de Wentworth sedava baixinho ao ouvido secreto de Pym, como um nome de códi-o de uma operação, do qual só os
iniciados estavam a par: Wentworth. E Pym, o outsider, o fora da lista, luta por ser
admitido, luta por saber. Como um segredo que passa entre os dedos dos oficiais
superiores no bar do quartel-general, e Pym, o novato, apanha a conversa no ar, sem
saber se há-de fingir que sabe, se há-de fingir-se surdo: «Apanhámos Wentworth». «Top secret e Wentworth.» «Arranjaste-te com Wentworth?» Até que esse nome passou
a ser para Pym um símbolo irritante da sabedoria que lhe era negada, um desafio aos
seus próprios desígnios. «O tipo está a preparar-nos uma à Wentworth» ouve ele, Perce
Loft certa noite, resmungar muito baixo. «Esta mulher do Wentworth é uma fera» diz
Syd noutra ocasião. «Ainda é pior que o estúpido do marido.» Todas estas menções encorajavam Pym a prosseguir as suas pesquisas. Mas nem os bolsos de Rick, nem as
gavetas da secretária, nem a mesinha de cabeceira, nem a agenda de endereços de pele
de porco, nem a agenda de telefones com o seu truque especial, nem mesmo a pasta que
Pym inspeccionava semanalmente com a chave que tirava da corrente de Rick, nada
disso lhe forneceu um só indício. Nem o insondável ficheiro verde que, como um ícone de viagem, tinha vindo a constituir o centro da religião errante de Rick. Nenhuma chave
conhecida o abria e também não havia truque que o fizesse ceder.
Finalmente chegou o colégio. O cheque foi enviado, o cheque tinha ertura- O comboio
andava aos solavancos. À janela, Mr. Cudlove e ^ mães dos outros escondiam os rostos no lenço e depois desaparece-^n- No compartimento de Pym, havia crianças maiores do
que ele que oramingavam e roíam as mangas dos casacos cinzentos novos. Mas Tm
abrangeu num mesmo olhar a sua vida já percorrida e o caminho Cl1 do dever,
serpenteando à sua frente por entre as neblinas do utono, e pensou: «Aqui vou eu, o
melhor recruta de todos os tem-s- «a mesmo de mim que vocês estavam a precisar e cá me têm ago-comboio chegou, o colégio era uma masmorra medieval, onde Va um
eterno crepúsculo, mas S. Pym da Renúncia preparou-se
167
acto contínuo para ajudar os seus colegas a carregarem as malas e <v xotes pelas
escadarias de pedra acima, a lutarem com botões de colan nho insólitos, a encontrarem as respectivas camas, os cacifos e os cardes, e para atribuir a si próprio a pior parte. E
quando chegou a sua v& de ser chamado à presença do chefe de divisão para as
apresentações não escondeu a sua alegria. Mr. Willow era um homem alto e simples
com um fato de tweede. uma gravata de críquete, e a simplicidade cristã do seu quarto, a
seguir a Ascott, foi imediatamente para Pym um pe-nhor de integridade. Bem, vamos lá ver o que é que vem aqui dentro disse Mr. Wil
low cordialmente, agitando o embrulho perto de uma orelha enorme.
É perfume, sir.
Mr. Willow percebeu mal31.
Mandaram-no? Julguei que o trazia consigo disse Mr. Wil low ainda sorridente.
É para Mrs. Willow, sir. De Montecarlo. Segundo me disseram,
é do melhor que os franceses fabricam acrescentou Pym, citando o
major Maxwell Cavendish, um gentleman.
Mr. Willow tinha uns ombros larguíssimos e de súbito isso tornou--se o seu único aspecto visível para Pym. Mr. Willow baixou-se, ouviu-se um ruído de abrir e fechar e o
embrulho desapareceu no interior da sua enorme secretária. Se tivesse recebido de Pym
um arpão com nove pés de comprimento, o seu desprezo pela prenda não teria sido
maior.
Tem cuidado com Tit Willow avisou Sefton Boyd. Bate nos alunos às sextas-feiras, para os deixar recuperar durante o fim-de-se-mana.
Mesmo assim, Pym lutou, esforçou-se, derramou o seu sangue, ofereceu-se como
voluntário para tudo e obedeceu a todas as sinetas que o chamavam. Viveu assim
durante períodos inteiros; viveu assim várias existências. Corria antes do pequeno-
almoço, rezava antes de ir correr, tomava duche antes de rezar, defecava antes de tomar duche. Rojava-se na lama da Flandres do campo de rugby, arrastava-se nas lajes
húmidas ruminando as lições, submeteu-se a exercícios tão duros na mira de ser um
valente soldado que partiu a clavícula com a coronha da sua enormí espingarda Enfield
e apanhou um murro que o ia atirando para o outr° mundo no ringue de boxe. E apesar
de tudo, conseguiu ainda sorrir num esgar e fazer a sua saudação de vencido a caminho do vestiário. E teria* gostado imenso de o ver, Jack; dirias que as crianças e os cavalos
preC' sam de ser domados e que foi o colégio que fez de mim o que sou.
168
' penso a mesma coisa, de maneira nenhuma. Acho que o raio i bd migo Mas Pym não Pym achava
olégio quase ia acabando comigo. Mas Pym, não Pym achava A bsolutamente
maravilhoso e pedia bis. E quando o exigiam as leis tU das de uma justiça arbitrária (e
retrospectivamente parece ter sido o caso todas as noites de todas as semanas), enfiava a
cabeça num I atório sujíssimo, agarrava as mãos trémulas às torneiras e expiava série de crimes que desconhecia ter cometido até que estes lhe eram comunicados
escrupulosamente entre os golpes que lhe vibravam Mr. Willow ou os seus
representantes. No entanto, quando por fim se deitava na obscuridade indecisa do
dormitório, ouvindo os gemidos e a tosse de canil do desejo adolescente, conseguia
ainda convencer-se de que era um príncipe em formação e de que, como Jesus, estava a sofrer pela divindade do Pai. E a sua fidelidade e a sua simpatia pelos homens seus
irmãos continuavam a florescer sem quebra.
Numa mesma tarde, conseguia estar sentado na companhia de Noakes, guarda do campo
de jogos, a comer em casa dele bolachas e bolo», junto da fábrica da cidra, fazendo
encherem-se de lágrimas os olhos do velho atleta com as suas histórias inventadas acerca de feitos de grandes desportistas que conhecera nas festas de Ascott. Era tudo
absurdo, mas tudo perfeitamente verdade no seu íntimo, à medida que a roda da magia
ia girando.
Esse não! exclamava Noakes incrédulo. O grande Don
Bradman em pessoa a dançar em cima da mesa da cozinha? Em tua casa, Pymmie? Continua lá com a história!
Sim. E aproveitou para cantar When Iwasa ChildofFive dis
se Pym.
Depois deixando Noakes ainda cheio destas imagens, lá ia Pym, su-
ndo a colina, ter com a figura murcha de Mr. Glover, o professor auxiliar de Desenho, que usava sandálias, para o ajudar a lavar as pale-
e limpar as manchas de tinta que coloriam os órgãos genitais do que-
uoim de mármore do átrio principal. Mas Mr. Glover era o perfeito
posto de Noakes. Se não fosse Pym, os dois homens seriam inconci-
Veis- Mr. Glover achava que o desporto nas escolas era uma tirania r r ao que a de Hitler, e o que eu gostava era que atirassem o raio das
** de futebol ao rio, palavra, e que os campos de jogos fossem la-
a os e vos dessem um bocado mais de Arte e Beleza para variar. Pym
Java a mesma coisa, e prometia que o pai faria uma doação para a
a de arte ser ampliada para o dobro das-súas dimensões, vão ser mi- s Provavelmente, mas peço-lhe que guarde para si o segredo.
169
X-
Se eu fosse a ti, parava de falar do teu pai disse Sefton IW)
Aqui ninguém gosta de tipos que têm negócios no mercado negro
E também não gostam de mães divorciadas disse Pym, r*»
uma vez respondendo à letra. De um modo geral, a sua estratégia era apaziguar e reconciliar, ficando com todos os cordelinhos na mão.
Uma outra conquista de Pym foi Bellog, professor de alemão, qm parecia fisicamente
atingido pelos pecados do seu país de adopção. Pyn, encheu-o de trabalho
extraordinário, comprou-lhe uma caneca de cerveja alemã de preço elevado, à conta de
Rick, na loja de Thomas Goo-de, levou-lhe o cão a passear e convidou-o para ir a Montecarlo com todas as despesas pagas, o que ele felizmente recusou. Hoje
envergonhar-me-ia de um engate táo pouco sofisticado e afligir-me-ia a ideia de poder
enjoar Bellog e o virar contra mim. Mas Pym não. Pym amava Bellog como amava
todos. E precisava daquela alma alemã, perseguia-a com afinco desde os tempos de
Lippsie. Precisava de se lhe abandonar, de se precipitar entre as mãos perplexas de Mr. Bellog, embora para ele a Alemanha nada significasse a não ser a fuga para uma reserva
impopular na qual os seus talentos seriam enfim apreciados. Precisava do envolvimento,
do mistério, da intimidade do outro lado da vida. Precisava de conseguir deixar para trás
a sua natureza de inglês, por muito que a amasse, e de conquistar um nome novo num
lugar virgem. Chegou ao ponto de simular por vezes um ligeiro sotaque alemão, o que levava Sefton Boyd a paroxismos de fúria.
E quanto a mulheres? Jack, não havia ninguém mais alerta do que Pym para as virtudes
potenciais de um agente feminino bem manipulado, mas naquele colégio era o diabo
para as encontrar, e manipular fosse quem fosse, incluindo nós próprios, era um delito
corporalmen-te punível. Mrs. Willow, embora Pym estivesse disposto a amá-la a qualquer momento, parecia encontrar-se permanentemente grávida e os olhares
langorosos que Pym lhe lançava não passavam de puro desperdício. A enfermeira do
colégio era bastante atraente, mas quando Pym a chamou a altas horas da noite, fingindo
uma dor de cabeça, na vaga esperança de lhe propor casamento, ela limitou-se
secamente a mandá-lo voltar para a cama. Só a pequenina miss Hodges que dava U' ções de violino representou uma esperança ainda que efémera: Pym ote' receu-lhe um
estojo de pele de porco para o violino dos armazéns Haf' rods e disse-lhe que pretendia
vir a ser violinista profissional, mas e» pôs-se a chorar e aconselhou-o a escolher outro
instrumento.
A minha irmã quer dormir contigo disse Sefton Boyd un» 170
. em qUe ambos estavam na casa de Pym, abraçando-se desalenta-
, ente Leu o teu poema no jornal do colégio. Acha que tu és um
Keats. Pym não ficou lá muito surpreendido. O poema era realmente uma
bra-prima e Jemima Sefton Boyd mostrara-lhe várias vezes um ar zangado através das
janelas do Land Rover familiar, quando este vinha buscar o irmão aos fins-de-semana.
Ela está em ânsias por ti explicou Sefton Boyd. Vai com
todos: é uma ninfomaníaca. Pym escreveu-lhe imediatamente uma carta de poeta.
0 teu cabelo macio tem uma história pendurada. Alguma vez sentiste que a beleza é uma
espécie de pecado? Um casal de cisnes fez o ninho no fosso da Abadia. Vejo-os muitas
vezes, enquanto sonho com o teu cabelo. Amo-te.
A rapariga respondeu na volta do correio, não sem que antes Pym tivesse sofrido a tortura do arrependimento ao pensar na própria ousadia.
Obrigada pela tua carta. Tenho uma saída prolongada do colégio, que começa no dia 25,
coincidindo com um dos vossos fins-de-semana de saída. Deve ser um sinal do destino.
A mamã vai-te convidar para domingo à noite e obter de Mr. Willow autorização para
ficares a dormir cá em casa. Estás apensar em raptar-me? Veio depois uma segunda carta, mais precisa:
A escada dos criados é bastante segura. Eu acendo uma luz e tenho vi-
oatua espera para o caso de teres sede. Traz o que andas agora a escrever
•porfavor, começa por me acariciar. Pendurada à minha porta vai estar
roseta vermelha que ganhei nas últimas férias num concurso hípico com "Smokey.
Tm ficou apavorado. Como é que ia conseguir estar à altura de a mulner com tanta
experiência? No que dizia respeito a seios, sabia e gostava muito. Mas Jemima parecia
não os ter. O resto da sua _ °a era uma massa emaranhada de perigos e doenças, e as
recorda-e Lippsie no banho pareciam agora menos nítidas a Pym. 171
, rv
liL
Chegou, entretanto, um cartão:
Seria para todos nós um grande prazer que passasse connosco ent ff^ well ofim-de-
semana de 25. Escrevi também uma carta a Mr. Willow. Ns* se p reocupe com a roupa,
porque nós no Verão não nos vestimos especial mente para o jantar. Elizabeth Sefton
Na colina acima da casa de Mr. Willow, havia uma escola de raparigas, povoada de
vestais vestidas de castanho. Os rapazes que entias-sem no terreno dessa escola eram
chicoteados e expulsos. Mas Elphick, da Casa Nelson do colégio, afirmava que quem
ficasse por baixo da ponte para peões quando as raparigas a atravessavam dirigindo-se ao campo de hóquei poderia aprender muita coisa. Infelizmente, quando Pym seguiu o
conselho, a única coisa que viu foi uma série de joelhos gelados, bastante parecidos com
os seus próprios, e o pior foi que teve ainda de suportar as piadas grosseiras da
professora de ginástica, que se debruçara da ponte e o convidara a particip ar no jogo
delas. Enjoado, Pym regressou aos seus poetas alemães. A biblioteca da cidade era dirigida por um velho fabiano, também ele um agente de
Pym. Pym faltou ao almoço e procurou furtivamente o caminho para a secção reservada
em exclusivo aos adultos. 0 Guk do Casamento parecia ser um manual acerca de
hipotecas. 0 Livro ái Arte da Almofada Chinesa começava bem, mas perdia-se numa
descrição de jogos de setas e de tigres brancos aos saltos. Eros e a Mulher Ro-coco, por outro lado, era já, com as suas ricas ilustrações, uma outra história, e Pym chegou a
Hadwell à espera de ver no parque as Graças nuas, folgando com os seus galantes.
Durante o jantar, que para seu alívio todos tomaram vestidos, Jemima ignorou-o,
escondendo a cara no cabelo e lendo Jane Austen. Uma rapariga feia chamada Belinda,
apresentada como a melhor amiga de Jemima decidiu também não falar numa manifestação de simpatia para com a amiga.
É assim que Jem fica quando a enganam explicou Sefton Boyd, de modo audível por
Belinda, e esta ouviu realmente o que £'e estava a dizer, tentando esmurrá-lo e saindo
depois intempestivame11' te num ataque de fúria.
Quando o mandaram para a cama, Pym subiu sorrateiramente grande escadaria, enquanto uma dúzia de relógios de parede batiam * horas ao mesmo tempo, como se
dobrassem afinados por ele. Quanta»
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'o o avisara Rick contra as mulheres que não queriam mais nada V além do dinheiro dele? Como Pym sentia saudades da sua cama P urança no colégio! Atravessando o
patamar, viu uma roseta a bri-e como sangue na penumbra. Subiu mais um lanço e viu a
cara de R linda que lhe franzia o sobrolho através da porta entreaberta.
podes entrar, se quiseres disse ela malcriadamente.
Não, obrigado respondeu Pym, e entrou para o seu próprio quarto.
Em cima da almofada, estavam as suas oito cartas de amor e quatro
poemas para Jemima atados com uma fita e cheirando a graxa de selim de montar.
Por favor, leva outra vez as tuas cartas, que acho sufocantes; lamento muito, mas
deixámos de ser compatíveis. Não sei o que é que te passou pela cabeça para alisares o cabelo como um moço de fretes, só que a partir de hoje passamos a não ter nada a ver
um com o outro.
Ferido de humilhação e desespero, Pym apressou-se a regressar ao colégio, e logo na
noite da chegada, escreveu a todas as mães no activo ou reformadas cujos nomes e
moradas conseguira obter. Querida Topsie, Cherry, querida Mrs. Ogilvie, Mabel, querida Violet, estou a ser
impiedosamente maltratado por escrever poesia e sinto-me muitíssimo infeliz. Por
favor, tirem-me deste lugar horrível.
Mas quando as mães responderam ao seu apelo, a prontidão do amor delas revoltou-o e
Pym deitou fora as respostas quase sem as ter ido. E quando uma das mães, a melhor de todas, deixou tudo e fez uma spendiosa viagem de cem milhas para o levar a jantar uma
espetada ■justa no Feathers, Pym respondeu às suas perguntas com uma delicada
distante.
Sim, obrigado, o colégio é óptimo, está tudo perfeitamente bem,
como estás? E depois acompanhou-a à estação uma hora antes ■, P^da do comboio, uma vez que tinha um jogo importante no co-
legl0.
ta
querida Belinda escreveu Pym, com a sua letra cursiva de poe-r~' muito obrigado pela
tua carta em qu&me explicavas que Jem étão Uvel- Bem sei que as raparigas são extraordinariamente sensíveis nessa
173
idade e sofrem toda a espécie de transformações; portanto, está tudo bem A nossa
equipa ganhou o campeonato de juniores, o que está a dar quefaL por aqui. Penso muitas vezes nos teus lindos olhos.
Querido Pai escreveu Pym num estilo áspero e eduardino, imj tado de Sefton Boyd ,
estou afazer aqui um trabalho de primeira, m^ éo que épreciso e me empurra para a
frente. Estão todos muito agradecidos à minha pessoa, mas os preços da pastelaria
subiram e, por isso, queria saber se me poderás mandar mais cinco libras para me ajudares a recompor.
Para sua surpresa, Rick não lhe mandou nada, mas desceu em pessoa da montanha,
trazendo-lhe, em vez de dinheiro, esse amor que fora o principal motivo que levara Pym
a escrever-lhe.
Era a primeira visita de Rick. Até então, Pym proibira-o de ir ao colégio, explicando que os pais como deve ser eram considerados ali gente mal educada. E Rick, com uma
timidez pouco habitual, aceitara a exclusão. Agora, ei-lo que chegava cheio dessa
mesma timidez, com um ar bem arranjado, afectuoso e misteriosamente humilde. Não
se aventurou a entrar no colégio; mandou uma carta escrita pelo seu próprio punho,
propondo um encontro a caminho de Farleigh Abott, no litoral. Quando Pym chegou de bicicleta, de acordo com as instruções recebidas, esperando ver o Bentley e metade da
corte, deu com Rick sozinho, também ele de bicicleta, com um sorriso encantador que
Pyn> avistou a milhas de distância e a cantar desafinadamente Undernetí" theArches.
No cesto da bicicleta, Rick trazia um piquenique comp"5' to dos pratos favoritos de
ambos, uma garrafa de ginger beer, chatn-pagne para o próprio Rick e uma bola de futebol que ficara dos dias d° Paraíso. Andaram de bicicleta pela areia e apanharam
pedrinhas no mar. Deitaram-se nas dunas, mastigando ruidosamente bolachas cofli
foiegras. Vaguearam pela cidadezinha e discutiram se Rick deveria" não comprá-la.
Ficaram um pedaço a olhar para a igreja e prontft ram nunca se esquecer das orações de
cada dia. Improvisaram u baliza num portão arrombado e chutaram a bola de um para o oun0' fazendo-a atravessar o mundo todo pelo caminho. Beijaram-se e ^ raram e deram-
se abraços apertados, jurando-se companheiros pa1"3 resto da vida de cada um deles e
dar grandes passeios de bicicleta
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s domingos, mesmo quando Pym fosse presidente do Supremo, ^ado e já com netos.
__ Mr. Cudlove demitiu-se? perguntou Pym. Rick lá conseguiu ouvir a pergunta,
embora já tivesse posto a ex-«slo sonhadora que costumava assumir quando o
interrogavam directamente.
Bem, filho admitiu ele , o velho Cuddie tem tido os seus altos e baixos ao longo de todos estes anos, e agora decidiu que era a al
tura de se conceder a si próprio algum descanso.
Como é que vão as obras da piscina?
Está quase pronta. Quase pronta. Temos de ter paciência.
Bestial. Diz-me lá, filho disse Rick, desta feita no seu tom mais dig
no de veneração. Não terás um ou dois amigos que te possam fazer
o favor de te cederem cama e mesa durante as próximas férias, as férias
que estão já à porta?
Oh, tenho montes deles disse Pym, esforçando-se por pare cer despreocupado.
Bom, parece-me que seria boa ideia aceitares os convites que te
façam, porque com todas as obras que estamos a fazer em Ascott, acho
que não poderás ter por lá o descanso e o sossego a que essa tua cabeça
privilegiada tem direito. Pym concordou imediatamente e mostrou-se ainda mais exuberante para com Rick,
tentando convencê-lo de que não suspeitava de nada.
Também estou apaixonado por uma excelente rapariga disse jm pouco antes de ambos
se despedirem, num último esforço para demonstrar a Rick a sua felicidade. É bastante
divertido. Escrevemo--nos todos os dias. Meu filho, não há coisa melhor nesta vida do que o amor de uma ""dher como deve ser.
E se alguém o merece, és tu.
■ , ~T lz'me lá, rapaz disse Willow uma noite, durante uma lição ^ uai de preparação
para o crisma. O que é que o teu pai faz ao
Pond °ue ym> com o seu instinto natural para agradar a Willow, res- conta C- ° ^ Cra Uma esP^c'e de> b°m> homem de negócios por
na _ Pria> s^> não sei muito bem. WiUow mudou de assunto, mas
segumte obrigou Pym a explicar quem era a sua mãe. A pri-
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meira ideia de Pym foi dizer que ela morrera sifilítica, doença que <%. pava grande
parte das palestras de Mr. Willow sobre a Sementeira H-Vida. Mas conteve-se.
Pode-se dizer que desapareceu quando eu era pequeno, sir ~_
confessou aproximando-se mais da verdade do que teria desejado. Com quem? perguntou Mr. Willow. E Pym, sem que mais
tarde soubesse explicar porquê, disse:
Com um sargento do exército, sir; ele já era casado e, por isso
fugiram os dois para África.
E ela escreve-te, rapaz? Não, sir.
Porquê?
Acho que deve ter vergonha, sir.
E manda-te dinheiro?
Não, sir. Não tem dinheiro. Ele ficou com tudo o que era dela. Ainda estamos a falar do tal sargento, se bem entendo, não é?
Sim, sir.
Mr. Willow reflectiu um pouco.
Já ouviste falar das actividades de uma companhia chamada
Muspole Friendly and Academic Limited? Não, sir.
Ao que parece, porém, tu és um dos directores dessa companhia.
Não sabia, sir.
Então, provavelmente também não sabes explicar-me porque é
que essa companhia é que paga as tuas mensalidades do colégio? Ou tal vez não as pague?
Não, sir.
Mr. Willow pôs a mão no queixo, semicerrou os olhos, mostr: assim que estava a apurar
a sua técnica de interrogatório.
E não é verdade que o teu pai vive com certo luxo se com mos o seu modo de vida com o dos pais dos teus colegas?
Acho que sim, sir.
Achas?
Vive, sim, sir.
E tu desaprovas o seu estilo de vida? Acho que desaprovo, em parte.
Já te ocorreu que um dia poderás ser obrigado a escolher en
Deus e Mamon?
Já, sir. í
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__ Falaste nisso ao padre Murgo? __ Não, sir. __ Então, fala.
Sim, sir.
u alguma vez pensaste em entrar para o serviço da Igreja?
Muitas vezes, sir disse Pym, assumindo a sua expressão mais an
igélica.
Temos um fundo, Pym, para os rapazes sem dinheiro que dese
jem entrar para o serviço da Igreja. O tesoureiro pensou que poderias
estar em condições de beneficiar desse fundo. Sim, sir.
O padre Murgo era uma alminha feroz e enérgica, cuja tarefa inverosímil, tendo em
conta as suas origens proletárias, consistia em actuar na qualidade de caçador itinerante
de talentos por conta de Deus, de colégio em colégio. Enquanto Willow era tempestuoso
e eriçado, uma espécie de Makepeace Watermaster, sem segredos, Murgo contorcia-se no seu hábito como um furão enfiado num saco. Enquanto o olhar destemido de Willow
não era perturbado pelo conhecimento, o de Murgo revelava a angústia solitária da cela.
O tipo é maluco declarou Sefton Boyd. Vê as feridas que
tem nos calcanhares. Aquela besta espicaça os calcanhares enquanto
reza. É para se mortificar disse Pym.
Magnus? retumbou Murgo com a sua voz nasalada e com so
taque do Norte. Quem é que te pôs esse nome? Magnus é Deus, tu
ésparvus. O seu sorriso vermelho e rápido brilhou como um vergão
por cicatrizar. Vem falar comigo esta noite insistiu ele. À Es cadaria Allenby, Quarto de Hóspedes para Professores Convidados.
Bate à porta.
Maricas de um raio, ele vai-te pôr as mãos em cima berrou Sefton Boyd, fora de si,
cheio de inveja.
Mas Murgo não tocava em ninguém, como Pym já adivinhara, e resto. As suas mãos solitárias ficavam amarradas no interior das angas, como se estivessem presas com tiras
de couro, emergindo penas para comer ou rezar Durante o último período de aulas, Pym
K ou nas nuvens de uma liberdade nunca antes imaginada. Menos Urna semana antes,
Willow prometera chicotear um rapaz que ou-declarar que o críquete era um
diveaimento. Agora bastava que dissesse que desejava ir dar umfpasseio com Murgo para ser dis-
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pensado de todos os jogos que quisesse. As composições que n-zesse eram misteriosamente esquecidas, as sovas que lhe haviam ' vagamente prometidas, adiadas.
Em sessões de marcha extenuan em passeios de bicicleta, em pequenas casas de chá no
campo ou d rante a noite, entalado num canto do miserável quartito de Mm, Pym
propunha solicitamente versões de si próprio que umas vezes chocavam a ambos e
outras vezes os deixavam cheios de entusiasme O materialismo inalterável da vida em casa de Pym. A sua busca de f e amor. A sua luta contra os demónios da depravação e
contra os tentadores como Kenneth Sefton Boyd. A sua relação de irmão para irmã com
Belinda.
E as férias? perguntou Murgo num certo fim de tarde em que
ambos trotavam, cruzando no caminho um par de namorados que se acariciavam na relva. São divertidas, não? De luxo?
As férias são um deserto disse Pym, com toda a honestidade, As de Belinda, também.
O pai dela é corretor da Bolsa. Esta descrição foi um autêntico engodo para Murgo.
Ah, são um deserto? Um descampado? Está bem. Acho bem.
Também Cristo esteve no deserto, Parvus. E por muito tempo. E San to Antão, também. Prestou serviço durante vinte anos numa fortifica
ção imunda perto do Nilo. Talvez te tivesses esquecido disso.
Não, de maneira nenhuma.
Pois foi. E isso não o impediu de falar com Deus, nem Deus de
falar com ele. Antão não tinha privilégios. Não tinha dinheiro nem pro priedades, nem belos carros nem filhas de corretores. Rezava.
Eu sei disse Pym.
Vem para Lyme. Responde ao chamamento. Sê como Antão.
Que raio fizeste ao teu cabelo da frente? exclamou, dirigin
do-se a Pym, Sefton Boyd, naquela mesma noite. Cortei-o. i :.'
Sefton Boyd parou de rir.
Vais-te transformar num macaco de imitação de Murgo ■ "1S"
se ele baixinho. Apaixonaste-te por ele, grande doida.
Os dias de Sefton Boyd estavam contados. Actuando com base effl informações recebidas e ainda hoje coro quando penso na fonte c
Ias , Mr. Willow decidiu que o jovem Kennedi estava a ficar crés
do de mais para aquele colégio. ;
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' assim um novo Pym, Jack, mais um para acrescentares na mi-c u apesar de não ser nem
admirável nem, ao que parece, com-í el para ti, embora Poppy o tenha conhecido por
dentro e por Pre i (jg o início. É o Pym que não descansa enquanto não consegue dos
outros e que depois também não descansa enquanto não se * IVre desse amor, e quanto
mais drasticamente melhor. 0 Pym <lue nac^a cinicamente, nada sem convicção. Que pro-os acontecimentos só para vir a ser ele a vítima, chamando a isso decisão, e se
amarra a relações sem sentido, chamando a isso lealdade. E depois espera que o
próximo acontecimento o faça sair da última em que se meteu, chamando a isso destino.
É o Pym que recusa um convite para passar duas semanas com os Sefton Boyds na
Escócia, quando tudo corria pelo melhor com Jemima porque se comprometeu a seguir para as colinas de Dorset na esteira de um zelota mancuniano torturado, preparando-se
para uma forma de vida que não tem a menor tenção de adoptar, rodeado de gente que o
faz sentir-se arrepiado até aos ossos. É o Pym que escreve diariamente a Belinda,
porque Jemima duvidou da sua condição divina. É Pym o malabarista de sábado à noite,
saltando à volta da mesa e fazendo rodar umas atrás das outras séries de pratos idiotas, porque não suporta decepcionar ninguém por um minuto que seja, ou perder desse
modo a estima seja de quem for. E lá vai ele, quase sufocando com o fumo do incenso,
dormindo numa cela que cheira a cão molhado, quase morrendo depois de ter comido
um prato de urtigas refogadas, com o objectivo de se tornar um rapaz piedoso, pagar as
propinas da escola e ser adorado por Murgo. Entretanto, continua a acrescentar novas promessas às antigas e a convencer-se de que se encontra a caminho do céu, quando, na
realidade, se enterra cada vez mais nas suas próprias confusões. Ao fim de uma semana
vê-se a braços 00111 a promessa de ir para um acampamento de rapazes em Hereford,
para um retiro ecuménico no Shorpshire, uma marcha sindical em Wa-d e a urna
Celebração de Testemunho no Derby. Ao fim de duas "lanas, não há um condado da Grã-Bretanha em que ele não tenha niprometido a sua santidade de seis maneiras
diferentes o que não 4 r dizer que uma vez por outra não se imagine um apóstolo trans-
aao da renúncia, convertendo belas mulheres e milionários à pobreza evangélica.
m m^s inteiro passou até Deus fornecer a Pym a saída que este es-
179
TUA PRESENÇA IMEDIATA CHESTER STREET ESSENCIM PARA ASSUNTO
IMPORTÂNCIA VITAL NACIONAL EINTER NACIONAL RICHARD T. PYM
DIRECTOR PYM CORE
Tens de ir disse Murgo com lágrimas de infelicidade, corren do-lhe pelas faces encovadas, ao entregar a Pym o telegrama fatídico
após a Terça.
Acho que não vou ser capaz disse Pym, não menos tocado
pela notícia. É só dinheiro, sempre dinheiro.
Passaram pela tipografia e pela oficina de cesteiro, atravessaram os jardins das traseiras e chegaram à pequena cancela que os separava do mundo de Rick.
Não foste tu que mandaste o telegrama a ti próprio, não, Parvus?
perguntou Murgo.
Pym jurou que não, e era verdade.
Não sabes a força que és disse Murgo. Acho que nunca mais voltarei a ser o mesmo.
Até então, nunca passara pela cabeça de Pym que Murgo fosse capaz de mudar.
Bem disse Murgo, com um último rebate de tristeza.
Adeus disse Pym e obrigado.
Mas há perspectivas de alegria para ambos. Pym prometeu regressar no Natal, quando os mendigos chegam.
Reviravoltas loucas, Tom. Amores e mudanças loucas e outras coisas ainda mais loucas
ao dobrar da esquina. Por essa altura, escrevi também a Dorothy. Ao cuidado de sir
Makepeace Watermaster, da Câmara dos Comuns apesar de saber que este morrera.
Esperei uma semana, e depoB esqueci. Até que um dia, inesperadamente, a minha diligência foi recompensada por uma pequena carta amarrotada, manchada de lágrimas
ou álcool, escrita numa folha pautada, arrancada a um bloco de notas se"1 remetente,
mas com o carimbo do correio de East London, região queeu nunca visitara. Tenho-a
agora mesmo, aqui à minha frente.
A tua voz atravessou Corredores de Anos, meu querido, guardei-a n» armário da cozinha com as minhas Toalhas de Mesa, para a ler sempre q>*e quiser. Vou estar na
estação de Euston na plataforma superior, quinta-fr' ra às três da tarde sem o meu
Herbie, mas com um ramo de alfazema^ "" sa de que sempre gostaste.
180
Tá arrependido da sua decisão, Pym chegou atrasado à estação e I ou-se como um
gatuno num canto escondido, por baixo de um de ferro, junto a um monte de sacos de
correio. Havia um ban-, ie mjes nas redondezas, algumas delas aceitáveis, outras menos,
nenhuma que Pym quisesse para si, e várias delas embriagadas. Uma das mães parecia
ter na mão um ramo de flores, num embrulho de papel de jornal; nessa altura, porém, já Pym resolvera que se encontrava na plataforma errada. Era a sua amada Dorothy quem
ele queria ver e não uma velha galinha preguiçosa com um chapéu ridículo na cabeça.
Uma noite de dia de semana, Tom. Os carros em Chester Street chiam e crepitam
debaixo da chuva, mas no interior da Reichskanzelei está um domingo de Green Hill.
Ainda imbuído de piedade monástica, Pym toca à campainha, mas esta não se ouve. Pym bate com a grande aldrava na madeira. Uma cortina de renda entreabre-se e volta a
fechar-se. A porta abre-se, mas não de todo.
Chamo-me Cunningham, squire diz um homem corpulen
to, com um forte sotaque cockney, deslocado naquele cenário, fechan
do a porta logo que Pym entra, como se tivesse medo de deixar entrar micróbios. Metade espertalhão, metade presunto.32 Você deve ser o
herdeiro. Os meus cumprimentos, squire. Shalom.
Como está? diz Pym.
Optimista, squire, obrigado responde Mr. Cunningham, li
teralmente, evocando o modo de falar característico dos naturais da turopa Central. Acho que estamos no bom caminho para nos en-
endermos. Há que contar com alguma resistência de início, mas parece-me que
começamos a ver a luz do dia.
ym já não poderia dizer a mesma coisa, porque o corredor através
qual Mr. Cunningham o conduz com tanta segurança é escuro com > e a única luz que ali se vê é a das manchas mais claras que as es-
es retiradas de livros de Direito deixaram nas paredes.
i. voce é uma autoridade em alemão, segundo ouvi dizer, squire -
fel \u nn'n8nam> numa voz embrulhada, como se o esforço para
" tlvesse afectado os adenóides. Uma bela língua. Quanto ao ' > nao digo nada, mas nas mãos certas, é uma belíssima língua,
é que vamos lá para "cima? pergunta Pym, que neste
181
.1
momento já detectou vários indícios seguros de um pogrom imine
Há uma avaria no elevador, squire responde Mr. Cunnin
ham. Ouvi dizer que já mandaram chamar um mecânico que a
tas horas deve vir a caminho de cá. Mas o escritório de Rick é no rés-do-chão.
Mas em cima, ele encontra-se mais à vontade, squire explica
Mr. Cunningham, empurrando uma porta dupla à sua frente. Entram
os dois num gabinete de comando, quase vazio, iluminado pela luz dos
candeeiros da rua. O seu filho, sir, acabado de chegar das suas pre ces anuncia Mr. Cunningham e impele Pym para diante.
A princípio, Pym vê apenas a fronte de Rick, esplendendo à luz da vela. Depois, a
grande cabeça ganha forma em redor, seguida pela massa volumosa do corpo, enquanto
Rick avança com agilidade para o envolver num abraço apertado, húmido e comovido.
Como vais tu, meu velho? pergunta Rick, pressuroso. Como é que vinha o comboio?
Bem diz Pym, que fez a viagem à boleia, devido a um pro
blema temporário de liquidez.
Comeste alguma coisa? O que é que comeste?
Só uma sanduíche e uma cerveja diz Pym, que teve de se contentar com um pedaço de pão duro como pedra do refeitório de
Murgo.
O filho destes que aqui vêem exclama Mr. Cunningham com
entusiasmo nunca está satisfeito senão a comer.
Meu filho, tens de ter cuidado com essa história da bebida da Rick, num reflexo quase inconsciente, enfiando Pym debaixo do bra
ço e conduzindo-o pelo soalho despido até junto da cama de dimensões
imperiais. Já sabes que recebes cinco mil libras se não fumares nem
tomares bebidas alcoólicas até teres vinte e um anos. E tu, minha que
rida, o que é que achas deste meu rapaz? Uma figura vestida de escuro ergueu-se na cama como uma sombra-É Dorothy, pensa
Pym. É Lippsie. É a mãe de Jemima que veio a fazer queixas de mim. Mas quando a
silhueta escura se levanta, o candidato a monge verifica que a figura que está à sua
frente não tem nefl1 o lenço de Lippsie, nem o chapéu em forma de sino de Dorothy,
nem â imponência assustadora de Lady Sefton Boyd. Como Lippsie, ostenta o uniforme de museu da Europa de antes da guerra, mas as semelhai1' ças ficam-se por aí. A saia
rodada aperta-se na cintura. Traz uma blus» com gola de renda e um chapeuzinho de
pluma, que anima todo o con
182
Os seios encontram-se na melhor tradição de Eros e a Mulher 'p cifea luz pálida
acentua-lhes o volume.
-y[t\x filho, quero-te apresentar uma nobre e heróica senhora,
já conheceu grandes dias e grandes infelicidades, que travou gran-j batalhas e sofreu
cruelmente às mãos do destino. E que me deu a aior honra que uma mulher pode dar a um homem, vindo ter comigo num momento de necessidade.
Rot-schild, querido diz em voz baixa a senhora, colocando a
sua máo flácida a uma altura conveniente para que Pym a beije ou
a aperte.
Já deves ter ouvido algumas vezes este nome, meu filho, dada a tua educação de primeira. O barão Rotschild. Lord Rotschild. O conde Rotschild. O
Banco Rotschild. Não me vais dizer que o nome desta grande família judaica, em cujas
mãos está toda a riqueza de Salomão, não te é familiar.
Claro que sim, que já ouvi falar.
Pois então. Senta-te aqui e ouve o que ela tem a dizer-te, porque é ela a baronesa. Senta-te, minha querida. Vem para aqui para junto de
nós. O que é que achas dele, Elena?
Uma beleza, querido diz a baronesa.
Ele está a tentar vender-me a esta mulher, pensa Pym, nada desagradado. Sou o último
negócio do seu desespero. E ali estávamos todos, Tom. Todos em acção, e connosco a loucura, decidida a ficar. O
teu pai e o teu avô sentados no mesmo sofá, com uma baronesa judia, no gabinete
privado, só com meia mobília, do director, numa mansão de West End com a
electricidade cortada, e Mr. Cunningham, como vou a pouco e pouco descobrindo, de
sentinela à P°rta. Uma atmosfera de conspiração insensata só comparável com as inspirações insensatas posteriormente organizadas pelos Serviços, e a °z dela que inicia
um desses pacientes monólogos de refugiado que o u °o Jack e eu ouvimos já vezes sem
conta. Só que naquela noite Pym ainda virgem na matéria, e a coxa da baronesa
aconchega-se à do can-^«o a monge.
r i. 7~ V1úva humilde de família simples, mas piedosa, que teve a cidade excessivamente curta de casar com o falecido barão Luigi Svo--Rotschild, último da
grande linhagem checa. Eu tinha dezassete s e ele vinte e um, imaginarem o nosso
contentamento. A minha Or tristeza ser não lhe ter dado um filhe; A nossa residência de
Verão ^ácio das Ninfas, em Brno, qiié os alemães e depois os russos vio-
183
laram literalmente, como fazer-se a uma mulher. A minha prima An ela casar com o
director dos diamantes de Beers da Cidade do Cabo ter casas como vocês não poder
imaginar; eu não sou a favor do lux0 ' cessivo. Pym também não aprova o luxo e tenta dizer-lho com un, sorriso, entre monástico e malicioso, de compreensão. Com o m tio
Wolfram nunca falo e ainda bem. Ele colaborar com os nazis. Os i» deus enforcaram-no
e depois deixaram-no pendurado de cabeça para baixo. Pym crispa o queixo num sinal
de aprovação severa. O meu tio avô David oferecer todas as suas tapeçarias ao Prado.
Agora ficou pobre como um kulak, porque é que o museu não lhe dar alguma coisa para ele poder ter de comer? Pym sacode a cabeça desesperado com a mesquinhez da alma
espanhola. A minha tia Waldorf e a baronesa vai-se abaixo, nesta passagem, de modo
espectacular, enquanto Pym se interroga sobre se ela, no meio de toda aquela escuridão,
poderá dar--se conta da agitação do seu próprio corpo. É uma perfeita vergonha! exclama Rick, enquanto a senhora se
recompõe. Valha-me Deus, meu filho, aqueles bolcheviques podiam
arremeter amanhã mesmo e sem aviso contra Ascott e levarem daqui uma
fortuna. Continua, minha querida. Meu filho, pede-lhe para continuar.
Trata-a por Elena, ela gosta. Não é nenhuma snob, é como nós. Weiter, bitte diz Pym.
Weiter repete a baronesa em tom de aprovação, limpando os
olhos com o lenço de Rick. Jawhol, meu querido. Sehrgut!
Ouçam-me esta pronúncia diz Mr. Cunningham da porta.
Impecável, podem crer, exactamente como a do meu rapaz. O que é que ela está a dizer, filho?
Ela está bem diz Pym. Está a conseguir controlar-se.
É uma autêntica jóia. Hei-de conseguir que lhe seja feita justiça,
podem ter a certeza disso.
Pym tem a mesma intenção. No mínimo, vai casar com ela. Mas. entretanto, para sua irritação, tem de a ouvir elogiar uma vez mais o seu querido marido que já morreu, o
barão. O meu Luigi era não só prO" prietário de um grande palácio, como um génio da
finança, e até ao início da guerra foi director da Casa de Rotschild, em Praga.
Eles eram os mais ricos de todos diz Rick. Não eram, »>'
lho? Tu estudaste história, diz lá se não é esse o teu veredicto. Tinham tanto dinheiro que não o podiam contar confirma M1' Cunningham da sua
porta, com um orgulho de empresário de artista*' Não é verdade, Elena? Perguntem-lho
a ela, não se envergonhem-
184
Nós dar ca^a concerto, meu querido! confidencia a barone-
^^ Príncipes de todos os países. Nós ter casa com mármore.
Uós KT espelhos, cultura. Como aqui acrescenta ela, gentilmente, ndo um quadro a óleo
sem preço de Prince Magnus na sua cer-íP° intado a partir de uma fotografia. Nós
perder tudo. ' __ j>jáo foi bem tudo diz Rick, num sussurro. Quando os alemães vêm, o meu Luigi recusar fugir. Ele fazer
fr nte aos porcos nazis na varanda, com uma pistola na mão e nunca mais se ouvir falar
dele.
Segue-se necessariamente uma nova pausa, durante a qual a baronesa se concede um
discreto gole de brandy, servindo-se de uma fila de frascos de cristal que se acha no chão, e para desespero de Pym, Rick apodera-se da história, em parte porque já está
cansado de ouvir e, sobretudo, porque se aproxima o momento de um segredo, e
segundo a etiqueta da corte, compete exclusivamente a Rick divulgar os segredos.
O barão era um excelente homem e um excelente marido, meu
tSho, e fez o que qualquer bom marido teria feito, e podes crer que se a tua mãe estivesse em condições de o apreciar, eu faria por ela, amanhã,
a mesma coisa...
Bem sei diz Pym.
O barão agarrou nalguns dos melhores tesouros do palácio, me
teu-os num caixote e entregou o caixote a alguns dos seus melhores amigos, bons amigos também desta excelente senhora, dando-lhes ins
truções no sentido de que, quando os ingleses ganhassem a guerra, o
caixote fosse entregue à sua jovem e encantadora esposa, aqui presente,
juntamente com todo o seu recheio, por muito que o valor deste tives
se enttetanto aumentado. A baronesa conhece de cor a lista, e escolhe Pym, uma vez mais, como público, e nesse
intuito chama a sua atenção, pegando-lhe no Pulso com a mão delicada.
Uma Bíblia de Gutenberg em bom estado, meu querido, um Re-
T do primeiro período, dois desenhos anatómicos de Leonardo.
ma Pieira edição dos Caprichos de Goya, anotada pelo artista, tre- os dólares americanos em ouro puro, um par de cartões de tapeça-
rias de Rubens.
n. 7~ ^unningham diz que se trata de uma autêntica bomba diz ' 1Uanuo parecia que a
baronesa terminara.
^ uma verdadeira Hiroshima diz Mr. Cunningham ainda da Porta. 185
Pym consegue improvisar um sorriso etéreo, destinado a most que a verdadeira arte não
tem preço. A baronesa capta esse sorris compreende-o.
Uma hora mais tarde. A baronesa e o seu protector foram-se em bora, deixando a sós pai e filho na grande sala sem luz. O trânsito, pOr baixo da janela, diminuiu. Lado a lado na
cama, ambos comem peixe e batatas fritas, que Pym tinha sido encarregado de comprar,
provido de uma preciosa nota de uma libra, saída do bolso de trás de Rick. Empurram a
comida com uma garrafa de Château dYquem de uma grade vinda dos armazéns
Harrods. Eles ainda lá estão, filho? pergunta Rick. E viram-te? Os
homens do Riley. Uns fortalhaços.
Infelizmente, acho que sim diz Pym.
Acreditas no que ela diz, não acreditas, meu filho? Não te im
portes com o que eu sinto. Acreditas naquela excelente senhora, ou achas que se trata de uma mentirosa sem coração, uma aventureira de
que nos temos de livrar?
Ela é espantosa diz Pym.
Não me pareces muito convicto. Despeja lá o saco, meu filho.
Ela é a nossa última oportunidade, digo-te de passagem. É só que não percebi muito bem porque é que ela não se dirigiu
aos dos seu próprio sangue.
Tu não conheces esses judeus tão bem como eu. Há judeus que
se contam entre as melhores pessoas deste mundo. Alguns eram capa
zes de despir a camisa logo que soubessem da história dela. Fiz-lhe a mesma pergunta que me fizeste há pouco. Não estive com rodeios.
Quem é este Cunningham? pergunta Pym, mal conseguin
do esconder o desagrado que esse homem lhe causa.
O velho Cunnie é de primeira ordem. Vou metê-lo nos nosso
negócios, quando chegarmos ao fim disto tudo. Exportações e negoc'0 com o estrangeiro. Ele é um achado. Só o seu sentido de humor vai
bem quinhentas libras por ano. Hoje é que não estava em forma, c-5
va tenso.
Qual é agora o negócio? pergunta Pym. .
Confiança no teu velhote, o negócio é esse. «Rickie», diz-me é assim que ela me trata, ela também não está com rodeios > "^ r
kie, quero que me arranjes o tal caixote, vendas o seu recheio e invis
, jr0 numa das tuas magníficas empresas, e quero que te encarre-
° A s meus negócios e me dês dez por cento ao ano para o resto da • h vida, enquanto for essa a vontade de Deus, com todas as garan-
m «cearias de seguros e títulos no caso de seres tu a partir primei-
tias necess"""" o r
Ouero que sejas tu a hcar com o dinheiro para poderes tornar o
do melhor de acordo com o que a tua sabedoria te ditar.» É uma de responsabilidade, meu filho. Se eu tivesse passaporte, iria lá eu róprio, se o Syd
estivesse livre, mandava-o a ele. Ele ia, é mais do que certo Gado e porcos. É a isso que
me vou dedicar no fim de toda esta história. Só meia dúzia de acres e algumas cabeças
de gado. Vou reformar-me.
O que é que aconteceu ao teu passaporte? pergunta Pym. Meu filho, vou ser franco contigo, como sempre fui. Os tipos
desse teu colégio delambido são uns tratantes que nada querem ouvir. Querem dinheiro
à vista e nas datas certas, e mais nada. Tu falas a língua dela, e é aí que o p onto bate. Ela
gosta de ti, confia em ti. És meu Bino. Eu podia mandar o Muspole, mas não teria nunca
a certeza de que ele voltasse. Perce Loft é legalista de mais. Ia meter-lhe medo. Agora, vai disfarçadamente até aquela janela e vê se o Riley já se foi embora. Não deixes que a
luz de fora te dê na cara. Eles não podem cá entrar. Não têm mandato. Sou um cidadão
honesto.
Meio escondido atrás do ficheiro verde com a tinta estalada, Pym espreita lá para baixo
para a rua, num gesto de contra-espionagem dissimulado. O Riley ainda ali está. Não há cobertores para a cama, por isso Rick e Pym fazem-na com cortinas e panos de
pó. Pym dorme de um sono agitado e sente-se gear, sonhando com a baronesa. Ora é o
braço de Rick que lhe cai pesa-°-amente em cima, ora é a sua voz estrangulada que
invectiva uma ca-a ™a'nada Peggy. E a certa altura, de madrugada, sente o peso suave
eminino da parte inferior do corpo de Rick, em camisa de seda e cue- '^Purrá-lo inexoravelmente, o que o convence de que descansará or no chão. Na manhã
seguinte, Rick continua a não querer sair a> por isso, Pym vai sozinho até Victoria
Station, levando os seus ̂ ucos pertences numa esplêndida mala de pele de vitela
branca, com br A aiS ^°k em latã0 por baixo da pega. Pym veste um dos so-bvo" °S ^
?el° de camel° de ^k apesar de este lhe ficar grande. A ^ a, mais deliciosa do que nunca, está à espera dele na plataforma 'anh A ^Unnmgnam também lá estápara se despedir. Na
casa de ° comboio, Pym abre o envelope que Rick lhe deu e extrai do
186
187
seu interior um maço de notas novas de dez libras, e as primeiras in truções da sua vida
para um encontro clandestino.
Vais seguir até Berna e hospedas-te no Grand Palace Hotel. Mr. BertL o subdirector, é
uma excelente pessoa, não terás de te preocupar com a Con ta. O signor Lapadi vai Contactar com a baronesa e conduzir-te atei Fronteira Austríaca. Quando Lapadi te
entregar o Caixote e tu Confir. mares devidamente que tudo está lá dentro e em ordem,
paga-lhe como di. nheiro que segue junto mas nunca o faças Antes. Lsto vai ser a nossa
Salvação, meu filho. Esse Dinheiro que levas contigo custou muito a ganhar, mas
quando esta história chegar ao fim, nunca mais teremos Preocupações. A minha descrição dos pormenores operacionais da missão Rots-child vai ser rápida,
Jack os dias de esperança, os dias de dúvida, as mudanças bruscas de uns para outros. E
a verdade é que já me esqueci das esquinas e das senhas que precederam a lenta queda
na incoerência que é a minha memória de tantas operações em que me vi metido mais
tarde tal como já esqueci, se é que o soube alguma vez, qual a proporção de cepticismo e qual a de confiança cega com que Pym levou a sua missão até ao inevitável final. É
verdade que depois vi operações organizadas com oportunidades de sucesso igualmente
reduzidas, e cujos custos não significavam apenas dinheiro. O signor Lapadi falou
apenas com a baronesa, que me transmitiu desdenhosamente as suas informações.
Lapadi, ele falar mito seu Vertrauensmann, meu querido & baronesa sorri com indulgência quando Pym lhe pergunta o que é um
Vertrauensmann. O Vertrauensmann é o homem em quem nós con
fiar. Ontem não, talvez não amanhã, mas hoje confiamos nele P&1
sempre.
Lapadi precisar de cem libras, meu querido disse ela, um & ou dois mais tarde. O Vertrauensmann conhecer um homem que
irmã conhecer o chefe da alfândega. O melhor é ele pagar-lhe ago
por causa da amizade.
Lembrando-se das instruções de Rick, Pym oferece uma resiste11 simbólica, mas a
baronesa já estendeu a mão e esfrega um no outr indicador e o polegar, numa encantadora insinuação.
Se queres pintar uma casa, meu querido, primeiro ter de c
188
•ncej explica ela, e para grande estupefacção de Pym levanta P : at^ à cintura e enfia as notas nas meias. Amanhã comprar-m0S.te um belo fato.
Peste-lhe o dinheiro, filho? brama Rick nessa mesma noite
. outro lado do Canal. Meu Deus do céu, quem pensas que somos? Chama a Elena ao
telefone.
Não grites a mim, meu querido diz calmamente a baronesa ao telefone. Tens aqui um rapaz encantador, Rickie. Ele ser muito correcto comigo.
Acho que um dia ser um grande actor.
A baronesa diz que tu és impecável, meu filho. Tens falado com
ela como deve ser?
Sim, sempre diz Pym. Já comeram uma espetada inglesa decente?
Não, estamos a guardar-nos para depois.
Bom, comam uma por minha conta esta noite.
Está bem, pai. Obrigado.
Deus te abençoe, meu filho. E a ti também, pai diz Pym educadamente e, como um mor
domo, conserva os joelhos e os pés bem juntos ao poisar o auscultador
no descanso.
De longe mais importantes do que esta história, são as minhas re
cordações da primeira lua-de-mel platónica de Pym com uma senho ra experimentada. Ao lado de Elena, Pym vagueou pela parte antiga de
Berna, bebeu vinhos leves do Vaiais, participou em thés dansants nos
grandes hotéis e rompeu com o seu passado. Em boutiques enfeitadas
e perfumadas, que a baronesa parecia descobrir instintivamente, o
guarda-roupa usado dela foi substituído por capas de pele e botas de <jntar à Ana Karenina, que a faziam escorregar nas calças geladas, e
«engraçada roupa de colégio de Pym, por um casaco de couro
^ calças sem botões para os suspensórios. Mesmo quando ape-
emivestida, a baronesa insistia em obter a opinião de Pym, recla-
o-o para os gabinetes de prova recobertos de espelhos, a fim de )Udar a escolher as suas peças de vestuário, permitindo-lhe como
co ' ° untar'arnente deliciosos instantâneos dos seus encantos ro-
ora fa Um mam'l°> ora uma nádega descuidadamente destapada,
Ela é T' SOm assombrosa entre as coxas roliças, ao mudar de saia.
Pens PSle' Pensou Pym excitado; é como Lippsie seria, não fosse «tanto na morte. -'
^ querido? ■--"
189
Du geffàht mir sehr.33 No dia em que teres uma bela rapariga, falares-lhe també
sim e ela ficar louca. Não achares demasiado audacioso?
Acho perfeito.
Está bem, então comprarmos dois. Um é para a minha irmã 7
-Zsa, que vestir o mesmo número que eu. Um meneio dos ombros brancos, um puxão descuidado numa bai nha mal colocada de
uma peça de lingerie, a conta que chega, e Pym nu assina a factura, enviando-a ao
providencial Herr Bertl, enquanto volta as costas à baronesa e se curva um pouco para
diante, tentando esconder as provas da sua perturbação. Num joalheiro da Herrengasse
compraram um colar de pérolas para outra irmã, que vivia em Buda-pest e, por fim, um anel de topázio para a mãe, que vivia em Paris, c que a baronesa lhe entregaria quando
regressassem. Ainda hoje vejo esse anel, cintilando no seu dedo acabado de sair da
manicure, enquanto a baronesa segue com a mão os movimentos de uma truta no
aquário do restaurante do nosso grande hotel o chefe de mesa de pé atrás dela, com a
rede pronta a atacar. Nein, nein, meu querido, esta não, aquela é melhor! Ja, ja, pri-
ma.
Foi num desses jantares, por sinal o último, que Pym se sentiu de tal modo perturbado e
apaixonado que se achou obrigado a confiar à baronesa a sua intenção de ingressar na
vida monástica. Ela poisou os talheres com brusquidão em cima da mesa. Não me falares mais de monges! ordenou-lhe irritada.
Acho haver monges de mais. Monges da Croácia, monges da Sérvia e
monges da Rússia. Deus arruinar este maldito mundo com monges.
Bom, não é bem assim disse Pym.
Foram precisos um sem fim de inflexões vocais engraçadas e um sei" fim de patranhas contadas por Pym antes de os olhos castanhos dela voltarem gradualmente a brilhar de
animação.
E ela chamava-se Lippsie?
Era assim que lhe chamávamos. Não te posso dizer o verdade''
ro nome dela. E ela foi para a cama com um rapaz tão novo como tu? Fiz^
amor com ela ainda tão novo? Acho que ela devia ser uma puta.
Provavelmente, sentia-se sozinha disse Pym avisadamente
Mas a baronesa continuou pensativa, e quando Pym, como fla
malmente, a acompanhou à porta do quarto, examinou-o mios
■ js tomou-lhe a cabeça entre as duas mãos e beijou-o na meIlten repente, a boca dela
abriu-se e a de Pym também. O beijo ^°°" majs intenso e Pym sentiu um corpo
desconhecido asse-tOf A sua coxa. Sentiu o calor desse corpo, sentiu os pêlos macios
m-se na seda quando os movimentos dela se tornaram mais rit -** A s A baronesa murmurou Schatz; ele ouviu um gemido e pergunte se a teria magoado. Ela virou a
cabeça e Pym sentiu o pescoço , I nos seus lábios. Com dedos confiantes, a baronesa
entregou-lhe a chave do quarto e olhou para o lado enquanto Pym abria. Ele acertou
com a fechadura, fez rodar a chave e deu passagem à baronesa. Pôs-lhe a chave na
palma da mão, vendo então desvanecer-se a luz dos olhos dela.
Então, meu querido disse ela. Beijou-o nas duas faces, olhou-
-o fixamente em busca de qualquer coisa que perdera. Só na manhã seguinte é que Pym
descobriu que o beijo dela fora uma despedida.
Querido escreveu a baronesa , seres um homem bom, teres corpo de Miguel Angelo, mas o teu papá ter problemas sérios. Melhor ficares em Berna. Não te preocupes. E.
Weber continua a gostar de ti.
Dentro do envelope estavam ainda os botões de punho de ouro que tínhamos comprado
para o primo Victor, que vivia em Oxford, e du-zentas das quinhentas libras que Pym
lhe entregara para o invisível Mr. Lapadi. Trago esses botões de punho, neste momento em que escrevo. De ouro, com uma incrustação de pequenos diamantes desenhando uma
coroa. A baronesa sempre gostara de um toque de realeza.
™i também de manhã na pensão de miss Dubber. Através das coras corridas, Pym
ouviu o carro do leite, com as garrafas a chocalha-nas curvas da rua. De caneta na mão,
puxou para si um dossier cor--rosa que tinha apenas o título RTP, lambeu o indicador e o polegar ■ eÇ°u a passar uns a seguir aos outros os documentos, extraindo *?í/ír cerca
de meia dúzia deles.
ta MaSnus (dos Ruivos da R)
para m°rand0 de 15 de Setembro de 1948, do Serviço Antifraudes epartamento de
Controlo de Passaportes, recomendando a , Pla ^na Richard T. Pym para o padre director, Lyme Regis, da
to H Outubro de 1948, ameaçando-o com um processo por rap
ta U filh° MaSnus (dos Ruivos da RTP).
md d 5 d Sb d 1948 d
190
191
apreensão do passaporte de RTP durante as investigações criminais em curso (obtido
informalmente através do gabinete de ligação à Polfcj dos Serviços Secretos).
Carta do tesoureiro do colégio para RTP, recusando-se a aceitar fru. tos secos, pêssegos enlatados ou qualquer outro género como forma de pagamento da totalidade ou parte
das mensalidades devidas e lamentando que o Conselho Directivo não veja
possibilidade de educar Pyn, gratuitamente. «Vejo também com desgosto que o senhor
recusa ser classificado como pai sem posses de um filho que se destina a membro do
clero» (Dos Arquivos de RTP). Carta indignada dos advogados de Herr Eberhardt Bertl, outrora subdirector do Grand
Palace Hotel de Berna, dirigida ao coronel 6/>Ri-chard T. Pym, DSO, entre muitas
outras de uma longa série, exigindo o pagamento de mil cento e dezoito francos suíços e
quarenta cêntimos, mais os juros correspondentes, a quatro por cento ao mês (Dos
Arquivos de RTP). Recorte do Chronicle de Londres, de 8 de Novembro de 1949, informando da falência
de RTP e da liquidação compulsiva das oitenta e três companhias do Império Pym,
incluindo certamente a Muspole Friendly & Academic Ltd.
Recorte do Daily Telegraph, de 9 de Outubro de 1948, registando a morte de um certo
John Reginald Wentworth, marido muito amado de Peggy, no hospital de Truro, Cornualha, após prolongada doença resultante de ferimentos.
Um curioso pequeno recorte, extraído só Deus sabe de onde, registando a prisão no mar,
a bordo do navio SS Grande Bretagne dos conhecidos burlões Weber e Woolfe, aliás
Cunningham, que se faziam passar pelos duques e duquesa de Sevilha.
Com uma caneta vermelha, Pym numerou um a um os documentos, marcando-os no canto superior direito, e depois anotou os respectivos números nas passagens
correspondentes do seu texto, como ck-mentos de referência. Com gestos ordenados de
burocrata, agrafou as peças e colocou-as num dossier intitulado «Anexo». Tendo
fechado o dossier, levantou-se, soltou um profundo suspiro de alívio, lançou os braços
para trás como se despisse uma couraça. O fantasma informe 0a adolescência ficara para trás. A idade adulta e a maturidade chamava10' -no, embora a diferença entre as duas
idades não fosse excessivamen^ clara para ele. Chegara finalmente à sua amada Suíça,
pátria espirltu dos espiões natos. Atravessando a sala, direito à janela, inspecciono11
uma última vez, enquanto as luzes cansadas da Inglaterra empa-am Despiu-se gravemente, bebeu um último vodka, e também emente olhou-se no espelho e preparou-
se para se deitar. Mas de- devagarinho. Quase na ponta dos pés, como se tivesse medo
de cordar a si próprio. A caminho da cama, deteve-se junto da secretária^ releu a
mensagem que decifrara e que por uma vez não cuidara de destruir logo a seguir.
Poppy. pensou, deixa-te estar precisamente onde estás.
192
VII
■n
A ■
Jack Brotherhood matara a tiro havia cinco anos a sua cadela labra-
dor. Ela estava no seu cesto a tremer de reumatismo; Jack administra ra-lhe um comprimido, mas a cadela vomitara, e depois disso comete
ra a baixeza de sujar o tapete. E quando pegou na cartucheira e tirou de
trás da porta a caçadeira, chamando-a, ela olhou-o como uma crimi
nosa, porque sabia que estava doente de mais para ir à caça. Jack man-
áou-a levantar-se, mas a cadela não conseguiu. Quando lhe gritou «Busca!», tropeçou nas patas da frente e voltou a deitar-se, com a cabe
ça estupidamente reclinada na borda do cesto. Então, Jack poisou a es
pingarda e foi ao barracão de jardinagem buscar uma pá, abriu uma
cova no campo por trás da vivenda, já no começo da encosta e com
uma vista decente para o estuário do rio. Depois, envolveu a cadela no seu casaco de tweed preferido e transportou-a até lá e, por fim, deu-lhe
um tiro na parte de trás da cabeça, atingindo-lhe a espinal medula à al
tura da nuca, para a enterrar logo a seguir. Depois, sentou-se junto da
«>va com meia garrafa de whisky, enquanto a atmosfera húmida do Suf-
se abatia sobre ele, e Jack chegava à conclusão de que a cadela tive- a memor morte que podia esperar num mundo que não se caracteriza
Jpucularmente pelas boas mortes. Não pôs na cova nem lápide nem mo-
cruz de madeira, mas fixou o sítio orientando-se pela torre da igre-
' pe o salgueiro morto e pelo moinho de vento, e sempre que, mais tar-
r ' ^r Pesava, enviava mentalmente à cadela uma saudação viril, que T e"tava ° *lue de mais parecido com uma reflexão sobre o além
ia J ̂ umavezr'zera>até ao vazio dessa manhã de domingo em que
nas n UZln^° ° seu carro pelas estradas desertas do Berkshire, vendo
n so1 por cima dos Downs. Jack já cavalgou de mais dissera
£, s ^erviços já o deviam ter mandado descansar há dez anos. ^ p 1Uanto tempo é que te deviam jer dispensado a ti, meu rapaz? s°u ele. Vinte anos? Trinta? Quantas estradas já
fizeste? Quan-
195
tos quilómetros de filme já vendeste aos jornais? Quantos jornais já me teste em caixas
de correio fora de uso ou atiraste por cima dos muros dos cemitérios? Durante quantas
horas ouviste Rádio Praga, debrua, do sobre os teus livros de código?
Jack abriu a janela do carro. O ar que entrou no automóvel cheirava a celeiro e a
madeira a arder, e pô-lo bem disposto. Brotherhood era de cepa rústica. Os seus antepassados eram ciganos e padres, guardas de caça e caçadores furtivos, e piratas.
Com o vento da manhã inundando-lhe a cara, voltou a ser um rapaz esfarrapado,
montando em pêlo o cavalo de caça de miss Sumner pelo meio do parque, e apanhando
em seguida a maior sova da sua vida por causa disso. Gelava até aos ossos na lama dos
charcos do Suffolk demasiado orgulhoso para voltar a casa sem ter caçado nada. Estava a dar o seu primeiro salto num balão no aeródromo de Abingdon e a descobrir que o
vento o forçava a ter a boca aberta depois de ter soltado um grito. Só me vou embora
quando me expulsarem. Saio quando tu e eu tivermos uma certa conversa, meu rapaz.
Nas últimas quarenta e oito horas, Jack dormira apenas seis, e a maior parte destas numa
cama de campanha toda aos altos e baixos, num quarto reservado para as depressões das dactilógrafas, mas não se sentia cansado.
Podes dar-nos um minuto, Jack? disse Kate, a vestal do Quinto Andar, com um olhar
que se demorou nele durante um tempo algo excessivo. Bo e Nigel querem dar-te mais
uma palavrinha.
E quando náo estivera a dormir, nem a atender o telefone, nem a interrogar-se da maneira habitual acerca de Kate, Jack ficara a pensar na sua vida, como numa espécie
de inesperada queda livre em território inimigo: então, é assim? Isto é uma terra má, e lá
estão os meus pés que descem, rodopiando, sobre ela, como um galho de plátano. Jack
tinha observado Pym ao longo de todas as fases da vida em que tinham crescido juntos,
bebera com ele e trabalhara com ele, sem esquecer uma noite em Berlim de que só agora se voltava a lembrar e em que tinham acabado na cama com duas enfermeiras do
Exército em quartos pegados-Lembrava-se de contemplar o seu próprio braço lacerado,
naquele dia do Inverno de 1943, pendendo de lado do seu corpo, adornado por G& balas
alemãs, e de ter então sentido a mesma impressão de indiferença incrédula. Se pelo menos nos tivesses informado um pouco mair cedo, JaclCi Se tivesses
percebido o que se estava a preparar.
196
Sim, lamento muito, Bo. Foi distracção minha. Mas, Jack, nós até costumávamos dizer que ele era quase como
se fosse teu filho.
Pois costumávamos, não era, Bo? Éramos realmente uns tolos, nisso estou de acordo.
E o olhar reprovador de Kate, dizendo como sempre: Jack, Jack,
onde estás? Ao longo da sua vida, já houvera outros casos semelhantes, naturalmente. Desde o fim
da guerra, ávida profissional de Brotherhood era regularmente transtornada pelo último
escândalo fatal dos Serviços. Quando era chefe da delegação de Berlim, o caso não lhe
aconteceu menos de três vezes: telegramas nocturnos, um relâmpago apenas para os
olhos de Brotherhood. Telefonema: Onde é que ele está? Jack, sai da tua pasmaceira e vem imediatamente.
Corrida nas ruas molhadas, e sem álcool. Telegrama número um, o telegrama que se
segue diz respeito a um dos membros deste Serviço, que acabamos de descobrir ser um
agente secreto soviético. Informe os seus contactos oficiais confidencialmente, antes
que eles saibam da história pelos jornais de amanhã. E seguia-se a longa espera, ao lado dos livros de códigos, enquanto Jack pensa: será ele, será ele, serei eu? Telegrama
número dois, vamos transmitir uma palavra com seis letras; ora bolas, quem é que eu
conheço com um nome de seis letras? Primeira letra, M Meu Deus, é o Miller! Segunda
letra, A Senhor, é o Mackay! Até que aparece um nome de que nunca se ouviu falar, de
uma secção cuja existência se desconhecia, e quando o relatório final do caso acaba por chegar à nossa secretária, não conseguimos mais do que 0 quadro de um rapaz de vida
precária da sala de códigos de Varsóvia, que julgou que estava a decidir do destino do
mundo, quando o que realmente desejava era lesar o chefe.
Mas estes escândalos distantes tinham sido até então como o tiro-
ei° de uma guerra que Jack estava certo de nunca encontrar no seu ca- "Mnho. E Jack ouvira-os não como avisos, mas sim como outras tantas
°nnrmações de que só fazia bem em não gostar daquilo, de que não
gostava da maneira de funcionar dos Serviços: o facto de se refugiarem
a Burocracia e na semidiplomacia, o facto de se meterem em mexeri-
s submetendo-se ao exemplo e aos métodos americanos. Por con-te> o seu próprio pessoal escolhido.a dedo continuava a subir na
nsideração que Jack lhe dedicava, e quando os caçadores de bruxas se
197
juntaram à sua porta, conduzidos por Grant Lederer e pelos seus laçai mormons e
mesquinhos, exigindo como cães a cabeça de Pym e bran dindo suspeitas fantasistas,
baseadas unicamente em meia dúzia d coincidências informatizadas, foi Jack
Brotherhood quem bateu com mão na mesa de conferências, fazendo saltar os copos de
água: Parem imediatamente com isso. Não há nenhum homem ou mulher nesta sala que não
possa parecer um traidor se começarmos a vasculhar na sua vida. Uma pessoa não se
lembra onde estava na noite do dia 10? Então, é porque está a mentir. Lembra-sê. Então,
é porque tem um alibi preparado. Se avançarem um pouco mais, todas as pessoas que
falam verdade se irão transformar em descarados mentirosos, e todos os que estão a fazer um trabalho sério se irão transformar em agentes do outro lado. Se continuarem
por esse caminho, afundam os nossos serviços muito mais depressa do que os russos
alguma vez conseguiram fazê-lo. É isso o que vocês querem?
Deus tenha piedade de Jack: com a sua reputação, a sua cólera, as suas influências e a
boa folha de serviços da sua secção, com baixos custos e alta produtividade, como se diz no calão moderno que Jack detesta, ele conseguiu o que queria, longe de pensar que
viria um dia em que se arrependeria da sua vitória.
Fechando a janela, Brotherhood parou o carro numa aldeia, onde ninguém o conhecia.
Era cedo de mais. Sentira a necessidade de sair de Londres, de estar incontactável, de
fugir aos olhos castanhos e fixos de Kate. Se o tivessem feito ir a mais uma conferência desesperada de limitação dos estragos, mais uma sessão acerca da maneira de escondera
história dos americanos, se o tivessem submetido a mais um olhar de misericórdia ou
censura de Kate ou de puro ódio do exército baço de mandarins suburbanos de Bo, Jack
Brotherhood poderia ter dito eventualmente coisas que todos, e sobretudo ele próprio,
viriam a lamentar. Por isso, preferira oferecer-se para a presente tarefa, e Bo dissera com uma prontidão invulgar:
Que bela ideia, ninguém poderia ser melhor do que tu para isso-
E assim que Jack passou a porta do gabinete de Bo, percebeu que e'
estavam tão contentes por o verem desaparecer como ele por se ir e"1
bora. Excepto Kate. Mas se não te importas, continua a telefonar disse Bo em vo
alta, já nas suas costas. No mínimo de três em três horas. Kate co
trolará as chamadas. Não é verdade, Kate? t >-
Nigel foi atrás dele pelo corredor fora. Í!
198
___ Quando telefonares para cá, liga antes para o Secretariado. Não A es usar a linha
directa dele, o primeiro a falar sou eu.
___ Isso é uma ordem sugeriu Brotherhood.
g uma licença temporária que poderá ser suspensa a todo o mo mento.
A igreja tinha um alpendre de madeira, havia um caminho ladeando um campo de jogo.
Jack passou pelo pátio de uma quinta, com os seus celeiros de tijolo, e sentiu o cheiro
do leite quente na atmosfera de
Outono. Evacuamo-los por levas, Jack diz Frankel no seu euro-inglês
descosido. Isto é, se os chegarmos a evacuar.
E só quando eu disser acrescenta Nigel do outro lado da sala.
A sala tem tecto baixo, não tem janelas, e está excessivamente iluminada. Um guarda
fardado ocupa-se da vigia. Dispondo-se a espaços ao longo das paredes, estão as assistentes grisalhas de Frankel, diante das suas secretárias desmontáveis. Trouxeram
termos e vão fumando os cigarros umas das outras. O ambiente é-lhes tão familiar como
o de um dia nas corridas. Frankel é gordo e feio, um autêntico criado de mesa da Europa
Central. Brotherhood recrutou-o, Brodierhood promoveu-o e agora é ele quem se ocupa
da confusão de Brotherhood. É assim. São três da manhã. A cena passa-se hoje, mas seis horas mais cedo.
No primeiro dia, Jack, só transportamos os agentes de primeira
diz Frankel com uma falsa segurança de mestre. Conger e Watch-
man em Praga, Voltaire em Budapest e Merryman em Gdansk.
Quando é que começamos? pergunta Brotherhood. Quando Bo der o sinal de partida e nunca antes disso diz Ni-
g«- Ainda estamos a estudar a situação e ainda admitimos a ideia de a lealdade de Pym
vir a revelar-se impecável diz Nigel, como se esti-v«se a fazer um exercício de dicção.
Vamos deslocá-los com toda a discrição diz Frankel. Nada despedidas, nada de oferecer
flores aos vizinhos, nada de procurar l°s para deixar os gatos. Segundo dia, os operadores de rádio, tercei-
ia, os agentes de segurança. Quarto dia, os restantes. ̂ ~~ Sorrio é que entramos em
contacto com eles? pergunta Bro-
j^. ~~ u não contactas com ninguém, nós é que tratamos disso diz 8 Quando e se o
Quinto Andar achar que deve ser, o que de mo- *I?1repÍt0> é uma Pura hiPÓtese.
■e entrou atrás deles. Kate é a nossa solteirona viúva inglesa, bela,
199
pálida e escultural, trazendo aos quarenta anos o luto pelos amores qu nunca teve. E
Kate continua a ser Kate, Jack vê-o nos olhos dela com a evidência de sempre.
Talvez apanhá-los na rua quando forem para o emprego ■ con
tinua Frankel. Talvez bater à porta, dizer a um amigo, deixar um bi lhete em qualquer lado. Ou qualquer outra maneira, desde que seja
nova.
E aí é que tu nos vais poder ajudar, se for caso disso explica
Nigel , dizendo-nos como é que já foi feito noutras ocasiões.
Frank deteve-se diante de um mapa da Europa de Leste. E Brothe-rhood espera à distância de um passo. Agentes de primeira a vermelho, agentes de segunda a azul. É
muito mais fácil matar um destes alfinetes do que um homem. Ainda de olhos postos no
mapa, Brotherhood recorda uma noite em Viena. Pym é o anfitrião, e Brotherhood é o
coronel Peter, portador dos agradecimentos de Londres por dez anos de serviço do seu
anfitrião. Recorda agora o discurso elegante que Pym pronunciou em checo, o champanhe e as medalhas, os apertos de mão, os cumprimentos, as valsas tranquilas no
gramofone. E aquele casal gorducho, vestido de castanho, ele físico, ela alta funcionária
no ministério do Interior checo, amantes clandestinos, com os rostos brilhantes de
entusiasmo, enquanto rodopiam na sala ao som de Strauss.
Então quando é que começam? insiste Brotherhood. Jack, a decisão pertence a Bo repete Nigel, com uma paciência perigosa.
Jack, o Quinto Andar decretou que o mais importante é ter um ar ocupado, agir com
naturalidade, conservar tudo a funcionar normalmente diz Frankel, agarrando uma pilha
de telegramas que se encontra em cima da sua secretária. Eles servem-se das caixas de
correio? Então, tirem de lá a correspondência, como é habitual. Têm rádio-Então, liguem-no como de costume, nos horários do costume, e esperemos que o inimigo ouça.
abo-
De momento, é isto o mais importante diz Nigel, como se
tudo o que Frankel diz só tivesse efeito quando repetido por ele própr'0-
Normalidade absoluta em todos os campos. Um passo premati110 poderia ser fatal.
E um passo atrasado, também diz Brotherhood, cujos oln
azuis começam a faiscar.
Estão à tua espera, Jack diz Kate, significando «vai-te em
ra, não podes fazer nada». 200
Brotherhood não se mexe.
Tratem já do assunto diz ele a Frankel. Leva-os para as
mbaixadas. Emite pela rádio um aviso. Interrompe. Nieel não diz nada. Frankel olha-o, pedindo auxílio, mas Nigel deixa cair os braços e
espreita por cima do ombro de uma das dactilógrafos de Frankel, que passa uma
mensagem.
Jack, não podemos de maneira nenhuma enfiar esses agentes nas
embaixadas ou nos consulados diz Frankel, fazendo um esgar na direcção de Nigel. Verboten. O máximo que podemos fazer, quando recebermos ordens do Quinto Andar,
é fornecer-lhes documentos novos para se porem a andar, dinheiro, transporte e as
nossas orações. Não é verdade, Nigel?
Se recebermos ordens corrige Nigel.
Conger vai para Leste diz Brotherhood. A filha dele anda na universidade de Bucareste. Ele há-de ir ter com ela.
Está bem, e depois de Bucareste, para onde é que vai? per
gunta Frankel.
Brotherhood está quase a pôr-se a berrar. Kate não tem mão nele.
Para o sul, para a maldita Bulgária, o que é que vocês julgam? Se lhe marcarmos uma data e um lugar, podemos lá mandar um avião,
fazê-lo saltar para a Jugoslávia!
E a vez agora de Frankel levantar a voz.
Jack. Vê se me ouves, sim? Nigel, fazes o favor de confirmar o
que eu vou dizer, para não ser sempre eu o mau da história. Nada de aviõezinhos, nada de embaixadas, nada de violações de fronteiras, se
jam quais forem. Já não estamos nos anos sessenta. Nem nos anos cin
quenta, nem nos anos quarenta. Já não largamos na Europa de Leste
aviões e pilotos, como se fossem alpista. Os comités de recepção que o
•migo nos prepara, a nós e aos nossos agentes, não nos entusiasmam nada. . ~~ ^s coisas são mesmo como ele está a dizer confirma Nigel,
0 se mostrando mais surpreendido do que o necessário.
tí 7~ ienno de K dizer isto, Jack. As tuas redes estão presentemente
se A R- tTí 1ue ° núnistério dos Negócios Estrangeiros nem sequer
ia ao trabalho de as deitar fora, não é verdade, Nigel? Estás isola- °>Jack WVi' i li _ - .
Ni ij ftltenau não se quer sujar com este caso. Ê assim ou não é,
Vez ' "ank está a ouvir-se a si próprio e cala-se. Olha mais uma
cr a Se^'mas não obtém qualquer palavra de apoio. Os seus olhos
~se com os de Brotherhood e põe-se a fixá-lo, longamente e com 201
inesperado receio, do mesmo modo que, quando olhamos para um m0 numento, damos por nós contemplando a nossa própria condição <j mortais. Eu só cumpro ordens, Jack.
Não olhes assim para mim. Felicidades.
Brotiierhood sobe lentamente as escadas. Subindo à sua frente, Kate abranda o passo e
estende dois dedos para a mão dele. Jack finge não ver Quando é que volto a ver-te pergunta ela. Além de cego, Jack parece ter-se tornado também surdo.
A responsabilidade que se abatia sobre os ombros de Tom Pym nessa manhã era a mais
pesada que ele tivera de carregar durante aquele primeiro mês na sua qualidade de
prefeito de colégio e comandante dos Pandas. Hoje começava a primeira semana de
serviço dos Pandas. Hoje e durante os assustadores seis dias seguintes, Tom vai ter de tocar a sineta do despertar, ajudar a directora a supervisionar os duches e fazer a
chamada antes do pequeno-almoço. Como hoje é domingo, tem de se encarregar das
cartas que serão escritas na sala de estar, fazer a leitura na capela e inspeccionar os
vestiários, evitando as desordens e os actos menos decentes. Quando por fim o dia
terminar, tem de presidir à comissão de alunos, que recolhe sugestões relativas à organização do colégio, e depois de as resumir, submetê-las-á à apreciação torturada de
Mr. Caird, o director, porque Mr. Caird nada fazia de ânimo leve e examinava sempre
as questões sob todos os ângulos. E quando, melhor ou pior, tivesse cumprido todas
estas obrigações e tocado a sineta do recolher, teria já a segunda-feira à sua espera. Na
semana anterior, tinham sido os Leões a estar de serviço, e os Leões haviam dado boa conta do recado. Os Leões, segundo afirmara Mr. Caird, num raro instante de
convicção, tinham aplicado uma perspectiva democrática do poder, organizando
votações e criando comissões destinadas a resolver toda a espécie de problemas. Na
capela, enquanto não se desvaneciam as últimas notas do cântico. Tom rezou
sinceramente pela alma do avô falecido, por Mr. Cairoe pela vitória no jogo de squash da próxima quarta-feira contra o cole gio de St. Saviour, Newbury , que seria disputado
fora de casa, emo° ra receasse que o jogo terminasse em nova derrota humilhante, p°
que Mr. Caird tinha dúvidas acerca dos méritos da competlC desportiva. Mas rezava,
sobretudo, com todo o fervor, para que, c" gado o próximo sábado, se é que chegaria
alguma vez, também 202
Pandas obtivessem os elogios de Mr. Caird, porque Tom não suportava a ideia de o
desiludir.
Tom era um rapaz de estatura elevada que começara já a imitar o modo de andar sacudido, dos dirigentes britânicos, que era peculiar ao eu pai- Atesta ̂ ta dava-lhe um ar
de maturidade, o que talvez explicasse a sua ascensão a um lugar importante no âmbito
do colégio. Ao vê-lo de mãos cruzadas atrás das costas, erguendo-se do banco de igreja
dos prefeitos, avançar pela nave, curvar a cabeça diante do altar e subir os dois degraus
até à estante das leituras, compreendíamos bem que fosse impossível adivinhar se ele era um aluno ou um dos membros do pessoal docente extremamente jovem escolhido
por Mr. Caird. Só a sua voz esganiçada, lendo aos ganidos a leitura do dia, traía a
criança perdida por trás daquela aparência senatorial. Tom não ouviu quase nada do que
estava a ler. Era a primeira leitura que fazia e ensaiara-a até saber todo o texto de cor.
Mas agora que chegara o momento de desempenhar a sua tarefa, as letras negras e vermelhas que estavam diante dos seus olhos pareciam não ter nem som nem sentido.
Só as unhas roídas dos seus polegares agarrados aos bordos da estante de leitura e a
cabeça branca que flutuava lá ao fundo, na última fila da assembleia, prendiam ainda
Tom a este mundo. Se não fosse isso, pensou ele, seria capaz de planar, subir,
atravessando o tecto da capela até ao céu, e ficando depois a levitar como o seu balão de gás do dia da comemoração, o qual voou até Maidenhead e poisou, com o seu nome
escrito, no pátio das traseiras de uma senhora de idade, o que lhe valeu cinco libras em
che-que-livro e uma carta da senhora, dizendo-lhe que também ela tinha uni filho
chamado Tom, que trabalhava no Lloyds. Pisei as uvas sozinho gritou Tom, surpreendendo-se a si pró-
y10 E entre todo o povo ninguém estava comigo: pois eu esmagá-
os-ei na minha ira e esmagá-los-ei no meu furor. A ameaça alarmou-
»e lom perguntou-se porque a teria proferido e contra quem. E o
sangue salpicará as minhas vestes e manchará tudo o que eu vestir. Continuando a ler, sentindo os joelhos tremerem no interior das W lom começou a
pensar numa série de outros assuntos que lhe
Pavam a cabeça sem ele até então ter dado por isso. Perdera toda a
v - an<*i de que o seu espírito se viesse a regular pelo que se passava à
> ate mesmo no trabalho. Na aula de ginástica de sexta-feira, dera tj 'a tentar resolver um problema de gramática latina. Na aula de la-
^ °ntem, preocupara-se com o facto-dé a sua mãe beber. E a meio
radução de francês, descobrira que já não estava apaixonado
203
por Becky Lederer, apesar da ardente correspondência que trocavam, e que preferia uma
das filhas do tesoureiro. Sob o peso do cargo de responsabilidade, o seu espírito parecia
ter-se tornado uma fatia de cabo submarino, como a que havia no laboratório de
ciências. Primeiro, havia um feixe de fios eléctricos transmitindo todas as mensagens necessárias e fazendo todo o trabalho que lhes competia; depois, nadando à volta dos
fios, como um cardume de peixes invisíveis, um número mui-to maior de mensagens
que, por uma ou outra razão, não precisavam de ligações. Era assim que Tom agora se
sentia, enquanto grasnava as palavras da Bíblia com a voz mais grave de que era capaz,
mas só para as ouvir ressoar como sinos rachados num quarto distante. Porque no meu coração está o dia da vingança, e é chegado o ano
da minha reparação disse Tom.
Pensou em balões de gás, no Tom que trabalhava no Lloyds, no apocalipse que iria
chegar quando ele reprovasse no seu exame de admissão, na filha do tesoureiro a andar
de bicicleta, com o vento colando--lhe a blusa ao peito. Interrogou-se sobre se Cárter Major, o comandante adjunto dos Pandas, teria as necessárias qualidades de chefia
democrática para se ocupar como devia ser do kickabout dessa tarde. Mas havia um
pensamento que se recusava a formular, porque a verdade é que todos os demais
funcionavam somente como seus substitutos. Havia um pensamento que não conseguia
pôr em palavras nem mesmo em imagens, porque era tão terrível que só pensar nele poderia levar à sua realização.
Como é que está o teu bife, meu filho? perguntou Jack Bro-
therhood, após um intervalo que não pareceu a Tom ter durado mais
de vinte segundos, no almoço no Digby Hotel, onde costumavam ir
sempre. Magnífico, tio Jack, obrigado disse Tom. Durante o resto ài
refeição, mantiveram-se no silêncio que, geralmente, respeitavam ate
acabarem de comer. Brotherhood tinha o seu Sunday Telegraph, e To»
um romance, que lia e relia a todo o instante, porque se tratava de m11
livro onde tudo terminava em bem e os livros em que não era esse o &s° podiam ser perigosos. Ninguém compreende melhor do que o tio JaCl£
o que deve ser um dia de saída do colégio, concluiu Tom, enquanto u
e mastigava e pensava na mãe. Nem mesmo o pai possuía uma ideia ta
certa de como tudo devia ser igual de todas as vezes e, no entanto, su
tilmente diferente nos pormenores. Como uma pessoa precisava de # tar perfeitamente calma e despreocupada e de, ao mesmo tempo» pf
204
ar o dia, fazendo mil coisas diferentes até ao último minuto. Como colégio era um sítio
que, durante a maior parte de um dia de saída, °ío devia existir, a fim de que o regresso para lá não fosse nunca men-"a ado. Só por altura da contagem decrescente final, é que
o colégio devia ser reconstruído até ao ponto necessário para que o regresso voltasse a
ser uma possibilidade.
Queres mais?
Não, obrigado. Mais um pouco de Yorkshire?
Sim, por favor. Um bocadinho.
Brotherhood ergueu as sobrancelhas, fazendo sinal ao criado, e este veio imediatamente;
era sempre assim com os criados quando o tio Jack estava presente.
Tens notícias do teu pai? Tom não respondeu logo, porque os olhos lhe começaram a arder e ele não era capaz de
respirar.
Então, então? disse Brotherhood, poisando o jornal. O
que é que se passa?
Foi aquela coisa da leitura disse Tom, lutando contra as lá grimas. Já passou.
Foste impecável a fazer a tua leitura. Se alguém te disser o con
trário, manda-o passear.
Não era aquela a que eu devia ter lido explicou Tom, ainda a
esforçar-se por voltar à tona , devia ter começado na marca seguinte, mas esqueci-me.
Isso não importa bradou Brotherhood, tão enfaticamente
que o casal idoso da mesa ao lado ficou a olhar para ele. Se a leitura
de ontem prestava para alguma coisa, não lhes faz mal nenhum terem-
-na ouvido hoje outra vez. Bebe outra ginger beer. Tom assentiu com um meneio de cabeça, e Brotherhood mandou vir z ginger beer, para
retomar em seguida a leitura do seu Sunday Tele-iraph
Provavelmente, nem tinham entendido bem da primeira vez ainda, em tom de desdém.
Mas, na realidade, o problema era que Tom não lera um texto troado; tinha lido o que
devia. Sabia disso muito bem, e suspeitava de que o Jack também não o ignorava. Só que precisava de um pretexto para orar mais cómodo do que os peixes que nadavam à
volta do cabo na cabeça, apesar de ele não o querer aceitar de maneira nenhuma.
205
Puseram-se ambos de acordo para dispensar o pudim e não desperdiçarem mais aquele
tempo tão bom. Sugarloaf Hill era uma bossa calcária nos Downs do Berkshire, rodeada de arame
farpado do ministério da Defesa e de avisos ao público para que se mantivesse afastado,
sendo também provavelmente para Tom o melhor sítio do mundo em que jamais
estivera, exceptuando a casa de Plush na altura em que nasciam os cordeiros novos.
Nem Lesh e o ski com o pai, nem Viena e a equitação com a mãe: nenhum dos lugares onde estivera ou com que sonhara era tão íntimo, tão espantosamente privilegiado como
aquela colina secreta cheia de arame farpado para manter afastados dali os inimigos, e
onde Jack Brodierhood e Tom Pym, padrinho e afilhado, para além dos melhores
amigos do mundo, podiam revezar-se a lançar nos ares pombos de barro com a máquina
e disparar sobre eles, acertando em cheio ou falhando o tiro, com a caçadeira de calibre 20 de Tom. Da primeira vez que ali tinham ido, Tom nem podia acreditar.
Está tudo fechado, a toda a volta, tio Jack objectara ele, quan
do o tio Jack parou o carro.
Até então, o dia fora bom. Agora, de súbito, tudo começava a correr mal. Tinham feito
dez milhas, de acordo com o mapa, e para desconsolo de Tom vinham dar diante de um portão alto e branco, trancado e de acesso expressamente proibido. O dia chegara ao
fim. Tom desejou estar já, de novo, no colégio a preparar as aulas, num castigo
voluntário.
Então, vai ao portão e grita-lhe «Abre-te, Sésamo» aconse
lhara o tio Jack, estendendo a Tom uma chave que tirara da algibei ra. A seguir, as portas brancas da autoridade fecharam-se atrás deles
e viu-se que os dois eram afinal pessoas à parte, com uma licença à
parte, podendo estar ali no alto da colina com o porta-bagagens aber
to, de onde tiraram a máquina de lançar pombos de barro enferru
jada, a que o tio Jack não fizera a mínima referência durante o al moço. Depois, Tom acertou em nove dos vinte pombos a que atirou,
e o tio Jack em dezoito, porque o tio Jack é o melhor atirador do
mundo, o melhor em tudo, apesar de ser já tão velho, e não perde um
jogo de propósito, para agradar seja a quem for, mesmo para agradar
a Tom. Se Tom alguma vez ganhasse ao tio Jack, teria de ser numa vitória limpa, que era o que os dois queriam, sem precisarem seque1
de o dizer. Era isso o que Tom hoje desejava acima de tudo: uma al
ternância de tiros normal, uma competição normal, com uma con-
versa normal entretanto, o tipo de coisa em que o tio Jack era brilhante. Tom queria esconder os seus pensamentos negros no fundo de urna cova e não ter de os mostrar a
ninguém até ao dia de morrer pela Inglaterra.
Foi o passeio após o almoço que libertou Tom. O tio Jack não teve nisso a mínima
parte. Não era de muita conversa e muito menos de conversas acerca de problemas
íntimos. A brusca consciência da hora do dia foi como uma ressurreição. Foi o estampido dos tiros de espingarda, o sopro do vento de Outono que o esbofeteava no
rosto e se lhe metia dentro da camisola do colégio. De súbito, todas estas coisas fizeram
com que Tom começasse a falar como um homem, em vez de choramingar entre os
lençóis com os animais de peluche que o esclarecido Mr. Caird encorajava. Lá em
baixo, no vale junto ao rio, não havia o mínimo vento, só um cansado sol de Outono e folhas doiradas ao longo do caminho de sirga. Mas aqui em cima, no cume escalvado da
colina, o vento corria como um comboio por dentro de um túnel, arrastando Tom
consigo. O vento tilintava e ria na armação metálica nova do ministério da Defesa, que
não existia ainda da última vez em que ambos ali tinham estado.
Se derrubarmos a armação a tiro, abrimos as portas aos russos gritou-lhe o tio Jack, pondo as mãos dos lados da boca. Não quere
mos uma coisa dessas, pois não?
Não!
Muito bem. Então, o que é que vamos fazer?
Pomos a máquina dos pombos aos pés da armação e disparamos "^ ripostou alegremente Tom e, ao gritar aquilo, sentiu que o aban
donavam os últimos vestígios de preocupação, que estava enfim de re
gresso a si próprio, descobrindo que, com um vento assim a açoitar o
"to da colina, seria capaz de dizer o que quisesse e a quem bem enten
desse. O tio Jack lançou dez pombos de barro e ele abateu oito com onze
lros' ° que representava o seu record absoluto, tendo em conta o ven-
°" k quando chegou a vez de ser Tom a lançar, o tio Jack teve de se es-
rçar para obter um resultado igual. Mas conseguiu e Tom sentiu por
e ainda um amor maior. Não queria vencer o tio Jack. O seu pai, tal- > mas o tio Jack, não; caso contrário, nada restaria. Nos seus segun-
s dez pombos, Tom teve um resultado mais fraco, mas não se im-
rJ°u, porque os braços lhe doíam e^a culpa não era dele. Mas o tio
Permanecia firme como uma rocha. Até quando estava a recarre-
206
207
gar a espingarda, a sua cabeça branca continuava orientada para o alvo que ia subir.
Catorze dezoito, ganhas tu gritou Tom, enquanto corria de
um lado para o outro a recolher os cartuchos usados. Bem atirado!
E depois no mesmo tom de voz e com a mesma alegria: E o papá está bem, não?
Porque é que não havia de estar? ripostou Brotherhood.
É só porque me pareceu um bocado em baixo quando me veio
visitar depois do funeral do avô.
Também acho que ele, nessa altura, devia estar bastante em bai xo. Como é que te sentias se viesses tu do funeral do teu velhote?
Continuavam os dois a gritar no meio do vento. Uma conversa de circunstância,
enquanto carregavam a caçadeira e preparavam a máquina para nova série de
lançamentos.
Passou o tempo todo a falar de liberdade berrou Tom. Dis se que ninguém no-la podia dar, que tínhamos de ser nós a apanhá-la.
Já estava a cansar-me de o ouvir.
O tio Jack estava tão ocupado a recarregar a espingarda que Tom não teve a certeza de
ele o ter ouvido. Ou de isso o interessar, no caso afirmativo:
Ele tem toda a razão disse Brotherhood, fechando a espin garda com um estalido. Nos dias que correm, o patriotismo é quase
uma obscenidade.
Tom lançou o pombo e viu-o rodopiar primeiro e ser, depois, reduzido a pó pela
pontaria perfeita do tio Jack.
Ele não falou propriamente de patriotismo explicou Tom, apanhando mais alguns cartuchos vazios.
Ah, sim?
Acho que o que me tentou dizer foi que eu devia fugir se me sentisse infeliz. E dizia
também a mesma coisa numa carta que me escreveu. É como se...
Diz lá. ... é como se ele quisesse ver-me fazer uma coisa que ele próprio não fez quando estava
no colégio. É um bocado estranho.
Não acho nada estranho. Está a pôr-te à prova, é só isso. Dizen
do que a porta está aberta se quiseres pôr-te a andar. Parece-me ser urna
manifestação de confiança, pelo que me estás a contar. Tens o melhor pai do mundo, Tom.
Tom disparou e falhou.
Que história é essa da carta? perguntou Brotherhood. Jul
guei que ele te tinha vindo visitar. E veio. Mas também me escreveu. Uma grande carta. Achei bas
tante estranho disse Tom uma vez mais, incapaz de se libertar deste
seu novo adjectivo favorito.
De acordo. Ele estava em baixo. Que mal tem isso? O pai dele
morre e ele senta-se a escrever ao filho. Devias sentir-te orgulhoso belo tiro, rapaz. Belo tiro.
Obrigado disse Tom e ficou a olhar vaidosamente para o tio
Jack que marcava um ponto na sua lista. O tio Jack tomava sempre nota
das marcas.
Mas não foi nada disso que ele escreveu disse Tom, embara çado. Ele não se mostrava em baixo. Estava contente.
Escreveu-te mesmo que estava contente?
Dizia que o avô destruíra toda a sua humanidade e que ele não
queria fazer a mesma coisa comigo.
Bom, isso é também uma maneira, um bocado diferente, de es tar em baixo disse Brotherhood, imperturbável. A propósito, o
teu pai já te falou alguma vez de um local secreto? Um sítio onde ele
pode estar à vontade em paz e sossego, de resto bem merecidos.
Não, ou quase nada.
Mas tem um sítio desses, não tem? Não me parece.
Ondeé?
Ele disse-me que não podia dizer a ninguém.
Então não digas disse com firmeza o tio Jack.
E subitamente, logo a seguir a esta conversa, falar do pai p assou a ser uma das funções obrigatórias de um prefeito democrático. Mr. wird dissera que as pessoas privilegiadas
tinham o dever de sacrificar aquilo que lhes era mais caro na vida, e Tom amava
infinitamente o seu pai. Sentiu os olhos de Brotherhood cravados em si e ficou satisfeito
por 'ne ter despertado o interesse, ainda que esse interesse não contivesse demasiada
aprovação. Já o conhece há muito tempo, não é verdade, tio Jack? in
quiriu Tom, quando estava a entrar para o automóvel.
Depende de achares que trinta e cinco anos são ou não muito
tempo.
Claro que são disse Tom, para o q'ual uma só semana durava uma eternidade. A verdade é que dentro do carro deixara de se
208
209
sentir o vento. Então, se o pai está bem continuou Tom com urna audácia simulada, ao
apertar o cinto de segurança , então, porque é que a polícia anda atrás dele? Isso era o
que eu queria saber.
Vais-nos ler hoje a sina, Mary Lou? perguntou o tio Jack.
Hoje, não, meu querido, não estou com disposição para isso. Para isso, estás sempre disposta disse o tio Jack, e começaram
os dois a rir, enquanto Tom corava.
O tio Jack dizia que Mary Lou era cigana, mas Tom achava-a mais parecida com um
pirata. Tinha um grande rabo, o cabelo preto e lábios falsos traçados acima da boca,
como Frau Bauer em Viena. Fazia bolos e servia chá com natas num café construído em madeira junto a um baldio. Tom pediu ovos escalfados com torradas, e os ovos eram
cremosos e frescos como os ovos em Plush. O tio Jack quis um bule de chá e uma fatia
do melhor bolo de frutas de Mary Lou. Ele parecia ter-se esquecido de tudo o que Tom
lhe contara, e este estava-lhe agradecido por esse facto, porque lhe doía a cabeça de ter
estado tanto tempo ao ar livre e sentia-se embaraçado com os seus próprios pensamentos. Faltavam duas horas e oito minutos para o momento em que teria de tocar
a sineta das vésperas. Pensou que poderia muito bem aceitar o conselho do pai e fugir.
■X-i,
Então, conta-me lá essa história da polícia disse Brotherhood,
com um ar ligeiramente ausente, muito depois de Tom ter concluído que o tio Jack já esquecera aquilo ou não o chegara a ouvir.
Eles foram falar com Caird. Depois, Caird mandou-me chamar.
Mr. Caird, meu filho emendou Brotherhood, com toda a
amabilidade, tomando um longo gole de chá. Quando foi isso?
Na sexta-feira. Depois do nosso jogo de rugby. Mr. Caird man dou-me chamar e lá estava um homem de impermeável, sentado na pol
trona de Mr. Caird, e disse que era da Scotland Yard e que estava ali por
causa do pai, querendo saber se eu por acaso teria a sua morada de fe
rias, porque, por distracção após o funeral do avô, o pai tinha desapa
recido sem dizer a ninguém para onde ia. Histórias! disse Brotherhood, passado um longo momento-
É verdade, tio. Palavra que é.
Disseste «eles». ■<
Mas queria dizer «ele».
Que altura tinha ele, então? 210
__- Cinco pés e dez polegadas.
Idade?
Quarenta anos. . Cor do cabelo?
Da cor do meu.
Sem barba?
Sim.
Os olhos? Castanhos.
Tratava-se de um jogo que já tinham feito ambos muitas vezes.
Automóvel?
Apanhou um táxi na estação.
Como é que sabes?
Foi Mr. Mellor que o trouxe; é ele que me costuma levar às li
ções de violoncelo, e trabalha na praça de táxis da estação.
Por favor, sê mais preciso, meu rapaz. Veio no carro de Mr. Mel
lor. E disse que tinha vindo de comboio? Não.
Então foi Mellor que to disse?
Não.
Então quem é que te disse que ele era um polícia?
Mr. Caird, sir. Quando mo apresentou. O que é que trazia vestido?
Um fato cinzento.
Disse que patente tinha?
Inspector.
Brotherhood sorriu. Um sorriso maravilhoso, tranquilizador e cheio de afecto. Meu palerma, o homem era um inspector do ministério dos Ne
gócios Estrangeiros. Quer dizer, um funcionário subalterno do serviço do
teu pai. Não era um polícia, meu filho; era um empregado de meia ti
gela do Departamento de Pessoal que não tinha mais nada que fazer.
air<i percebeu mal, como de costume. Tom sentia-se capaz de beijar o tio Jack. Esteve quase a fazê-lo. En-reitou-se e sentiu-se
cerca de nove pés mais alto do que há pouco. Teve °ntade de esconder a cara no tweed
espesso do casaco desportivo do tio ck. Claro que o homem não era um polícia, não
tinha pés grandes m cabelo curto de polícia, nem o modo*distante que é o dos polícias
a c°nnosco, mesmo quando tentam ser simpáticos. Está tudo bem, 211
disse Tom para consigo, em pleno êxtase. O tio Jack esclareceu tudo como sempre.
Brotherhood estendeu-lhe o lenço, e Tom passou-o pelos olhos. Já agora conta-me o que lhe disseste disse Brotherhood. E
Tom explicou que também não sabia onde estava o pai, que o pai fala-
ra em perder-se na Escócia durante alguns dias antes de regressar a Vie
na. Isso fizera com que o pai parecesse de algum modo em falta, uma
espécie de criminoso, ou pior. E quando Tom contou ao tio Jack tudo o mais que recordava daquela entrevista, as perguntas e o número de
telefone que lhe tinham dado para comunicar caso o pai aparecesse
não era Tom quem o tinha, de resto, mas sim Mr. Caird , o tio Jack
dirigiu-se ao telefone na sala de estar de Mary Lou e ligou para Mr.
Caird, obtendo uma prorrogação da licença de saída de Tom até às nove horas da noite, a pretexto de assuntos familiares urgentes.
Então, e a minha sineta? perguntou Tom, alarmado.
O Cárter Major trata disso respondeu o tio Jack, que estava
sempre a par de tudo e mais alguma coisa.
Brotherhood deve também ter telefonado para Londres, porque demorou muito tempo e deu a Mary Lou cinco libras de gratificação para aquilo a que ela chamava a meia de
Natal, o que os fez ter um segundo acesso de riso, ao qual Tom, desta feita, se associou.
.:
Como é que chegaram com a conversa a Corfu, isso é algo que Tom mais tarde não
seria capaz de dizer, e talvez então já estivessem a conversar sem rumo definido; era apenas tagarelice acerca do que os dois tinham andado a fazer desde a última vez, que
fora, afinal de contas, antes das férias do Verão, pelo que havia imensa coisa de que
falar, se estivessem virados para aí, e Tom estava; já não conversava assim havia
séculos, talvez nunca o tivesse feito sequer, mas o tio Jack tinha o à--vontade, tinha
aquela mescla de tolerância e de disciplina que era o ideal de Tom, porque adorava sentir a força das fronteiras do tio Jack, bem como a segurança do terreno delimitado
por elas.
Como é que vai a tua preparação para o crisma? perguntou
Brotherhood. -i <
Bem, obrigado. si - És já bastante crescido, Tom. Tens de pensar nisso * sério. H»
países em que, com a tua idade, já andarias de farda. «t,
Eu sei. ■<
212
Ainda tens problemas com os estudos?
Alguns.
Ainda estás a pensar em ir para Sandhurst?
Ainda, sir. E no regimento do meu tio, dizem que me aceitam se
eu tiver bons resultados. Vais ter de te esforçar bastante, não é?
Estou a tentar.
Depois, o tio Jack aproximou-se dele e começou a falar em voz mais
baixa.
Não sei se te devia dizer isto, meu filho. Mas vou fazê-lo, porque acho que és capaz de guardar um segredo. Não és?
Tenho imensos segredos que nunca contei a ninguém, sir.
Realmente, o teu pai é também um homem cheio de segredos.
Já deves ter dado por isso.
E o tio também é um homem cheio de segredos, não é verdade? Além disso, ele é um grande homem. Mas isso não se pode sa
ber. Para servir o país.
E para o servir a si, sir disse Tom.
Grande parte da vida dele encontra-se completamente escondi
da. Quase se poderia dizer que de todos os olhos humanos. E a mamã sabe?
Sim, em princípio, sabe. Mas dos pormenores, desconhece qua
se tudo. É assim que nós trabalhamos. E se alguma vez ficaste com a im
pressão de que o teu pai estava a mentir, ou a ser evasivo, ou a faltar à
verdade, podes estar certo de que o motivo era o seu trabalho e a sua lealdade. É um esforço permanente para ele. Para todos nós. Os segre
dos são um fardo.
E perigoso? perguntou Tom.
Pode ser. É por isso que lhe arranjámos guarda-costas. Como, P°r exemplo, uns certos rapazes de motorizada que o seguiram através
da Grécia e rondam a casa.
■ Eu vi-os! declarou Tom, entusiasticamente.
Ou como uns homens altos e magros, de bigode, que vão falar Com e'e durante os jogos
de críquete... Pois é, pois é! Havia um que trazia um chapéu de palha!
E as vezes o que o teu pai faz é tão secreto que se vê obrigado a aparecer por completo.
E nem os guarda-costas sabem onde ele está. sei- Mas o resto do mundo não
sabejiemdeve saber, e se esse tal ins- o resto do mundo não sabejiemdeve , ctor voltar a falar contigo ou com Mr. Caird, ou
se vier qualquer
213
outra pessoa, dizes tudo o que souberes e comunica-mo logo a segui Vou-te dar um número de telefone especial e mandar uma palavrinh a Mr. Caird. O teu pai merece todo
o nosso apoio. E vai tê-lo.
Fico muito satisfeito com isso disse Tom.
E essa tal carta que ele te escreveu, a longa carta que chegou de
pois de ele se ter ido embora? Falava destas coisas? Não sei. Não a li até ao fim. Havia uma grande parte da carta que
era sobre o canivete de Sefton Boyd e sobre certas coisas gravadas na
parede da casa de banho dos professores.
Quem é esse Sefton Boyd?
É um rapaz lá do colégio. É meu amigo. E também é amigo do teu pai?
Não, mas era o pai dele. O pai dele andava no mesmo colégio.
Então e o que é que tu fizeste à carta?
Mortificou-se com ela. Dobrou-a até estar toda amarrotada e aos bicos e enfiou-a no
bolso das calças, apunhalando-lhe a perna. Mas esta parte, Tom não a contou. Limitou-se a entregar de todo o coração o que restava ao tio Jack, que prometeu ter cuidado com
ela e discutir com Tom o seu conteúdo no próximo encontro de ambos.
Se houvesse alguma coisa que precisasse de discussão, do que o tio Jack muito
duvidava.
Não tens o envelope? Tom não o tinha.
Mas onde é que a carta foi metida no correio? Isso pode querer
dizer alguma coisa.
O carimbo era de Reading disse Tom.
E de que dia? Terça-feira disse Tom, com um ar infeliz , mas ele pode tê-
-la posto no correio na segunda-feira, depois da hora da última tiragem-
Pensei que ele regressava a Viena na segunda-feira à tarde. Isto é, no caso
de não ir para a Escócia.
Mas o tio Jack não deu sinais de ter ouvido, porque começou outra vez a falar da Grécia, jogando ao jogo a que os dois chamavam «escrever relatórios» a propósito do
tal tipo magrinho e de bigode que aparecera no campo de críquete de Corfu.
Achei que podias estar preocupado por causa desse homem, per' cebes, meu filho?
Deves ter ficado a pensar que ele estava a armar algu' ma com o teu pai, apesar de
parecer tão simpático. Quer dizer, se eles se conheciam assim tão bem, porque é que o teu pai não o convidou
214
ir até vossa casa e ser apresentado à tua mãe? Percebo muito bem
o assunto te possa ter incomodado, quando pensaste no caso. Não x es ter achado lá muito bonito o teu pai ter uma vida secreta mesmo por baixo do nariz da tua mãe.
__ pois não confessou Tom, maravilhado, como sempre, com omnisciência do tio Jack.
O homem pegou no braço do meu pai.
Os dois voltaram ao restaurante. Com a grande alegria de se ter libertado das suas
preocupações, Tom recobrara o apetite, e comia com gosto um bife com batatas fritas para tapar o buraco. Brotherhood pedira um whisky.
Altura? perguntou Brotherhood, recomeçando o jogo espe
cial de ambos.
Seis pés.
Muito bem. Acertaste. Seis pés, exactamente, está certo. Cor do cabelo?
Tom hesitou.
Meio pelo de rato, meio castanho às riscas disse por fim.
Que diabo queres dizer com isso?
O homem trazia um chapéu de palha. Era difícil ver-lhe o ca belo.
Já sei que ele tinha um chapéu de palha. Foi por isso que te fiz a pergunta. Cor do
cabelo?
Castanho arriscou Tom. Castanho e com o sol a bater-lhe
em cima. E uma testa alta, de génio. Ainda me hás-de explicar como é que o sol bate no cabelo por
baixo da aba do chapéu.
■ Castanho grisalho disse Tom.
Então era isso que devias ter dito. Só levas dois pontos. Fita do
chapéu? ■■ , Vermelha.
Oh, meu Deus!
Era mesmo vermelha. '
Tenta outra vez. r
■ Era vermelha, vermelha.vermelha! Três pontos. Cor da barba?
" Não tinha barba. Tinha um bigode todo eriçado. E sobrance-
Ihas
Olhados.
~~ Três pontos. Constituição? -' espessas como as tuas, mas não tão emaranhadas. E olhos encar-
215
Curvado e coxo.34
De que perna?
Da esquerda.
Tenta outra vez.
Esquerda. Tens a certeza?
Esquerda!
Três pontos. Idade?
Setenta anos.
Não sejas estúpido. Era muito velho!
Mas não tem setenta anos. Eu não tenho setenta anos. Nem ses
senta. Ou melhor, acabei de fazer sessenta. Ele é mais velho do que eu?
Da mesma idade.
Trazia alguma coisa na mão? Uma pasta. Feita de um material cinzento qualquer, que parecia
pele de elefante. E ele era um tipo forte, como Mr. Toombs.
Quem é esse Toombs?
É o nosso professor de ginástica. Ensina haikido e geografia. Já
matou gente com os pés, embora isso não seja permitido pelas regras. Muito bem, forte como Mr. Toombs e com uma pasta de pele
de elefante. Dois pontos. Para a próxima vez, suprime as referências
subjectivas.
Que referências subjectivas?
Mr. Toombs. Tu conhece-lo, eu não. Não compares uma pessoa que eu não conheço com outra que eu não conheço.
Disseste que o conhecias disse Tom, muito excitado por es
tar a apanhar em falta o tio Jack.
E conheço. Estou a brincar. E esse tipo tinha carro?
Um Volvo. Alugado a Mr. Kaloumenos. Como é que sabes isso? ,
Ele aluga-o a toda a gente. Vai até ao porto e fica por U; depois,
quando aparece alguém que quer alugar um cario, Mr. IÇi|loumenos
apresenta-lhe o Volvo. ,.
Cor? 3 Verde. E com um guarda-lamas amolgado e matrícula de Cor-
fu, além de uma cauda de raposa na antena e... í
É vermelho. . ,;
É verde! ' J
216
Zero pontos disse Brotherhood, com decisão, para vergonha
de Tom.
Porquê?
Brotherhood teve um sorriso de lobo. O carro não era dele, pois não? Como é que sabes que foi o tipo
de bigode que o alugou quando havia dentro do mesmo carro outros dois tipos? Perdeste
a tua objectividade, meu filho.
Era ele que mandava!
Não podes ter a certeza disso. Estás a adivinhar. Podias provocar uma guerra, a inventar coisas dessa maneira. Tens alguma tia Poppy, fi
lho?
Não, sir.
Algum tio chamado Poppy? Tom riu-se.
Não, sir.
O nome de Mr. Wentworth diz-te alguma coisa?
Não.
Não tens nem uma luzinha? Não. Julguei que se tratava de uma terra do Surrey.
Muito bem, meu filho. Nunca te ponhas a inventar quando te
parece que não sabes, mas que devias saber. É essa a regra de ouro.
Estava a meter-se comigo outra vez, não estava? Talvez estivesse. Quando é que o teu pai disse que voltava a
ver-te?
Não me disse.
Mas costuma dizer?
Nem por isso. Então, não há problema, pois não?
É só aquela carta.
O que é que tem a carta?
É como se ele tivesse morrido.
Histórias! Isso é imaginação tua. Não me queres dizer outra coi-* que sabes muito bem? Esse tal refugio secreto do teu pai, para onde e 101. Podes dizer-mo, não faz mal. Nós
sabemos como é. Deu-te o endereço?
-Não.
Disse o nome da cidade escocesa mais próxima?
Não. Só me falou da Escócia. Junto^o mar, na Escócia. Um lu-Para escrever, onde está ao abrigo-de todos.
217
dizer m Í ^ ° ̂ * P°dla ^ T°m- Nã° «* autorizado,
dizer mais nada. Quantas divisões tem essa casa? * Isso também não me disse.
E quem é que lhe faz as compras?
soaÍ
lh^ í
o relógio. r-Tenho de falar com
P Um Cert° cã0 - e sorrind° -"da, Bro-
Se hÍvT I VanÇ°U ^ a P°rta qUC ***<<Casas de banho e Telefone» Se havia alguma
coisa que Tom fosse, era um bom observador. Havia
T /ade "^ dÍVOrCÍad°' maS ela conservava-se e-lodesdequeeleaavisasse. Tinha uma filha, casada com
um advogado em Pinner, e queria que ela e ele fossem juntos para o dia-
Dorde"'Íí retrÍbUÍamP°rÍgUaI- N°entantO> «^bebido por dever. E havia ainda a
nulidade de um filho, que lá ia conseguindo
viver com as maiores dificuldades do seu trabalho no palco, e se Brotherhood tivesse suficiente pena dele, o que curiosamente lhe acontecera com alguma frequência durante
os últimos tempos, e se conseguisse suportar a sordidez e o cheiro da urina como
noutras ocasiões, seria bem recebido no monte de cobertores gordurosos a que Adrian
dava o nome de cama dos hóspedes. Mas nessa noite e em todas as que passassem antes
de conseguir conversar com Pym, Brotherhood não queria ir para nenhum destes lugares. Preferia o exílio e a segurança da porcaria do seu pequeno apartamento, em
Shepherd Market, com os pombos sujos de fuligem, metendo-se uns com os outros no
parapeito janda> e "* Putas lá em baixo no passeio de um lado para o outro, como
costumavam fazer durante a guerra. S|erTjfaZÍam tentativas Periódicas para lhe tirarem aquela casa ou para lhe deduzirem a
renda no vencimento. Os funcionários da secretaria detestavam-no por causa disso, e
diziam que a casa era o seu
bordel privativo, o que não deixava uma vez por outra de ser verdade. Levavam a mal os seus pedidos de ajudas de custo para pagar bebidas ou empregadas de limpeza que
não tinha. Mas Brotherhood era mais forte do que eles todos juntos, coisa que os outros,
no fundo, não ignoravam.
Os serviços de investigação desencantaram mais material sobre
a utilização dos jornais pelos serviços secretos checos disse Kate, com a cara voltada para o travesseiro. Mas nada de concludente.
Brotherhood bebeu um longo gole de vodka. Eram duas da manhl. Ele e Kate estavam
ali havia uma hora.
Não me digas? O grande espião pica com um alfinete as letras do
jornal e depois, assim marcado, envia-o pelo correio para o chefe. O dito chefe lê o jornal contra a luz e decifra os planos de Armagedão. Para
a próxima, vão usar semáforos.
Kate estava deitada, branca e luminosa, ao lado de Brotherhood, na cama pequena, uma
debutante quarentona de Cambridge que se transviara. A luz de um cinzento rosado, que
passava através das cortinas encardidas, recortava a figura de Kate em fragmentos clássicos. Aqui, uma coxa, ali, a barriga de uma perna, depois, o cone de um seio, e o
contorno de um flanco. Ela voltara-se de costas para ele, com uma das pernas
ligeiramente soerguida. Ora bolas, o que é que quer de mim, esta triste e linda jogadora
de bridge do Quinto Andar, com o seu ar de amante abandonada e a sua sensualidade
disciplinada? Depois dos sete anos da ligação de ambos, Brotherhood ainda não conseguira compreender. Podia andar em serviço de inspecção pelas mais diversas
delegações dos Serviços, podia partir para o país dos Bonga-Bonga. Podia não lhe
telefonar nem lhe escrever durante meses. Mas assim que tirava da mala a escova de
dentes, ali estava Kate nos seus braços, chamando-o com os seus olhos tristes e
famintos. Terá ela mais cem como eu ~~ seremos todos nós os seus pilotos de guerra, implorando os favores dela, quando regressamos estropiados a casa, entre duas missões?
Ou se-rei eu o único que faz com que a estátua se anime?
E Bo chamou mais um psiquiatra célebre para ajudar à festa
sse ela, com a sua pronúncia impecável das vogais. Um tipo espe-
C1auzado em esgotamentos nervosos inofensivos. Passaram-lhe o dossier e "ym e pediram-lhe que definisse o perfil de um leal súbdito inglês metido a intensas condições
de stress e despertando ansiedade nos utros, especialmente entre os americanos. -
Só falta chamarem um médium"12^ disse Brotherhood.
218
219
Puseram sob vigilância os voos para as Bahamas, para a Escócia e
para a Irlanda. Sem resultado. Controlaram os navios, as firmas de alu
guer de automóveis e de Deus sabe que mais. Têm autorizações de es
cuta para todos os telefones de que ele alguma vez se serviu e uma auto rização geral para tapar todos os buracos. Cancelaram as licenças e os fins
de semana de todos os descodificadores de mensagens e puseram de aler
ta as equipas de vigilância vinte e quatro em cada vinte e quatro horas,
sem dizerem a ninguém porque fizeram tudo isso. A cantina é uma
atitêntica capela mortuária, ninguém fala com ninguém. Andam a in terrogar todas as pessoas que compartilharam alguma vez um gabinete
com ele ou que lhe compraram um carro em segunda mão; puseram fora
os inquilinos da casa dos Pyms em Dulwich e levantaram o soalho e os
revestimentos de cima a baixo, fingindo-se especialistas na caça ao ca
runcho. Agora o Nigel diz que vai transferir todas as brigadas de inves tigações para uma casa segura em Norfolk Street, dadas as proporções
que o caso está a assumir; contando com os auxiliares, são cerca de cen
to e cinquenta pessoas. O que é que está dentro da Caixa Destruidora?
Porquê?
Há um mistério qualquer à volta dela. Não falam disso diante das crianças. Bo e Nigel fecham-se em copas assim que essa Caixa vem
à baila.
E a imprensa? perguntou Brotherhood, como se tivesse res
pondido à pergunta dela, em vez de a iludir.
Tão controlada como de costume. De Titbits para baixo. Bo al moçou ontem com os directores. E já escreveu também aos patrões dos
directores para o caso de transpirar alguma coisa. Explicou-lhes corno
os boatos minam a nossa segurança. As especulações sem fundamento
são o verdadeiro Inimigo Interno. Nigel está a exercer toda a sua pressão
sobre a gente da rádio e da televisão. Uma pressão de mais de oitenta quilos. E quanto ao pseudochui-
Quem quer que tenha falado com o director de Tom, não era um
dos nossos. Nem dos Serviços nem da Polícia.
Talvez fosse da Concorrência. Não têm de nos pedir autori»
çáo primeiro, pois não? Bo está em pânico com a ideia de os americanos poderem
sencadear uma caça ao homem por conta própria.
Se fossem os americanos, não era só um, tinham ido três. y
ter sido, com toda a certeza, o descarado de um checo. E a manei
trabalhar deles. Já era assim com os pilotos no tempo da guerra. 220
O director descreveu-o como um inglês retinto, sem o menor
traço de estrangeiro. Não apanhou o comboio nem à ida nem no regresso. Disse que era
o inspector Baring, da Secção Especial. Não há ninguém nessas condições. O preço da corrida de táxi entre a estação e o colégio foi de doze libras, e o homem não pediu
factura. Imagina um polícia a dispensar uma factura de doze libras. Deixou um cartão de
visita falso. Eles andam à procura da tipografia, do fabricante do papel e, se calhar, até
dos industriais da tinta, mas não querem meter na história nem a Polícia, nem a
Concorrência, nem os agentes de ligação. Estão dispostos a fazer todas as investigações imaginárias desde que não assustem a caça.
E o número de telefone de Londres que o homem deu?
Era inventado.
Dava-me vontade de rir, se estivesse com disposição para isso. E
que pensa Bo do cavalheiro de bigodaça e pasta na mão, que pegou no braço de Pym durante os jogos de críquete?
Recusa-se a fazer comentários. Diz que se andássemos a contro
lar todos os nossos amigos durante os jogos de críquete, ficávamos sem
amigos e sem críquete. Destacou algumas raparigas para trabalho extra,
e pô-las a passar a pente fino uma lista de personalidades checas, e con tactou a delegação dos Serviços em Atenas, para mandarem de lá al
guém a Corfu interrogar o tipo da firma de aluguer de automóveis. E
esperar e ter confiança em Deus, pedindo que Magnus volte ao lar.
E qual é a minha posição no meio de tudo isso? Encostado à pa
rede? Estão cheios de medo de que tu destruas o Templo.
Julguei que isso já tinha sido feito por Pym.
Então, talvez seja por considerarem que tens contactos duvido-^s disse Kate, com a sua
voz incisiva de abelha mestra.
orotherhood bebeu mais um longo trago de vodka. Se eles ao enos safassem o raio das redes de informação. Se por uma vez fizessem o qUe é evidente que deviam fazer.
Não querem fazer nada que alerte os americanos. Preferem en--se em mentiras que vão
acabar por perdê-los. «Tivemos três gran-traidores em três anos apenas. Mais um, e o
melhor será arrumar-"^ botas.» É o que diz Bo.
em essas coisas. m K tão>os agentes vão morrer pela Relação Especial. Acho ópti-°-^-eles também vão
achar. Compreender erá que acabarão por dar com ele?
221
ÉL
i sert
Talvez.
Talvez, é pouco. Quero saber, Jack. Vão dar com ele? Vais s
a dar com ele? m Subitamente, a voz de Kate tornou-se insistente e imperiosa. Tirou o copo da mão de
Brotherhood e bebeu o resto do vodka, enquanto ele a fitava. Debruçou-se da cama e
pescou da carteira um cigarro. Estendeu os fósforos a Brotherhood, que lhe acendeu o
cigarro e lho devolveu em seguida.
Bo pôs uma data de macacos diante de uma data de máquinas de escrever disse Brotherhood, fitando ainda Kate com insistência.
Talvez algum deles descubra o que ele quer. Não sabia que fumavas,
Kate.
Não fumo.
E gosto de ver que estás também a beber a sério. Não me lembro de te ver emborcar vodka dessa maneira, palavra que não me lembro.
Quem é que te ensinou a beber assim?
Porque é que não havia de beber?
Seria mais correcto perguntar porque é que havias de beber. Es
tás a tentar dizer-me alguma coisa, não é? Uma coisa que eu não vou gostar de ouvir. Por um momento, pensei que me estavas a espiar por
conta de Bo. Julguei que estavas a armar em Jezabel comigo. E depois
pensei: não, ela está a tentar dizer-me alguma coisa. Está a esforçar-se
por fazer uma pequena confissão íntima.
Ele é um perjuro. Quem, minha querida?
Magnus.
Ah, sim? Não me digas. Magnus é um perjuro. E porquê?
Abraça-me, Jack.
Era só o que faltava. Brotherhood afastou-se dela e viu que aquilo que em Kate lhe parecera arrogância era uma estóica aceitação
de desespero. Lá estava ela, olhando-o fixamente com os olhos tristes e
com o rosto marcado pela resignação.
«Amo-te, Kate» disse ela. «Se me livrares desta, caso con
tigo e vamos os dois viver juntos e felizes para sempre.» Brotlierhood tirou-lhe o cigarro e puxou uma fumaça.
«Despacho Mary. Vamos os dois para o estrangeiro. França-
Marrocos. Tanto faz.» Eram telefonemas dos cantos mais rernoto
deste mundo. «Telefonei para te dizer que te amo.» Mandava-me ra
mos de flores com bilhetes de amor. Cartões. Bilhetinhos metidos n° 222
■ je outras coisas, enfiados por baixo da porta e até, só para mim,
A ntro de envelopes confidencialíssimos. «Já vivo de ses há tempo de
ais Agora quero acção, Kate. És a minha salvação. Ajuda-me. Amo- -te. M.»
Brotherhood esperou uma vez mais.
«Amo-te» repetiu Kate. Ele não se cansava de mo dizer.
Corno se fosse um rito em que se esforçava por acreditar. «Amo-te.» Devia pensar que
se o dissesse muitas vezes a muita gente, isso poderia vir a ser verdade um dia. Mas não foi. Ele nunca na vida amou uma mulher. Todas as mulheres eram para ele como
inimigas. Chega-te para mim, Jack!
Para sua própria surpresa, Jack sentiu-se de súbito muito próximo dela. Puxou-a para si.
E apertou-a com força contra o peito.
Bo sabe alguma coisa disso? perguntou ele. Sentiu o suor escorrer-lhe pelas costas. Farejava a presença de Pym em todos os poros
de Kate. Kate moveu a cabeça, encostada ao corpo dele, mas Jack sacudiu-a
suavemente, obrigando-a a dizer em voz alta: «Bo não sabe de nada. Não, Jack, Bo não
faz a mínima ideia».
Magnus queria apenas dominar inteiramente as pessoas dis se ela. Podia ter-me dito em qualquer altura. Mas isso não lhe che
gava. «Espera por mim, Kate. Vou cortar as amarras e ficar livre. Kate,
sou eu, onde estás?» Estou aqui, meu idiota, senão não podia atender o
telefone, não te parece? Magnus não tem aventuras, tem vidas. Para
ele, era como se vivêssemos em planetas diferentes. Lugares que ele pode visitar à vontade, enquanto navega no espaço. Sabes de que fotografia
rainha ele gostava mais?
Acho que não sei, Kate disse Brotherhood.
E uma fotografia em que estou nua numa praia da Normandia.
""Umo-nos escapado um fim-de-semana. Estou de costas voltadas Para ele, avançando para o mar. Nem sequer sabia que ele tinha levado a Equina
fotográfica.
Es uma rapariga muito bonita, Kate. Também eu ficaria entu-asmado com uma
fotografia dessas disse Brotherhood, afastando-""K o cabelo do rosto para a olhar. ~~ Mas ele gostava mais da fotografia do que de mim. De costas vol-para ele, eu podia
ser uma pessoa qualquer a rapariga na praia,
seu sonho. As suas fantasias ficavam intactas. Tens de me livrar desta, Jk
■ Estás muito ligada a ele?
223
Bastante.
E escreves-lhe?
Kate fez com a cabeça um sinal negativo. Fazes-lhe uns jeitos? Fazes batota com o regulamento por cau
dele? É melhor contares-me tudo, Kate Brotherhood esperou, sen
rindo a pressão crescente da cabeça dela contra o seu corpo. Estás a
ouvir? Kate disse que sim com um movimento de cabeça. Estou
arrumado, Kate. Mas tu ainda tens algum tempo de vida. Se alguma vez se vier a saber que tu e Pym fizeram alguma coisa os dois, nem que fosse
tomar um batido de morango no McDonald's enquanto o autocarro não
vinha, rapam-te o cabelo e despacham-te para o Desenvolvimento Eco
nómico, antes de teres tempo de chamar por mim ou por outro Jack
qualquer. Sabes disso, não sabes? Outro sinal afirmativo.
O que é que fizeste para ele? Roubaste uns segredos, não? Al
gum petisco suculento, directamente do próprio prato de Bo? Kate
abanou a cabeça. Vá lá, Kate. Ele também me enganou a mim. Não
te vou lançar às feras. O que é que fizeste para ele? Havia um documento no dossier pessoal dele disse ela.
E depois?
Ele queria que eu o tirasse do dossier. Era um papel muito anti
go. Um relatório do Exército, do tempo do serviço dele na Áustria.
E quando é que tu fizeste isso? Há muito tempo. A nossa história começara havia cerca de um
ano. Magnus voltara de Praga.
E tu fizeste-lhe isso. Uma incursão no dossier dele.
Ele dizia que aquilo não tinha importância. Era muito novo na
altura do relatório. Ainda não passava de um rapaz. Tinha introduzido um agente de segunda na Checoslováquia. Uma violação de fronteira.
Uma coisa sem importância. Mas entrou em cena uma certa rapariga
chamada Sabina, que queria casar com ele e fugiu para o lado de cá. Nao
prestei muita atenção à história. Magnus dizia que se alguém exami
nasse o dossier dele e desse com aquele episódio, não teria nunca a me nor hipótese de chegar ao Quinto Andar.
Mas isso não é o fim do mundo, pois não?
Kate abanou a cabeça, dizendo que não.
Esse agente devia ter nome disse Brotherhood. Um nome de código. Greensleeves.
É bem pensado. Gosto. Greensleeves. Um agente perfeitarnen'
224
britânico. Tiraste o papel do dossier, e depois o que lhe fizeste? Con-\í Kate. Agora já não tem importância. Vá.
__ Roubei-o.
£stá bem. E o que é que lhe fizeste a seguir?
poj exactamente isso o que ele me perguntou.
Quando? __ Quando me telefonou.
Quando?
Na segunda-feira passada, à noite. Já depois da hora em que de
via ter partido para Viena.
A que horas? Vamos lá, Kate, isto avança. A que horas te telefo nou ele?
Dez. Não, foi mais tarde. Dez e meia. Espera, um bocadinho
mais cedo. Eu estava a ver o telejornal das dez.
Que parte das notícias?
Era o Líbano. O bombardeamento. Em Tripoli ou não sei onde. Baixei o som assim que ouvi a voz dele, e o bombardeamento continuou
durante muito tempo como se fosse um filme mudo. «Precisava de
ouvir a tua voz, Kate. Peço-te desculpa por tudo. Telefonei para te pe
dir desculpa. Eu não era má pessoa, Kate, nem tudo era mentira.»
Não era? Sim. Não era. Ele estava a fazer uma retrospectiva. Não era. Eu
disse-lhe: isso é porque o teu pai morreu, vais ficar bem, não chores.
Não fales como se fosses tu quem tivesse morrido. Vem até cá. Onde é
que estás? Vou aí ter contigo. Mas ele disse que não podia ser. Que já
nao era possível. Depois falou do dossier. Disse que eu tinha toda a uberdade de contar a toda a gente o que fizera e não precisava de con
tinuar a encobri-lo. Mas pediu-me que lhe desse uma semana. «Uma se-
mana, Kate. Não é muito, depois de tantos anos.» A seguir, pergun
tou-me se ainda tinha o papel que tinha tirado do dossier. Se o destruíra,
se tmria ficado com alguma cópia. E o que é que tu disseste?
Kate foi à casa de banho e voltou de lá trazendo na mão a bolsa bor-*da onde guardava
as suas coisas de toilette. Tirou daí um papel casta-nh dobrado e estendeu-lho. Deste-lhe
uma cópia? Não.
Mas ele tinha-te pedido uma? ,,, -*""' Não. Eu não o teria feito. E acho que ele sabia disso. Tirei o pa-
225
pel do sítio e disse-lhe que o tirara. Ele teria de acreditar em mim P sava que um dia
voltaria a pôr o papel no seu lugar. Isto era um elo e tre nós. Onde é que ele estava quando te telefonou na segunda-feira?
Numa cabine.
A chamada era por conta do destinatário?
A chamada não era de muito longe. Acho que ele gastou quatro
moedas de cinquenta^íwcí. Repara que mesmo assim, podia estar a fa lar-me de Londres. Com ele nunca se sabe. A chamada demorou cerca
de vinte minutos, mas na maior parte do tempo, ele parecia incapaz de
falar.
Conta-me como foi. Vamos lá meu amor. Só terás de me contar
a história uma vez, prometo. Portanto, o melhor que tens a fazer é di zer-me tudo.
Perguntei-lhe: Porque é que não estás em Viena?
E o que é que ele te respondeu?
Disse-me que estava a ficar sem moedas. Foi a ultima coisa que
me disse. «Acabaram-se-me as moedas.» Havia algum sítio para onde ele te costumasse levar? Um refu
gio?
íamos para o meu apartamento, ou então para hotéis.
Que hotéis?
O Grosvenorem Victoria Station era um deles. E o Great Eastern, em Liverpool Street. Os quartos favoritos dele são os que dão para as li
nhas do comboio.
Dá-me os números.
Enlaçando-a, Brotherhood conduziu-a até à secretária e rabiscou os dois números que
Kate lhe ditou; a seguir enfiou o seu velho roupão, apertou o cinto e sorriu-lhe. Eu também gostava muito dele, Kate. Ainda fui mais parvo do
que tu. Mas o sorriso de Jack não foi correspondido. Ele falou-te
alguma vez num sítio longe de tudo, uma espécie de sonho dele?
Brotherhood serviu um pouco mais de vodka a Kate, que pegou no
copo e bebeu. A Noruega disse ela. Queria ver a migração das renas. D'' zia que um dia me levaria lá
com ele.
E mais?
A Espanha. O norte da Espanha. Dizia que ia lá comprar um
casa para nós.
£ costumava falar-te do que escrevia?
__ Nem por isso.
Mas dizia-te onde gostaria de escrever a sua grande obra?
f<f0 Canadá. Havíamos de ir hibernar para um sítio qualquer, cheio de neve e alimentar-nos-íamos de comida enlatada.
£ o mar? Nada junto ao mar?
Não.
Falou-te alguma vez de um tal Poppy? Alguém que se chama
poppy, como uma das figuras do livro dele? Ele nunca falara das mulheres que tinha tido. Já te disse. Vivía
mos em planetas diferentes.
E falou-te de alguém chamado Wentworth?
Kate abanou a cabeça em sinal de negação.
«Wentworth era a Nemésis de Rick» recitou Brotherhood «Poppy era a minha. Passámos os dois a vida inteira a tentar corrigir o
mal que lhes tínhamos feito.» Tu ouviste as gravações. Leste as trans-
aições. Wentworth.
Ele é louco disse ela.
Deixa-te estar disse ele. Fica o tempo que quiseres. Voltando para junto da secretária, varreu os livros e papéis que lhe
cobriam o tampo, de um só gesto, e acendeu o candeeiro. Sentou-se e pôs a folha de
papel castanho ao lado da carta amarrotada de Pym para Tom, carimbada de Reading.
As listas telefónicas de Londres estavam poisadas no chão, ao lado dele. Procurou
primeiro o Grosvenor Hotel-, Victoria, e pediu ao porteiro da noite que lhe ligasse para o quarto que tinha o número que Kate lhe indicara. Atendeu um homem ensonado.
Daqui, o detective do Hotel disse Brotherhood. Temos
motivos para pensar que o senhor está com uma mulher no quarto.
É claro que tenho o raio de uma mulher no quarto. Paguei um
quarto de casal e, além disso, somos casados. Não era nenhuma das vozes de Pym.
Brotherhood riu na direcção de Kate, ligou depois para o Great Eas-*rn< e obteve um
resultado semelhante. Ligou para a Independem Te-
lsi°n, serviço de notícias, e pediu para falar com o chefe de redacção 0 turno da noite.
Disse que era o inspector Markley da Scotland Yard ; e tinha uma pergunta urgente a fazer: «Queria saber a hora da trans-
segunda-feira passada», 'perou ao telefone todo o tempo que foi necessário, enquanto
con-
s«ao da notícia sobre o bombardeamento de Tripoli no noticiário das % de segunda-
feira passada» Es
226
227
tinuava a passar as folhas da carta de Pym. Carimbo de Reading P no correio na segunda-feira à noite, ou na terça de manhã.
Dez horas, dezassete minutos e dez segundos. Foi a essa hora
ele te telefonou disse Jack, olhando para trás, certificando-se d
que Kate estava bem. Estava sentada na cama, encostada ao travessei
ro, com a cabeça deitada pata trás, como um boxeur entre dois assalto Brotherhood ligou para a secção de investigações dos Correios e falou com a
funcionária do turno da noite. Deu-lhe a senha dos Serviços e ela respondeu: «Diga»,
num tom lúgubre, como se a Terceira Guerra Mundial estivesse prestes a começar.
Vou-lhe pedir o impossível e preciso dele até ontem no máximo
disse Brotherhood. Vamos fazer o melhor que podermos disse a empregada do
outro lado.
Quero que me descubram todas as chamadas feitas com moedas,
das cabinas da área de Reading, para Londres, entre as dez e as dez e de
zoito minutos, na segunda-feira passada. A chamada que me interessa durou cerca de vinte minutos.
É impossível respondeu a empregada dos Correios, sem he
sitar.
E um espanto disse ele para Kate, espreitando para trás por
cima do ombro. Kate virara-se na cama, e estava deitada de barriga para baixo, com o rosto escondido num dos braços.
Brotherhood desligou e concentrou-se atentamente nos papéis que Kate retirara do
dossier pessoal de Pym. Três das folhas eram extraídas da folha de serviços do
primeiro-tenente Magnus Pym, número acima referido, dos Serviços de Informações,
destacado para a Unidade de Interrogatórios n° 6, Graz esta última era referida numa nota como uma unidade militar ofensiva de recolha de informações, com uma
autorização especial para se servir de informadores locais. A folha de serviços estava
datada de 18 de Julho de 1951, autor desconhecido, p&' sagem relevante sublinhada
pelo Registo. Data de entrada no dossif pessoal de Pym, 12 de Maio de 1952. Motivo da
inclusão no dossier: apresentação formal da candidatura de Pym aos Serviços. O excer to era retirado da apreciação final do comandante, no termo do ternp0 de serviço de
Pym, em Graz, Áustria: «...jovem oficial com quali"a excepcionais... popular e cortês na
messe... adquiriu excelente repu ção pela habilidade com que manobrou a fonte
Greensleeves, que longo dos últimos onze meses forneceu a esta unidade informações
■ ultra-secretas acerca da formação da batalha soviética na Che-
lováquia...» ,,-■•. v o XT- f
gjfás bem? disse Jack, dirigindo-se a Kate. Ouve. Nao fa
nada de mal. Ninguém deu pela falta destes papéis. De resto, eles
' seriam de préstimo para ninguém. Ninguém ia investigar isto. Brotherhood virou a página: «...relação pessoal estreita estabelecida
a fonte e o oficial encarregado da missão... a força serena de Pym
durante a crise... a insistência da fonte em colaborar apenas por meio
de Pym...» Depois, continuou rapidamente a ler até final, voltando em
seguida ao princípio, para reler tudo com mais atenção. Afinal, o comandante também estava apaixonado por ele
disse Jack. «...excelente memória para os pormenores... relatórios lúcidos, escritos
muitas vezes durante as primeiras horas da manhã, após reuniões de discussão
prolongadas... grandes dotes de animador...»
Nem sequer refere Sabina queixou-se Brotherhood, dirigindo-se de novo a Kate. Não consigo perceber porque diabo estaria ele tão preocupado. Porque é que arriscou tanto
contigo, para suprimir um papelito pré-histórico, que só continha elogios para ele? Deve
ter sido mais uma das manias daquele espírito tortuoso; não tem nada a ver connosco.
Mas também não é coisa que me surpreenda.
0 telefone tocou. Brotherhood olhou para trás. A cama estava vazia e a porta da casa de banho fechada. Preocupado, ergueu-se de um salto e abriu a porta a toda a velocidade.
Kate estava bem, de pé diante do lavatório, a molhar a cara. Brotherhood tornou a
fechar a porta e pre-àpitou-se para o telefone. Era um aparelho verde, cor de musgo,
com teclas cromadas. Levantou o auscultador e resmungou: «Está?». Jack? Vamos
embora. Estás pronto? Despacha-te. Brotherhood carregou num botão e continuou a ouvir a mesma voz e tenor sobre o ruído de fundo de uma tempestade electrónica.
Vais gostar desta, Jack. Jack, estás a ouvir. Está lá? ~~ Estou a ouvir, Bo.
Acabo de falar com Carver pelo telefone Carver era o chefe
Qe'egação americana em Londres. Ele insiste em que os seus ho-
ens conseguiram pistas novas do nosso mútuo amigo. Querem vol- ,_a Pegar imediatamente no caso dele. Harry "Wexler vai apanhar o
e Washington para cá, para as coisas se passarem como deve ser.
~~ Só isso? .'
" E não chega?
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229
E onde é que eles acham que ele está? perguntou Brothe-
rhood.
E aí que bate o ponto. Eles não perguntaram, nem se mostram
preocupados com isso. Partem do princípio de que ainda deve estar a tratar das coisas do pai disse Brammel, muito contente. Acha
ram até que era uma altura excelente para nos reunirmos por isso mes
mo. E o nosso amigo que vá tratando dos seus problemas pessoais. No
que lhes diz respeito, tudo continua igual. A não ser as tais pistas novas
Sejam elas quais forem. E a não ser também as redes de informação disse Brothe-
rhood.
Quero que venhas comigo à reunião, Jack. Quero-te lá, para lu
tares ao meu lado, como costumas fazer. Fazes-me esse favor?
Se for uma ordem, faço o que for preciso. A voz de Bo parecia a de alguém que organiza uma festa comemo-
rativa:
Convidei todos os que em circunstâncias normais estariam pre
sentes. Não devemos excluir nem acrescentar ninguém. Náo quero que
haja nada que chame a atenção. Nada de ondas enquanto andarmos à procura dele. Ainda é possível que tudo isto não passe de uma tempes
tade num copo de água. É essa a ideia de Whitehall. Eles sustentam
que o problema com que estamos a haver-nos é um prolongamento da
situação anterior e não uma situação nova. Nos últimos tempos, têm lá
uns tipos com cabeça. Alguns nem sequer são funcionários de carreira. Tens dormido bem?
Nem por isso.
Nós também não. Temos de nos manter unidos. Neste mo
mento, Nigel encontra-se no ministério dos Negócios Estrangeiros.
Ah, sim? disse Brotherhood em voz alta, ao desligar o telefo ne. Kate?
Oqueé?
Vê se deixas sossegadas as minhas lâminas da barba, estás a ouvir. Tanto tu como eu,
estamos velhos de mais para cenas de teatro.
Jack esperou por um momento, marcou o número da Sede e pediu para falar com o funcionário da noite.
Têm aí um moço de recados?
Temos.
Daqui, Brotherhood. Quero um dossierào ministério da Guer
ra. Do exército de ocupação britânico na Áustria, um caso antigo. Ope
cão Greensleeves, por incrível que o nome pareça. Onde é que poderá estar esse
dossier?
Acho que deve estar no ministério da Defesa, porque o da Guer
ra foi desmantelado há para aí uns duzentos anos. Com quem é que estou a falar?
Nicholson.
Então, olhe, não tem nada que achar. Descubra o dossier, man
de-o lá buscar e telefone-me quando o tiver em cima da sua secretária.
Tem aí um lápis? Parece-me que não. Nigel deu instruções no sentido de tudo o
que você pedir para aqui passar primeiro pelo Secretariado. Desculpe,
Jack.
Nigel está no ministério dos Negócios Estrangeiros. Confirme
com Bo. Entretanto, peça para o ministério da Defesa o nome do co mandante do n° 6 de Interrogatórios, de Graz, Áustria, a 18 de Julho
de 1951. Estou com pressa. Greensleeves, tomou nota? Talvez você não
goste de música.
Brotherhood desligou e puxou ferozmente para si a carta amarrotada de Pym para Tom.
Ele é uma concha disse Kate. O que é preciso é encontrar o eremita que se lhe meteu dentro. Náo procurem saber a verdade acer
ca dele. A verdade dele é aquilo que lhe demos de nós próprios.
Claro disse Brotherhood. E pegou numa folha para tomar
notas, enquanto lia em silêncio. Se eu não te escrever durante algum tem
po, lembra-te de que penso em ti a toda a hora. Pieguices de bêbado. Se precisares de ajuda e não quiseres recorrer ao tio jack, aí vai o que devesfa-
zer- Brotherhood continuou a ler, anotando uma a uma as instruções de
tym para o filho. Não canses tanto a cabeça com essas coisas da religião,
tenta confiar apenas na bondade de Deus. Raios o partam! excla-
m°u, em intenção de Kate, Brotherhood, atirando com o lápis, e en terrando a cabeça entre as mãos, enquanto o telefone começava de novo
a tocar. Deixou-o tocar durante algum tempo, e sentiu-se melhor. De-
P°is levantou o auscultador, dando uma olhadela ao relógio de acordo
^n» um hábito antigo.
O dossier que você queria desapareceu há anos disse Nichol-°n> com um tom de voz satisfeito. Como?
do.
Foi mandado para nós. Eles dizenrfjue têm o registo da saída do Sler> de lá para aqui,
mas que nós nunca o devolvemos.
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231
Nós, mas quem? "$■/,
A secção checa. Foi requisitado por um dos nossos funcionar'
de Londres, em 1953.
Quem era ele? M. R. P. Deve ser Pym. Quer que eu telefone para Viena e lh
pergunte o que fez do dossier?
Trato eu disso, amanhã de manhã disse Brotlierhood. . £ 0
comandante?
Era um tal major Harrison Membury, do Corpo de Educação do Exército.
De onde?
Estava adstrito aos Serviços de Informação do Exército, duran
te os anos de 1950 a 1954.
Meu Deus do céu! Tem a morada? Brotherhood tomou nota do endereço, lembrando-se de um trocadilho de Pym,
parafraseando Clemenceau: os serviços de informação militares têm tanto a ver com os
serviços de informação como a música militar com a música.
Brotherhood desligou o telefone.
Nem sequer industriaram bem o pobre funcionário de serviço! tornou a exclamar Brotherhood na direcção de Kate.
E depois retomou os seus trabalhos de casa, já mais bem disposto. Algures para além de
Green Park, um dos relógios de Londres batia as três horas da madrugada.
Vou-me embora disse Kate. Estava de pé junto à porta, já vestida.
Brotherhood levantou-se no mesmo instante. Não vais, não. Ficas aqui até eu te ouvir rir.
Foi ter com ela e voltou a despi-la. Tornou a metê-la na cama.
Porque é que achas que me vou matar? perguntou ela. J*
te aconteceu alguma vez isso com alguém?
Digamos que uma vez já era de mais respondeu ele. O que é que está na Caixa Destruidora? perguntou Kate pwa
segunda vez naquela noite. Mas, também pela segunda vez, Brothe
rhood fingiu estar demasiado ocupado para responder.
VIII Nesse ponto, a minha memória torna-se selectiva, Jack. Mais do que é hábito. Ele está
no meu campo de visão, tal como suponho que começa a estar no teu. Mas tu também
não ficas de fora. Tudo o que não aponta para vocês os dois passa por mim como a
paisagem à janela de um comboio. Eu podia contar-te as lamentáveis conversas de Pym
com o infeliz Herr Bertl, durante as quais, seguindo as instruções de Munique, lhe dizia e repetia que a coisa já fora posta no correio, que o assunto já fora tratado, que toda a
gente receberia aquilo a que tinha direito e que o seu pai estava prestes a fazer uma
oferta de compra pelo hotel. Ou então podíamos divertir-nos um bocado com Pym, a
definhar dias e noites consecutivos, no seu quarto de hotel, transformado em refém até
que fossem pagas as montanhas de facturas por liquidar que enchiam a recepção, e sonhando, entretanto, com o corpo leitoso de Ele-na Weber, reflectido, em inúmeras
poses deliciosas, nas paredes espelhadas dos gabinetes de prova das lojas de Berne, não
sem se recriminar P°r causa da própria timidez, enquanto se alimentava de pequenos-al-
moços continentais que fora acumulando como reserva, fazendo aumentar dia a dia a
conta do hotel e esperando ouvir o toque de telefone a qualquer momento. Ou que Rick aparecesse. Rick não telefonou, e guando Pym ligou para ele só teve por resposta o uivo
semelhante ao e um lobo que o emitisse sobre uma só nota.
Quando tentou telefonar a Syd, foi Meg quem atendeu, e deu-lhe m conselho
semelhante ao de E. Weber.
Estás melhor aí onde estás do que por cá, meu querido disse e8 com a voz de quem quer sugerir que está a falar diante de tercei- P°r aqui, está muito calor e há muitas
pessoas que se têm quei-
"
Onde está Syd?
232
233
1 s
Foi apanhar fresco, meu querido.
Ou podíamos falar da tarde de domingo em que o hotel rnergu lhou num silêncio
misericordioso e em que Pym, após emalar os seu. poucos pertences, se escapou com o credo na boca pela escada de ser viço, saindo por uma porta lateral e precipitando-se
naquilo que, de um dia para o outro, se tornara uma cidade estranha e hostil: foi a sua
primeira saída clandestina e a mais fácil de todas.
Podia vender-te a imagem de Pym, a criança refugiada, embora eu tivesse um
passaporte britânico em ordem, nunca passasse fome e quando olho para trás, verifique que raramente me faltou uma palavra amiga. Mas é verdade que Pym trabalhou para um
fabricante de velas devoto, varreu as naves de Minster, rolou barris de cerveja para um
fabricante de bebidas e desempacotou tapetes para um velho arménio que passava o
tempo a tentar convencê-lo a casar com a sua filha agora que penso no caso, acho que o
velho podia ter-me feito coisas piores: a rapariga era uma beleza, que passava o tempo a suspirar reclinada no sofá, mas Pym era demasiado delicado para ousar aproximar-se
dela. Fez estas coisas e muitas outras ainda. Sempre de noite, como um animal nocturno
em fuga através da linda cidade iluminada por velas, com os seus relógios, poços,
calçadas e arcos. Limpou neve, carregou queijos, conduziu um cavalo de tiro cego e
ensinou inglês a candidatos a agentes de turismo. Tudo clandestinamente, enquanto temia que os cães de fila de Herr Bertl lhe farejassem a pista para o fazerem responder
depois perante a Justiça, embora eu hoje saiba que o pobre homem não me atribuía
qualquer culpa, e que, mesmo no auge da sua fúria, evitou sempre referir a participação
de Pym no caso. ,, -i
Querido Pai, < < Sinto-me muito satisfeito por cá e não tens de te preocupar comigo, porque os suíços
são simpáticos e hospitaleiros e têm toda a espécie de bolsas de estudo para jovens
estrangeiros interessados em estudos de Direito.
Podia contar-te a história exemplar de outro grande hotel, que tocava muito perto do
anterior, onde Pym aterrou como criado do turno da noite, e voltou aos tempos de colégio, dormindo por baixo de longas canalizações numa camarata na cave, que tinha o
tamanho de um fábrica e onde nunca se apagavam as luzes; podia contar-te como ¥y>»
se afeiçoou uma vez mais à sua pequena cama de ferro e como diverti os colegas de
trabalho do mesmo modo que divertia os seus comp
234
. fe colégio, uma vez que os seus colegas de hotel eram campo-
de Ticino que tudo o que queriam era voltar para casa. E como se
j1 tava de boa vontade sempre que a campainha tocava, e punha um
'rilho branco que, apesar de pegajoso da gordura da véspera, não o ■ omodava nem de longe tanto como os colarinhos de Mr. Willow. Como levava bandejas de espumante
cfoiegras a casais duvidosos que, oor vezes, insistiam em que ele lhes fizesse também
companhia, Eros e Rococó chamando-o com os olhos. Mas, de novo, Pym era
demasiado educado e demasiado ignorante para lhes fazer a vontade. As suas maneiras
nesse tempo como que o encerravam no interior de uma gaiola de arame farpado. Reservava a luxúria para quando estava só. Mas mesmo quando permito à minha
memória que passe em revista todos estes episódios fascinantes, o meu coração tem
pressa de chegar à noite em que conheci o virtuoso Herr Hollinger, no bar da terceira
classe da estação de comboios de Berna, e em que, por obra e graça da sua caridade, tive
um encontro que transformou toda a minha vida até hoje e íoeio que também a tua, Jack, embora tu ainda estejas para descobrir até que ponto.
No que diz respeito à universidade, ao modo e à razão porque Pym aí se inscreveu, as
minhas recordações são igualmente impacientes. Foi um disfarce. Um disfarce, como de
costume, e pronto. Pym estivera a trabalhar num circo, nas suas instalações de Inverno,
num pedaço de terreno abaixo dessa mesma estação onde os seus passos tantas vezes o conduziam no final de passeios cautelosos. De certo modo, fora atraído pelos elefantes.
Qualquer idiota é capaz de dar banho a um elefante, mas Pym teve a surpresa
desagradável de descobrir como era difícil molhar a extremidade de uma escova com
um cabo de vinte pés no interior de um balde de água, quando toda a luz disponível é a
que vem "Kermitentemente dos focos luminosos pendurados no topo da cú-Pula do circo. De madrugada, quando acabava o trabalho, Pym en-carninhava-se para o albergue
do Exército de Salvação, o seu Ascott
emporário. Todas as madrugadas via a cúpula verde da universidade
rguendo-se à sua frente na neblina de Outono, como uma Roma pe-
4^ena e feia qUe 0 desafiava a converter-se. E Pym, de uma maneira ou outra, tinha de lá entrar, porque padecia de um segundo terror maior
<jue o que lhe causavam os cães de fila de Herr Berd, o terror de que
g ' apesar dos seus problemas de liquidez, caísse dos céus a bordo do
endey, levando-o para casa.
'm tinha inventado para contar a*Rick uma quantidade de belas 235
histórias cheias de imaginação. Obtive a bolsa para estrangeiros de te falei. Estou a
estudar Direito suíço e Direito alemão e Direito rom no, e todos os outros Direitos do mundo. Além disso, frequento a cola nocturna, para evitar as tentações. Pym elogiara a
erudição dos seu. mestres inexistentes e a devoção dos capelães universitários. Mas as
re des de informação de Rick, embora irregulares, eram eficazes. Pym ̂ bia que não
estava seguro enquanto não desse corpo às suas ficções. Por isso, certa manhã ganhou
coragem e marchou até à universidade. Mentiu em primeiro lugar acerca das suas habilitações e, depois, quanto à idade. Porque as primeiras não poderiam ter sido
adquiridas sem uma adaptação adequada da segunda. Entregou as últimas notas de E.
We-ber a um caixa e, em troca, recebeu um cartão cinzento com uma fotografia que
autenticava a sua pessoa. Nunca na minha vida fiquei tão satisfeito perante um
documento falso. Pym teria dado por aquele cartão toda a sua fortuna, ou seja: mais setenta e um francos do que aquilo que pagara. Philosophie Zwei era o curso de Pym, e
ainda hoje não tenho mais do que uma vaga ideia do respectivo programa de estudos,
porque, embora tivesse solicitado a inscrição em Direito, Pym fora de uma forma ou de
outra reencaminhado. Aprendeu mais traduzindo os jornais de parede que os estudantes
afixavam, convidando-o para uma série de assembleias inverosímeis, onde travou as primeiras lutas políticas desde os tempos em que OUie e Mr. Cudlove se manifestavam
na sua presença contra os ricos, e Lippsie o prevenira contra o vazio da riqueza.
Também tu te lembras dessas assembleias, Jack, embora as tenhas visto de um ângulo
diferente e por razões a que em breve chega-
remos. Foi ainda no placará àa. universidade que Pym descobriu a existência de uma igreja dos
ingleses em Elfenau, o paraíso dos diplomatas. E para lá passou ele a dirigir-se, mal
podendo esperar durante os intervalos, muitas vezes dois ou três domingos seguidos.
Rezava, demorava-se cá fora, apertando a mão a tudo o que se mexia, embora não fosse
mui' ta coisa. Mostrava olhares elevados às mães idosas, apaixonou-se por varias de entre elas, consumiu bolos e chá requentado nas suas casas> cheias de espessos
cortinados, e enfeitiçou-as com narrativas extravagantes acerca da educação de órfão de
Pym. Em breve, o expatriado que havia nele já não podia passar sem a sua dose semanal
de banalidade i*1 glesa. A igreja com as suas famílias de diplomatas empertigados, os
sÇ velhos britânicos de cepa e anglófilos duvidosos, tomou para Py111 ° gar da capela do colégio e de todas as outras capelas que abandonara-
236
co: A contrapartida da capela era o bar de terceira classe da estação dos boios, onde, nos
momentos em que não estava a trabalhar, Pym era de ficar sentado toda a noite,
fumando cigarros Disque bleu até ntir agoniado, e limitando-se, em matéria de bebidas,
a uma úni-cerveia, enquanto imaginava ser o globe trotter mais cansado e sem ítria deste
mundo. Hoje, a estação é um centro comercial com as di-ensóes de toda uma cidade de boutiques elegantes e restaurantes onde os pratos são servidos em invólucros de
plástico, mas, ao longo dos primeiros anos do pós-guerra, era ainda uma muda de
malaposta eduar-diana, pouco iluminada, com veados empalhados e pinturas murais de
camponeses libertados acenando com as suas bandeiras, e um cheiro a Bockwurst e
cebola frita que nunca se desvanecia. O bar da primeira classe estava cheio de senhores vestidos de preto, com guardanapos à volta do pescoço, mas a terceira classe tinha
pouca luz e tresandava a cerveja, a transbordar de uma sugestão de irregularidade
balcânica e de canções desafinadas de bêbados. A mesa preferida de Pym ficava num
canto apainelado, junto do bengaleiro, onde uma dedicada criada chamada Elizabeth lhe
servia sempre uma sopa extra. Devia tratar-se também da mesa favorita de Herr Ollinger, pois foi lá que este se instalou ao entrar, e tendo endereçado uma vénia
afectuosa a Elizabeth, que trazia um Tracht decotado e com rendas, fez também uma
vénia na direcção de Pym, depois do que se pôs a vasculhar na sua pobre pasta, puxou
para trás o cabelo rebelde e perguntou se incomodava, num tom ansioso e ofegante, ao
mesmo tempo que acariciava um velho Chow--Chow amarelo que rosnava pendurado da trela. Sei hoje que é assim que o Criador disfarça os Seus melhores agentes.
lavras. <
Herr Ollinger era um homem sem idade definida, embora hoje pen-se que devia ter
cerca de cinquenta anos. Tinha uma pele flácida, um sorriso que parecia pedir desculpa,
as bochechas encovadas e penden-e conio o traseiro de um velho. Mesmo quando por fim se convenceu e que a cadeira onde queria sentar-se não estava ocupada por entes su-
PWiores, instalou nela o seu corpo rotundo com tanto cuidado que po-, amos supor que
receava ser expulso dali a pontapé por alguém mais gno do que ele. Com a segurança de
um habitue, Pym tirou-lhe do Ç° resignado o impermeável castanho, pendurando-o no
bengalei-■ ecidira que tinha necessidade urgente de Herr Ollinger e do seu a.,.. o< A sua vida estava a atravessar uma fase estéril e havia já uma a que não trocava com
ninguém, mais do que meia dúzia de pa-gesto de Pym precipitou Herr Ollinger num
vórtice de grati-
237
dão desesperada. Herr Ollinger sorriu radiosamente e declarou qUe Pym era muito
simpático. Pegou num exemplar de DerBunde. mergulhou na leitura. Segredou ao cão
que se portasse bem, dando-lhe algumas palmadas ineficazes no focinho, apesar de o
animal se estar a mostrar perfeitamente conveniente. Mas acabara por falar, fosse como fosse, dando a Pym ensejo de explicar, com uma frase feita, que infelizmente sou
estrangeiro, sir, e não estou ainda à altura de falar o vosso dialecto local. Portanto, tenha
a bondade de falar comigo em alemão escolar, e desculpe. Depois disso, acrescentou o
seu apelido, como se habituara a fazer: «Pym», tendo então Herr Ollinger confessado
que se chamava Ollinger, como se o seu nome estivesse associado a qualquer horrível infâmia; por fim, apresentou o cão como Herr Basti, nome que por um momento
lembrou a Pym o do infeliz Herr Bertl.
Mas o seu alemão é excelente! protestou Herr Ollinger. Eu teria pensado que você vem
da Alemanha! Não é de lá? Então, de onde vem, se me permite a pergunta?
Foi muito simpático da parte de Herr Ollinger dizer aquilo, porque naqueles anos, ninguém no seu juízo perfeito confundiria o alemão de
Pym com o verdadeiro alemão. Depois, Pym começou a contar a Herr
Ollinger a história da sua vida, ou seja: fez o que desde o início preten
dera fazer. E deslumbrou-o com delicadas interrogações acerca da sua
própria pessoa. E por todos os meios carregou os ombros de Herr Ol linger com o pesado fardo da sensibilidade e do encanto de Pym o
que, como mais tarde se descobriu, foi um esforço desnecessário, uma
vez que Herr Ollinger não era demasiado exigente em matéria de rela
ções de amizade. Admirava toda a gente, tinha pena de toda a gente, co
locando-se sempre, tanto num como noutro caso, abaixo de toda a gen te e o facto de os outros terem de partilhar este mundo com ele, não
era o motivo menor para que Herr Ollinger sentisse pena deles. Herr Ollinger disse que
era casado com um anjo e que tinha três angélicas filhas, autênticos prodígios musicais.
Herr Ollinger disse que herdara a fábrica do pai, em Ostermundigen, o que constituía
para ele um grande peso, como era razoável que fosse, uma vez que, olhando hoje para trás, acho óbvio que o pobre tipo se levantava diligentemente todas as manhãs para a
afundar ainda mais. Herr Ollinger disse que Herr Basd já se encontrava com ele há três
anos, embora se tratasse apenas de urna situação temporária, porque andava à procura
do verdadeiro dono do animal.
Retribuindo-lhe a generosidade por igual, Pym descreveu-lhe a sua 238
neriência durante o blitz, e a noite em que fora visitar a tia a Coventry, a altura em que a
catedral foi atingida; como a tia vivia a umas cem jardas da porta principal da catedral, a
casa dela escapara por milagre. Depois de ter destruído Coventry, Pym descreveu-se a si próprio, num tour de force da imaginação, como filho de um almirante, de pé, em
camisa de noite junto à janela da camarata, olhando calmamente as vagas de
bombardeamentos alemães que sobrevoavam o colégio e interrogando--se se seria
daquela vez que seriam lançados os pára-quedistas disfarçados de freiras. Então, não havia abrigos? exclamou Herr Ollinger. É um
escândalo! Você era uma criança, meu Deus! A minha mulher, se sou
besse disso, não se continha! Ela é de Wilderswill explicou ele, en
quanto Herr Basti comia pretzelç, soltava uma vaga de gases.
E Pym continuou assim, acumulando invenção em cima de invenção, e apelando para o gosto muito suíço de Herr Ollinger por tudo o que fossem catástrofes, e seduzindo o
neutral que ele era com as medonhas realidades da guerra.
Mas você era tão novo protestou uma vez mais Herr Ollin
ger, quando Pym narrou os rigores da sua recruta no exército, no Pos
to de Comunicações de Bradford. Você não teve o calor de um lar. Era ainda uma criança.
Bom, felizmente, nunca tivemos de combater disse Pym,
num tom de voz negligente, ao pedir a conta. O meu avô morreu
na Primeira Guerra, o meu pai foi dado como morto na Segunda, por
isso não consigo deixar de pensar que é já tempo de a nossa família ter direito a uma pausa.
Herr Ollinger não quis de modo nenhum que Pym pagasse a conta- Disse que se podia
respirar o ar livre da Suíça, o devia a três gerações sucessivas de ingleses. A salsicha e a
cerveja de Pym foram apenas o pri-nieiro passo nos rápidos progressos da generosidade
de Herr Ollinger. ieguiu-se-lhes a oferta de um quarto por todo o tempo que Pym quisesse fazer a Herr Ollinger o favor de o ocupar, na pequena casa aperta-Qa> na
Langgasse, que ele herdara da mãe.
d quarto não era grande. Na realidade, era até um quarto muito pe-
"ueno. Era uma das três divisões do sótão; o quarto do Pym era o do
eJ° e só no meio do quarto era possíveLestar de pé, e mesmo aí era *& confortável enfiar a cabeça na clarabóia aberta. No Verão, a luz do
239
dia durava toda a noite; no Inverno, a neve cobria tudo. Para se aquece Pym tinha um
grande aquecedor preto embutido numa parede diviso ria, alimentado por um fogão a lenha que se encontrava no corredo Deste modo, Pym via-se obrigado a optar entre
gelar e assar, de acordo com a disposição do momento. No entanto, Tom, não houve
outro lu gar onde me sentisse tão bem antes de encontrar miss Dubber. É-nos dado uma
vez na vida conhecer uma família realmente feliz. Frau Ollinger era alta, luminosa e
frugal. Operando uma rusga de rotina pela casa, Pym viu-a pela fresta de uma porta sorrir em pleno sono. Tenho a certeza de que estava a sorrir também quando morreu. O
marido, muito gordo, andava atrás dela, arrastando-se e desorganizando a economia
doméstica, impingindo-lhe todos os vadios e oportunistas em que tropeçava, adorando-
a. As filhas eram cada uma delas mais feia do que a outra, tocavam atrozmente mal
diversos instrumentos musicais para irritação dos vizinhos, e foram casando uma por uma com homens ainda mais feios e piores músicos do que elas, embora os Ollinger os
considerassem brilhantes e encantadores acabando por os transformar naquilo que sobre
eles imaginavam. De manhã à noite, uma bicha de imigrantes, inadaptados e génios por
descobrir, passava pela cozinha, fazendo omeletas e apagando os cigarros no linóleo do
chão. E ai de quem se esquecesse de fechar a porta do quarto, porque Herr Ollinger era perfeitamente capaz de se esquecer pelo seu lado de que já lá estava alguém ou,
eventualmente, de se convencer de que o primeiro ocu-pante fora passar a noite fora, ou
de que não se importaria de ficar com um estranho no quarto até este último encontrar
outro poiso. Não me lembro de quanto pagávamos. O dinheiro que tínhamos não
chegava para quase nada, e tenho a certeza de que não era o bastante para subsidiar a fábrica de Ostermundigen, porque a última vez que ouvi falar de Herr Ollinger,
encontrava-se este muito feliz a trabalhar como funcionário dos Serviços Centrais do
Correio de Berna, encantado com a erudição dos colegas. A única propriedade que
associo à sua pessoa, para além de Herr Basti, é uma colecção de obras eróticas, com as
quais se regalava na sua timidez. Como o resto dos seus bens, a colecção era partilhada por toda a gente, sendo, de resto, muito mais reveladora do que Eros e a Mulher
Rococó.
Era esta a família onde Pym construiu o seu ninho de corvo. P°r uma vez, a vida correu-
lhe de forma quase perfeita. Tinha uma cama> tinha uma família. Estava apaixonado
pela Elizabeth do bar da tercei ra classe, e pensava em casar e ter filhos cedo. Estava amarrado a 1
rrespondência siderante com Belinda, que achava ser seu dever in-ç má-lo das aventuras
de Jemima, «aventuras que se devem apenas facto de tu estares tão longe». Rick, se não
estava morto, pelo me-s não se mexia, uma vez que o único sinal que Pym dele tinha era a torrente de sermões acerca de Estar Sempre À Altura Dos Seus Talentos, evitando as
Tentações Do Estrangeiro e as Ciladas Do Sinismo, nalavra que ou Rick ou o seu
secretário não sabiam como se escrevia. Estas cartas mostravam claramente terem sido
escritas à pressa, e nunca eram enviadas do mesmo lugar: «Escreve-me ao cuidado de
Topsie Eaton, para Firs, East Grinstead, não precisas de pôr o meu nome no en /elope»... «Escreve para a posta restante, para o coronel Mellow, que me faz o favor de
se encarregar do meu correio»... Certa vez, uma carta de amor escrita à mão introduziu
variantes na receita, ao começar: «Annie, meu Cachorrinho, o teu corpo é mais
importante para mim do que todas as Riquezas da terra». Rick deve ter-se enganado ao
metê--la no envelope. A única coisa de que Pym sentia falta era de um amigo. Acabou por o conhecer na cave
de Herr Ollinger, certo meio-dia de sábado, quando ia levar a roupa lá abaixo para a
lavagem semanal. Por cima, na rua, o primeiro nevão liquidava os restos do Outono.
Pym tinha junto à cara uma grande trouxa de roupa húmida e descia cautelosamente os
degraus de pedra. A luz da cave era regulada por um interruptor que desligava automaticamente ao fim de certo tempo; de um momento para o outro, Pym podia ficar
envolto em trevas e tropeçar em Herr Basti, que fazia da zona da caldeira o seu domínio
reservado. Mas a luz man-teve-se acesa, e quando Pym passou pelo interruptor notou
que alguém introduzira engenhosamente um fósforo junto ao botão, para o prender; um
fósforo delgadíssimo, aparado à faca. Sentiu um cheiro a charuto, mas Berna não era Ascott bastava um tipo ter meia dúzia de pence para fumar charutos à vontade. Quando
viu a poltrona, incluiu-"a mentalmente no refugo que Herr Ollinger punha de parte para
ofe-recer a Herr Rubi, o ferro-velho que passava por lá todos os sábados, 00111 a sua
carroça e o seu cavalo.
■ Não sabe que os estrangeiros estão proibidos de pendurar a rou-Pa nas caves suíças? disse uma voz masculina, não em dialecto, mas num alemão incisivo.
Lamento, mas não sabia disse Pym. Olhou à volta, procu-
. do alguém a quem pedir desculpa, mas-oque viu foi a forma inde-
I a de um homem esguio, aninhado'no cadeirão, embrulhado até ao
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pescoço num cobertor àepatchwork, que segurava com uma das mão compridas e
brancas, enquanto a outra pegava num livro. Tinha um boina preta e um bigode de
pontas caídas. Não se lhe viam os pés, mas o corpo parecia anguloso e mal articulado,
como um tripé desmontável que se tivesse encravado. A bengala de Herr OUinger estava encostada à cadeira. Um pequeno charuto ardia lentamente entre os dedos que
agarravam o cobertor.
Na Suíça é proibido ser pobre, é proibido ser estrangeiro, é ex
pressamente proibido pendurar roupa. Você é um dos ocupantes deste
estabelecimento? Sou amigo de Herr OUinger.
- Um amigo inglês?
O meu nome é Pym.
Destapando o bigode, os dedos de uma daquelas mãos brancas, começaram a puxar-lhe
pensativamente as pontas para baixo. LordVymt
Simplesmente, Magnus.
Mas você é de origem aristocrática.
Bom, nada por aí além.
É um herói de guerra? disse o desconhecido, chupando rui dosamente o charuto, no que para um inglês seria um sinal de cepti
cismo.
Pym não gostou nada daquilo. O retrato de si próprio que endereçara a OUinger estava
ultrapassado. Ficou acabrunhando ao vê-lo ressuscitar.
E você, quem é se se pode saber? perguntou Pym. Os dedos do desconhecido subiram um pouco, coçando um ponto irritado da pele da
face, enquanto o homem parecia estudar uma série de várias possibilidades.
Chamo-me Axel, e sou seu vizinho há uma semana; por isso,
sou forçado a ouvir o seu ranger de dentes durante a noite disse ete>
puxando uma baforada do charuto. Axel é o seu apelido? perguntou Pym.
Herr Axel Axel, os meus pais esqueceram-se de me dar outro
nome. O homem poisou o livro e estendeu a mão magra num cum
primento. Por amor de Deus exclamou com uma careta, 1
do Pym lha apertou. Tenha cuidado, sim? A guerra já acabou. Sentindo-se demasiado atacado para seu gosto, Pym deixou a l gem da roupa para outro
dia, e voltou para cima.
Qual é o outro nome de Axel? perguntou ele a Herr OUinger
no dia seguinte. __ Talvez ele não tenha outro nome respondeu Herr Ollin-jocosamente. Talvez seja por
isso que também não tem documentos.
É estudante, ele?
É poeta disse Herr OUinger com orgulho, embora a casa es
tivesse a abarrotar de poetas. Os poemas dele devem ser muito compridos. Passa a noite toda
a escrever à máquina disse Pym.
Pois, é verdade que sim. E na minha máquina disse Herr Ol-
linger, manifestando-se ainda mais cheio de orgulho.
O meu marido deu com ele na fábrica disse Frau OUinger, en quanto Pym a ajudava a arranjar a hortaliça para o jantar. Quer di
zer, foi Herr Harprecht, o vigilante da noite, quem o encontrou lá. Axel
estava a dormir em cima dos sacos no armazém, e Herr Harprecht que
ria entregá-lo à polícia, por ser estrangeiro, não ter papéis e cheirar mal,
mas, graças a Deus, o meu marido impediu a tempo Herr Harprecht de fazer uma coisa dessas. Deu o pequeno-almoço a Axel e levou-o a um
médico para ver porque é que ele transpirava tanto.
De onde é ele? perguntou Pym.
Frau Ollinger mostrou-se insolitamente reservada.
Axel veio de driiben disse ela. Druben queria dizer «do outro lado da fronteira», druben queria dizer essas zonas irracionais da Euro-
pa que não eram a Suíça, e onde as pessoas andavam de tank em vez de
trolley, e a gente com fome tinha o mau gosto de apanhar comida no
lixo em vez de a comprar em lojas.
Como é que ele chegou até cá? perguntou Pym. Estamos convencidos de que veio a pé disse Frau Ollinger.
Mas ele é inválido. Está todo partido, e é magríssimo.
Mas a força de vontade e a necessidade ajudaram-no a chegar cá.
" É alemão?
Há alemães e alemães, Magnus. ~~ E ele é dos quais? .
Não lhe fazemos perguntas. E talvez tu também não lhe deves-** P«guntar essas coisas.
~- Mas não percebem pelo sotaque?
I. Também não quisemos pôr-nos a adivinhar. Com Axel, o me-e deixarmos toda a
curiosidade de parte.
i.
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Que doença é que ele tem? *
Talvez tenha sido vítima da guerra, como tu sugeriu Frau 01 linger, com um sorriso de
compreensão, talvez um pouco excessiva ^ Não gostas de Axel? Ele tem-te incomodado
lá em cima? Como é que me pode incomodar, se nem fala comigo, pensou Pym Quando os únicos
sinais de vida que dele tenho são o bater da máqui na de escrever de Herr Ollinger, os
gemidos de êxtase das suas visitado-ras durante a tarde e o arrastar dos seus pés quando
vai à casa de banho apoiando-se na bengala de Herr Ollinger? E quando só vejo as
garrafas vazias de vodka dele e a nuvem azul de fumo do seu charuto no corredor, e o seu corpo macilento e esquelético que desaparece a descer as escadas?
Axel é magnífico disse Pym.
Já decidira que aquele Natal seria o mais alegre da sua vida, e assim foi apesar de uma
carta confrangedora de Rick, descrevendo as privações de «um pequeno albergue privado, nas terras bravias da Escócia, onde a satisfação das necessidades mais
elementares da vida de todos os dias é uma bênção de Deus». Descobri mais tarde que
Rick se referia a Gleneagles. Véspera de Natal. Pym, na sua qualidade de mais novo,
acendeu as velas e ajudou Frau Ollinger a dispor as prendas à volta da árvore. O dia
estivera maravilhosamente escuro, e durante a tarde, grandes flocos de neve começaram a girar à luz dos candeeiros das ruas, recobrindo os carris dos eléctricos. As filhas
Ollinger chegaram com os seus acompanhantes, seguidas por um tímido casal de
Basileia, sobre o qual pairavam algumas nuvens de infelicidade, que já não sei o que
seriam. Depois, um génio francês, chamado Jean-Pierre, que pintava peixes de perfil,
sempre contra o mesmo fundo sépia. Depois, um delicado cavalheiro japonês, chamado Mr. San, nome enigmático, uma vez que, de acordo com o que sei hoje, San é uma
forma de tratamento em japonês. Mr. San trabalhava na fábrica de Herr Ollinger como
uma espécie de espião industrial, o que retrospectivamente acho deveras engraçado,
porque se alguma vez os japoneses tentaram espiar métodos de Herr Ollinger, isso
significa que terão atrasado o progn da sua indústria em pelo menos uma década. Por fim, Axel em pessoa desceu lentamente as escadas de madeira fez a sua entrada em
cena. Pela primeira vez, Pym teve ensejo de o o\ servar à vontade. Embora aflitivamente
magro, o rosto dele era nai ralmente redondo. Tinha a testa alta, mas uma madeixa de
cabelo q1 descaía de lado sobre ela tornava-a arqueada e tristonha. Era como se
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. jor lhe tivesse puxado a cara para baixo, apertando-lhe as têmpo-ntre o indicador e o
polegar, à laia de castigo pela sua frivolidade:
meiro, as sobrancelhas em arco, depois, os olhos, depois, o bigode 'orno uma ferradura
coberta de pêlos. E algures, no meio de tudo aqui-I a pessoa de Axel, com o olhar brilhando entre sombras, sobreviven-tereconhecido de alguma coisa inacessível a Pym.
Uma das filhas de Herr Ollinger fizera-lhe um casaco de malha informe, que Axel usava
como uma capa por cima dos ombros cansados.
SchónguttenAbettd, Sir Magnus disse ele. Trazia na mão um
chapéu de palha virado ao contrário. Pym viu que o chapéu tinha den tro alguns embrulhos, soberbamente acondicionados. Porque é que
nunca falamos um com o outro lá em cima? Estamos a vinte centíme
tros de distância, mas é como se estivéssemos a léguas. Você ainda está
em guerra com os alemães? Agora, somos aliados. Em breve, lutaremos
juntos contra os russos. Também me parece que sim disse Pym, sem grande entu
siasmo.
Porque é que não me bate à porta um destes dias, quando se sen
tir só? Podemos fumar um charuto os dois, e passar um bocado a dis
cutir a salvação do mundo. Gosta de dizer disparates? Gosto muito.
Está bem. Então, dizemos disparates. Mas quando estava
prestes a afastar-se, para ir cumprimentar Mr. San, Axel deteve-se e vol
tou-se de novo para trás. Por cima do ombro envolto na capa, lançou a
Pym um olhar zombeteiro, quase de desafio, como se se perguntasse se não lhe teria concedido com demasiada facilidade a sua confiança.
Aberdann kõnnem wirdoch Freunde sein, Sir Magnus Depois Podemos ficar amigos.
Ich wtirde michfreuen respondeu calorosamente Pym, sus
tentando-lhe o olhar sem receio. Seria uma felicidade para mim!
Tornaram a apertar as mãos, mas desta vez ao de leve. Nesse mes-1110 momento, a expressão de Axel explodiu num sorriso tão cheio de ^•rnação que o coração de Pym se
sentiu transbordar, enquanto ele JUrava a si próprio que iria atrás de Axel até ao fim do
mundo, en-^anto lhe restasse um único Natal. A festa começou. As filhas de Herr "•nger
trocaram algumas árias, e Pym cantou o melhor que pôde, induzindo palavras inglesas
quando as alemãs lhe faltavam. Houve Scursos e, depois, um brinde aos patentes e amigos ausentes, mo-ent0 em que as pálpebras de Axel quase lhe esconderam os olhos e
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ele mergulhou num profundo silêncio. Mas, em seguida, como se s cudisse as
recordações tristes, pôs-se bruscamente de pé e começou tirar os embrulhos do chapéu que trouxera consigo, enquanto Pym aj, dava por ali, pronto a ajudá-lo, na certeza de
que era aquilo o que Axel fazia sempre no Natal, estivesse então onde estivesse. Para as
filhas dos Ollinger, Axel fabricara flautas, com os nomes delas gravados em baixo.
Como é que conseguira talhá-las com aquelas mãos brancas e finas? E tão
delicadamente, que Pym nem sequer ouvira nada através da divisória? Onde é que arranjara a madeira, a tinta e os pincéis? Para os Ollinger, arranjara o que mais tarde
vim a saber que era outra insígnia da vida na prisão: uma espécie de Arca de Noé, feita
com fósforos e contendo as figuras da nossa família alargada a acenar pelas vigias. Para
Mr. San e Jean-Pierre, trouxera quadrados de pano tecido, como os que outrora Pym
fizera para Dorothy num tear improvisado feito de pregos. Para o casal de Basileia, um olho de lã, destinado a afastar a desgraça que os ameaçava. E para Pym ainda hoje,
considero uma homenagem o facto de ele me ter deixado para o fim , para Sir Mag-nus,
trazia um exemplar muito usado do Simplicissimus de Grimmels-hausen, encadernado a
fio de linho castanho, obra de que Pym nunca ouvira falar, mas que estava impaciente
por ler, uma vez que isso lhe serviria de pretexto para bater à porta de Axel. Abriu o volume e leu a dedicatória em alemão. «Para Sir Magnus, que nunca será meu inimigo.»
No canto superior esquerdo, escrito há mais tempo e numa versão mais jovem da
mesma caligrafia: «A. H. Carlsbad, Agosto de 1939».
Onde é Carlsbad? perguntou Pym, antes de ter tempo para
reflectir, e sentindo imediatamente à sua volta um nítido mal-estar, como se toda a gente estivesse a par de uma má notícia a que ele se re
ferira sem saber, já que o consideravam jovem de mais para ser posto ao
corrente.
Carlsbad já não existe, Sir Magnus respondeu Axel, com de
licadeza. Quando tiver lido o Simplicissimus compreenderá porque. Mas onde era?
Era a minha cidade natal.
Então, você ofereceu-me um dos tesouros do seu passado.
Preferia que eu lhe tivesse dado uma coisa que não fosse de v*
lor para mim? E Pym que presente era o dele? Deus tivesse piedade de Pym-filho do presidente e
director de tantas companhias não estava ha
ado a estas cerimónias cheias de sentido, e não conseguira pensar em da melhor do que
uma caixa de charutos para oferecer ao velho Axel. Porque é que Carlsbad já não existe? perguntou Pym a Herr
Ollinger, logo que o apanhou a sós. Herr Ollinger sabia tudo, excepto a maneira de
dirigir uma fábrica. Carlsbad ficava nos Sudetas, explicou ele. Era uma bela estância
termal, para onde iam muitos homens famosos: Brahms e Beethoven, Goethe e Schiller.
Foi primeiro pertença da Áustria e, mais tarde, da Alemanha. Hoje, encontrava-se na Checoslováquia e recebera um outro nome, tendo sido de lá expulsos todos os alemães.
Então, que pátria tem Axel? perguntou Pym.
Acho que só nos tem a nós disse gravemente Herr Ollinger.
E temos de ter cuidado com ele, senão podes ter a certeza de que eles
a levam daqui. Mas ele costuma meter mulheres no quarto disse Pym.
O rosto de Herr Ollinger ficou ruborizado de prazer travesso.
Acho que Axel tem todas as mulheres de Berna que quiser
confirmou ele.
Passaram dois dias. No terceiro, Pym bateu à porta de Axel e achou--o de pé, a fumar diante da janela aberta, com vários livros, que pareciam ser muito pesados, poisados no
parapeito. Ele devia estar gelado, mas parecia ter necessidade de ar livre para as suas
leituras.
Venha dar uma volta disse audaciosamente Pym.
A minha velocidade? Bom, não podemos ir à minha, pois não?
A minha natureza faz-me ter repugnância pelos sítios onde há
muita gente, Sir Magnus. Se vamos passear, o melhor é ser para fora da
cidade.
Pediram para levar Basti e deambularam ao longo do caminho de SIrga> junto às águas rápidas do Aare, enquanto Herr Basti fazia xixi e se Acusava a avançar, com Pym a
esforçar-se por reparar em todas as pescas que pudessem ser eventualmente polícias. No
vale do rio, onde não ^la sol, o ar gelado deslocava-se em vagas diabólicas, e o frio era
im-P acável. Axel parecia não dar por isso. Fumava o seu charuto e fazia per-ntas com a
sua voz suave e cheia de bom humor. Se foi assim que ele 10 a pé da Áustria, pensou Pym, tiritando atrás de Axel, deve ter de-rad
246
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I
Como é que veio ter a Berna, Sir Magnus? Numa ofensiva o
numa retirada? perguntou Axel.
Sempre incapaz de resistir a uma oportunidade de voltar a fazer próprio retrato numa
folha ainda em branco, Pym deitou mãos à obra E embora se aplicasse a melhorar a realidade, conforme era seu hábito reordenando os factos de modo a que estes
encaixassem na sua própria imagem momentaneamente vigente, uma prudência
instintiva levou-o a refrear-se. E verdade que se dotou de uma mãe nobre e excêntrica e
é também verdade que, quando chegou o momento de descrever Rick, lhe atribuiu
muitas das qualidades a que Rick aspirava em vão tais como a riqueza, as distinções militares e o caminho aberto para os Grandes da Terra. Mas quanto ao resto, Pym
mostrou-se sóbrio, e cheio de auto-ironia. Quando chegou, por fim, à história de E.
Weber, que nunca contara ainda a ninguém, Axel riu tanto que se viu obrigado a sentar-
se algum tempo num banco, acendendo outro charuto, antes de recobrar fôlego,
enquanto Pym ria com ele, encantado com o seu sucesso. E quando mostrou a Axel a carta em que Elena lhe dizia «Não te preocupes. E. Weber continua a gostar de ti», ele
gritou.
Noch mal\ Ordeno-lhe que me conte a história outra vez, Sir
Magnus! E arranje maneira de a história ser desta vez completamcnte
diferente. Dormiu com ela? Claro que sim.
Quantas vezes?
Quatro ou cinco.
Todas na mesma noite? Você é uma fera! E ela gostou?
Ela tinha muita, muita experiência. Mais do que a sua Jemima?
Bom, era mais ou menos a mesma coisa.
Mais do que a perversa Lippsie que o seduziu quando você era
miúdo?
Bem, Lippsie foi um caso à parte. Axel deu alegremente uma palmada nas costas de Pym.
Sir Magnus, o senhor é um príncipe, como esse cavalo preto qu
tinha o seu nome. Você é uma surpresa permanente, sabe? Um rapaz
nho ajuizado, mas que dorme com aventureiras perigosas e jovens aris
tocratas inglesas. Gosto muito de si, está a ouvir? Gosto de todos os an cratas ingleses, mas de você mais do que ninguém.
Ao recomeçar o passeio, Axel viu-se forçado a dar o braço a n para se apoiar nele, e daí
em diante, passou a servir-se desavergon
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nte de Pym como bengala. Até final, quase nunca andámos juntos qUe não fosse desse
modo.
Nessa noite, Pym e Axel, algures debaixo de uma ponte, descobri-rain um café vazio,
tendo Axel insistido em pagar dois vodkas, com o dinheiro da bolsa preta que trazia
pendurada por um fio de couro ao pescoço. A certa altura do caminho gelado de regresso a casa, ambos concordaram em que Axel e Pym deviam começar os estudos
que nunca haviam feito, tornando o dia seguinte o primeiro dia da Criação, e devendo
Grimmelshausen ser o primeiro tema da sua formação, porque ensinava que o mundo
enlouquecera e continuava a enlouquecer cada vez mais, um lugar onde tudo o que
parecia certo era quase fatalmente engano. Decidiram que Axel se encarregaria do alemão oral de Pym, não descansando antes de ele o falar na perfeição. Assim, no
espaço de apenas um dia e uma noite, Pym transformou-se nas pernas de Axel, no seu
companheiro intelectual e, embora de início não o tivessem estabelecido, no seu aluno,
ao qual, durante os meses seguintes, o mestre revelou a musa alemã. Se os
conhecimentos de Axel eram maiores do que os de Pym, a sua curiosidade não era menor, e a sua energia era igualmente inesgotável. Talvez ao ressuscitar a cultura do seu
país, destinando-a a um inocente, Axel estivesse a reconciliar-se com o seu passado
próximo.
Quanto a Pym, esse contemplava finalmente as glórias do Reino porque tanto ansiara. A
musa alemã não o atraía especialmente, nem nessa altura nem mais tarde, apesar das suas manifestações de entusias-mo exuberante. Se a musa tivesse sido chinesa, polaca,
ou indiana, não teria s'do grande a diferença. O que contava era que essa musa fornecia
"■ymosmeiosde, pela primeira vez, se poder considerar um gentleman ^mbém no plano
intelectual. E Pym sentia uma gratidão eterna por ̂ facto. Impelindo Pym para a
companhia, de dia e de noite, de Axel, °ngo das suas expedições, a musa alemã revelou-lhe esse mundo in-n°r que Lippsie
dizia que ele poderia transportar consigo por toda a
e- Lippsie tivera razão, porque quando Pym ia para o armazém em |tnn8> onde Herr
Ollinger lhe arranjara um trabalho nocturno ile-
' Por conta de um seu colega filantropo, não ia a pé nem de eléctri- ' as acompanhava Mozart, na sua carruagem, a caminho de Praga.
do dava banho aos elefantes, Pym sefria as humilhações dos Sol-
Lenz. Quando estava sentado no bar da terceira classe, lan-
249
IL
çando olhares espirituais a Elizabeth, imaginava ser o jovem Werther a escolher
mentalmente a roupa que iria vestir antes do suicídio. E quar,. do ponderava
conjuntamente os seus fracassos e esperanças, Pym sentia-se capaz de comprar o seu Werdegang com os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, projectando já nessa
altura a composição de um grande romance autobiográfico, que revelasse ao mundo a
criatura nobre e sensível que ele era, se comparado com Rick.
Sim, Jack, é claro que já lá estavam as outras sementes: uns pós de Hegel, tudo aquilo
que Axel e Pym eram capazes de digerir nessa altura, uma rajada de Marx e Engels e dos outros papões do comunismo «porque, apesar de tudo», dizia Axel, era o começo do
mundo. «Se nos puséssemos a julgar o cristianismo pelas desgraças que causou à
Humanidade, haveria alguém que pudesse ser cristão? Não admitimos preconceitos, &>
Magnus. Aceitamos tudo, tal como o lemos, e só mais tarde o podemos rejeitar. Se
Hitler detestava tanto esses tipos, eles não deviam ser tão maus como isso.» E lá vieram depois Rousseau e os revolucionários e Das Kapital, e o Anti-Diihring, e o sol
continuou a brilhar durante semanas, embora não tenhamos chegado, palavra de honra,
a quaisquer conclusões que eu seja ainda capaz de lembrar, para além do facto de
termos ficado satisfeitos quando chegamos ao fim. Hoje duvido muito que o conteúdo
do ensino de Axel tenha tido qualquer importância, se se exceptuar a alegria que Pym experimentava ao ser instruído por ele. O que interessa é que Pym se sentia feliz desde o
instante em que se levantava até às primeiras horas da madrugada seguinte; e quando
ambos se iam deitar, cada um do seu lado do tubo de aquecimento preto, enquanto
dormiam, como Deus em França, para usar a expressão de Axel, o espírito de Pym
continuava as suas explorações du- rante o sono.
Axel recebeu a Ordem da Carne Congelada disse Pym, uni
dia, cheio de orgulho a Frau Ollinger, enquanto cortava pão para fazer
fondue.
Frau Ollinger teve uma exclamação de repugnância. Magnus, que disparates é que estás para aí a dizer?
É verdade! Trata-se da expressão em calão dos soldados alemães
para dizerem uma medalha ganha na campanha da Rússia. Ele
ceu-se como voluntário, quando era ainda aluno do liceu. O pai p<*
ter-lhe arranjado um lugar sem perigo em França ou na Bélgica Druckposten, um lugar onde poderia conservar a cabeça a salvo,
não quis. Queria ser um herói como os seus colegas de turma.
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Frau Ollinger não se mostrou satisfeita com aquilo. Então, o melhor é não te pores para aí a dizer onde é que ele com-
i teU -disse ela, num tom severo. Axel está aqui para estudar e não
para se gabar.
Ele mete mulheres no quarto disse Pym. Elas sobem as es
cadas sem fazer barulho, à tarde, mas dão gritos quando fazem amor com ele.
Se o fazem feliz e o ajudam a estudar, são bem-vindas. Não gos
tavas de convidar também a tua apaixonada Jemima?
Furioso, Pym voltou para o quarto e escreveu uma longa carta a Rick acerca da injustiça
do Suíço Médio em todas as questões do dia adia. «Às vezes penso que a lei daqui faz da amabilidade um dever», escreveu ele, ofendido. «Sobretudo, no que se refere às
mulheres.»
Rick respondeu-lhe na volta do correio, incitando-o à castidade: «O melhor é manteres-
te Impoluto até que faças a escolha para que foste Destinado».
Querida Belinda, as coisas por aqui estão a tornar-se viscosas. Alguns dos estudantes estrangeiros cá de
casa começaram a levar as coisas longe de mais com o mulherio, efui obrigado a
intervir, para poder continuar a trabalhar. Se tivesses a mesma atitude de firmeza com
/em, talvez fosse um favor que lhe fizesses, a longo prazo.
Chegou o dia em que Axel adoeceu. Pym regressou apressadamente do zoo, cheio de histórias divertidas para contar, e encontrou-o na carna, lugar onde Axel detestava estar.
O minúsculo quarto estava carregado de fumo de charuto, e a cara macilenta dele,
ensombrecida pela barba por fazer e pelo ar sombrio do quarto. Andava por ali uma
rapa-nga, mas Axel mandou-a sair quando Pym entrou.
O que é que ele tem perguntou Pym ao médico de Herr Ol- mger, espreitando por cima do seu ombro, a tentar decifrar a receita.
O mal dele, Sir Magnus, é ter sido bombardeado pelos heróicos
os ingleses disse da cama, com ferocidade, Axel, numa voz eriçada
e f°ra do seu tom habitual. O problema dele é que apanhou com me-
ade de uma granada britânica pelo eu acima e está com dificuldade eitla cagar cá para fora. _-'
^ segredo profissional do médico obrigou-o a permanecer em si-
251
lêncio; pouco depois, despediu-se com uma palmadinha amigável nas costas de Pym.
Talvez tenha sido você quem me atingiu, Sir Magnus. Não par
ticipou, por acaso, no desembarque da Normandia? Não terá sido você
a comandar a invasão?
Não fiz nada disso disse Pym. Depois, Pym voltou a ser as pernas de Axel, indo buscar-lhe os medicamentos e os
charutos, cozinhando para ele e explorando as bibliotecas universitárias para lhe trazer
livros sobre livros e lhos ler depois em voz alta.
Mais Nietzsche, não, obrigado, Sir Magnus. Acho que já sabe
mos o suficiente sobre os efeitos purificadores da violência. Kleist é me lhor, mas você não o lê como deve ser. Kleist é para uivar. Era um ofi
cial prussiano e não um herói inglês. Arranje-me pintores.
Quais?
Abstraccionistas. Decadentes. Judeus. Todos entaret ou proibi
dos. Dê-me umas férias destes malditos escritores. Pym consultou Frau OUinger.
Pois, tens de perguntar ao bibliotecário quais eram os pintores
de que os nazis não gostavam, Magnus explicou ela, com a sua voz de
governanta.
O bibliotecário era um imigrado que conhecia de cor as preferências de Axel. Pym trouxe Klee e Nolde, Kokoschka e Klimt, Kandinsky e Picasso. Dispôs os livros
ilustrados e os catálogos abertos em cima da chaminé, onde Axel os podia ver sem ter
de mexer a cabeça. Voltava as páginas e lia em voz alta as legendas. Quando apareciam
mulheres, Axel mandava-as embora. «Tenho quem trate de mim. Espera até eu estar
melhor.» Pym trouxe Max Beckmann. Trouxe Steinlen e depois Schie-le e mais Schiele. No dia seguinte, os escritores foram readmitidos. Pym foi buscar Brecht e Zuckmayer,
Tuchoslky e Remarque. Leu-os em voz alta, horas e horas. «Música» encomendou
Axel. Pym pediu emprestado o gramofone de manivela de Herr OUinger e pôs Axel a
ouvir Men-delssohn e Tchaicovsky até adormecer. Mas ele voltou a acordar delirante,
escorrendo suor, como se fossem grandes gotas de chuva: descreveu uma retirada pelo meio da neve, com os cegos agarrados coxos e o sangue a gelar nas feridas. Falou de um
hospital onde só via uma cama para cada dois e onde os mortos iam ficando deitados
chão. Pediu água. Pym foi buscá-la, e Axel pegou no copo com am as mãos, tremendo
violentamente. Levantou o copo até as mãos se
252
. mObilizarem, e depois baixou a cabeça por arranques até os lábios al-ancarem a borda
do copo. Em seguida, sorveu a água como um animal entornando parte dela, enquanto
os olhos febris se lhe mantinham vigilantes. Encolheu as pernas e urinou, sentando-se
depois amuado numa poltrona, enquanto Pym lhe mudava os lençóis. De quem é que está com medo? perguntou Pym. Não está
aqui mais ninguém. Somos só nós.
Então devo ter medo de si. O que vem a ser aquele cão de água
ali no canto?
É Herr Basti. É um chow-chow, não é um cão de água. Julguei que fosse o diabo.
Até que um dia, Pym acordou e deu com Axel, de pé e completa-mente vestido, junto da
sua própria cama.
É o aniversário de Goethe e são quatro da tarde anunciou
Axel, na sua voz militar. Temos de ir à cidade ouvir aquele idiota do Thomas Mann.
Mas você está doente.
Quem anda a pé, é porque não está doente. Quem se levanta, é
porque não está doente. Vista-se.
Mann também estava na lista dos autores proibidos? per guntou Pym, enquanto enfiava a roupa.
Nunca conseguiu lá chegar. >
Porque é que ele é um idiota? • '
Herr OUinger emprestou a Axel um impermeável que tinha duas ve-KS o tamanho dele,
Mr. San emprestou-lhe um chapéu preto de aba larga. Herr OUinger levou-os até ao local do encontro, no seu carro desconjuntado, com duas horas de antecedência, e Axel
e Pym escolheram dois lugares ao fundo da sala, antes de esta se encher. Quando a
conferencia acabou, Axel levou Pym até aos bastidores e bateu à porta do ca-manm. Até
esse momento, Pym nunca apreciara Thomas Mann. Acha-Va a sua prosa amaneirada e
difícil, embora fizesse um esforço em atenção a Axel. Mas agora estava ali o Deus em pessoa. Alto e angulo-s°. como o tio Makepeace.
Este jovem aristocrata inglês gostaria de lhe apertar a mão in-ormou Axel, com um ar de
autoridade, por baixo do chapéu de abas largasdeMr.San.
Thomas Mann fitou Pym e depois Axel, macUento e etéreo por cau-^ febre. Thomas
Mann olhou atentamente para a palma da sua pró- mão direita, como se se perguntasse se esta poderia suportar a prova
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de um aperto de mão aristocrático. Estendeu por fim a mão e Pym apertou-lha,
esperando sentir o génio de Mann invadi-lo, como num desses choques eléctricos que outrora se podiam obter nas estações de comboio «Segura esta maçaneta e deixa que a
minha energia te reanime.» Não aconteceu nada, mas o entusiasmo de Axel bastava para
os dois.
Tocou-lhe, Sir Magnus! Foi abençoado! Tornou-se imortal!
Passada uma semana, Axel e Pym já tinham juntado dinheiro suficiente para poderem ir a Davos visitar o altar das almas doentes de Mann. Fizeram a viagem na casa de banho
do comboio, Pym de pé e Axel, com uma boina na cabeça, sentado pacientemente na
sanita. 0 revisor bateu à porta e gritou: «Alie Billette, bitte!» Axel soltou um gri-tinho
feminino de contrariedade e passou por baixo da porta o único bilhete que ambos
tinham adquirido. Pym ficou à espera, com os olhos presos à sombra dos pés do revisor. Percebeu que o revisor se baixava; ouviu-o resmungar quando voltou a endireitar-se.
Ouviu depois uma espécie de estalido que lhe pareceu o som da sua p rópria coragem a
abater-se por terra, e o bilhete reapareceu perfurado por baixo da porta. A sombra
desapareceu. Foi assim que vieste até cá a pé, pensou Pym com admiração, enquanto
ambos apertavam as mãos, felicitando-se em silêncio. Foram truques deste género que te trouxeram até à Suíça. Nessa noite, em Davos, Axel contou a Pym o pesadelo que
fora a sua viagem de Carlsbad para Berna. Pym sentiu-se tão orgulhoso e rico que
decidiu que Thomas Mann era o maior escritor do mundo.
Querido Pai,
escreveu ele, exultante, mal regressou ao seu sótão estou apos sar aqui uns tempos verdadeiramente mágicos e a receber um ensino de pri
meira categoria. Não consigo dizer-te como sinto a falta dos teus sábios con
selhos e como te estou agradecido por me teres mandado estudar para d
Suíça. Conheci hoje alguns advogados, que parecem bem informados acer
ca de tudo, e tenho a certeza de que serão da maior utilidade para a minha carreira futura. ■.•■> v , ■,
Querida Belinda, ■ r ' >
agora que bati o pé com firmeza, as coisas vão muito melhor.
E entretanto apareceste tu, não foi, meu velho Jack? Jack, o outro herói de guerra, Jack,
o meu outro lado. Vou dizer-te quem eras, por'
ue o teu Jack já não é o mesmo que eu conheço. Vou dizer-te o que eras ara mim, o que
eu fiz por ti e, tanto quanto for capaz, os motivos de ter feito, porque também sobre esse
ponto duvido que a nossa leitura dos acontecimentos e dos personagens seja idêntica.
Duvido muito, mesmo. Para Jack, Pym era apenas mais um agente recém-nascido, apenas mais um do seu exército privado em vias de organização, ainda intacto e também
inexperiente ainda, mas com a coleira já bem ajustada ao pescoço e desejoso de correr a
valer para obter o seu torrão de açúcar. Provavelmente, não te lembras porque é que
havias de te lembrar? de como o caçaste, nem de como lhe fizeste as primeiras
propostas. A única coisa que sabias é que ele era o género de tipo que agradava aos Serviços, que te agradava a ti e também a uma parte de mim próprio. Poucos apoios,
falando um inglês de lei, conhecendo razoavelmente outras línguas, tendo frequentado
um bom colégio na província. Um bom desportista aceita a disciplina. Não é como um
tipo dado às artes, muito menos como um dos teus tipos superintelectuais. L>tá ao nível,
é um dos nossos, um cá dos nossos. Vive bem, mas não excessivamente bem; o pai é uma espécie de pequeno empresário é, de resto, característico que nunca te tenhas dado
ao cuidado de confirmar os dados referentes a Rick. E onde é que havias de descobrir
semelhante modelo do homem de amanhã, senão na igreja inglesa onde adejava a
bandeira de São Jorge, vitoriosa, em plena neutralidade suíça?
Não sei há quanto tempo andarias na pista de Pym. Aposto que tu também não. Gostaste da maneira como ele fizera a leitura na igreja, segundo disseste, e por conseguinte,
devias andar de olho nele pelo menos desde antes do Natal, porque o texto da leitura era
do princípio do Advento. Pareceste surpreendido quando ele te disse que frequentava a
universidade: portanto, penso que as tuas primeiras averiguações devem ter decorrido
antes da inscrição de Pym e que não as terias actuali-^do, entretanto. Foi no dia de Natal, depois dos cânticos da manhã, que ty111 te apertou a mão pela primeira vez. O
pórtico da igreja parecia um e'evador apinhado, com toda a gente a abrir guarda-chuvas
e emitindo s°ns inequivocamente britânicos, enquanto os filhos dos diplomatas se
atlravam bolas de neve na rua. Pym trazia vestido o casaco que compra-ra COír> E.
Weber, e tu, Jack, eras uma montanha inglesa inescalável de ff«. com vinte e quatro anos de idade. Em termos de guerra e de paz, sete anos que nos separavam eram uma
geração, ou talvez até duas. °m Axel, na realidade, passava-se a mesma coisa: vocês
tinham esses Os decisivos de avanço sobre mim; e ainda hoje assim é.
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Sabes o que é que trazias vestido, para além do teu excelente fato castanho? A tua
gravata da Aviação. Cavalos empinados com asas prateadas e britânicas coroadas em
campo castanho parabéns. Nunca me contaste onde andaras para teres essa gravata, mas sei hoje que a realidade não fica aquém da minha imaginação: com os resistentes na
Jugoslávia, e a resistência checoslovaca do outro lado das linhas inimigas' num corpo
especial do deserto, em África, e até, se bem me lembro, em Creta. És uma polegada
mais alto do que eu, mas lembro-me como se tivesse sido ontem de que, quando Pym
apertou a tua grande mão seca, aquela gravata da Aviação lhe entrou pelos olhos dentro. Pym ergueu a cabeça, viu o teu maxilar de pedra e os teus olhos azuis já então
encimados pelas tuas espessas sobrancelhas e compreendeu que estava a olhar na cara o
personagem em que se devia ter transformado após a sua passagem pelo colégio e que,
por vezes, era na sua imaginação: um intrépido oficial inglês de costas aprumadas, o
único a manter a cabeça fria quando todos os outros a perdem. Tu desejaste a Pym um bom Natal, e quando disseste o teu nome, ele julgou que estavas a tentar dizer uma
graça relacionada com o dia de Natal. Tu és a Boa Camaradagem, e eu sou a
Fraternidade35.
Não, não, meu velho, Brotherhood é o meu nome verdadeiro
insististe soltando uma gargalhada. Porque é que um tipo simpáti co como eu, havia de usar um nome falso?
Porquê na realidade, se gozavas de imunidade diplomática? Convidaste Pym para tomar
um/erez antes do almoço do dia seguinte, o Bo-xing Day56, dizendo-lhe que terias
enviado um convite postal se soubesses a sua morada, o que foi inteligente da tua parte,
porque é óbvio que a conhecias perfeitamente: morada, data de nascimento, estudos e todos os restantes disparates que julgamos darem-nos ascendente sobre todas as pessoas
que tencionamos contratar. Depois, fizeste uma coisa com graça. Tiraste do bolso um
convite e, enquanto toda a gente continuava a fazer barulho no pórtico apinhado,
mandaste Pym virar--se e servindo-te das costas dele como de uma mesa, escreveste o
teu nome no cartão, estendendo-lho a seguir: «O capitão e Mrs. Jack Brotherhood têm o prazer de o convidar». Riscaste o R.S.V.P., para sublinhar que estava tudo combinado, e
riscaste também o «capitão», p3** mostrar como éramos verdadeiros camaradas.
Se quiseres ficar para depois, podes aj udar-nos a acabar de comer
o peru frio. Traje de passeio acrescentaste.
Pym viu-te afastares-te debaixo da chuva, andando do mesm° 256
modo que ele sabia ter sido o teu ao moveres-te sob o tiroteio de todos s campos de
batalha em que venceras sem auxílio os alemães, enquanto, na mesma altura, o acto
mais corajoso que Pym levara a cabo fora gravar as iniciais de Sefton Boyd na parede da casa de banho dos professores.
No dia seguinte, Pym apresentou-se pontualmente na tua pequena vivenda diplomática
e, ao tocar à campainha, leu o teu cartão de visita emoldurado por cima do botão.
«Capitão J. Brotherhood, adjunto do Serviço de Passaportes, Embaixada da Grã-
Bretanha, Berna.» Deves-te lembrar de que nessa altura estavas casado com Felicity. Adrian tinha seis meses de idade. Pym brincou com ele durante horas, no fito de te
impressionar favoravelmente, atitude que em breve se tornou um hábito nos seus
contactos com os membros mais novos do teu ofício. Interrogaste Pym de maneira
extremamente cortês, e quando saíste da sala, Felicity substituiu-te como boa squaw dos
Serviços Secretos, Deus lhe perdoe: Mas quem são os seus amigos, Magnus, você deve sentir-se tão sozinho por cá?
exclamou ela. O que é que faz quando se quer distrair, Magnus? e houve ainda muitas
outras perguntas acerca da vida extracurricular na universidade. Por exemplo, grupos
políticos e assim por diante? Ou seriam todos uns pasmados e uns tristes por lá, como
no resto da cidade? Pym não achava Berna nem pasmada nem triste, mas fez de conta que era essa também a sua opinião, ao conversar com Felicity. Em termos cronológicos,
a amizade entre Pym e Axel tinha então doze horas de existência, mas Pym esqueceu
Axel por completo e porque é que havia de se lembrar, quando estava tão ocupado pela
tarefa de te deixar a ti e a Felicity a melhor das impressões?
Lembro-me de ter-te perguntado onde é que estiveras em comba-te> na esperança de que respondesses: Quinta Divisão Aerotransporta-da. ou Artists Rifles, para me ser
possível exibir a seguir um ar devidamente impressionado. Em vez disso, tornaste-te um
pouco brusco e Asseste «Contingente Geral». Sei hoje que estavas a praticar o jogo du-
P'° da cobertura diplomática: querias que a diplomacia te protegesse, ̂ as querias ao
mesmo tempo que Pym visse para além do seu véu. Que-"as que ele soubesse que eras um «especial» e não um desses intelectuais e meia tigela do ministério dos Negócios
Estrangeiros, como lhes cos-mas chamar. Perguntaste a Pym se costumava viajar
através da Suíça ^ugeriste que, quando tivesses uma viagem de serviço de automóvel,
Vez Pym gostasse de uma boleia, para se distrair um bocado. Depois, 257
calçámos os dois botas e partimos para aquilo a que tu chamavas tm^ «grande tareia»:
quer dizer, uma marcha forçada pelos bosques de Elfe nau. Durante a marcha, disseste a
Pym que não precisava de te tratar por sir, e quando regressámos, Felicity já tinha dado de comer a Adrian e aparecera lá em casa um homem mais velho, que sorria
afectadamente e estava a conversar com ela. Apresentaste-o como Sandy, da embaixada,
e Pym pressentiu que vocês eram colegas e, mais vagamente, qUe Sandy era o teu
chefe. Sei hoje que era o chefe da tua delegação e que tu eras o número dois dele, e que
ele estava ali a fazer o trabalho que lhe competia, apreciando a mercadoria antes de permitir que avançasses no negócio. Mas na altura Pym viu apenas em Sandy um
director de colégio e em ti, um Anfitrião.
A propósito, que tal é o seu alemão? perguntou Sandy a Pym, com o seu sorrizinho,
enquanto nós os três devorávamos empadas de carne confeccionadas por Felicity. É um
bocado difícil aprender por cá, não é, com este dialecto suíço a ouvir-se por toda a parte?
Magnus conhece bastantes estudantes estrangeiros explicas
te tu em meu lugar, sublinhando um ponto que parecia favorável à con
cretização do negócio. Sandy deixou escapar uma pequena risada idio
ta, batendo com a mão no joelho. Ah, sim? Não me digas! Aposto que deve haver figuras curiosas
no meio de toda essa gente!
Ele poderá dar-nos, provavelmente, bastantes informações acer
ca dessas figuras, não é verdade, Magnus? disseste tu.
Você não se importava de o fazer? disse Sandy, zombeteiro e ainda a sorrir.
Porque é que havia de me importar? disse Pym.
Sandy jogou, com inteligência, uma carta arriscada. Deu-se conta de que Pym gostava
de tomar decisões audaciosas diante de outras pessoas, e serviu-se dessa intuição para o
levar a comprometer-se antes de ele poder saber o quê. Nada de escrúpulos demasiado generosos acerca da santidade
dos estudos na universidade, ou de outras coisas no género insistiu
Sandy.
Nenhuns disse Pym, com entusiasmo. Se for pelo bem o°
meu país e aqui foi recompensado por um sorriso de Felicity- Não me recordo de que versão de si próprio se serviu Pym nesse dia, tendo de a
conservar ao longo dos meses seguintes, o que signirica que deve ter-se tratado de uma
versão bastante moderada, evitando "s
isódios extravagantes cuja narração mais tarde lhe causava frequen-dissabores. Pym fez o melhor que pode para vos dar aquilo que pen-va qUe vocês queriam dele. Foi
suficientemente prudente para não de-larar que tinha um salário, o que caiu muito bem,
porque tu já então sabias que Pym tinha um trabalho negro, como dizem os alemães,
quer dizer: um trabalho nocturno e ilegal. Pensaste: cá está um tipo esperto, cheio de
expediente, sem desdenhar umas pequenas intrujices. Pym minimizou a sua vida familiar com os Ollinger, uma vez que esses pais adoptivos arruinariam a sua imagem
de exilado experiente. Quando lhe perguntaste se conhecia raparigas o espectro da
homossexualidade, será ele um desses? , Pym captou imediatamente o sentido da
pergunta e compôs uma fantasia inofensiva em torno de uma beldade italiana chamada
Maria, que conhecera no clube Cosmo e a quem se ligara, mas apenas como a um tapa-buracos na ausência de Jemima a sua namorada constante, que se encontrava em
Inglaterra.
Jemima quê? perguntaste tu, e Pym respondeu: «Sefton Boyd», o que teve como efeito
um audível suspiro de satisfação dos representantes da sociedade ali presentes. Maria
existia realmente e era realmente muito bonita, mas Pym sempre guardara exclusivamente para si próprio a adoração que lhe devotava e nunca lhe dirigira sequer a
palavra.
Cosmo? disseste tu. Acho que nunca ouvi falar. Tu já,
Sandy?
Acho que não, meu velho. Isso soa-me a coisa suspeita. Pym explicou que o Cosmo era uma espécie de local de reunião política dos
estrangeiros e que Maria era uma espécie de funcionária da organização, na qualidade
de tesoureira ou outra coisa no género.
Sem sinais particulares? perguntou Sandy.
Bom, ela tem a pele bastante escura, como é, de resto, todo aque- e ambiente disse subtilmente Pym, enquanto tu, Felicity e Sandy
se riram imenso, como a pequena Audrey, tendo Felicity comentado
1Ue a posição política de Magnus era, pelo contrário, perfeitamente
ara. Daí em diante, nenhum encontro ficava completo sem que al-
perguntasse quais os sinais particulares de Maria e sem que to-°s rebentassem a rir com o teu trocadilho tão maravilhosamente sau-avel- Já era noite quando Pym saiu de tua
casa, e tu entretanto ras-lhe como prenda uma garrafa de whisky comprada numa duty
eeshop, para aquecer. O que representava, na altura, para os Serviços a despesa de cerca
de cinco xelins. Ofereceste-te para levar Pym a
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casa, mas ele respondeu que adorava andar a pé, marcando assim mais alguns pontos na
tua consideração. E lá regressou a pé, como se flutuasse no ar. Saltava e ria, abraçava a
garrafa e abraçava-se a si próprio de satisfação; ao longo dos seus dezassete anos de existência, jamais se sentira tão bafejado pela sorte. Num só Natal, Deus fizera-o
descobrir dois santos. Um era um fugitivo que não podia andar, e o outro, um senhor da
guerra, inglês, de excelente figura, que servia Jerez no Bo-xingDay às visitas e nunca
tivera dúvidas ao longo de toda a sua vida. Ambos estes santos o admiravam, ambos
adoravam as suas graças e as suas imitações, ambos aspiravam a ocupar os espaços vazios do seu coração. Como retribuição, Pym oferecia a cada um deles o personagem
de que ambos pareciam, cada um à sua maneira, ter necessidade. Pym nunca chegou a
tornar explícita a decisão de ocultar a cada um deles a existência do outro. Deixemos
que cada um deles seja a amante que permite ao outro lar continuar intacto, pensou
Pym. Se é que chegou a pensar alguma coisa. A quem é que a roubou, Sir Magnus? perguntou Axel, no seu inglês de estrangeiro,
mirando o rótulo com curiosidade.
Foi o capelão respondeu Pym, sem hesitar um segundo. É
um tipo incrível. Um antigo combatente. Não a roubei, foi ele que ma
deu. Uma garrafa grátis, para os frequentadores habituais da igreja. Ele arranja-as ao mesmo preço que os funcionários da embaixada, claro.
Não paga tanto como nas lojas.
Por acaso, não te ofereceu cigarros também, não? perguntou
Axel.
Porque é que havia de ter oferecido? Nem um chocolate para comeres à noite com a tua irmã?
Não tenho irmãs.
Óptimo. Então, vamos lá beber isso.
Lembras-te das nossas viagens de automóvel, Jack? Começo a achar que deves lembrar-
te. Já alguma vez pensaste como é que os nossos antepassados se arranjariam para dirigirem os seus agentes na era de antes do automóvel? A nossa primeira viagem não
poderia ter vindo mais a propósito. Tinhas um encontro em Lausanne. Precisavas de
passar » umas três horas. Não explicaste porque seria que precisavas dessas três horas
em Lausanne, embora me tivesses perfeitamente podido impin' gir uma história
qualquer que te passasse pela cabeça. Uma vez mais> beneficiando dos efeitos Ha visão retrospectiva, compreendo hoje que estavas deliberadamente a fazer-me participar do
secretismo do teu tra*
halho, sem me explicares de que trabalho se tratava. Não fizeste, dessa quaisquer
perguntas a Pym. Tentavas construir uma relação íntima ntre os dois. Limitaste-te a marcar um encontro com Pym, e um segundo encontro para o caso do primeiro falhar,
para te certificares de ue ele estava à altura da situação.
Escuta, é bem possível que eu tenha de fazer uma segunda visita.
Se não estiver à porta do Hotel Dora às três, vai ter à fachada oeste dos Correios
Centrais, às três e vinte. Pym não estava seguro acerca dos pontos cardiais, mas dirigiu-se a umas cinco ou seis pessoas até que uma delas lhe explicou como devia fazer,
conseguindo assim chegar ao lugar combinado precisamente às três e vinte, ainda que
ofegante da pressa. Deste uma volta à praça e quando passaste pela segunda vez,
abrandaste o automóvel e abriste a porta, tendo Pym entrado com o carro em
andamento, como um soldado aerotransportado, demonstrando-te assim as suas capacidades.
Estive a falar com Sandy disseste tu, enquanto nos dirigíamos
a Genebra, uma semana mais tarde. Ele quer que faças um trabalho
para ele. Importas-te?,...,,-.
Claro que não. ■■■■'■ Percebes alguma coisa de tradução? f •' '
De que tipo?
És capaz de guardar um segredo?
Acho que sim.
Deste-lhe assim o seu primeiro Objectivo Desta Noite: De tempos a tempos, recebemos algumas informações técnicas.
Coisas que andam principalmente à volta de certas empresazinhas suí-
Ças que fabricam objectos não muito do nosso agrado. Uns objectos an
tipáticos e explosivos acrescentaste com um sorriso. Não é pro
priamente secreto, mas na embaixada há bastantes funcionários suíços; Portanto, preferimos que seja alguém de fora a ocupar-se da tradução.
ue preferência, um inglês. Alguém de confiança. Aceitas?
- Claro que sim.
~~O trabalho é pago. Não muito bem, mas dá-te para convidares Maria para jantar de
vez em quando. Tens tido ultimamente notícias de Jemi? Jem está bem, obrigado.
Pym nunca tivera tanto medo na sua vida. Estendeste-lhe o enve-
Pe> ele enfiou-o no bolso, olhaste-o cqm o teu ar de Cérebro da Cons-
p raÇão, e disseste: «Boa sorte, meu velho» sim, Jack, foi isso o que
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me disseste! Era assim que falávamos um com o outro! E Pym dirigiu-se a pé para casa,
mudando o diabo daquele envelope de um bolso para o outro, tantas vezes que parecia
um vendedor de apostas clandestinas em fuga. E dentro do envelope, havia o quê? Deixa-me ser eu a dizer: lixo. Lixo fotocopiado de alguns catálogos de armas fora de
moda. Era a alma de Pym que tu querias e não aquela estúpida tradução. De resto, Py m
conseguiu perder uma meia dúzia de vezes o envelope no seu quarto do sótão. Debaixo
da cama, debaixo do colchão, atrás do espelho, no tubo de aquecimento. Traduziu o seu
conteúdo durante horas disponíveis cuja existência até Axel ignorava. Pagaste vinte francos a Pym pelo trabalho. Só o dicionário técnico custara vinte e cinco, mas Pym
sabia que um cavalheiro não fala desses pormenores, embora os cheques de Rick, se e
quando vinham, fossem mais do que insuficientes.
Tens ido ao Clube Cosmo nestes últimos tempos? pergun
taste tu, despreocupadamente, uma vez que íamos a caminho de Zuri que, onde disseras que ias falar com certo tipo por causa de um cão.
Pym confessou que não. Tendo Brotherhood e Axel como Cosmo pri
vado, quem precisaria de outro clube?
De acordo com o que dizem, algumas das pessoas que lá vão são
bastante faladoras. Repara que não temos nada contra Maria. Há sem pre um leque bastante alargado entre esses grupos. Faz parte da demo
cracia. Mesmo assim, talvez não fosse má ideia que visses por lá as coi
sas de um pouco mais perto disseste tu. Não dês nas vistas. Se
julgam que és de esquerda, deixa-os pensar que és. Se esperam de ti um
direitista moderado britânico, faz-lhes a vontade. E se for preciso, ar ranja maneira de fazeres os dois papéis. Mas não exageres. Não quere
mos que te metas em sarilhos com os suíços. Há lá mais ingleses, para
além de ti?
Um ou dois estudantes de Medicina escoceses, mas disseram-me
que só lá vão por causa das miúdas. Os nomes ajudavam disseste tu.
Hoje, quando olho para trás, vejo que a partir desta conversa Py111 deixou de ser Pym.
Passou a ser o nosso homem no Cosmo, não te sirvas do telefone para assuntos
delicados. Pym era um agente simbólic°> com a categoria de semiconsciente, o que
corresponde à nossa fbrma simpática de dizer que sabe mais ou menos o que é que anda mais ou menos a fazer e mais ou menos porquê. Pym tinha dezassete anos, e se
precisasse de ti com urgência, devia telefonar a Felicity, dizendo que °
. cnegara à cidade. Se fosses tu a precisar dele, telefonarias para casa A s Ollinger de
uma cabina e dirias que eras o Mac de Birmingham, de agem por Berna. Caso contrário, víamo-nos de encontro a encon-ro o que significa que, em cada um deles, marcávamos o
próximo. Flutua, Magnus, dizias tu, mete-te no clube e sê a pessoa encantadora que és
Abre os olhos e os ouvidos, vê o que te soa a falso, mas, por amor de Deus, não nos
arranjes sarilhos com os suíços. E aqui está a tua retribuição do próximo mês, Magnus.
E Sandy manda cumprimentos. É o que te digo, Jack: quem semeia ventos, colhe tempestades, ainda que a colheita se faça esperar por trinta e cinco anos.
A secretária do Cosmo era uma insípida monárquica romena, chamada Anka, que
chorava indescritivelmente durante as conferências. Era activa e desmiolada, andava
com as mãos viradas para fora e quando Pym a abordou no corredor, repreendeu-o com
os olhos vermelhos de choro e mandou-o embora, porque estava com dores de cabeça. Mas Pym encontrava-se em missão de espionagem e não podia aceitar uma recusa.
Estou a pensar em lançar um boletim do Cosmo anunciou
Pym. Pensei que o boletim poderia incluir uma contribuição de cada
um dos grupos.
Não haver grupos Cosmo. O Cosmo não querer nenhum bole tim. Você é estúpido. Vá-se embora.
Pym seguiu Anka até ao minúsculo escritório onde ela tinha o seu covil.
Só preciso de uma lista dos membros do clube disse ele.
Com uma lista dos membros, posso mandar uma circular e saber quem
é que está interessado. ■ Porque é que não vir à próxima reunião perguntar pessoalmen-te disse Anka,
sentando-se e mergulhando a cabeça nas mãos, como se ^tivesse prestes a vomitar.
Nem toda a gente vem às reuniões. E eu quero auscultar todas
35 tendências. É mais democrático.
Nada é democrático disse Anka. É tudo ilusório. Ele ser 'nglês explicou ela a si própria, mas em voz alta, abrindo uma gave-
* com um puxão brusco, e começando a passar em revista o caos do seu
c°nteúdo. Que saber um inglês de ilusão?' perguntou ainda a um
"Werlocutor imaginário. É louco.'- Anka estendeu depois a Pym
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uma folha encardida cheia de nomes e moradas. A maior parte dos n mes estavam mal
escritos, como vim mais tarde a apurar.
Meu querido pai, escreveu Pym, animadíssimo tive um ou dois sucessos espantosos; apesar da minha
pouca idade, acho que os suíços estão apensar em nu conceder um grau académico.
Amo-te escreveu ele a Belinda. Nunca antes escrevi isto a ninguém.
É noite. A altura em que o Inverno é mais escuro em Berna. A cidade não voltará a ver
o dia. Um nevoeiro castanho e asfixiante escorre pela calçada húmida da Herrengasse, e os bons cidadãos suíços apressam-se disciplinadamente, como reservistas que se
dirigem para a frente de combate. Mas Pym e Jack Brotherhood estão confortavelmente
sentados num canto do seu pequeno restaurante, e Sandy mandara saudações muito
especiais, para além das suas mais veementes felicitações. É a primeira vez que o agente
e o seu chefe tomam juntos uma refeição na cidade onde ambos operam. Combinaram uma história engenhosa para o caso de encontrarem alguém. Jack nomeou-se a si
próprio secretário da Sociedade Cristã Anglo-Suíça da embaixada, e acha-se desejoso de
atrair elementos da universidade. Nada mais natural do que recorrer a Magnus que
conhece da igreja dos ingleses. Para o disfarce ser ainda mais completo, trouxe consigo
a encantadora Wendy, que trabalha na chancelaria, tem o cabelo cor de mel, é de excelentes famílias e tem o lábio superior ligeiramente saliente, como se estivesse a
todo o momento a apagar uma vela colocada por baixo do seu queixo. Wendy gosta por
igual dos dois homens; é uma rapariga que procura espontânea e naturalmente agradar,
com o peito achatado e incapaz de assustar alguém-Quando Pym acabou de descrever o
modo como deu o seu golpe de mestre, Wendy não resistiu a passar-lhe a mão pela face, dizendo:
Meu Deus, Magnus, você foi tão corajoso. Uma maravilha-Como Jemima ia ficar cheia
de orgulho, se se lhe pudesse contar. Não acha, Jack? tudo isto foi dito muito baixinho
na voz velada que ate os agentes mais alarves têm de adquirir antes de os deixarem
entrar erfl acção, enquanto aproximava muito o cabelo da cara de Jack ao dirig11' -lhe a palavra.
Pizeste um trabalho de primeira diz Brotherhood, com o seu
rriso militar. A igreja ficaria orgulhosa de ti acrescentou ele, ijrjgindo-se explicitamente
ao agente. Beberam ao excelente trabalho que Pym flzera Para a igreJa-
Chega o momento do café, e Brotherhood tira um envelope de um
dos bolsos do casaco, e do outro, um par de óculos de leitura de aros metálicos, que
conferiam uma autoridade misteriosamente perfeita ao seu rosto de herói britânico.
Desta vez, não é dinheiro, porque o dinheiro vem num envelope branco, sem timbre, e não num envelope acinzentado como este. Brotherhood não o entrega a Pym, mas abre-
o ele próprio, bem à vista de quem queira ver, pedindo um lápis a Wendy; «minha
querida, o teu belo lápis doirado, e é melhor não me contares como é que o arranjaste.»
Wendy responde: «Por ti, faço tudo, meu querido» e deixa o lápis cair nas mãos em
concha dele, que apertam as dela. Jack desdobra o papel à frente de Pym. Só quero verificar algumas destas moradas diz Brotherhood.
Não queremos começar a enviar literatura antes de termos a certe
za. Está bem?
Este está bem*, queria dizer: descodificaste este brilhante duplo sentido?
Pym responde que está inteiramente de acordo, e Wendy percorre a lista com uma unha carinhosa, detendo-se num ou dois nomes mais felizes que estão marcados com riscos e
cruzinhas.
Só me parece que um ou dois membros do nosso coro foram
demasiado discretos no que se refere a dados pessoais. Quase como se
quisessem esconder os seus talentos diz Brotherhood. Eu nem olhei para a lista diz Pym.
Brotherhood baixa o tom de voz.
• Nem devias ter olhado. Isso compete-nos a nós.
Não conseguimos encontrar a tua linda Maria em parte nenhu-
ma diz Wendy, extremamente desapontada. O que é que fizeste dela?
Infelizmente, voltou para Itália diz Pym.
Não andas à procura de uma substituta, não, Magnus, meu querido? -_ pergunta Wendy,
e os três riem ruidosamente, Pym com mais °ntade do que os outros, embora fosse capaz de dar a vida que lhe res-ava so para ver um dos seios de Wendy.
Brotherhood refere alguns nomes que aãò são acompanhados por Oradas na lista. Mas
não há nenhum desses casos em que Pym o pos-
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sa ajudar, não consegue dar quaisquer rostos a esses nomes, não conse gue descrever os
tipos. Em circunstâncias diferentes, ter-se-ia posto inventar alegremente, mas
Brotherhood tem o costume desagradável d saber as respostas antes de fazer as
perguntas, e Pym está a começar a aperceber-se desse facto. Wendy enche de novo os copos dos dois homens e fica com o fundo da garrafa para si. Brotherhood passa às
moradas que vêm sem nomes.
A.H. diz ele, despreocupadamente. Isto faz-te lembrar al
guma coisa? A.H.?
Pym confessa que não. A verdade é que ainda não fui a muitas reuniões diz ele, como se pedisse desculpa.
Tenho estado a tentar fazer avançar um pouco o estudo antes dos exames.
Brotherhood continua a sorrir, continua perfeitamente descontraído. Saberá ele que Pym
não está a preparar quaisquer exames? Pym nota que o lápis de Wendy quase
desapareceu no punho fechado de Jack, e a extremidade afiada desponta-lhe da mão como um cano de revólver.
Pensa um bocado sugere Brotherhood. E repete, articulando
lentamente, como se se tratasse de uma senha: A.H.
Talvez seja A.H. Qualquer Coisa diz Pym. A.H. Smith.
Schmidt. Posso arranjar maneira de perguntar. Será realmente muito fácil.
Wendy imobilizou-se como se estivesse num daqueles jogos das festas em que o
objectivo é uma pessoa imobilizar-se quando a música pára. O seu sorriso congelou ao
mesmo tempo que ela. Wendy domina a arte das secretárias particulares, consistente em
suspender a sua personalidade até esta ser de novo solicitada, e algo lhe diz que neste momento não é esse o caso. O criado está a levantar os pratos. O punho de Brotherhood
tapa o papel e, por isso, de modo perfeitamente acidental, nenhum dos nomes é já
visível para quem passe.
Ajudava alguma coisa se eu dissesse que A. H., seja ele ou ela
quem for, vive em determinada morada da Langgasse? Ou pelo menos é o que A.H. diz. Ao cuidado de OUinger. É também lá que tu moras»
Nãoé?
Ah, então é Axel diz Pym.
Algures, um galo cantava, mas Pym não o ouviu. Nos seus ouvidos, havia como que
uma queda de água a ressoar, e o coração estalava-u1
um sentimento de rigor moral aguçado. Estava no quarto de ves-• de Rick, tentando
reaver o amor que dedicara a uma causa errada. Estava na casa de banho dos professores
a fazer uma inscrição à navalha à custa do rapaz com mais classe do colégio. Havia as
histórias que Axel lhe contara enquanto delirava e entornava água na cama. Havia as histórias que ele contara a Pym em Davos, quando tinham ido visitar o sanatório de
Thomas Mann. Havia as migalhas que fora recolhendo por conta própria, nas suas
inspecções ocasionais e preventivas ao quarto de Axel. E havia o interrogatório
inteligente de Brotherhood, que lhe arrancava coisas que Pym não se dera conta de
saber. O pai de Axel combatera na brigada Thálmann em Espanha, disse ele. Era um social-de-mocrata da velha guarda, por isso fora uma sorte ter morrido antes de os nazis
lhe deitarem a mão.
Então trata-se de um tipo de esquerda?
Jámorreu.
Estou a falar do filho. Não me parece; pelo menos nunca mo disse. Está só a tentar
completar os seus estudos. É independente.
Brotherhood franziu as sobrancelhas, e escreveu Thãlmann na sua lista do coro. A mãe
de Axel era católica, mas o pai pertencera ao movimento anticatólico Los vom Rome,
uma organização luterana, explicou Pym. A mãe perdeu o direito à confissão por ter casado com um protestante.
Protestante e socialista lembrou Brotherhood, em voz baixa,
enquanto continuava a escrever.
No liceu, todos os amigos de Axel ambicionavam pilotar aviões contra os ingleses, mas
Axel foi convencido pelas Equipas Itinerantes de Recrutamento a oferecer-se para o exército. Foi enviado para a Rússia, feito prisioneiro e conseguiu fugir, mas quando os
aliados desembarcaram em França, foi atirado para o combate da Normandia, onde foi
ferido na coluna e na bacia.
■ Contou-te como é que escapou aos russos? interrompeu Bro-
~~ Disse que tinha fugido a pé. Da mesma maneira que veio a pé para a Suíça disse Brothe-
°°d, com um sorriso duro, e Pym começou a vislumbrar uma expli-
ÇS° em que não pensara, a propósito de Axel, antes de Brotherhood
^°n a sugerir. ^ - '
Quanto tempo esteve ele lá?
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Não sei. Mas, em todo o caso, foi tempo suficiente para ter
aprendido russo. Tem no quarto livros escritos em caracteres cirílicos De regresso à Alemanha, Axel adoecera em consequência dos ferimentos recebidos,
mas logo que melhorara o bastante para ser capaz de andar, fora mandado combater
contra os americanos. Voltara a ser ferido, e enviaram-no outra vez para Carlsbad, onde
a mãe se encontrava prostrada com icterícia. Por isso, Axel metera-a numa espécie de
carro de empurrar e arrastara-se com ela até Dresden, uma bela cidade que os aliados haviam recentemente arrasado. Levara a seguir a mãe para a circunscrição onde os
refugiados da Silésia se tinham reunido, mas ela morrera pouco depois de lá chegarem,
e Axel ficou só. Ao atingir este ponto, a cabeça de Pym estava feita em água. As cores
da parede que ficava por trás de Jack misturavam-se umas nas outras e pareciam
deslizar. Não sou eu. Sou eu. Estou a fazer o meu dever, para bem do meu país. Axel, ajuda-me.
Alto aí. Entramos agora nos tempos da paz. Quarenta e cinco.
O que é que ele faz?
Sai da zona soviética.
Porquê? Tinha medo de que os russos o encontrassem e o tornassem a
prender. Não gostava dos russos, não gostava de estar preso e também
não gostava da maneira como os comunistas estavam a dominar a Ale
manha Oriental.
Até agora, a história parece colar. Como é que ele consegue sair da zona soviética?
Queima a caderneta militar e compra outra.
Como?
A um soldado que conheceu em Carlsbad. Um tipo de Muni
que, que era bastante parecido com ele. Diz que, de qualquer maneira, em 1945, não havia na Alemanha ninguém que se parecesse com o pró"
prio retrato.
Porque é que esse soldado tão acomodatício não queria os seus
papéis?
Queria ficar na zona oriental. Porquê?
Axel não sabia porquê.
Pouco sólido, não?
Sim, talvez.
Vamos, continua.
Apanhou o comboio de repatriamento para Munique e tudo
orreu muito bem até chegar ao seu destino, onde os americanos o tiraram rapidamente
do comboio e o meteram na cadeia, espancando-o.
Porque é que lhe fizeram uma coisa dessas? Por causa dos documentos. Ele tinha comprado os documentos
de um homem de quem andavam à procura. Tinha caído em cheio numa armadilha.
A não ser que os documentos, é claro, fossem mesmo os dele, e
Axel nunca tivesse comprado nada a ninguém sugeriu Brotherhood, recomeçando a
escrever. Desculpa lá, meu velho. Não queria deitar abaixo as tuas ilusões. Mas o mundo é assim mesmo. Quanto tempo de pena cumpriu ele?
Não sei. Tornou a adoecer, foi transferido para um hospital e fu
giu do hospital.
Nada mal em matéria de fugas, é preciso reconhecer. Dizes que
ele veio a pé para cá? Bom, veio a pé e à pendura em comboios. Tiveram de lhe en
curtar uma das pernas. Foi na Alemanha. Depois de ele voltar da Rús
sia. É por isso que coxeia. Já devia ter explicado isto. A verdade é que,
mesmo com os comboios, deve ter sido bastante difícil. De Munique
para a Áustria, e depois da Áustria para a Suíça, atravessando clandes tinamente as fronteiras, durante a noite. E depois para Ostermundigen.
Para onde?
É o sítio onde Herr Ollinger tem a fábrica. Pym ouviu-se a si
próprio, tentando inventar desculpas. Não tem documentos ne-
nhuns, sabem? Destruiu os dele em Carlsbad. Os americanos ficaram- ■lhe com os que arranjara depois disso e não tem ninguém a quem se
dirigir para arranjar uns novos. Entretanto, continua na lista de pes
soas procuradas pelos aliados. Diz que teria confessado tudo o que os
americanos quisessem, se soubesse de que é que era acusado. Mas não
^wa, e eles continuaram a espancá-lo. Essa também já é velha disse Brodierhood, muito baixo, to
cando mais umas notas. Como é que ele passa o tempo por cá,
Magnus? Quem são os amigos dele?
U murmúrio das vozes que recomendavam cautela a Pym chegara ^de demais.
,. Áxel tem medo de sair de casa, porque receia que a Fremdenpo- ** ° prenda. Quando vai à cidade, pedeemprestado um chapéu de
'argas. Não é só por causa da Fremdenpolizei. Se os cidadãos suíços
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médios soubessem da sua história, apresentariam queixa contra ele Axel diz que é o costume. É um desporto nacional. Diz que fazem es sas coisas por inveja, bapt izando-a
de espírito cívico. O que vos estou a contar são simples mexericos caseiros.
Mas é pena não nos teres contado isso antes.
Achei que não tinha qualquer importância. Não era nada que
pudesse interessar. Foi Herr OUinger quem me contou a maior parte destas histórias. Passa o tempo a contar mexericos.
Brotherhood tinha o carro à porta. Ele e Pym sentaram-se lá dentro, mas Brotherhood
não pôs o carro em andamento. Wendy, entretanto, fora-se embora. Brotherhood
perguntou qual era a posição política de Axel. Pym disse que Axel desprezava as
atitudes políticas dominantes. Brotherhood disse: «Explica lá isso». Deixara de tomar notas e conservava a cabeça perfeitamente imóvel no enquadramento da janela do carro.
Pym disse que Axel observara uma vez que a dor era democrática.
Hábitos de leitura? perguntou Brotherhood.
Bem, na realidade, ele lê de quase tudo. Tudo o que não pôde ler
durante a guerra. Escreve muito à máquina. Principalmente de noite. E escreve o quê?
Diz que está a escrever um livro.
E o que é que lê?
Bem, de tudo. As vezes quando está doente, vou à biblioteca bus
car-lhe livros. Em teu nome?
Sim.
Isso é um bocado arriscado. E que livros é que trazes de lá?
De toda a espécie.
Explica melhor. Pym explicou e acabou inevitavelmente por chegar a Marx e En-gels e aos outros
papões. Brotherhood tomou nota de tudo, perguntando-lhe no final quem era Diihring.
Brotherhood quis saber quais os gostos habituais de Axel. Pym referiu que gostava de
charutos, de vodka e, por vezes, de kirsch. Não &-lou de whisky. Brotherhood fez então perguntas acerca da vida sexual de Axel, <
pondo de lado as suas próprias limitações nesse campo, Pym declaroul
que a vida sexual de Axel era complexa. i
Explica lá isso repetiu Brotherhood. '
Pym fez o melhor que pôde, embora soubesse ainda menos sobre a qualidade de Axel
do que sobre a sua própria, excepto que, fosse como fosse, Axel, ao contrário de Pym,
sentia-se bem com ela.
E tem mulheres, de vez em quando disse Pym depreciativa
mente, como se fosse uma coisa demasiado banal. Geralmente, são beldades que vêm do Cosmo, cozinham para ele, limpam-lhe o quar
to, e ele chama-lhes as suas Martas. A princípio, julguei que ele queria
dizer «mártires».
Querido pai,
escreveu Pym, nessa noite, infeliz e solitário no seu quarto es tou bem, mas sinto a cabeça a zoar por causa de todos estes seminários e
aulas. Continuo a sentir, como sempre, a tua falta. No entanto, aconteceu-
me uma coisa desagradável: houve um amigo que me enganou.
Que amor sentiu Pym por Axel ao longo das semanas seguintes! É verdade que durante
um dia ou dois se recusou a aproximar-se dele, tal era o seu ressentimento perante aquela pessoa. Pym detestava tudo o que lhe dizia respeito, todos os movimentos que
sentia do outro lado do tubo de aquecimento. Ele dá-se ares de superioridade comigo.
Zomba da minha ignorância, menosprezando as minhas capacidades. É um alemão
arrogante da pior espécie e Jack tem toda a razão em estar de olho nele. Pym levava a
mal as cartas que Axel recebia, Herr Axel, ao cuidado de OUinger. Detestava mais do que nunca as Martas, subindo pé ante pé as escadas que conduziam ao santuário do
grande pensador, como se fossem discípulas envergonhadas, para voltarem a descer as
escadas e saírem duas horas depois. É um depravado. É contra-natura. Está-lhes a dar a
volta à cabeça, exactamente como tentou fazer comi-8o- Pym manteve diligentemente
um diário destes factos, a fim de o en-togar a Brotherhood no próximo encontro de ambos. Passou, além disso, longas horas no bar da terceira classe, exibindo o seu olhar
enevoado, <fe maneira a tentar impressionar Elizabeth. Mas estes exercícios de se-
Paração não duraram muito e a comunicação com Axel foi-se tornando de novo mais
estreita a cada dia que passava. Pym descobriu que era capaz de ajuizar do estado de
espírito do amigo pelo ritmo a que ele es-Crevia à máquina: sabia assim quando Axel estava animado, quando ^tava fatigado ou quando estava irritado. Ele está a fazer
relatórios acer-^ de nós, disse Pym para si próprio, sem convicção. Está a vender os es-
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tudantes estrangeiros aos alemães que lhe pagam para isso. É um criminoso de guerra nazi, transformado num espião comunista à imagem do esquerdista do pai dele.
Quando é que vamos poder lê-lo? perguntara uma vez Pym,
timidamente, no tempo da amizade de ambos.
Vais poder lê-lo se eu chegar alguma vez a acabá-lo e se o editor
chegar alguma vez a publicá-lo. Porque é que não posso lê-lo agora?
Porque lhe ias tirar todo o sumo e eu ficava apenas com a casca.
Mas qual é o tema do livro?
Mistérios, sir Magnus, que nunca chegarão a ser escritos se fo
rem pronunciados em voz alta. Ele está a escrever a sua autobiografia à Wilhelm Meister, pensou Pym, cheio de
indignação. Mas a ideia fui eu que a tive, e não ele.
Pym sabia quando Axel estava com insónias pelo ruído dos fósforos que riscava para
acender os charutos. Sabia quando é que o corpo de Axel o estava a incomodar. Sabia-o
pelo ritmo alterado dos movimentos do outro e pela alegria postiça das suas canções, enquanto coxeava pelo corredor de madeira para se ir agachar durante horas na casa de
banho que os dois partilhavam. Ao cabo de várias noites em que Axel andara neste
estado, Pym começou a odiá-lo pela sua incontinência. Porque é que ele não volta para
o hospital? «Axel canta canções militares alemãs», escreveu Pym para Brotherhood, no
seu diário. «Esta noite, cantou o liedàe. Horst Wessel, de uma ponta à outra, enquanto estava na casa de banho.» Na terceira noite, muito depois de Pym se ter ido deitar, a
porta do seu quarto abriu-se bruscamente e lá estava Axel, embrulhado no roupão de
Herr OUinger.
Então? Já me perdoou?
O que é que eu tenho para lhe perdoar? respondeu Pym, em purrando discretamente o seu diário secreto para baixo dos lençóis.
Axel ficou à porta. O roupão estava-lhe ridiculamente grande. O suor transformara-lhe o
bigode num par de presas negras.
Ofereça-me um bocado do whisky do seu amigo padre - ois~
se ele. Depois disto, Pym não foi capaz de deixar Axel ir-se embora antes de as sombras da
suspeita lhe desaparecerem do rosto. As semanas foram passando, a Primavera começou
e Pym percebeu que nada acontecera e, sobretudo, que não traíra Axel, porque se o
tivesse feito, eus )* de há muito teriam feito também alguma coisa. Uma vez por outra>
Brotherhood fazia algumas perguntas de controlo, mas que soavam a nura rotina. Certa
vez, Brotherhood perguntou:
És capaz de me dizer uma noite em que ele saia de certeza?
Mas Pym conseguiu responder que certezas eram coisa que não havia na existência de
Axel. Ouve lá. Então porque é que não o levas para uma jantarada? disse Brotherhood. E houve uma noite em que Pym tentou. Disse a Axel que recebera uma remessa
inesperada do pai, perguntando-lhe se não acharia graça a vestir-se outra vez como no
dia em que tinham ido falar com Tho-mas Mann. Axel disse que não com a cabeça,
manifestando uma sabedoria que Pym não teve coragem de investigar. A partir daí, Pym
dedicou-se ao estudo e a Axel com todo o esforço de que foi capaz, ora garantindo a si próprio que Brotherhood só existia na sua cabeça, ora congratulando-se por Axel
continuar a sobreviver, o que se devia à maneira hábil como Pym manobrava forças
irresistíveis.
Eles chegaram nas primeiras horas de uma manhã de Primavera, precisamente quando
os receamos mais: quando desejamos viver mais tempo e sentimos mais medo da morte. Em breve, a menos que eu torne essa expedição desnecessária, virão buscar-me a mim
de maneira igual. Se isso vier a acontecer, espero ser capaz de o aceitar como justo e de
apreciar devidamente a circularidade da vida. Eles tinham arranjado uma chave da porta
principal e maneira de soltar as correntes de segurança da porta de Herr OUinger, que
não eram muito diferentes das de miss Dubber. Conheciam a casa por dentro e por fora, porque a tinham debaixo de olho havia meses, fotografando as pessoas que nos
visitavam e enviando-nos os seus falsos cobradores e lavadores de janelas, atrasando a
entrega do correio para lerem as cartas e, sem dúvida, escutando as conversas
telefónicas desalentadas de Herr OUinger com os seus credores e os seus pobres
protegidos. Pym percebeu que eles eram três, porque contou os seus passos furtivos de Pai Natal no degrau de Clrna que rangia. Eles foram ver o que se passava na casa de
banho, an-tes de se colocarem diante da porta de Axel. Pym deu-se conta disso, Porque
ouviu a porta da casa de banho chiar e sentiu que não a tinham ecnado. Ouviu também
barulho quando eles tiraram a chave da porta a casa de banho para o caso de o
criminoso desesperado se tentar tran-^r « dentro. Mas Pym não podia intervir pessoalmente, porque, encanto, estava ocupado a sonhar pesadamente em todas as
camas de
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pavor da sua infância. Sonhou com Lippsie e com o irmão dela, Aaron e com a maneira
como ele e Aaron tinham empurrado Lippsie do telhado do colégio de Mr. Grimble.
Sonhou que estava uma ambulância, lá fora, na rua, semelhante à que fora a The Glades
buscar Dorothy e que Herr OUinger tentava impedir os homens de subirem as escadas
mas que eles o mandavam voltar para os seus aposentos, numa explosão de dialecto suíço. Sonhou que ouvia um grito: «Pym, meu filho da mãe, onde é que estás?», vindo
do lado do quarto de Axel, e logo a seguir o ruído de tempestade de um homem com
uma perna mais curta do que a outra a lutar contra três intrusos robustos, e a oposição
furiosa de Basd, que fora acusado em tempos por Axel de ser o seu demónio de Fausto.
Mas quando ergueu a cabeça da almofada, e se voltou para a realidade, instalara-se o silêncio e tudo se encontrava perfeitamente tranquilo.
Foi uma coisa com que fiquei contra ti, Jack, confesso. Discuti contigo, na minha
cabeça, durante anos, sempre para trás e para diante, mesmo muito depois de já ter
entrado nos Serviços. Porque é que lhe fizeras aquilo? Ele não era inglês, não era
comunista, não era o criminoso de guerra que os americanos o acusavam de ser. Não era nada com que os teus Serviços tivessem a ver. Os seus únicos crimes eram a sua
pobreza, a sua presença ilegal na Suíça, a sua invalidez para além de uma certa
liberdade na maneira de pensar, o que, segundo alguns, é justamente o que temos o
dever de impedir. Mas alimentei contra ti uma recriminação, e lamento tê-lo feito,
porque sei agora que é claro que tu mal pensaste no caso. Axel era apenas moeda de troca. Tomaste notas acerca dele; e ele regressou à tua secretária com um peso enorme e
sinistro nas folhas impecavelmente dactilografadas por Wendy. Acendeste o cachimbo,
admiraste o teu trabalho e pensaste: Olá, aposto que os suíços vão gostar de caçar este;
vou passar-lhes o caso e marcar mais um ponto. Fizeste um ou dois telefonemas, e
convidaste um dos teus contactos nos Serviços de Segurança suíços para um almoço prolongado, no teu restaurante preferido. Na altura do café e do schnaps, passaste-lhe
um envelope castanho e anónimo. Lembraste-te depois de enviar também uma cópia ao
teu colega americano, porque se querias captar os favores de um, porque não haverias
de captar por junto os de um segundo? Afinal de contas, tinham sido os yankees a pô-lo
na cadeia, ainda que o tivessem feito por engano.
Nessa altura, além disso, eras ainda subalterno, não é verdade? Ti-
has de pensar na tua carreira. Como todos fazemos. Agora somos os
dois mais experientes. Desculpa, se este relato foi tão demorado, mas a
verdade é que levei bastante tempo a esquecer o episódio. Agora o caso está arrumado. É o que faz ter-se um amigo fora dos Serviços.
Mr. Canterbury! Mr. Canterbury! Está aqui um homem!
Pym poisara a caneta. Não olhara para a porta. Quase antes de saber o que estava a
fazer, viu-se de pé, com as suas pantufas calçadas, e voou para o outro extremo do
quarto, onde estava a pasta preta de revestimento metálico, encostada à parede e ainda fechada à chave. Acocorando-se junto da pasta, Pym enfiou a chave trabalhada na
primeira fechadura e fê-la girar. Depois, a segunda fechadura: no sentido contrário ao
dos ponteiros do relógio, senão a pasta explode.
E quem é esse homem, miss D.? disse ele, no seu tom mais
suave e tranquilizador, com uma das mãos já no interior da pasta. Um homem com um ficheiro Mr. Canterbury respondeu
miss Dubber, num tom de reprovação, através do buraco da fechadu
ra. O senhor nunca teve um ficheiro. Nunca teve nada. E também
nunca fechou a porta à chave. O que é que se passa?
Pym riu. Não se passa nada. É só um ficheiro. Fui eu que o encomendei.
Quantos são?
Levando a pasta consigo, Pym deslocou-se, pé ante pé, para a janela e encostou as
costas à parede, espreitando cuidadosamente por entre as cortinas.
Só um não lhe chega? Um ficheiro grande, verde, muito feio e de ferro. Se queria um ficheiro, porque é que não me disse? Eu podia
ter-lhe dado o armário da Mrs. Tutton, do quarto 2.
O que lhe perguntei foi: quantos homens?
A luz do dia lá fora, Pym viu uma camioneta de aluguer amarela, ^tacionada diante de
casa, com o condutor sentado ao volante. Relançou o olhar à volta, por toda a praça. Depressa. Verificando tudo. De-pois, devagar. Verificando tudo, uma segunda vez.
O que é que lhe interessa o número dos homens, Mr. Canter-
Ury? Porque é que havemos de contar os homens quando vêm entre-
&* um ficheiro? ^ - "
descontraindo-se, Pym voltou a"colocar a pasta no seu canto e fe-
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chou-a de novo à chave. No sentido dos ponteiros do relógio, senão in cendeia-se.
Meteu outra vez a chave no bolso. Abriu a porta. Desculpe, miss D. Acho que estava meio a dormir.
Ela olhou-o enquanto Pym descia as escadas, depois pôs-se a descer no seu encalço e
voltou a olhar para Pym, enquanto este olhava para os dois homens e, a seguir,
timidamente, para o ficheiro verde, tocando ao de leve a tinta estalada e
experimentando, uma a uma, todas as gavetas. Ê um peso danado, patrão, é o que lhe digo disse o primeiro
homem.
Quem é que está lá dentro? perguntou o segundo.
Miss Dubber viu Pym conduzir os homens até ao quarto, com o ficheiro no meio deles,
voltando depois a acompanhá-los até à saída. Viu-o pagar a conta, com dinheiro que tirou do bolso de trás das calças, dando-lhes cinco libras de gorjeta.
Desculpe, miss D. disse Pym, quando os homens se foram
embora. São uns arquivos antigos do ministério com que eu estou a
fazer um trabalho. Tome, isto é para si e estendeu-lhe um prospec
to de viagens, que trouxera consigo do quarto. As maiúsculas cheiravam um pouco a Rick: «Descubra a Tunísia no Luxo dos nossos autocarros
com ar condicionado. A nossa especialidade são os Mais Velhos. Am
bientes Orientais no Mediterrâneo. O suficiente para lhe fazer crescer
água na boca».
Mas miss Dubber não quis aceitar o folheto. Toby e eu já não vamos a mais lado nenhum, Mr. Canterbury disse ela. Seja o que for
que está a incomodá-lo, isso não desaparece só por nós nos irmos embora. Pode ter a
certeza.
IX ■ti- T
Brotherhood tomara banho, barbeara-se, cortara-se e vestira um fato. Ouvira as notícias
da BBC, e a seguir sintonizara a Deutsche Welle, porque, por vezes, a imprensa
estrangeira apanhava histórias que Fleet Street ainda estava, obedientemente, a tentar
suprimir. Mas não ouviu a mais leve referência a um agente dos Serviços Secretos britânicos que tivesse ido dar uma volta, ou aparecido em Moscovo. Comera torradas
com compota, fizera alguns telefonemas, mas, entre as seis e as oito horas de uma
manhã inglesa, decorria esse período morto durante o qual ninguém, excepto ele
próprio, se encontrava em actividade. Num dia como os outros, Jack teria atravessado o
parque até à Sede e ter-se-ia concedido duas horas de leitura, sentado à sua secretária, da colheita nocturna de relatórios das várias secções, preparando-se para a sessão de
orações das dez da manhã no santuário de Bo. «Então, como vai a nossa Frente Leste,
nesta manhã de chuva, Jack?», diria Bo num tom de veneração irónica, quando chegasse
a vez de Brotherhood. E seguir-se-ia um silêncio respeitoso, enquanto o grande Jack
Brotherhood comunicava os resultados conseguidos ao seu chefe. «Há um material bastante bom de ^°nger acerca do montante das operações comerciais do COMECON,
referentes ao ano passado, Bo. Mandámo-lo para as Finanças num cor-rei0 especial.
Para além disso, estamos na estação morta. Os agentes es-150 de férias, e o inimigo
também.»
d« seu Mas hoje não era um dia como os outros, e Brotherhood já não era §rande homem das
operações clandestinas, sobre o qual Bo fazia os Us gracejos quando o apresentava a
bombeiros em visita dos Serviços Llgação do Ocidente. Brotherhood era a mais recente
das não-pes-^ do mais recente escândalo na forja, e quando se viu na rua, diante
apartamento, o seu olhar perspicaz estava mais vigilante do j nunca. Eram oito e meia. Primeiro, dkígiu-se para sul, atravessan-reen Park, tão
depressa como de' costume, ou talvez até um pouco
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mais depressa, para que os vigilantes de Nigel, caso o estivessem a guir, fossem
obrigados a escolher entre porem-se a correr ou enviar uma mensagem de rádio para que
outros o apanhassem mais adiam Parara a chuva que caíra durante a noite. Um nevoeiro
quente e doe tio pairava por cima dos lagos e dos salgueiros. Ao chegar ao Mall, Br
therhood apanhou um táxi, e disse ao motorista que seguisse paraTote nham Court Road. Andou um pouco mais a pé, e apanhou um segundo táxi para Kentish Town. O
seu objectivo era a encosta de uma colina cinzenta cheia de vivendas vitorianas. As
primeiras fiadas de vivendas estavam em bastante mau estado, com as janelas chap eadas
de ferro como defesa contra os assaltantes. Mas, um pouco acima, os Volvos e as
janelas com caixilhos de teca eram um testemunho indubitável da presença da classe média, e os grandes jardins exibiam trepadeiras floridas e pequenos barcos em
construção. Brotherhood abrandou o passo. Subiu lentamente a colina, fixando à
vontade todos os pormenores: foi este o ritmo que ganhei ao longo da minha vida, foi
este o sorriso. Uma rapariga bonita passou por ele, a caminho do trabalho, e
Brotherhood saudou-a com indulgência. Ela piscou-lhe o olho com petulância, demonstrando à posteridade que não era pessoa para se ficar. Jack deteve-se diante do
número dezoito e pôs-se a observar a casa demoradamente, como se se tratasse de um
comprador potencial. Da cozinha, no rés-do--chão, soltava-se um trecho de Bach e um
cheiro a pequeno-almoço. Uma seta de madeira, com a inscrição «18 A», apontava para
as escadas de acesso à cave. Uma bicicleta de homem encontrava-se presa por uma corrente ao gradeamento, e via-se na porta envidraçada um cartaz do Partido Social-
Democrata. Brotherhood tocou à campainha. Uma rapariga, trajando blazer, veio abrir a
porta. Com treze anos apenas, mostrava já um ar de superioridade.
Vou chamar a mamã disse ela, antes de Jack ter tempo para
dizer fosse o que fosse, voltando-se tão bruscamente que a saia lhe ro dopiou. Mamã. É um homem. Para ti disse ela, e descendo as es
cadas ao passar por Jack, saiu dirigindo-se para o seu colégio acima de
qualquer suspeita.
Olá, Belinda disse Brotherhood , sou eu.
Saindo da cozinha, Belinda deteve-se ao fundo das escadas, respirou fundo e gritou para cima, em direcção a uma porta fechada:
Paul! Vem cá, depressa, fazes favor. Está aqui Jack Brotherhoou.
Presumo que deve querer alguma coisa.
Brotherhood sabia que ela iria gritar mais ou menos isto, embora na°
besse que o faria em voz tão alta, porque Belinda começava sempre 50 reagir mal,
acabando, porém, por se tornar, mais tarde, bastante simpática-
Sentaram-se numa saleta revestida de pinho, em cadeiras baixas de me que rangiam
como balouços quando alguém se mexia. Um abat-• ^gigantesco, de papel branco,
oscilava de través por cima das suas cabeças. Belinda servira café em chávenas feitas à mão, e adoçara-o com açúcar mascavado. O seu Bach ainda continuava a fazer-se ouvir,
à maneira de um desafio, na cozinha. Belinda tinha olhos escuros e parecia continuar
zangada por causa de qualquer coisa que lhe acontecera na infância aos cinquenta anos,
tinha ainda a expressão de quem estava disposta a iniciar mais uma discussão com a
mãe. Os cabelos dela eram grisalhos, apanhados num carrapito ajuizado, e trazia um colar cujas contas pareciam feitas de noz moscada. Ao andar, movia-se com dificuldade
dentro do seu cafetã, como se o odiasse. Quando se sentava, afastava os joelhos e
punha-se a coçar os nós dos dedos de uma das mãos. No entanto, a beleza permanecia
agarrada a Belinda, como uma identidade que ela em vão procurava negar, enquanto a
fealdade escorregava dela como um disfarce mal improvisado. Eles já cá estiveram, caso ainda não o saibas, Jack disse ela.
As dez da noite, de resto. Estavam à porta à nossa espera, quando che
gámos da casa de campo.
Eles, quem?
Nigel, Lorimer e outros dois, que eu não sei quem eram. Tudo homens, claro.
Que motivo deram para terem cá vindo? perguntou Brothe
rhood, mas Paul interrompeu-o.
Era impossível uma pessoa zangar-se com Paul. Sorria com um ar tão sábio por entre o
fumo do cachimbo, mesmo quando era malcriado! Que história vem a ser esta, Jack perguntou ele, tirando o ca
chimbo da boca e baixando-o de forma a fazê-lo parecer um microfone
de gravador. Interrogatórios a propósito de outros interrogatórios?
Ocês não têm a menor cobertura legal, Jack. O que estão a fazer é, mes-m° para este
governo, uma coisa tolerada, na melhor das hipóteses. Talvez não saibas, mas Paul tem escrito bastante acerca da ascen-
0 notória dos serviços para-militares durante os governos conservado-^ disse Belinda,
numa voz que se esforçava por parecer dura. Era
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uma coisa que poderias já saber se te desses, de vez em quando, ao trabalho de ler The
Guardian. Mas não lês. Da última vez, deram-lhe muj página inteira do jornal.
Portanto, vai-te lixar, Jack disse Paul, sempre com a mesma
simpatia. Brotherhood sorriu. Paul sorriu. Um velho cão pastor inglês, entrou e, deambulando
pelo aposento, acabou por instalar-se aos pés de Brotherhood.
A propósito, fumas? perguntou Paul, sempre sensível às ne
cessidades dos outros. Infelizmente, acho que Belinda anda a racio
nar o tabaco, mas eu posso-te oferecer um elegante cigarro castanho, se estás com muita vontade.
Jack puxou de um maço dos seus cigarros ordinários, acendendo um deles.
Vai-te lixar também tu, Paul disse ele, equitativamente.
Paul chegara cedo ao cume da sua vida. Há vinte anos, escrevera peças prometedoras
para diversos teatros experimentais. Continuava ainda a escrever teatro. Era alto, mas reconfortantemente pouco atlético. Candidatara-se duas vezes, que Brotherhood
soubesse, a entrar nos Serviços. Das duas vezes, fora liminarmente recusado, mesmo
sem a intervenção de Brotherhood.
Eles vieram cá porque estavam a tentar contactar com Magnus,
para o apanharem para um lugar importante, se te interessa saber disse Belinda de um só fôlego. Estavam cheios de pressa, porque que
riam promovê-lo imediatamente, para Magnus poder avançar com o tra
balho.
Nigel? perguntou Brotherhood, com um riso de incredulida
de. Nigel e Lorimer, mais dois outros homens? Metidos pessoalmente em buscas dessas, às dez da noite, em vez de mandarem alguém? Tives
te aqui metade dos oficiais superiores dos serviços secretos de WhitehaU>
Bei. Não foi nenhuma equipa de polícias inúteis e mal pagos.
O lugar é importante; por isso, ele tem de ser contactado por gente importante
respondeu Belinda, tornando-se escarlate. Foi Nigel quem te disse isso?
Foi ele, sim senhor! disse Belinda.
E tu acreditaste?
Mas Paul decidiu que era altura de mostrar o seu valor.
Deixa-nos em paz, Jack. Está bem, Jack? disse ele. Põe-te a andar daqui para fora. Já. Minha querida, não lhe respondas mais. Tua
isto é demasiado estúpido e demasiado teatral para estarmos com conversas. Vá lá, Jack.
Sai. Serás bem-vindo, quando quiseres vir tomar um copo em qualquer altura, desde que
telefones primeiro. Mas para estes disparates, não. Lamento muito. Sai. Paul abrira a porta e fazia com a mão grande e macia sinais, como se estivesse a remar,
mas nem Brotherhood nem o cão se mexeram.
. E Magnus abandonou o navio explicou Brotherhood a Belinda, enquanto Paul punha o
seu olhar que significava Olha-que-eu--posso-tornar-me-violento. Nigel e Lorimer
venderam-te um carregamento de tretas. Magnus escapou-se e meteu-se no seu esconderijo, e eles estão a cozinhar um caso em que ele será o grande traidor do mundo
ocidental. Eu sou o chefe dele e, por isso, essa história não me entusiasma assim tanto.
Acho que Magnus se transviou, mas que não está perdido, e gostaria de ser eu o
primeiro a apanhá-lo, para conversar com ele sobre isso. Depois, dirigiu-se a Paul, mas
sem se dar sequer ao trabalho de virar a cabeça, erguendo-a apenas um pouco, o que bastava para marcar a mudança de interlocutor. Os responsáveis do jornal para onde
escreves, encontram-se de momento amordaçados pelos tipos, tal como todos os outros
colegas deles, Paul. M as se Nigel conseguir o que quer, dentro de alguns dias, os teus
amigos dos jornais estarão a encher as suas colunazinhas miseráveis com histórias
acerca do primeiro casamento de Belinda, e a tirarem-te a ti fotografias de cada vez que fores à lavandaria. Por isso, o melhor que vocês têm a fazer é começarem a pensar os
dois no que lhes vão dizer. Entretanto, enquanto aí não chegamos, vai-nos buscar mais
café, e deixa-nos em paz durante uma hora.
A sós, Belinda era muito mais forte do que quando se encontrava protegida pelo seu
companheiro. O rosto dela, embora ainda estupefac-t0> começara a descontrair-se. O seu olhar estava fixo num ponto qualquer a alguns pés de distância dos seus olhos,
como se sugerisse que, em-°ra não visse tantas coisas como certas outras pessoas, a sua
fé no que la era duas vezes mais intensa. Belinda e Jack estavam sentados a uma mesa
redonda no vão da porta envidraçada, e a persiana recortava em fai-^ de luz e sombra o
cartaz do Partido Social-Democrata. O pai dele morreu disse Brotherhood. ■ Eu sei. Li nos jornais. Nigel também mo disse. Eles perguntaram-e corno é que eu achava que isso
poderia ter afectado Magnus. Devia ser um truque.
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Brotherhood não respondeu imediatamente.
Não por completo acabou ele por dizer. Não. Não era ape
nas um truque. Acho que o raciocínio deles deve ser que isso é capaz de
o ter desorientado.
Magnus sempre quis que eu o salvasse de Rick. Fiz o que pude Tentei explicar isso a Nigel.
Salvá-lo como, Belinda?
Encobrindo-o. Atendendo o telefone em vez dele. Dizendo que
estava no estrangeiro quando não estava. Às vezes, acho que foi por isso
que Magnus entrou para os Serviços. Era como se fosse um esconderijo para ele. Tal como casou comigo, por ter medo de arriscar com Jemima.
Quem é Jemima? perguntou Brotherhood, fingindo-se igno
rante.
Era uma minha amiga íntima do tempo de colégio. Belinda
franziu o sobrolho. Demasiado íntima. A expressão severa ate nuou-se e tornou-se melancólica. Pobre Rick. Só o vi uma vez. Foi no
nosso casamento. Apareceu no meio da recepção sem ter sido convida
do. Nunca vi Magnus tão feliz. Para além disso, Rick para mim era ape
nas uma voz ao telefone. Uma voz agradável.
- Magnus tinha mais alguns esconderijos nesse tempo? Estás a pensar em mulheres, não é? Podes dizê-lo abertamente, se
quiseres. Já não me afecta.
O que me interessava era saber se havia qualquer lugar onde ele
se escondesse. Só isso. Uma casita num lugar qualquer. Algum velho
amigo. Para onde é que ele teria ido, Belinda? Quem é que o poderia ter recebido?
As mãos de Belinda, agora que as abrira, eram elegantes e expressivas.
Poderia ter ido para qualquer parte. Era um homem diferente de
dia para dia. Chegava a casa e era determinada pessoa; eu tentava adap
tar-me a isso, mas, na manhã seguinte, era alguém completamente dife* rente. Achas que ele fez mesmo aquilo, Jack?
Etu?
Respondes sempre a uma pergunta com outra pergunta. Já me
tinha esquecido. Magnus utilizava o mesmo truque. Brotherhood fi
cou à espera. Podias tentar falar com Sef disse Belinda. Se""1 sempre um amigo fiel dele.
Sef?
Kenneth Sefton Boyd. O irmão de Jemima. «Sef é demasiado ric°
gra o meu gosto», costumava dizer Magnus. Mas isso queria dizer que se consideravam como iguais.
E Magnus poderia ir ter com ele?
Se a situação fosse suficientemente má.
E com Jemima?
Belinda disse que não, sacudindo a cabeça. . Porquê?
Ouvi dizer que deixou de se interessar por homens disse Be
linda, corando de novo. Ela é imprevisível, foi sempre assim.
Já ouviste falar de alguém chamado Wentworth?
Belinda abanou a cabeça, continuando a pensar noutra coisa. Não, nem no tempo do nosso casamento disse ela.
E de Poppy?
O meu tempo acabou com Mary. Se existe alguma Poppy, tanto
pior para Mary.
Quando é que foi que tiveste pela última vez notícias dele, Be linda?
O Nigel também me perguntou isso.
E tu o que é que lhe respondeste?
Disse que não havia razão nenhuma para eu ter notícias dele, de
pois de nos termos divorciado. Estivemos casados seis anos. Não tivemos filhos. Foi um erro. Para quê reviver tudo isso?
E isso é verdade?
Não. Menti.
O que é que não disseste?
Ele telefonou para cá. Magnus. Quando?
Na segunda-feira à noite. Graças a Deus, Paul não estava em casa.
Belinda interrompeu-se, escutando a ver se conseguia ouvir o ruído
da máquina de escrever de Paul, que tranquilizadoramente estava, de fac-
t0> a martelar lá em cima. Estava com uma voz estranha. Pareceu-me «lue estava bêbado. Era tarde.
~~ Que horas eram?
Deve ter sido por volta das onze. Lucy ainda estava a fazer os tra
balhos de casa. Regra geral, não a deixo trabalhar depois das onze. Mas
<•'* estava a fazer um exercício de preparação para o exame de francês. ^nus estava a falar de uma cabina.
Que funcionava com moedas? «> " Sim.
282
i
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De onde? i-,
Não me disse. Só disse: «Rick morreu. Gostava que tivéssemos
tido os dois um filho». Só isso?
Disse que sempre se odiara por ter casado comigo, mas que se re
conciliara agora consigo próprio. Acabara por se compreender. E gosta
va de mim por me ter esforçado tanto. E agradeceu-mo.
Só isso? «Obrigado. Obrigado por tudo. E por favor, perdoa-me as coisas
piores.» E depois desligou.
Contaste isso ao Nigel?
Porque é que me perguntas isso outra vez? Achei que não era da
conta dele. Não quis dizer-lhe que Magnus às vezes aparecia bêbado e sentimental ao telefone, a altas horas da noite, justamente na altura em
que eles estavam a pensar promovê-lo. É bem feito, para não me tenta
rem enganar.
E o que é que Nigel te perguntou mais?
Só coisas acerca do modo de ser dele. Se alguma vez eu tinha tido razões para pensar que Magnus simpatizava com o comunismo. Falei-
-lhes de Oxford. Nigel disse que já sabia. Respondi-lhe que não me pa
recia que as atitudes políticas na universidade tivessem grande impor
tância. Nigel concordou. Se Magnus alguma vez mostrara um compor
tamento anormal? Instável. Alcoólico. Depressivo. Tornei a dizer que não. Não me parecia que um telefonema em estado de embriaguez fos
se sinal de alcoolismo, e mesmo que o fosse, não ia falar nisso a quatro
colegas de Magnus. Senti-me protectora em relação a ele.
Eles deviam conhecer-te melhor, Belinda disse Brotherhood.
A propósito, se fosses tu a decidir, davas-lhe o lugar? Que lugar? Disseste que não havia lugar nenhum. Belinda
mostrou-se áspera para Jack, suspeitando, talvez tarde de mais, de que
também ele estivesse a fazer jogo duplo.
Mas imagina que havia. Um lugar importante e de grande res
ponsabilidade. Davas-lho? Ela sorriu. Um lindo sorriso.
Foi o que eu fiz, não foi? Casei com ele.
Agora és mais experiente. Se fosse hoje, davas-lhe o lugar?
Belinda mordeu o indicador, franzindo a testa, com um ar de amuo-
Mudava de humor de um momento para o outro. Brotherhood esperoU> mas Belinda não disse mais nada. Por isso, fez-lhe uma nova pergujlta'
284
___ Por acaso, perguntaram-te alguma coisa acerca do tempo que ele passou em Graz?
Graz? Estás a falar do serviço militar dele? Meu Deus, não recua ram até lá.
Brotherhood abanou a cabeça, como se comentasse que Belinda nunca seria capaz de se
dar conta das iniquidades deste mundo.
Graz é onde eles estão a tentar dizer que tudo começou, Bei
jjsse e)e- Têm uma grandiosa teoria segundo a qual Magnus se meteu numa história pouco limpa, enquanto estava lá a fazer o serviço militar. O que é que te parece?
É absurdo.
Como é que tens tanta certeza disso?
Magnus foi feliz por lá. Quando voltou a Inglaterra, era outro ho
mem. «Sinto-me completo», era o que ele passava então o tempo todo a dizer. «Consegui, Bei. Descobri a outra metade de mim.» Sentia-se or
gulhoso por ter feito um trabalho tão bom.
Contou-te como era o trabalho dele?
Não podia fazê-lo. Era demasiado secreto e demasiado perigoso.
Só disse que eu teria orgulho nele, se soubesse. Disse-te o nome de alguma das operações em que esteve metido?
Não.
E o nome de algum dos seus agentes? ' '
Não sejas parvo. Não faria uma coisa dessas.
E falou alguma vez no comandante? Disse que era um homem brilhante. Toda a gente era brilhante
para Magnus, quando eram pessoas que ele conhecia há pouco tempo.
Se eu te disser a palavra Greensleaves, faz-te lembrar alguma
coisa?
Música tradicional inglesa. Alguma vez ouviste falar de uma rapariga chamada Sabina? Belinda disse que não com
a cabeça.
Ele disse-me que era eu a primeira disse ela.
E tu acreditaste?
É difícil saber, quando para nós é também a primeira vez. Brotherhood recordou que o silêncio de Belinda era sempre agradá-• ^e as suas respostas tinham, por vezes, alguma
coisa de cómico, ha-sempre dignidade nas pausas que se abriam entre elas.
Então, Nigel e os seus amigos ficaram satisfeitos? sugeriu Bro- E tu? O rosto de Beiínda
recortava-se de perfil contra
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a janela. Brotherhood esperou inutilmente que o rosto dela se erguesse ou se voltasse
para ele.
Onde é que irias à procura de Magnus? perguntou Jack. . se
estivesses no meu lugar. Ela continuou sem se mexer e sem dizer palavra.
Nalgum lugar perto do mar? Era uma das fantasias dele, sabes?
Cortava os seus sonhos acordado às fatias e dava depois um pedaço a
cada pessoa. E a ti, deu-te alguma versão especial? Escócia? Canadá? As
migrações das renas? Uma senhora simpática que o acolhesse? Preciso de saber, Belinda. Preciso mesmo.
Não te digo mais nada, Jack. Paul tem razão. Não sou obrigada a
fazê-lo.
Sem te importares com o que ele tenha feito? Nem mesmo para
o salvares? Não confio em ti. Principalmente, quando te fazes simpático.
Foste tu que o inventaste, Jack. Magnus teria feito tudo o que lhe dis
sesses para fazer. Como havia de ser. Com quem devia casar. Como de
via divorciar-se. Se fez alguma coisa de errado, a culpa é tanto tua como
dele. Foi-lhe fácil ver-se livre de mim: bastou-lhe dar-me a chave da por ta e ir ter com um advogado. Mas como se livraria ele de ti?
Brotherhood começou a encaminhar-se para a porta.
Se o encontrares, diz-lhe que não me torne a telefonar. Estás a
ouvir, Jack? Ele deteve-se. O rosto dela tornara-se de novo amável e
optimista. Ele chegou a escrever aquele livro de que passava o tempo todo a falar?
Que livro?
O grande romance autobiográfico que iria transformar o mundo.
Achas que sim?
«Um dia fecho-me num buraco qualquer, e escrevo toda a verda de.» «Porque é que tens de te fechar num buraco? Diz agora o que tens
a dizer», respondi-lhe eu. Mas Magnus achava que era impossível. Por
mim, não vou deixar Lucy casar cedo. Paul também não deixa. Damos-
-lhe a pílula e deixamo-la ter as suas aventuras.
Onde é que era esse buraco em que ele se queria enfiar, Belinda. A luz desapareceu no rosto dela, uma vez mais.
A culpa foi vossa, Jack. De todos vocês. Tudo estaria bem cofl
Magnus, se não tivesse conhecido pessoas como tu.
Espera, disse para consigo Grant Lederer, Todos eles te odeiam. Tu deia-los, a quase todos eles, também. Sê um rapazinho esperto e espeta pela tua vez. Dez homens
estavam sentados numa sala encaixada dentro de outra sala. Nas paredes falsas, janelas
falsas davam para canteiros de flores de plástico. Foi em lugares deste género que a
América perdeu as suas guerras contra os homenzinhos de pele escura, vestidos com os
seus pijamas pretos, pensou Lederer. Em lugares deste género, pensou e|e. em salas com vidros fumados, isoladas do resto do mundo , a
América perderá todas as suas guerras, excepto a última. Apenas alguns metros para lá
das paredes, ficavam as águas mortas diplomáticas de St. Johns Wood. Mas ali dentro,
era como se se estivesse em Langley, ou em Saigão.
Harry, com o máximo respeito disse, com pouquíssimo respeito, Mountjoy do Gabinete , devo dizer-te que estes teus dados antigos podem perfeitamente ter sido forjados por
um inimigo pouco escrupuloso, como, de resto, alguns de nós têm sustentado desde o
início. Será correcto voltar a desenterrá-los? Pensei que nos tínhamos livrado desse
material todo em Agosto.
Wexler pôs-se a olhar para os óculos, segurando-os com as duas mãos. Aqueles óculos devem pesar-lhe de mais, pensou Lederer. Vê bem de mais através das suas lentes.
Wexler poisou os óculos na mesa e coçou a cabeça, coberta pelo seu cabelo curto de
veterano, com os dedos grossos. O que é que te detém? perguntou-lhe Lederer sem abrir
a boca. Estás a traduzir de inglês para inglês? Estás paralisado pela diferença de noras
depois de teres chegado de Washington num Concorde Ou estás com medo destes cavalheiros ingleses que não se cansam de nos explicar que foram eles que forneceram o
modelo dos nossos Serviços, convidando-nos generosamente para a sua mesa de
grandes senhores? És Urn dos homens mais importantes dos melhores serviços secretos
do mundo, valha-nos Deus. És o meu chefe. Porque é que não te impões?
omo se respondesse à argumentação silenciosa de Lederer, a voz de ^der recomeçou a funcionar com a mesma animação de uma balan-Ça falante.
■ Meus senhores prosseguiu Wexler, com o seu peculiar sota-"Ue americano. Carrega a
arma, acerta a pontaria, demora o tempo que H 'seres, pensou Lederer. A nossa posição,
Sir Eric recomeçou
ex'er> num gesto desagradavelmente semelhante a uma vénia endere- ■ ao título de Cavaleiro de Mountjoy^ s quer dizer a posição global
*A acerca deste caso, para esta reunião e neste preciso momento, é
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que estamos diante de uma acumulação de indícios que vêm de um rní mero muito
grande de fontes de informação, isto por um lado, e, p0 outro lado, há dados novos que reputamos bastante concludentes e qu confirmam as nossas preocupações. Wexler
humedeceu os lábios. Eu teria feito o mesmo, pensou Lederer. Se tivesse falado como
acabas de falar, teria pelo menos que cuspir. Parece-nos, portanto, que, bem..., a
logística exige neste caso que voltemos um pouco atrás e, depois de o termos feito,
bem..., que tratemos os novos dados, antes de todos nós os podermos apreciar, à luz do que, bem..., recentemente descobrimos. Wexler voltou-se para Brammel, e o seu rosto
enrugado, mas cheio de inocência, desabrochou num sorriso de quem pede desculpa.
Você quer, a todo o custo, fazer as coisas de outra maneira, Bo; porque é que não o
declara de uma vez, para tentarmos depois chegar a um acordo? Meu caro, o que você
deve fazer é o que achar melhor para si disse Brammel, como um anfitrião amável; fora o que dissera a toda a gente durante toda a sua vida. Depois, Wexler voltou às suas
notas, ajeitando primeiro a pasta diante de si; depois, deslocando-a cuidadosamente para
a direita, como se estivesse a tentar uma aterragem de emergência. E Grant Lederer III,
com a impressão de que a superfície interna da sua pele fora atingida por um ataque de
urticária insuportável, esforça-se por conseguir fazer descer a tensão e o pulso, e por acreditar no alto nível da conferência a que está a assistir. Argumenta para consigo que
deve existir algures Préstimo, Segredo e um Serviço de Informação omnisciente. O
único problema é que se encontra no Céu.
Os ingleses tinham trazido para o campo de batalha a mesma equipa intratável e
supereloquente do costume. Ingram, adjunto dos Serviços de Segurança, Mountjoy do Gabinete, e Dorney do ministério dos Negócios Estrangeiros, encontravam-se todos eles
refestelados numa atitude de descrença ou até de perfeito desdém. Só a disposição dos
lugares mudara, conforme notou Lederer: enquanto Jack Brotherhood ficara até então,
simbolicamente, ao lado de Brammel, hoje essa posição tora ocupada pelo moço de
fretes de Brammel, Nigel, e Brotherhood recebera a cabeceira da mesa à laia de promoção, presidindo daí aos traba lhos como um velho pássaro grisalho, espreitando
ameaçadoramente sua presa. Do lado americano da mesa, estavam apenas quatro horne
É muito característico que, na nossa Relação Privilegiada, os ingleses jam mais do que
os americanos, pensou Lederer. No trabalho de can
a CIA está para estes filhos da mãe numa proporção de noventa para Aqui dentro, não
passamos de uma minoria perseguida. À direita , Lgderer, Harry Wexler, tendo aclarado
a garganta sem se apressar, começara por fim a lutar contra os meandros daquilo a que
ele insistia em chamar «a situação... actual». À esquerda de Lederer, recostava-se Mick
Qirver, chefe da delegação em Londres, um milionário mimado de Boston, que todos consideravam brilhante com base em provas que Lederer era incapaz de dizer quais
fossem. A seguir, o egrégio Artelli, um matemático aéreo das Comunicações, tinha o ar
de ter sido arrastado de Langley pelos cabelos. E no meio deles, cá estou eu, Grant
Lederer III, incapaz de conquistar até a minha própria estima, o ex-aluno de Direito
atirado para a frente, de South Bend, Indiana, cujos incansáveis esforços a favor da sua própria promoção conseguiram reunir toda esta gente, uma vez mais, para provar
qualquer coisa que já podia ter sido perfeitamente provada há seis meses: ou seja, que os
computadores não forjam informações, não se passam para o inimigo em troca de
vantagens, não inventam deliberadamente calúnias contra homens com funções
importantes nos Serviços britânicos. Os computadores dizem a triste verdade, sem olharem ao Encanto, à Raça ou à Tradição e dizem-na aGrant Lederer III, que se
encontra empenhado em se tornar o mais impopular possível.
Ao ouvir, impotente, o estrebuchar verbal de Wexler, Lederer concluiu que era ele
próprio e não Wexler quem estava ali deslocado. Aqui está o grande Harry E. Wexler, pensou Lederer, que em Langley se senta à direita de Deus. Descrito na Time como o
Aventureiro Lendário da América. Com um papel de cabeça de cartaz na Baía dos
Porcos e tendo patrocinado alguns dos mais célebres golpes da CIA durante a guerra <to
Vietname. Tendo desestabilizado mais economias vulneráveis da :rica Central do que
seria possível imaginar, e organizando conspi-ntamente com os melhores e mais brilhantes tipos que, da base
0 topo, há na Mafia. E aqui estou eu, um palerma ambicioso. A pensar
rçue. Que um homem que não consegue falar com clareza, não conse-Pe Pensar com
clareza. Que a capacidade de expressão é irmã gémea da
S'ca e que, de acordo com tal critério, Harry E. Wexler foi circunci-0 do pescoço para cima, ainda que tenha o meu precioso futuro nas
^ mãos.
^a alívio de Lederer, a voz de Wexler ganhou subitamente uma se-
Ça nova. O que aconteceu porque passeú a ler directamente os tó-s Preparados por
Lederer. Em Março de 81, um fugitivo do outro lado,
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digno de crédito, referiu que... Nome de código, Dumbo, recordou auto. maticamente
Lederer, ele próprio tornado computador: realojado em Paris, na companhia de uma prostituta fornecida pelos serviços de abastecimento. Um ano depois, foi a prostituta
quem fugiu. Em Março de 81, o serviço de comunicações informou que... Lederer
relanceou na direcção de Artelli na esperança de que os seus olhares se cruzassem, mas
Ar-telli estava apenas em comunicação consigo próprio. Também em Março, mas de 82,
uma fonte do interior dos Serviços Secretos polacos tomou conhecimento, durante uma viagem de contacto a Moscovo, de que... Nome de código, Mustapha, recordou Lederer,
com um arrepio de tédio: morreu de entusiasmo enquanto auxiliava os serviços polacos
nas suas investigações. Cometendo falta e quase caindo, o grande Wexler marcou os
seus primeiros pontos daquela manhã e conseguiu não gaguejar muito dessa vez.
E o resultado destes dados, meus senhores, é sempre o mesmo anunciou ele , ou seja: que todos os esforços dos serviços secretos de um país ocidental, que não nomearemos,
nos Balcãs, estão a ser orquestrados pelos serviços secretos checos, a partir de Praga,
enquanto a fuga severificajustamente debaixo dos olhos da Cooperação dos Serviços
anglo-americanos, em Washington.
No entanto, ninguém parece surpreendido. O coronel Carruthers não tira o monóculo para exclamar: «Meu Deus, que astúcia diabólica!». O impacto sensacional da revelação
de Wexler já tem seis meses de idade. A árvore deste caso secou e já nem os fantasmas
a assombram.
Lederer decidiu começar a ouvir o que Wexler não diz. Nada acerca dos meus treinos de
ténis interrompidos, por exemplo. Nada sobre o meu casamento ameaçado, a minha vida sexual mutilada, a minha ausência total enquanto pai, com tudo isto a começar na
manhã em que fui dispensado de todas as demais obrigações e entregue ao grande
Wexler como seu superescravo durante vinte e cinco horas por dia. «Você tem formação
jurídica, sabe falar checo e é especialista nas questões checas», tinham-lhe dito os
serviços de pessoal, literalmente nestes termos. «Voff tem um espírito alerta, mais do que isso: perfeitamente alerta. Sirva-s dele. Esperamos o máximo de si.» Nada acerca
das horas nocturnas pas sadas diante do meu computador, dando cabo dos dedos nas
teclas, t° ̂ necendo-lhe massas de dados desconexos. Porque é que eu fiz tudo ist • O
que é que me terá dado? Mãe, sentia o meu talento agitar-se aen de mim, e por isso,
montei-o e galopei ao encontro do meu destino. ^ mes e dossiers de todos os funcionários dos serviços secretos ocident
o passado ou actualmente, em Washington, que tenham tido acesso às uestóes checas,
sejam consumidores centrais ou periféricos: Lederer despacha em quatro dias toda
aquela tropa. Nomes de todos os seus contactos, pormenores acerca das suas deslocações, comportamento, preferências sexuais, distracções favoritas: arruma-os num
fim-de-semana frenético, enquanto Bee reza por nós os dois. Nomes de todos os
correios, funcionários, viajantes autorizados ou clandestinos da Checoslováquia, que
tenham entrado ou saído dos Estados Unidos, para além de descrições individuais
introduzidas separadamente no computador para detectar os passaportes falsos. Datas e objectivos declarados das viagens, frequência e duração das estadas correspondentes.
Lederer entrega as suas capturas, amordaçadas e amarradas, ao fim de três breves dias e
noites, enquanto Bee se convence de que ele passou esses dias com Maisy Morse, a do
Bar, que tresanda a erva por todos os lados.
Continuando a desprezar estes e muitos outros nobres sacrifícios do seu subordinado, Wexler embrenhou-se num parágrafo desastroso: «integrar o que sabemos da
metodologia checa no que diz respeito à utilização dos e... à comunicação com os seus
agentes locais». Segue-se um silêncio de estupefacção, durante o qual os presentes
tentam parafrasear o que Wexler acabou de dizer.
Está a falar de assuntos profissionais, Harry? diz Bo Brammel, que não resiste a um gracejo, quando pensa que este poderá contribuir
para abrilhantar a sua reputação, e o pequeno Nigel, ao lado dele, dis
farça o riso, alisando o cabelo com as mãos.
Sim, sir, é exactamente disso que estou a falar, se não me engano
muito confessa Wexler, e Lederer para sua surpresa, sente uma onda de nervosismo enquanto o desgrenhado Artelli entra em cena.
ão se serve de notas, e usa as palavras com uma frugalidade e "^temático. Ao contrário
do que o seu nome poderia indicar, fala
°°ni ligeiro sotaque francês, disfarçando-o sob um modo de falar arras-
^odeBronx. Como os indícios se continuavam a multiplicar diz ele , a "lha secção foi incumbida de
reexaminar as emissões radiofónicas ^destinas, transmitidas a partir do telhado da
embaixada da Checos-Vaquia em Washington, bem como de outras instalações checas
de-
» das Por nós, por todos os Estados Ujijdos, durante os anos de 81 e ' n°meadamente o consulado checo de San Francisco. O nosso pes-
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soai voltou a estudar o alcance das emissões, as variações de frequência e as zonas de recepção mais prováveis. Tornou a verificar todas as interferências para esse período de
tempo, incluindo as que não conseguíramos identificar no momento da emissão.
Elaborou um horário das emissões para o podermos confrontar com os movimentos dos
suspeitos poten-
ciais. Espere um momento, está bem?
A cabeça do pequeno Nigel gira como um cata-vento num dia de tempestade. Até
mesmo Brammel mostra claros sinais de perturbação. Do seu canto de exílio, à
cabeceira da mesa, Jack Brotherhood aponta um indicador de calibre quarenta e cinco
na direcção do umbigo de Ar-telli. E é um sintoma dos muitos paradoxos da vida de Lederer que, de entre todas as pessoas presentes na sala, Brotherhood seja aquele para
quem ele mais gostaria de trabalhar, se alguma vez essa oportunidade lhe fosse
concedida, muito embora ou talvez por isso mesmo os seus esforços esporádicos para
ingressar nas graças do seu herói de adopção tenham sido acolhidos com uma frieza de
aço. Ouça lá, Artelli diz Brotherhood. Vocês insistiram bastan
te no facto de cada vez que Pym saía da zona de Washington, quer de li
cença, quer de viagem até outra cidade, se interromper uma determina
da série de transmissões em código da embaixada checa. Suspeito que
vão voltar a bater na mesma tecla. Sim, é verdade, mas com alguns enfeites suplementares diz Ar
telli, num tom de voz agradável.
O indicador de Brotherhood continua apontado para o alvo. Artelli tem as mãos em
cima da mesa.
Vocês pressupõem que, se Pym estava fora do alcance do emissor deles em Washington, os checos não se dariam ao trabalho de tentar co
municar com ele por esse meio sugere Brotherhood.
É isso mesmo.
E sempre que Pym regressava à capital, as emissões apareciam de
novo. «Olá, és tu? Bem-vindo a casa.» Não é? Sim, sir.
Então, tente ver as coisas de outro ponto de vista, sim? Se vo&
estivesse a querer incriminar um homem, não seria precisamente is*0
que faria?
Hoje em dia, não diz Artelli, imparcialmente. E em 19° e 1982, também não. Há uns dez anos, talvez. Nos anos 80, de manei
ra nenhuma.
Porquê?
Não caía nessa. Todos nós sabemos que é prática comum dos ser viços secretos continuar com as emissões quer o destinatário esteja a ouvi-
-las, quer não. O meu palpite é que eles... Artelli interrompe-se.
Talvez eu devesse deixar esta para Mr. Lederer diz ele.
Não deixa, não senhor. Diga você ordena Wexler sem levan
tar os olhos. A secura de Wexler não é inesperada. Trata-se de uma característica habitual destas
reuniões, conhecida de todos os presentes, o facto de uma maldição ou mesmo uma
proibição absoluta impender sobre o nome de Lederer. Lederer é a Cassandra deles.
Nunca ninguém pediu a Cas-sandra que presidisse a uma reunião destinada a limitar os
estragos. Artelli é um jogador de xadrez, e não tem pressa. As técnicas de comunicação que fomos levados a observar neste
caso estavam fora de moda, até no momento em que foram usadas. E fi
cámos com uma vaga sensação, uma espécie de cheiro. Um cheiro a ve-
iho. Uma impressão de que havia ali hábitos antigos, partilhados por
dois seres humanos. Durante anos e anos, talvez. Bom, trata-se de uma argumentação muito especial exclama
Nigel, bastante irritado, continuando sentado bem direito, antes de vi
rar a quilha na direcção do seu chefe, o qual parece estar a tentar dizer,
ao mesmo tempo, que sim e que não com a cabeça. Mountjoy diz:
«Ouçam bem». Um par do clube de fãs de Brammel emite outros caca- rejos do mesmo género. Paira a hostilidade no ar, orientada de acordo
com o critério da nacionalidade. Brotherhood não diz nada, mas pare
ce ter mudado de cor. Lederer não sabe se mais alguém, para além dele
próprio, terá, no entanto, dado por isso. Parece ter mudado de cor, bai
xa o punho e, por um segundo, dir-se-ia ter baixado a sua guarda. Lede- rer ouviu-o grunhir: «Mexericos disparatados». Mas não chega a ouvir o
resto, porque Artelli decidiu prosseguir.
A nossa descoberta mais importante relaciona-se, apesar de tudo, coni os tipos de
código usados nessas transmissões. Assim que tivemos a loção de que se tratava de um
sistema mais antigo, sujeitámos as trans-■jussões a métodos analíticos diferentes. Porque não nos lembramos ime-atamente de procurar uma máquina a vapor dentro do
capot de um a(Mlac. Decidimos ler as mensagens, partindo do princípio de que es-Vam
a ser recebidas por um homem ou mulher, formado nos métodos determinada geração,
mas que não se_atr«vé a pôr totalmente de lado s Materiais de acção mais modernos.
Trocurámos chaves mais simples
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293
^
para o código. Procurámos, em particular, indícios de textos não ocasionais como base da transposição.
Se algum dos presentes está a compreender o que ele diz, ninguém dá mostras disso,
pensa Lederer.
Procedendo deste modo, conseguimos rápidos progressos quan
to à compreensão da estrutura do texto. Até agora, não passámos da ál gebra. Mas sabemos que é isso, que se trata de uma sequência lin
guística lógica. Talvez seja um escrito de Shakespeare. Talvez seja uma
lenga-lenga hotentote. Detecta-se um padrão decorrente de um texto
contínuo, que poderia ser um dos referidos ou outro semelhante. E
esse texto ainda por identificar é, na realidade, o livro que serve de có digo a estas transmissões. Temos a impressão, talvez um pouco místi
ca, é certo, que o livro é, bom, como uma espécie de laço entre o emis
sor e o receptor. Imaginamo-lo como um interveniente quase humano.
Só precisamos de uma palavra: de preferência, a primeira, mas não ne
cessariamente essa. Depois, é só uma questão de tempo até identifi carmos o resto do texto. E então, o selo das mensagens terá sido que
brado.
E quando é que isso vai acontecer? diz Mountjoy. Lá para
1990, presumo.
Pode ser que sim. Pode ser que seja hoje. Subitamente, torna-se claro que Artelli quer dizer mais do que está efectivamente a
dizer. O hipotético torna-se concreto. Brotherhood é o primeiro a aceitar o desafio
implícito.
Porquê hoje? diz ele. Porque não 1990?
Está a acontecer uma coisa estranha com o conjunto das trans missões checas confessa Artelli com um sorriso. Eles estão a des
pejar material ao acaso, um pouco por todo o lado. Ontem à noite, a
Rádio Praga emitiu para todo o globo uma mensagem fantasma, ser
vindo-se da figura de um professor inexistente. Era como um pedido de
ajuda endereçado a alguém, que se encontra na situação de só poder re ceber mensagens verbais. Captámos apelos de emergência, durante todo
o dia. Por exemplo, uma transmissão acelerada da embaixada checa, acp
em Londres. Há quatro dias que estão a enfiar sinais de transmissão
alta velocidade nas emissões principais da BBC. É como se os checos o
vessem perdido um filho na floresta e se pusessem a gritar, por todo lado, toda a espécie de mensagens susceptíveis de chegarem até ele.
A voz baça de Artelli ainda não se desvaneceu, e já Brotherhood meça a falar.
É claro que houve transmissões em Londres declara ele, com
veemência, poisando o punho em cima da mesa, em sinal de desafio. É claro que os checos estão a mexer-se. Meu Deus, quantas vezes terei Je vos explicar isso? Bolas, há
dois anos que há emissões checas por toda a parte do globo onde Pym possa pôr os pés,
e, naturalmente, tudo isso coincide com os movimentos dele. É um jogo na rádio. É
assim que se utiliza a rádio quando se pretende incriminar um homem. E insiste-se e
repete-se e espera-se até o tipo ceder. Os checos não são parvos. Às vezes, acho que os parvos devemos ser nós.
Imperturbável, Artelli dirige um sorriso tortuoso a Lederer, como que a dizer: «Vê lá, se
os consegues tu impressionar». Neste momento, Grant Lederer concede-se uma
recordação irrelevante da sua mulher Bee por cima de si, em toda a glória da sua nudez,
fazendo amor com ele, como se fosse todos os anjos do céu. Sir Michael, tenho de começar pela outra ponta diz Lederer, com animação, numa
manobra de abertura premeditada, dirigindo-se especialmente a Brammel. Tenho de
apanhar a história em Viena, há apenas dez dias, se me permite, sir, recuando daí até
Washington.
Ninguém olha para Lederer. Começa onde quiseres, era o que pareciam estar a dizer-lhe, e vamos acabar com isto de vez.
Um outro Lederer emergiu no interior de Lederer, que acolhe com alegria esta nova
versão de si próprio. Sou o caçador de recompensas, actuando entre Londres,
Washington e Viena, sempre com Pym debaixo de olho. Sou o Lederer que, como Bee
se lamentava ruidosamente quando estávamos fora do alcance dos microfones, levava Pym para a cama, todas as noites, connosco; acordava a suar de ansiedade nos
momentos de dúvida, e tornava a acordar de manhã com Pym uma vez mais
decididamente de permeio entre nós: «Hei-de apanhar-te, hei-de caçar-■te». Sou o
Lederer que, nos últimos doze meses desde que o nome ae Pym me começou a fazer
sinais do ecrã do computador , o perse-puu primeiro como uma abstracção, depois como um companheiro de oucura. Esteve com ele em comissões espúrias, na qualidade de
colega
n° e cheio de admiração. Fez alegres piqueniques bem regados com a ^ília Pym, nos
bosques de Viena, regressando depois à minha secre-
la> °nde me lançava ao trabalho com uma energia renovada para dis-ecar aquilo de que estivera a desfrutar. Sou o-Lederer que se prende com
masiada facilidade e se volta depois c*ontra aquilo que o prende; o Le-
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Tf;,'
derer que se sente grato por todos os sorrisos amarelos e palmadinhas en corajadoras de
circunstância do grande Wexler, meu amo e senhor, para minutos depois se voltar
contra ele, ridicularizando-o e amesquinhan-do-o na minha mente exaltada, punindo-o
por ser mais uma desilusão para mim.
Não tem importância o facto de eu ter menos vinte anos do que Pym. O que vejo em Pym é o que vejo em mim próprio: um espírito tão instável que, mesmo quando estou a
jogar scmbble com os meus filhos oscila entre as alternativas do suicídio, da violação e
do assassínio. «Ele é dos nossos, por amor de Deus!» é o que Lederer tem vontade de
gritar aos potentados adormecidos que o rodeiam. «Não é um dos vossos, mas um dos
meus. Tanto ele como eu somos psicopatas declarados.» Mas é evidente que Lederer não grita nem estas palavras nem quaisquer outras em sua substituição. Fala sensata e
ponderadamente acerca do seu computador. E acerca de um homem chamado Petz,
também conhecido como Hampel e como Zaworski, o qual viaja quase tanto como
Lederer e exactamente tanto como Pym, mas que se esforça mais do que qualquer de
nós por apagar o seu rasto. Mas antes disso, e com a mesma voz perfeitamente equilibrada e desapaixonada,
Lederer descreve a situação, tal como esta era em Agosto, quando os dois lados
concordaram e aqui Lederer lança um olhar cheio de respeito na direcção do seu herói
Brotlierhood em que o caso Pym deveria ser abandonado e a comissão de inquérito
dissolvida. Mas o caso não foi abandonado, pois não? diz Brotherhood,
interrompendo, desta vez sem aviso prévio. Vocês deixaram esta casa
sob observação e não me importava de apostar que devem ter deixado
alguns outros aparelhos a funcionar por aí.
Lederer olha para Wexler. Wexler franze o sobrolho, mergulhando a testa entre as mãos, o que significa não me... metam... nessa história. Mas Lederer não tem a mínima
intenção de interceptar aquela bola, e espera insolentemente que seja Wexler a fazê-lo
em seu lugar.
Pelo nosso lado, estávamos determinados a capitalizar..., bem, a
apropriação dos recursos existentes, Jack diz Wexler com relutância. Neste caso, optámos por uma redução gradual, bem, por um decrés
cimo escalonado e desdramatizado.
No meio do silêncio geral, Brammel dirige-lhe um sorriso cheio de desportivismo.
Portanto, está-nos a dizer que manteve a vigilância? É bem isso o
que nos está a querer dizer, não é verdade?
Somente numa base limitada, a nível muito reduzido, a título mí
nimo, Bo.
Eu estava convencido de que tínhamos combinado interromper
tudo imediatamente, Harry. E o que é certo é que nós cumprimos a nossa parte do acordo, podem crer.
. Bom, a CIA decidiu, neste caso, respeitar o espírito do acordo,
Bo mas fazendo-o à luz do que se considerou como operacionalmente mais eficaz, tendo
em conta... bem, todos os factos e indícios conhecidos.
Ficamos muito agradecidos diz Mountjoy, atirando com o lá pis, como alguém que recusa um prato de comida.
Mas desta vez, Wexler responde, mostrando os dentes, o que, de resto, é algo que sabe
fazer na perfeição:
Penso que poderá vir a reconhecer que essa gratidão não é desca
bida, sir rosnou Wexler e encosta os nós dos dedos contra a ponta do nariz, numa demonstração de combatividade.
O caso de Hans Albrecht Petz prossegue Lederer veio à
tona há seis meses, num contexto que, à primeira vista, nada tinha a ver
com as acusações contra Pym. Petz era simplesmente mais um jornalis
ta checo, que aparecera em mais uma conferência Leste-Oeste em Salz- burgo, fazendo-se notar pelo seu talento inesperado. Tratava-se de um
homem de certa idade, reservado mas inteligente, com o passaporte em
ordem. Lederer indicou o seu nome para o homem ser posto sob obser
vação e deu instruções a Langley para proceder a um controlo de rotina
dos seus antecedentes. Langley indicou que não havia quaisquer dados desfavoráveis, mas realçou que era estranho que um homem com a ida
de e a profissão de Petz ainda não se tivesse feito notar. Um mês depois,
Petz tornou a aparecer em Lindz, a pretexto de fazer a cobertura noti
ciosa de uma feira agrícola. Não acamaradava com os outros jornalistas,
n*o tentava cair nas boas graças das pessoas, raramente se mostrava nos Pavilhões da feira e não escrevia uma linha para o jornal. Quando Lede-
rer pôs os seus leitores de jornais a passar a pente fino a imprensa checa,
ein busca de textos escritos por Petz, tudo o que eles conseguiram obter
'°ram dois parágrafos no Agricultor Socialista, assinados H. A. R, acerca
^ limitações técnicas dos tractores do Ocidente. E depois, quando Le- rer estava quase a esquecê-lo, Langley enviou-lhe uma identificação óa. Hans Albrecht
Petz era a mesma pessoa que um certo Ale-^der Hampel, funcionário dos serviços
secretos checos, que recentemente participara numa conferência "dos jornalistas não-
alinhados, em
2%
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mmmmmssBsms
Atenas. Não se aproxima de Petz-Hampel sem autorização. Aguarde novas instruções. Quando disse «Atenas», Lederer teve a sensação de que a pressão atmosférica baixara
no interior da sala.
Em Atenas, quando. resmunga Brotherhood, com impaciên
cia. Como é que podemos seguir esta história sem datas?
Nigel pareceu ficar de súbito muito preocupado com o seu cabelo. Retorce uma e outra vez a madeixa grisalha que se encontra por cima de uma das orelhas, com os seus dedos
imaculados, franzindo o sobrolho numa expressão dolorosa.
Wexler interrompe de novo, e para alegria de Lederer, começa a pôr de lado as suas
hesitações respeitosas.
A conferência de Atenas decorreu entre 15 e 18 de Julho, Jack. Hampel só foi visto por lá no primeiro dia. Reservou o quarto de hotel
para as três noites, mas não chegou a dormir lá vez nenhuma. Pagou em
dinheiro. De acordo com os registos das autoridades gregas, chegou a
Atenas a 14 de Julho e não voltou ainda a sair do país. O mais provável,
porém, é que tenha saído com outro passaporte. Parece que apanhou um avião para Corfu. As linhas de passageiros gregas são a confusão do cos
tume, mas aparentemente, ele apanhou um avião para Corfu repetiu
Wexler. Por essa altura, começámos a ficar muito interessados no ho-
mem.
Não estaremos a precipitar-nos? diz Brammel, cujo sentido das conveniências se mostra mais apurado do que nunca nos instantes
de crise. Bolas, Harry, é outra vez o mesmo jogo. A culpa por coinci
dência. Não difere em nada da história das transmissões. Se nós quisés
semos incriminar um homem, tentaríamos vender-lhes exactamente
esse mesmo jogo. Agarrávamos num velho funcionário qualquer dos Serviços, um tipo já um pouco usado, mas credível, e púnhamo-lo a se
guir os movimentos do pobre diabo, à espera de que o inimigo excla
masse: «Olá, o nosso homem é um espião». Conseguiríamos assim que
eles dessem um tiro no seu próprio pé. É facílimo. Muito bem. Hampel
anda atrás de Pym por todo o lado. Mas o que é que nos demonstra que Pym colabora activamente com ele?
No momento em que descobrimos isso, nada, sir confessa Le
derer, com uma humildade postiça, entrando na discussão em apoio oe
Wexler. No entanto, já então tínhamos detectado uma ligação re
trospectiva entre Pym e Hans Albrecht Petz. Na altura da conferencj de Salzburgo, Pym e a mulher estavam lá a assistir a um festival de mu-
sica. Petz instalara-se noutro hotel, a cerca de duzentas jardas do dos
pyrns.
. Outra vez a mesma história diz Brammel, obstinadamente. É uma cilada. Vê-se a léguas de distância. Não é verdade, Nigel?
. A verdade é que tudo isto é muitíssimo pouco consistente diz
Nigel.
Outra vez a pressão atmosférica. Talvez as máquinas façam ao oxigénio o mesmo que
fazem ao som, pensa Lederer. Importa-se de nos dizer a data em que receberam essa pista de
Atenas? pergunta Brotherhood, ainda às voltas com a cronologia.
Há dez dias, sir diz Lederer.
Caramba, podiam ter-nos prevenido mais cedo, não acha?
A irritação faz com que Wexler tenha agora maior facilidade em descobrir as palavras de que precisa:
Bom, Jack, estávamos seriamente relutantes em vos apresentar
prematuramente mais uma série de coincidências informatizadas. E
tlirigindo-se a Lederer, o seu carrasco de serviço: De que raio está você
à espera? Recuemos dez dias. Lederer está encolhido na sala de comunicações dos Serviços, em
Viena. É noite, e ele escusou-se elegantemente a dois cocktails e a um jantar, a pretexto
de estar ligeiramente engripado. Telefonou a Bee, deixando-a aperceber-se da animação
da sua voz e sentindo a vontade de correr para casa a contar-lhe aquilo imediatamente,
porque, de qualquer maneira, Lederer conta-lhe sempre tudo e, por vezes, quando a maré está baixa, até um pouco mais do que tudo, a fim de conservar a sua imagem em
bom estado. Mas, por enquanto, guarda para si a história. E embora a tensão lhe gele os
dedos, continua a bater o teclado. Primeiro, procura a cronologia das deslocações
recentes de Pym, de e para Viena, e chega à conclusão, quase natural, de que Pym
estivera em Salzburgo e Lindz, precisamente nas mesmas datas em que lá estivera petz, aliás Hampel.
Em Lindz, também? interrompe com aspereza Brotherhood.
Sim, também.
Calculo que o devem ter seguido até lá, contrariamente ao nosso
acordo? ~~ Não, sir, não seguimos Magnus até Lindz. Mandei a minha mu-"ter. Bee, telefonar a
Mary Pym. Bee obteve a informação no decurso e uma conversa telefónica
perfeitamente inocente, acerca de outras coi-Sas> de mulher para mulher, Mr.
BrotKerhood.
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Mesmo assim, ele pode não ter ido a Lindz. Pode ter arranjad
essa história para contar à mulher.
Custa bastante a Lederer conceder que seja possível, mas sugere amavelmente que isso,
no fundo, não tem importância, sir, considerando o despacho de Langley dessa mesma noite, e que ele lê agora em voz alta aos grandes senhores anglo-americanos dos
serviços secretos ali reunidos.
Recebi o despacho na minha secretária, cinco minutos depois de
ter estabelecido a conexão de Lindz, sir. Passo a citar: «Petz Hampel, tam
bém identificado como Jerzy Zaworski, nascido em Carlsbad em 1925, jornalista alemão ocidental de origem checa, que efectuou nove viagens
legais aos Estados Unidos em 1981 e 1982».
Perfeito disse Brammel, muito baixinho.
É claro que as datas de nascimento nestes casos são apenas apro
ximativas prossegue Lederer, sem se deixar intimidar. E segundo a nossa experiência, os passaportes falsos têm tendência a conferir ao por
tador um ou dois anos a mais.
Assim que a informação chegara à secretária de Lederer, ele forneceu ao computador as
datas e locais visitados por Herr Zaworski nas suas viagens aos Estados Unidos. Foi
então, explica Lederer, mas sob forma mais concisa, que, accionando uma única tecla, tudo se ligou, que se fundiram vários continentes, que três jornalistas no final da casa
dos cinquenta se transformaram num só espião checo de idade incerta e que Grant
Lederer III, graças ao isolamento sem falhas da sala de transmissões, pôde gritar
«Aleluia» e «Bee, adoro-te» para as paredes acolchoadas.
Todas as cidades americanas visitadas por Petz-Hampel-Zawors- ki, em 1981 e 1982, receberam também a visita de Pym nas mesmas da
tas entoa Lederer. Nessas datas, as emissões clandestinas, feitas do
telhado da embaixada checa, foram interrompidas e, na nossa opinião,
a razão desse facto é a de que então ocorriam entrevistas entre o agente
e o seu controlador em visita. As transmissões tornavam-se, desse modo, supérfluas.
Magnífico diz Brammel. Gostava de conhecer o funcio
nário dos serviços secretos checos que inventou esta história, para lhe
conceder imediatamente o meu óscar especial.
Com uma discrição magoada, Luik Carver ergue a mala até à altura da mesa e retira do seu interior uma série de pastas.
Este é o retrato que até agora Langley nos fornece de Petz-Harn-
pel-Zaworski, presumível encarregado do controlo de Pym explica
| com a atitude paciente de um vendedor, empenhado em exibir uma ova técnica, apesar da obstrução levantada pelos elementos mais anti-
Estamos à espera de certas actualizações de um momento para o
outro, talvez até hoje à noite. Bo, quando é que Magnus regressa a Viena, pode-nos
dizer, se não se importa?
Tal como todos os outros, Brammel espreita o seu dossier, pelo que é natural que não responda imediatamente.
Quando lhe dissermos que regresse, penso eu acaba por res
ponder, despreocupadamente, virando uma página. E nunca antes
disso, com toda a certeza. Como vocês dizem, a morte do pai foi real
mente providencial. Segundo ouvi, o Velho deixou tudo numa confu são enorme. Magnus terá muito com que se entreter.
Onde é que ele está neste momento? pergunta Wexler.
Brammel olha para o relógio.
Imagino que deve estar a jantar. São já quase horas, não é verdade?
E onde é que ele está instalado? insiste Wexler. Brammel sorri.
Olhe, Harry, acho que não vos vou revelar esse ponto. Temos ain
da alguns direitos no nosso próprio país, sabe? E os seus homens foram
longe de mais na vigilância.
Se há coisa que Wexler seja, é obstinado. A última vez que soubemos dele, estava no aeroporto de Londres a despachar a
bagagem para voltar a Viena. Segundo as nossas informações, Pym já tratara de tudo o
que precisava de tratar aqui em Londres e ia regressar ao seu posto. Que diabo
aconteceu? Nigel cruzou as mãos. Apoia-as depois, ainda cruzadas, sobre a mesa, para mostrar que,
pequeno ou não, vai falar.
Não me diga que também o seguiram aqui em Londres? Seria
realmente o máximo.
Wexler esfrega o queixo. Tem uma expressão de pesar, mas não a de luem foi derrotado. Dirige-se de novo a Brammel.
Bo, precisamos de saber mais um bocado acerca disto. Se se tra-
^ de uma operação checa destinada a enganar-nos, então, é o caso mais
diabólico e engenhoso de que já ouvi alguma vez falar.
Pym é um funcionário extremamente hábil ripostou Bram mel. Tem SJJO um espinho no flanco dos checos ao longo dos últi-
m°s trinta anos. O seu trabalho justifica plenamente todos os esforços
P°r Parte deles.
Bo, você tem de o chamar e tem de o fazer deitar tudo cá para
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fora. Se não o fizer, continuaremos a andar por aqui às voltas até temos todos os cabelos
brancos e alguns de nós já estarem no túmulo. Os segredos com que ele tem andado a
brincar não são apenas vossos; dizem-nos respeito, também a nós. Temos algumas perguntas da maior importância a fazer-lhe e dispomos de um pessoal magnificamente
treinado para lhas apresentar.
Harry, dou-lhe a minha palavra de honra de que, no momento
oportuno, você e os seus homens poderão ter tudo o que quiserem dele.
Talvez o momento certo seja agora diz Wexler, esticando o queixo para a frente. Talvez devêssemos estar presentes quando ele
começar a cantar. Apanhá-lo enquanto é tempo.
E talvez devessem confiar o bastante na nossa apreciação, e espe
rarem pela vossa vez ronrona Nigel, lisonjeiramente, à laia de respos
ta, lançando a Wexler um olhar extremamente tranquilizador por cima dos seus óculos de leitura.
Entretanto, um impulso muito estranho começa a apoderar-se de Lederer. Invade-o
pouco a pouco e Lederer já não pode dominar-se, como se não conseguisse conter um
vómito. Neste ciclo repetitivo de compromissos e duplicidade, sente a necessidade de
exteriorizar a afinidade secreta existente entre Magnus e ele próprio. De afirmar o seu monopólio sobre a compreensão daquele homem e de sublinhar a natureza pessoal do
seu triunfo. De estar imóvel no centro em vez de ser lançado de novo para a situação de
inferioridade de onde partiu.
O senhor falou no pai de Pym explode Lederer, dirigindo-se
expressamente a Brammel. Sei alguma coisa acerca desse pai, sir. 0 meu pai é parecido com o dele em certas coisas, só com uma diferença de
grau. O meu pai é um advogado de segunda categoria e os escrúpulos não
são o seu forte, sir. Mas o pai de Pym era um perfeito burlão. Um artista
da vigarice. Os nossos psiquiatras traçaram um perfil realmente preocu-
pante desse homem. Sabem que, quando Richard T. Pym esteve em Nova Iorque, inventou todo um império de companhias inexistentes? Que pe
diu dinheiro emprestado às pessoas mais improváveis, algumas de entre
elas, na realidade bastante importantes? Gente famosa. Estamos perante
um caso hereditário de instabilidade mais ou menos compensada. le'
mos um artigo sobre casos deste tipo. Lederer estava a exceder-se, mas não conseguia parar. Meu Deus, Magnus chegou a tentar engatar des
caradamente a minha mulher. Não lhe levo isso a mal. Ela é, de facto, uma
mulher muito atraente. O que quero dizer é que o tipo está em toda a pa1"'
te. Vai a todas. Aquela sua frieza britânica não passa de fachada.
Lederer acaba de se suicidar, o que não faz, de resto, pela primeira vez, ao longo da sua
vida. Ninguém lhe dá ouvidos, ninguém grita: «Caramba, não me diga!», e quando
Brammel começa a falar, a sua voz é fria como a caridade e chega tão atrasada como
ela.
Pois, bom, parto sempre do princípio que os homens de negó cios são vigaristas; você não, Harry? Penso que estamos de acordo sobre
esse ponto. Brammel olha para todos os que se encontram sentados
à volta da mesa, mas não para Lederer, e dirige-se novamente a Wexler.
Harry, porque é que não tentamos pensar em conjunto durante uma
hora? Se vai haver um interrogatório hostil, num momento ou outro, parece-me que devíamos chegar antecipadamente a acordo sobre alguns
pontos principais. Nigel, porque é que não vens também, para seres tes
temunha do cumprimento das regras? Quanto aos outros... Bram
mel cruza o olhar com o de Brodierhood, concedendo-lhe um sorriso de
especial confiança. Bom, quanto aos outros, até já. Quando acaba rem de ler os dossiers, saem aos pares, não é verdade? Todos de uma vez,
não, para não assustarem os camponeses da aldeia. Muito obrigado.
Brammel abandona a sala, Wexler bamboleia orgulhosamente atrás dele, como um
homem que disse o que tinha a dizer sem cuidar da opinião dos outros. Nigel espera que
os dois saiam, e depois, como um can-galheiro atarefado, dá a volta à mesa e pega no braço de Brotherhood num gesto fraterno.
Jack murmura ele. Bem metido, bem jogado. Cortámos--lhes as vasas. Queria dar-te
uma palavrinha longe destes microfones, está bem?
Era o início da tarde. A casa dos Serviços, onde se realizara a reu-nião, era uma vivenda
em falso estilo Regência, com persianas metálicas nas janelas. Um nevoeiro morno pairava por sobre o caminho de saibro, e Lederer postara-se como um assassino à espera
de que a figura maciça de Brotherhood surgisse na entrada iluminada. Mountjoy e
Dorney pas-saram por ele sem uma palavra. Carver, acompanhado por Artelli com a
Sl»a pasta, foi mais explícito.
Tenho de continuar a viver aqui, por isso só espero que, desta Q> consigas aguentar a tua história, ou então que eles te mandem para 0 diabo.
"Filho da mãe», pensou Lederer. >-'
P°r fim, Jack Brotherhood apare"ceU, falando conspiradvamente
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com Nigel. Lederer observou-os com inveja. Nigel voltou atrás; depok tornou a entrar
na casa. Brotherhood continuou o seu caminho.
Mr. Brotherhood, sir? Jack? Sou eu. Lederer.
Brotherhood abrandou o passo; depois deteve-se. Trazia o seu impermeável enxovalhado habitual e um cachecol, e estava a fumar um dos seus cigarros amarelos.
- O que é que você quer?
Jack. Queria dizer-lhe que, aconteça o que acontecer, e independentemente do que ele
tenha ou não feito, lamento que esta história tenha a ver com Pym e consigo.
Provavelmente, ele não fez rigorosamente nada. Conhecendo-o como eu o conheço, o mais que deve ter acontecido é ele ter recrutado
alguém do outro lado sem nos avisar. O meu palpite é que vocês estão a
ver o filme ao contrário.
Acha que ele faria uma coisa dessas? Magnus? Apostar numa jo
gada solitária contra o inimigo, sem dizer nada a ninguém? Meu Deus, isso era uma bomba! Se eu alguma vez tentasse fazer uma coisa dessas,
Langley esfolava-me vivo.
Lederer começou a acompanhar os passos de Brotherhood, sem lhe pedir autorização.
Junto ao portão, havia um polícia. Passaram pelo quartel da Royal Horse Artillery. O
som dos cascos chegava até eles vindo da parada, mas o nevoeiro não os deixava ver os cavalos. Brotherhood avançava depressa. Lederer tinha dificuldade em acompanhar o
seu passo.
Sinto-me realmente incomodado, Jack confessou Lederer.
Ninguém parece compreender o que foi para mim ter de fazer uma coi
sa destas a um amigo. E não é só Magnus. Há Bee, Mary, os miúdos e os outros todos. Becky e Tom estão apaixonadíssimos. Tudo isso fez com
que nos aproximássemos muito. Há umpub mesmo aqui ao pé. Posso
convidá-lo para uma bebida?
Lamento muito, mas tenho de ir falar com um homem por cau-
sa de um cão. Posso deixá-lo nalgum lado? Tenho o carro com motorista, já a°
virar da esquina.
Prefiro ir a pé, se não se importa.
Magnus falou-me muito de si, Jack. Acho que terá violado al
gumas regras, mas entre nós, as coisas eram assim mesmo. Realmen te, partilhávamos tudo. Era uma ligação muito especial. Isso é que *
incrível. Éramos nós, no fundo, a Relação Especial. E é uma coisa em
e eU acredito. Acredito na aliança anglo-saxónica, no Pacto Atlântico, em tudo isso.
Lembra-se do assalto que você e Magnus fizeram juntos em Varsóvia? Acho que não, desculpe.
. Vá lá, Jack. Não se lembra de o fazer descer por uma abertura no
telhado, como na Bíblia? De ter falsos polícias polacos na rua, para o caso de a caça
voltar ao covil inesperadamente? Magnus dizia que você era como um pai para ele.
Sabe o que é que ele me disse de si uma vez? «Grant, Jack é o maior dos campeões do grande jogo». Sabe o que é que eu acho? Acho que se a escrita tivesse resultado com
Magnus, não teria havido estes problemas todos. A questão é que Magnus tem
demasiadas coisas lá dentro. E precisa de fazer alguma coisa com elas. Lederer estava a
perder o fôlego à medida que falava, mas resolveu não desistir; tinha de esclarecer o
assunto com Brotlierhood. Há uma coisa, sir. Ultimamente tenho lido bastante acerca da criatividade do espírito dos criminosos.
Então ele agora é um criminoso?
Por favor! Deixe-me citar-lhe uma frase que li. Tinham che
gado os dois a um cruzamento, e estavam à espera da mudança de sinal.
«Em termos éticos, qual a diferença entre a criminalidade perfeita mente anárquica do artista, fenómeno endémico em todos os grandes
espíritos criativos, e a arte do criminoso?»
Lamento, mas acho que não consigo segui-lo. São palavras mui
to complicadas para mim. Desculpe.
Bolas, Jack. O que eu estou a dizer é que nós somos uma espé cie de bandidos legalmente autorizados. Que trabalho é o nosso? Não
sabe em que consiste? Consiste em colocarmos os nossos impulsos para
a delinquência ao serviço do Estado. Quer dizer, porque é que eu havia
de abrir uma excepção para Magnus, só por ele ter calculado mal as do
ses? Não pode ser. Magnus continua a ser exactamente o mesmo ho- mem com quem eu me entendia tão bem! E eu também sou o mesmo
"omem que se entendia com ele na perfeição. Nada mudou, excepto o
tacto de cada um de nós ter caído para o seu lado da rede. Sabe que
^a vez estivemos a falar de deserções, do lugar para onde iríamos se
^solvêssemos cortar com tudo e fugir? Se deixássemos as mulheres, os "'nos, o trabalho, e mergulhássemos até ao fundo. Éramos íntimos a
Vaier, Jack. Pensávamos literalmente o impensável. É a verdade. Éramos
ln«íveis.
entrado os dois na High-Street de St. Johns Wood, e di-
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Brotherhood ouviu os seus próprios passos, descendo as escadas < Sir Kenneth. Ouviu-
se a chegar ao halle ouviu também os passos 1 leves de Steggie, misturando-se aos seus.
Ouviu o «Boa-noite» agre vo de Steggie e o ruído do fecho da porta que este abria para ele. isto seguido pelo grito abafado de Steggie, na altura em que BrothJ rhood o puxa
para o exterior, com uma das mãos a tapar-lhe a boca e a outra agarrando-o pela nuca.
Depois, o baque da cabeça de Steggie contra o pilar de estuque do gracioso pórtico de
Sir Kenneth, e de novo a sua própria voz, falando ao ouvido de Steggie.
«Já te devem ter feito isto antes, não? Encostarem-te a uma parede?» A resposta foi um gemido.
«Quem é que está mais a viver cá em casa, meu filho?»
«Ninguém.»
«Quem é que andava hoje à noite, no andar de cima, de um lado para o outro em frente
da janela?» «Eu». ■
«Porquê?» ii
«É o meu quarto!»
«Julguei que vocês partilhavam os dois a câmara nupcial».
«Continuo a ter um quarto meu, não acha? Tenho direito à minha intimidade, e ele também.»
«Não há mesmo mais ninguém cá em casa?»
«Não.»
«Nem houve mais ninguém durante toda esta semana?»
«Não, já lhe disse. Eh, pare!» «O que foi?», diz Brotherhood, já a meio do caminho para a saíd
«Não tenho comigo a minha chave. Agora como é que torno a < trar?»
Um som metálico assinalou que Brotlierhood saíra, fechando o j tão atrás de si.
Jack ligou para Kate. Ninguém atendeu. '
Telefonou à mulher. Ninguém atendeu. Telefonou para a estação de Paddington, e tomou nota dos horários e localização das
paragens do comboio da noite, de PaddingK"1 para Penzance, via Reading.
Durante uma hora, tentou adormecer, e depois regressou à sua se~
cretária, pôs diante de si o dossier de Langley e fixou demoradamente uma vez mais as feições envelhecidas de Herr Petz-Hampel-Zaworski, presumível chefe de Pym, com
Corfu por último paradeiro confirmado. «...Nome verdadeiro, desconhecido... hipotético
membro da equipa arqueológica checa que visitou o Egipto, em 1961 (Petz)... hipotético
adido na missão militar checa em Berlim Leste, em 1966 (Hampel)... altura, seis pés,
curvado, coxeia ligeiramente da perna esquerda...» «Havia o Fraternidade e havia outro tipo», dissera Sefton Boyd. «Eram como pai e mãe
para ele. Disse que o outro tipo era o chefe dele.» «A culpa foi vossa», dissera-lhe
Belinda. «Foste tu que o inventaste.» Brotherhood continuou a olhar para a fotografia.
As pálpebras descaídas, o bigode descaído. Os olhos brilhantes. O sorriso eslavo
dissimulado. Quem diabo és tu? Como é que te reconheço se nunca te pus avistaemcimar
Grant Lederer nunca se sentira tão altamente considerado neste mundo nem tão
plenamente um ser humano. A justiça existe! asseverou ele a si próprio, na paz perfeita
do triunfo. Os meus chefes são dignos da autoridade de que dispõem. Fui posto à prova
até ao último limite por um nobre serviço, que me considerou por fim merecedor do que ganho. Por toda a parte, à sua volta, a sala das operações blindada, do sexto andar da
embaixada americana de Grosvenor Square, estava cheia de pessoas cuja existência
Lederer desconhecia. Vinham dos recessos mais remotos da delegação de Londres e, no
entanto, cada um dos que entrava parecia lançar-lhe um olhar de cumplicidade. São
todos americanos de primeira, pensou ele. A CIA sabe realmente como nos escolhe, hoje em dia. Mal os presentes tinham acabado de se instalar, wexler começou a sua
intervenção.
É altura de acabarmos com isto disse Wexler, soturnamente, depois de fechada a porta.
Apresento-vos Gary. Gary é o chefe do SI-^URP. Esrá aqui connosco para nos
comunicar um importante desen-volvimento do caso Pym e discutir as acções a empreender.
Lederer só recentemente soubera que SISURP era a sigla de Sur-Veillance Intelligence,
Southern Europe. Gary era um típico natural do J^ntucky alto, magro e divertido.
Lederer começava já a admirá-lo densamente. Ao lado de Gary, estava sentado um
ajudante com uma Puna de papéis, mas Gary não os utilizou. O nosso alvo, disse ele sem
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rodeios, era Petz-Hampel-Zaworski, doravante familiarmente conhecimento como PHZ
pelos iniciados. Uma equipa do SISURP descobriu-o terça-feira às dez e doze da
manhã, a sair da embaixada da Checoslováquia em Viena. Lederer aguçou o ouvido,
enquanto Gary referia cada um dos mínimos pormenores do dia de PHZ. Onde é que
PHZ tomara café. Onde fora buscar as suas informações. As livrarias onde andara a folhear livros. Com quem almoçara. Onde. O que comera. 0 coxear de PHZ. O seu
sorriso pronto. O seu encanto, especialmente para com as mulheres. Os seus charutos, o
lugar onde os acendera, o lugar onde os comprara. A facilidade de se relacionar de PHZ,
a sua aparente ignorância de se encontrar sob a observação de uma força de dezoito
homens. Os dois momentos em que, «deliberadamente ou não», PHZ se avizinhara de Mrs. Mary Pym. Numa dessas ocasiões, disse Gary, confirma-se a existência de
contacto visual entre ambos. Da segunda vez, a vigilância foi obstaculizada pela
presença de um casal britânico que julgamos constituir a escolta de Mrs. Pym. E depois,
finalmente, o coroar da operação e ponto alto do casamento brilhante e da carreira
vertiginosa de Grant Lederer, quando às oito da manhã de hoje, hora local, três membros da equipa de Gary se instalaram nos bancos de trás da igreja inglesa de Viena
e doze outros se dispuseram no exterior necessariamente, como unidades móveis,
porque se estava numa zona diplomática onde os basbaques não eram bem aceites ,
enquanto PHZ e Mary Pym se encontravam cada um do seu lado da ala central da
igreja. Era a deixa de Lederer. Gary olhou-o com ar expec-tante. Grant, parece-me que é agora a sua vez. Já estamos um pouco
fora do nosso campo disse ele, com uma aspereza agradável.
Ao ver as cabeças dos que estavam na mesa viraram-se com curiosidade, Lederer sentiu
o calor do interesse dos outros transportá-lo a novas alturas. Começou logo a falar.
Modestamente. Bom, o que quero dizer é que vejo tudo isto como uma façanna
de Bee, e não minha. Bee é Mrs. Lederer explicou ele, dirigindo-se
a um homem mais velho, do outro lado da mesa, dando-se conta tar
de de mais que se tratava de Carver, chefe da delegação de Londres, qu
nunca fora um entusiasta de Lederer. Ela é presbiteriana. Os pâ dela também já o eram. Ultimamente Mrs. Lederer conseguiu con
liar a sua espiritualidade com a religião instituída, e tem frequenta
regularmente a Igreja de Cristo do culto anglicano, em Viena, con
cida como «igreja inglesa», e que é francamente a igrejinha mais
que já me foi dado ver. Não é verdade, Gary? Querubins, anjos: parece mais um boudoir
religioso do que uma verdadeira igreja. Sabes, [vlick? Se aparecer em Langley algum
nome em letras luminosas, esse nome deverá ser o de Bee acrescentou ele, ainda a
preparar-se para entrar na história.
O resto da narrativa foi mais rápido. Afinal de contas, acabara por ser Bee e não a equipa de vigilância quem conseguira esgueirar-se pela ala central atrás de PHZ,
ficando mesmo atras dele, enquanto PHZ e Iviary estavam na bicha para a comunhão.
Fora Bee quem, a uma distância de uns cinco pés, vira PHZ inclinar-se e segredar
algumas palavras ao ouvido de Mary, e ela inclinar-se para trás para ouvir melhor, e
depois continuar com as suas orações, como se nada tivesse acontecido. Portanto, foi realmente a minha mulher, a minha camarada de trabalho ao longo de toda
esta operação, quem presenciou o contacto verbal. Lederer abanou a cabeça,
maravilhado. E foi ainda Bee quem, assim que o serviço religioso terminou, voltou a
correr para o nosso apartamento, para me telefonar aqui para a embaixada, descrevendo
esta cena espantosa no código doméstico que ambos tínhamos preparado para um caso deste género. E Bee nem sequer sabia que havia uma equipa de vigilância da CIA dentro
da igreja. Só foi lá porque Mary também ia, foi essa a única razão. Portanto, ela sozinha,
ganhou ao SISURP com um avanço de seis horas, ou até mais. Harry disse Lederer, um
pouco ofegante, ao descobrir Wexler no momento em que incluía o retoque final na sua
narrativa , a única coisa que lamento é que Mrs. Lederer nunca tenha aprendido a ler os movimentos dos lábios.
Lederer não esperara aplausos. Fazia parte da natureza da comunidade em que
ingressara, não haver aplausos. O silêncio denso que se seguiu pareceu-lhe uma
homenagem mais conveniente. Artelli, o crip-tógrafo, foi o primeiro a quebrar o
silêncio. Aqui para a embaixada repetiu, sem imprimir qualquer en
toação interrogativa.
Desculpe, diga? disse Lederer.
A sua mulher telefonou-lhe aqui para a embaixada? De Viena? ^8° a seguir ao que se
passou na igreja? Com o telefone do apartamento? Sim, telefonou e eu transmiti o que ela me disse imediatamente Mr. Wexler. Às nove da
manhã, já a informação estava na secretária dele.
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Nove e meia disse Wexler. E que código doméstico foi esse que ela utilizou, se não se inj
porta? insistiu Artelli, enquanto tomava notas.
Lederer sentia-se feliz por poder explicar:
O que nós fizemos, de facto, foi utilizar os nomes dos tios e tias
de Bee. Sempre achámos que havia uma grande semelhança entre o perfil psicológico de Mary Pym e o da tia Edie de Bee. E foi daí que
partimos. «Sabes o que é que a tia Edie fez hoje na igreja?...» Bee é mui
to subtil.
Obrigado disse Artelli.
Quem falou a seguir foi Carver, e a sua pergunta não parecia inteiramente amigável. Queres dizer que a tua mulher tem conhecimento desta operação,
Grant? Pensei que o caso Pym fosse estritamente vedado às esposas.
Harry, não é verdade que ainda há pouco tempo estabelecemos essa
norma?
Estritamente falando, é vedado às mulheres concordou Le derer, com generosidade. No entanto, uma vez que Mrs. Lederer
trabalhou efectivamente comigo no terreno de operações deste caso,
seria de algum modo ilusório supor que não se daria conta do grau de
suspeita generalizada que existia em relação aos Pym. Ou pelo menos,
em relação a Magnus. E posso acrescentar que Bee teve sempre a con vicção de que algures na base de todo este amontoado, descobriría
mos Mary a desempenhar um papel decisivo nos bastidores. Mary é
uma actriz.
Outra vez Carver.
Mrs. Lederer também sabe da existência de PHZ? É um dos ele mentos escaldantes do elenco, Grant. Pode ser caça grossa. E ela tam
bém sabe disso, não?
Lederer não pôde fazer nada para se impedir de corar, nem para evitar que a voz se lhe
tornasse estridente: Mrs. Lederer teve uma intuição quando assistiu ao encontro dfl
les, e agiu com base nessa intuição. Se a quer criticar por isso, critiqu
-me a mim, primeiro, está bem?
De novo, Artelli, com o raio do seu sotaque francês.
Qual era o vosso nome de código para PHZ? Tio Bobby respondeu precipitadamente Lederer.
Mas isso implica algo mais do que uma intuição, Grant ot>*l
jectou Carver. Bobby é um nome que vocês tiveram de combinar
de antemão. Como é que poderiam ter usado esse nome se você não lhe tivesse explicado a história de Petz-Hampel-Zaworski?
Wexler retomou a direcção dos trabalhos.
Está bem, está bem, bem resmungou ele com um ar infeliz.
Tratamos disso mais tarde. Entretanto, o que é que fazemos? O SI-
SURP divide-se ao meio e passa a seguir os dois. PHZ e Mary. Não é assim, Gary? Para onde quer que eles vão.
Vou pedir cavalos frescos disse Gary. Amanhã por esta
hora, já devemos ter duas equipas completas.
A pergunta seguinte é: que raio vamos dizer aos ingleses, quan
do e como? disse Wexler. Parece que já lhes dissemos tudo disse Artelli, com um olhar
indolentemente dirigido a Lederer. A não ser que nestes últimos
dias, os ingleses tenham desistido de escutar as linhas telefónicas da em
baixada dos Estados Unidos, o que me parece duvidoso.
A justiça existe, mas Grant Lederer descobriu antes da manhã seguinte que a justiça também morre. Mediante alegação de doença súbita, o seu lugar em Viena foi-lhe
retirado enquanto ele se encontrava ausente em Londres. Quanto à sua mulher, longe de
receber as felicitações com que Lederer sonhara, recebeu ordens de ir ter com ele a Lan-
gley, Virgínia. Imediatamente.
Lederer aquece de mais e fala de mais escreveu um dos ele mentos da equipa em crescimento permanente de psiquiatrias da CIA.
Precisa de um ambiente menos histérico.
Lederer acabou por deparar com a calma que assim lhe fora receitada, na secção de
estatística, e por pouco não enlouqueceu em consequência disso.
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1
XIII
O ficheiro verde erguia-se no meio do quarto de Pym, como uma peça de artilharia fora
de uso, outrora orgulho do seu regimento. O cromado soltava-se à volta dos puxadores,
uma pancada forte, ou uma queda, amolgara um dos cantos e, por isso, o mínimo movimento fazia-o oscilar, inquieto. Os pontos onde a tinta estalara tinham-se
transformado com a ferrugem em chagas, e a ferrugem alastrara pelos buracos dos
parafusos e por baixo da tinta, empolando-a em borbulhas humilhantes. Pym andava à
volta do ficheiro com o terror e o ódio de um primitivo. Aquilo tombara do céu. O seu
destino é voltar para lá. Devia-o ter incinerado juntamente com ele, para ele o poder mostrar ao Criador, conforme era sua vontade. Quatro gavetões cheios de inocência, o
Evangelho segundo S. Rick. Pertences-me. Perdeste. O arquivo foi-me entregue. Tenho
na minha corrente a chave que o demonstra.
Pym deu um encontrão ao ficheiro e ouviu lá dentro o som de al
guma coisa a ceder enquanto os dossiers vacilaram obedientemente, sob as suas ordens. ,
Devia descrever-te o caminho dele cheio de bruxas, Tom. A lua cheia devia aparecer
avermelhada e o mocho ter o estranho comportamento, tão fora do natural, que é o seu
quando se tramam os crimes. Mas Pym está cego e surdo a tudo isso. É o segundo-
tenente Magnus Pym, atravessando no seu comboio especial a Áustria ocupada, e atravessando aquela mesma cidade de fronteira onde, há muito tempo, na existência
■ftenos amadurecida de um outro Pym, o pote de ouro inventado de E. weber esperara
em pura imaginação que Mr. Lapadi o fosse recolher. É um conquistador romano, a
caminho do seu primeiro posto de cocando. A sua têmpera protege-o da fragilidade
humana e do seu próprio destino, como podes observar pelo-sobrolho franzido de abstinên-
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cia militar, que exibe perante os seios nus das camponesas bárbaras, que ceifam o milho
nos campos ensolarados. A recruta passara com toda a facilidade de um domingo
britânico, embora Pym jamais tivesse pedido facilidades. As qualidades dos ingleses
privilegiados boas maneiras e instrução deficiente nunca lhe foram tão favoráveis. Até
as suas filiações políticas obscuras dos tempos de Oxford acabaram por jogar em seu proveito. Se os Pongos te perguntarem se és agora ou alguma vez foste membro do clã,
olha-os bem nos olhos e diz-lhes que nunca aconselhou o último dos Michaels, num
almoço desportivo junto à piscina do Lansdowne, enquanto ele e Pym observavam os
corpos puros das raparigas suburbanas, ziguezagueando na água desinfectada.
Pongos? perguntou Pym, sem perceber. A soldadesca licenciosa, meu velho. O ministério da Guerra. Daqui para cima, são de
pau. Os Serviços vão deixar-te o caminho livre. Diz aos tipos da tropa que se metam na
vida deles.
Muitíssimo obrigado respondeu Pym.
Nessa mesma noite, resplandecente da glória de nove partidas dei squash, Pym foi conduzido à presença de um Membro Muito Impor-I tante dos Serviços num escritório
banal e sem nada que se prendesse àl memória, não muito longe da nova Reichskanzelei
de Rick. Seria aquele o coronel Gaunt, que fora o seu primeiro contacto? É mais
importante do que isso, disseram a Pym. O melhor é não fazeres perguntas dessas.
Queremos agradecer-lhe disse o Membro Importante. Gostei muito do trabalho respondeu Pym.
E um trabalho horrível ter de se misturar com aquela gente. Mas I
alguém tem de o fazer.
Oh, não é assim tão horrível, sir.
Ouça. O seu nome fica nos nossos livros. Não lhe posso prome ter nada, temos prioridades de selecção que têm de ser respeitadas. Além
disso, você agora pertence àqueles tipos ali, do outro lado do parque, e
temos por regra não pescarmos em águas alheias. De qualquer modo,
se alguma vez decidir que proteger o seu país aqui mesmo é mais do seu
agrado do que fazer de Mata-Hari no estrangeiro, entre em contacto connosco.
É o que farei, sir. Obrigado disse Pym.
O Membro Muito Importante era conciso, acastanhado e ostensivamente incaracterístico
como um dos seus envelopes. Tinha os modos petulantes de um advogado de província,
profissão que exercera outro-
ra, antes de obedecer ao Grande Chamamento. Debruçando-se da secretária, exibiu um
sorriso perplexo.
Não precisa de me dizer, se não quiser. Como é que conseguiu
começar a misturar-se com aquela gente? Os comunistas?
Não, não, não. Os nossos serviços irmãos.
Foi em Berna, sir. Estava lá a estudar.
Na Suíça disse o Grande Homem, consultando um mapa
mental. Sim, sir.
Foi uma vez com a minha mulher fazer ski para perto de Berna.
Uma terra pequena chamada Múrren. São uns ingleses que dirigem a
estância e, portanto, lá não há sequer carros. Gostámos bastante de lá es
tar. O que é que você fez para eles? Um trabalho muito semelhante ao que fiz para si, sir, de facto.
Só que era um pouco mais arriscado.
Porquê?
Lá fora não nos sentimos protegidos. É olho por olho, julgo eu.
Pareceu-me uma terra tão pacífica. Bom, desejo-lhe boa sorte, Pym. Tenha cuidado com os tipos, são bons, mas um tanto escorrega
dios. Nós somos bons, mas ainda temos a nossa honra. A diferença é
essa.
Ele é brilhante disse Pym ao seu guia. Finge-se perfeitamente banal, mas vê como uma
pessoa é por dentro. A sua exaltação ainda não o abandonara quando, alguns dias depois, se apresentou com
a mala na mão na casa da guarda do seu regimento de recruta, onde durante dois meses
colheu os frutos plenos da sua educação. Enquanto os mineiros galeses e os assassinos
de Glasgow choravam desavergonhadamente pelas mãezinhas, saíam do quartel sem
licença e eram colocados de castigo noutras unidades, Pym dormia bem e não chorava a chamar por ninguém. Muito antes de a alvorada ter ar-fancado da cama os seus
camaradas que fumavam e praguejavam, já ele tinha engraxado as botas e areado o
fecho do cinto e o distintivo do bi-vaque, feito a cama e arrumado o seu cacifo da
camarata, e estava mais do que pronto, se alguém lhe pedisse para o fazer, a tomar um
duche frio, vestir-se de novo e pôr-se a ler a primeira das horas canónicas, na com-Panhia de Mr. Willow, antes do horrível pequeno-almoço. Na parada e n° campo de
futebol, Pym excedia-se. Não se assustava quando lhe gri-t nem esperava que a
autoridade obedecesse às leis da lógica.
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Onde está o atirador Pym? berrou um dia o coronel, a meio
de uma conferência sobre a batalha da Corunha, e olhou para cima, com
uma expressão irritada, como se mais alguém, além dele, tivesse usado da palavra. Todos os sargentos que estavam na sala berravam também o
nome de Pym até este se pôr de pé.
Você é que é Pym?
Sir!
Venha falar comigo quando acabarmos. Sir!
O comando da companhia ficava do outro lado da parada. Pym marchou até lá e fez a
continência. O ajudante de campo do coronel saiu da sala.
À vontade, Pym. Sente-se.
O coronel falava cautelosamente, mostrando uma desconfiança militar perante as palavras. Tinha um bigode macio e cor de mel, e o olhar límpido de um homem
completamente estúpido.
Houve umas pessoas que me disseram que, partindo do princí
pio que você está em comissão de serviço, seria bom que frequentasse
determinado curso de preparação em determinado estabelecimento, Pym-
Sim, sir.
Consequentemente, tenho de fazer um relatório individual acerca da sua pessoa.
Sim, sir.
E é o que vou fazer. Vai ser um relatório, aliás, favorável. Obrigado, sir.
Você é aplicado. Não é cínico. Você, Pym, não se encontra es-
tragado pelos luxos da paz. É de gente assim que o país precisa.
Obrigado, sir. : - , -.■',•,
Pym. .,/....,;■. . ■' ■■■■■• :,.>-. •■'.', :,v, ,. .:>. Sim, Sir. ,■..■,.•■ ■ ,. .:-,.: ■■ ■:] ■ : M,
Se alguma vez, essas pessoas a quem você está ligado andarem à
procura de um coronel do exército na reserva, mas ainda em forma e
com algum je ne sais quoi, espero que se lembre de mim. Sei um pouco
de francês. Monto bastante bem. Conheço os meus vinhos. Diga-lhes isso.
Não me esquecerei, sir. Obrigado, sir.
Pouco dotado no capítulo da memória, o coronel tinha o hábito de repetir as conversas
como se fossem uma novidade.
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Pym.
Sim, sir.
Escolha bem o momento. Não se precipite. Eles não gostam de pressas. Seja subtil. É uma ordem.
É o que farei, sir.
Sabe o meu nome? >
Sei, sim, sir.
Soletre-o. Pym soletrou-o.
Posso mudar de nome se eles quiserem. Só terão de mo dizer.
Ouvi dizer que você foi o primeiro do seu curso, Pym.
Sim, sir. Continue.
À noite, sentado entre homens solitários, Pym o benemérito ajuda
va os outros a escreverem cartas de amor às namoradas, ditando-lhas pa
lavra a palavra. Quando a capacidade física da escrita lhes faltavam, Pym
servia-lhes de amanuense, acrescentando frases carinhosas personaliza das, de acordo com o que lhe pediam. Às vezes, inflamado pela sua pró
pria retórica, entoava a canção por sua conta, no estilo lírico de um
Blunden ou de um Sassoon: ,
Querida Belinda, , ,
não te sei dizer que boa disposição e simples bondade humana se podem encontrar entre os nossos camaradas da classe trabalhadora. Ontem grande excitação levámos os nossos
calibres vinte e cinco para uma sessão de fogo, muito longe, algures na Inglaterra, para
termos o nosso baptismo de fogo, partindo de camião antes do alvorecer e não tendo
chegado ao nosso destino antes das onze. Os assentos de madeira as ripas de um camião
de quinze toneladas foram concebidos de modo a partirem-nos a espinha em vários pontos. Não tínhamos almofadas, epara comer apenas as balas. No entanto, a malta
assobiou e cantou com uma animação tremenda durante todo o caminho, efez a sua
missão impecavelmente, suportando a. viagem de regresso sem mais do que alguns
protestos bem-humorados. Considero um privilégio estar entre gente assim, e estou a
pensar seriamente em recusar a comissão. Quando lhe foi proposta a comissão, no entanto, Pym conseguiu aceitá-la sem
dificuldades de maior, como testemunham as elevações er°genas bordadas a caqui sobre
fundo ■verde, uma em cada ombro do
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seu traje de combate, e cuja presença ele confirma dissimuladamente sempre que o
comboio entra num túnel. Os seios nus das camponesas são os primeiros que ele vê
desde a eleição. Em cada vale por onde passa, Pym aplica o seu olhar desaprovador para
tentar ver mais alguns, raras vezes sendo desiludido. «Vamos mandá-lo primeiro para Viena» dissera o seu comandante da Unidade de Informações. «É uma oportunidade de
adquirir experiência antes de ser mandado para o trabalho de campo.»
Parece-me uma ideia excelente disse Pym.
Naquele tempo, a Áustria era um país diferente daquele que aprendemos a amar, Tom, e
Viena era uma cidade dividida como Berlim, ou como o teu pai. Alguns anos mais tarde, para duradouro espanto de toda a gente, os diplomatas decidiram que não iam
preocupar-se com um espectáculo menor, enquanto havia a Alemanha a disputar, e foi
assim que os países ocupantes assinaram um tratado e retiraram, consumando-se deste
modo o único feito positivo do ministério dos Negócios Estrangeiros britânico a que
assisti em toda a minha vida. Mas naquela altura da existência de Pym, o espectáculo secundário estava a ter imenso êxito. Os americanos tinham como capitais Salzburgo e
Lindz, os franceses Innsbruck, e os ingleses, Graz e Klagenfurt, e todos eles tinham um
pedacinho de Viena para se entreterem, enquanto o centro da cidade se encontrava sob
um controlo quadripartido. Pelo Natal, os russos ofereceram-nos baldes de madeira
cheios de caviar e nós oferecemos-lhes a elesplumpudding, e quando Pym chegou ainda corria a história de um cabo de Argylls que, quando o caviar foi servido aos homens no
início do jantar, se queixara ao oficial de dia de que a compota sabia a peixe. O cérebro
da Viena britânica era uma grande vivenda, chamada Div Int, e foi aí que o segundo-
tenente Pym foi iniciado nas suas obrigações, que consistiam em ler relatórios acerca
das deslocações de tudo e mais alguma coisa, desde lavandarias móveis soviéticas até regimentos de cavalaria húngara, e em espetar alfinetes coloridos nos mapas. O mapa
mais interessante mostrava a zona soviética da Áustria, que começava ap enas a uns
vinte minutos de automóvel do seu local de trabalho. Bastava a Pym olhar para essa
fronteira para sentir o perigo e a intriga arrepia' rem-lhe a pele. Noutras alturas, quando
estava cansado ou se esquecia da sua própria pessoa, o seu olhar dirigia-se para a extremidade ocidental da Checoslováquia, para Karlovy Vary, outrora Carlsbad, a
encanta'
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dora estância termal do século XVIII, apreciada nos seus dias por Bra-hams e Beedioven. Mas Pym não tinha qualquer ligação pessoal com aquele lugar, e o seu
interesse era puramente histórico.
A sua vida durante aqueles primeiros meses foi estranha, porque o destino dele não se
encontrava em Viena, e nos momentos mais cheios de imaginação parece-me que a
própria capital estava à espera de abandonar Pym às mais duras leis da natureza. Demasiado humilde para que os outros oficiais o levassem a sério, impedido pelo
protocolo de se misturar com as patentes inferiores, pobre de mais para se divertir nos
restaurantes e clubes nocturnos clandestinos, Pym vagueava entre o quarto de hotel que
lhe fora destinado e os seus mapas, mais ou menos como vagueara por Berna nos
tempos da sua estadia ilegal na Suíça. E hoje confesso, mas sem que na altura o admitisse, que por mais de uma vez, ao ouvir os vienenses tagarelarem na rua com o seu
alemão ridículo, ou ao dirigir-se a um dos pequenos teatros voluntariosos que
começavam a surgir nas caves e nas casas bombardeadas, sentia uma saudade nostálgica
da possibilidade de, virando a cabeça, descobrir um bom amigo a coxear ao seu lado.
Mas Pym não tinha nenhum amigo que coxeasse: é apenas a minha alma alemã ressuscitada, disse ele para consigo; faz parte da natureza alemã este sentimento de
incompletude. Noutras noites, o grande agente secreto procedia a reconhecimentos no
sector soviético, disfarçado com um chapéu tirolês verde, que comprara especialmente
para esse efeito, observando por sob as abas as atarracadas sentinelas russas, com as
suas metralhadoras, postadas diante do quartel-general soviético, a intervalos de vinte jardas, ao longo da rua. Se acaso as sentinelas o interpelavam, bastava a Pym mostrar o
seu salvo-conduto militar para aqueles rostos tártaros se abrirem num sorriso de
reconhecimento amigável e recuarem um passo com as suas botas de couro macio,
fazendo continência com a mão enluvada de cinzento.
Ingleses bons.
Mas russos muito bons também insistia Pym, rindo. Rus
sos muito bons, a valer.
Kamarad\
Tovarich. Kamarad respondia o grande internacionalista. Pym oferecia um cigarro à sentinela, aceitando aquele com que era
fetribuído. Acendia os dois cigarros com o seu isqueiro Zippo, americano e de grande
chama, comprado a um dos múltiplos negociantes clandestinos que actuavam na Div
Int. Deixava que a chama do isquei-r° •luminasse a fisionomia da sentinela e o seu
próprio rosto. Depois, 417
Pym, com o seu bom coração, sentia uma certa vontade, embora feliz, mente lhe faltasse
o vocabulário para tanto, de explicar que, apesar de já em Oxford ter espiado os comunistas, continuando a fazê-lo agora em Viena, permanecia, no seu foro íntimo, um
comunista convicto, importando-se mais com a neve e os campos de trigo da Rússia do
que alguma vez se importara com os armários de realejo das bebidas ou as roletas de
Ascott.
Por vezes, já muito tarde, ao regressar por praças vazias ao seu pequeno quarto monástico, decorado por um extintor de incêndios do exército e por uma fotografia de
Rick, parava a meio caminho e bebia a grandes goladas o ar da noite até se sentir
embriagado, e fitava as ruas calcetadas envoltas em nevoeiro, imaginando ver Lippsie a
avançar para ele à luz dos candeeiros, com o seu lenço de refugiada e a sua mala de
cartão na mão. E sorria-lhe e congratulava-se corajosamente por, para além dos seus desejos superficiais, continuar a viver no seu mundo interior.
Pym estava em Viena havia três meses quando Marlene lhe pediu protecção. Marlene
era uma intérprete checa e uma beldade famosa.
Você é que é Mr. Pym? perguntou ela uma noite, com uma
deliciosa timidez de civil, ao descer as escadas atrás de um grande gru po de oficiais de altas patentes. Trazia um impermeável folgado, aper
tado na cintura, e um chapéu de dois bicos.
Pym confessou que sim.
Vai para o hotel WeichseP.
Pym respondeu que era isso que fazia todas as noites. Permite-me que o acompanhe, por favor, só desta vez? Ontem,
houve um homem que tentou violar-me. Não me quer acompanhar
até à porta? Não o incomodo?
Em breve, o intrépido Pym conduzia Marlene até à porta do quarto todas as noites, indo
esperá-la no mesmo sítio todas as manhãs. O seu dia desenrolava-se entre estes interlúdios radiosos. Mas quando a convidou para jantar, depois de receber o pré, foi
convocado por um capitão de fuzileiros furioso, encarregado dos recém-chegados.
Você é um porco lúbrigo, ouviu?
Sim, sir.
Os oficiais subalternos da Div Int não confraternizam, repito» não confraternizam em público com o pessoal civil. A menos que apre
sentem mais serviço do que você tem feito. Está a ouvir?
Sim, sir.
418
Sabe o que é um merdas?
Sim, sir.
Não, não sabe. Um merdas, Pym, é um oficial que usa uma gra
vata de um caqui mais claro do que o da camisa. Tem olhado ultima mente para a sua gravata?
Sim, sir.
E para a sua camisa?
Sim, sir.
Então, compare-as, Pym. E depois interrogue-se acerca de que tipo de oficial é você. Essa mulher ainda nem sequer se encontra ao abri
go de reservas.
Tudo isto faz parte dos treinos, pensou Pym, enquanto mudava de gravata. Estou a ser
treinado para o combate. No entanto, não deixava de o preocupar o facto de M arlene lhe
ter feito tantas perguntas sobre a sua pessoa, e desejava agora não ter sido tão aberto nas respostas.
Pouco tempo depois, os superiores de Pym, na sua misericórdia, consideraram que ele já
adquirira experiência bastante. Antes de partir, tornou a ser chamado pelo capitão, que
lhe mostrou duas fotografias. Uma delas era de um belo jovem de lábios delicados, e a
outra representava um bêbado inchado, com um sorriso sarcástico. Se vir algum destes dois homens, transmita imediatamente a in
formação a um dos seus superiores, está a ouvir?
Quem são eles?
Ninguém o ensinou ainda a não fazer perguntas? Se não conse
guir contactar um superior, prenda-os você mesmo. Como?
Sirva-se da sua autoridade. Seja cortês, mas firme. «Os senhores
estão presos.» E depois, entregue-os ao oficial superior que estiver mais
por perto.
Pym veio a saber alguns dias depois, pelo Daily Express, que os nomes daqueles homens eram Guy Burguess e Donald Madean e que os dois pertenciam aos Serviços
Secretos britânicos. Continuou a procurá-los por toda a parte durante várias semanas,
mas nunca chegou a descobri-los, porque, entretanto, os homens já se tinham escapado
para Moscovo.
Diz-me agora qual de nós é responsável, Tom. A alma ávida de Pym °u o humor caprichoso de Deus, que lhe proporciona um vislumbre de
419
Paraíso antes de cada queda? Quanto te falei dos Ollingers, de Berna, disse-te que só uma vez na vida nos é dado conhecer uma família verdadeiramente feliz, mas não me
lembrava então do major Harrison Membury, que começou por pertencer ao quadro da
Biblioteca britânica de Nairobi, foi mais tarde oficial do Corpo de Formação, e que, por
um capricho delicioso da lógica militar, fora parar às fileiras desprezíveis da Segurança.
Não me lembrara da sua linda mulher e das suas muitas filhas encardidas, outros tantos esboços das Fraúlein Ollinger, com a única diferença de criarem cabras e um leitão
turbulento, em vez de se dedicarem à música, o que diminuía a consideração de que
gozavam no meio militar para grande desespero do comandante da Administração, que
não podia fazer nada, uma vez que Membury pertencia aos Serviços de Informação e
não se encontrava sob as suas ordens. Não me lembrava da Unidade 6 de Investigações, de Graz, uma casa barroca e cor--de-rosa, num vale entre colinas cobertas de árvores, a
uma milha do limite da cidade. Havia um montão de cabos telefónicos que se dirigiam
para lá, e antenas profanando o telhado inclinado. A casa tinha um portão com um
pavilhão ao lado, e um criado da messe, louro e de olhar selvagem, chamado Wolfgang,
que se precipitava pelos degraus, com o seu casaco branco engomado, para nos abrir a porta àojeep. Mas o melhor da casa, pelo menos para Membury, era o lago que ele
passava os dias a povoar de peixe, porque tinha a mania dos peixes, gastando
generosamente uma parte considerável dos nossos fundos especiais com a criação de
variedades raras de trutas. Tenta imaginar um homem alto e cordial, mas sem o mínimo
vigor e com os gestos elegantes de um inválido. E com um olhar e um carácter sonhador e religioso. Civil até à ponta dos dedos delicados, como nunca conheci outro, e, no
entanto, quando hoje o recordo, é sempre em uniforme de combate, com botas de
camurça velhas e um cinto oscilando para cima e para baixo à volta da barriga, de pé
entre as libélulas, à beira do seu adorado lago, no calor de uma tarde escaldante,
precisamente como Pym o encontrou no dia em que se apresentou ao serviço, a enfiar um objecto semelhante a um ca-maroeiro na água, enquanto murmurava tímidas
imprecações contra um lúcio que por ali andava a caçar irregularmente.
Oh, meu Deus. Você é que é Pym? Bem, estou muito contente
por ter vindo. Olhe, vou limpar os limos e tratar do fundo, paia ver exa<-
tamente o que aqui temos. O que é que acha? Parece-me óptima ideia, sir disse Pym.
Ainda bem. É casado?
420
Não, sir.
Óptimo. Então, está livre aos fins-de-semana.
E por uma razão que não sei qual fosse, penso nele como num de dois irmãos, embora
não me lembre de ter alguma vez ouvido dizer que ele tivesse irmãos. O pessoal
residente era composto por um sargento de que já não me lembro bem e por um motorista cockney chamado Kaufmann, licenciado em Economia por Cambridge. O seu
lugar-te-nente era um jovem banqueiro de faces rosadas, chamado tenente McLeard,
que estava prestes a regressar à City. Nas caves, diligentes funcionários austríacos
escutavam telefones, abriam as cartas com vapor e atiravam sem as ler a sua produção
para uma fila de cestos de papeis do exército, meticulosamente esvaziados a seguir pelas autoridades de Graz, uma vez por semana, porque era um pesadelo para Membury a
ideia de que algum vândalo cheio de ódio pelos peixes pudesse despejar os cestos no
lago. No rés-do-chão, Membury instalara o seu estábulo de intérpretes, localmente
recrutadas, com idades entre o maternal e o nú-bii, e Membury, quando se lembrava da
existência delas, admirava-as a todas igualmente. Por fim, tinha a sua mulher Hannah, que pintava árvores, e que, como tantas vezes acontece com as mulheres de homens
muito altos, era propriamente minúscula. Hannah tornou a pintura algo de atraente para
mim, e é sentada diante do cavalete, com um vestido branco decotado, que melhor a
recordo, enquanto as miúdas se rebolavam aos gritos numa margem relvada do lago, e
Membury e eu mourejávamos na água castanha, em fato de banho. Ainda hoje me é impossível imaginá-la mãe de todas aquelas filhas.
O resto da vida de Pym dificilmente poderia ter-lhe agradado mais. Como provisões,
tinha whisky da tropa, a sete xelins a garrafa e cigarros a doze xelins a centena. Podia
trocar um e outros por géneros ou, se preterisse, convertê-los facilmente em moeda local, embora a solução mais segura fosse confiar nos serviços de um velho
Rittmeister00 húngaro, que andava pelo Arquivo a ler dossiers secretos e a lançar
olhares carinhosos a Wolfgang, análogos aos olhares que Mr. Cudlove costumava
endere-Çar a OUie. Tudo isto era familiar a Pym, tudo isto lhe era necessário para
Prosseguir a sua infância ortodoxa por viver. Aos domingos, acompanhava os Membury à missa, e durante o almoço, espreitava para dentro do decote de Hannah. Membury é
um génio, exultava Pym ao transfe-rit a sua secretária para a antecâmara do gabinete do
grande homem. Membury é o Homem do Renascimento feito espião. Ao fim de
algumas semanas, Pym dispunha já de verbas próprias. Passadas outras tan- 421
tas, recebeu uma segunda estrela para Wolfgang lha coser nos ombros porque Membury
dissera que só uma estrela lhe dava um ar de tolo. E tinha também os seus agentes.
Este é Pepi explicou McLeard, com um sorriso divertido, du rante um jantar discreto fora da cidade. Pepi lutou contra os verme
lhos por conta dos alemães, e agora luta contra eles por nossa conta. És
um anticomunista fanático, não és, Pepi? É por isso que ele vai de moto
para a zona soviética vender fotografias pornográficas aos soldados rus
sos. Quatrocentos Players Médium por mês. Salário atrasado. Esta é Elsa disse McLeard, apresentando a Pym uma dona de
casa rechonchuda da Caríntia, com quatro filhos, no gríll do Blue Rose.
O namorado dela tem um café em St. Põlten. E transmite-lhe as ma
trículas e os distintivos dos camiões russos que lhe passam diante da por
ta, não é, Elsa? Tudo em código, no verso das cartas de amor. Três qui los de café torrado por mês. Salário em atraso.
Havia uma dúzia deles, e Pym deitou imediatamente mãos à obra para os pôr em acção
e lhes melhorar a sorte de todas as maneiras ao seu alcance. Ainda hoje, quando os faço
passar pela minha memória, os vejo como o melhor lote de imbatíveis que poderia
calhar em sorte a um aspirante a chefe de espiões. Mas para Pym, os agentes eram simplesmente os melhores tipos do mundo e ele havia de lhes fazer justiça, ainda que
para tanto fosse preciso morrer.
E deixei para o fim Sabina, Jack, que era uma intérprete, como a sua amiga Marlene, em
Viena, e que, tal como Marlene, era a mais bela rapariga do mundo, colhida
directamente das páginas de Eros e a Mulher Rococó. Era baixa, como E. Weber, com ancas largas e fluidas e um olhar intenso e suplicante. Os seus seios eram altos e fortes,
tanto de Verão como de Inverno e, tal como as nádegas, abriam caminho através das
roupas mais banais, chamando insistentemente a atenção de Pym. A sua fisionomia era
a de um duende eslavo tristonho, assombrado pela mágoa e as superstições, mas capaz
de espantosos momentos explosivos de doçura, e se Lippsie reencarnasse, voltando a ter vinte e três anos, poderia fazer coisas muito piores do que assumir a forma de Sabina.
Marlene diz que você é uma pessoa respeitável disse ela a Pym.
com desprezo, ao subir atrapalhadamente para ojeep do cabo Kauf-
mann, não se preocupando com esconder as suas pernas rococó.
Isso é um crime? perguntou Pym. Não se preocupe respondeu ela, com um ar agoirento, e pai'
tiram os dois para os campos de refugiados. Sabina falava checo e servo-
422
I 1
.croata, para além do alemão. Nas horas vagas, estudava economia na Universidade de
Graz, o que lhe forneceu um pretexto para falar com o cabo Kaufmann.
Acredita na economia agrária mista, Kaufmann? Não acredito em nada disso.
É keynesiano?
Com o meu dinheiro, não seria, é o que lhe digo disse Kauf
mann.
A conversa arrastava-se deste modo, enquanto Pym procurava a maneira de roçar descuidadamente o ombro branco dela ou de fazer com que a sua saia se abrisse um
pouco mais do lado norte.
O objectivo deles durante aqueles passeios eram sempre os campos de refugiados.
Havia cinco anos que os refugiados da Europa de Leste tinham começado a deslizar
para a Áustria, através de cada buraco temporariamente aberto no arame farpado: atravessando ilegalmente as fronteiras em carros e camiões roubados por entre campos
de minas; agarrados à parte inferior dos comboios. Traziam os seus rostos encovados, os
seus filhos de cabeça rapada, os seus velhos familiares perplexos, os seus cães
azougados, e os seus esboços de Lippsie, para serem metidos em currais nos campos,
interrogados e verem o seu destino decidido aos milhares de cada vez, enquanto jogavam xadrez em caixotes de madeira e mostravam uns aos outros fotografias de
pessoas que nunca mais veriam. Vinham da Hungria, da Roménia, da Polónia, da
Checoslováquia, da Jugoslávia e, às vezes, da Rússia, e esperavam estar a caminho do
Canadá, da Austrália e da Palestina. Tinham viajado por caminhos ínvios e muitas vezes
por motivos que o não eram menos. Eram médicos, cientistas e pedreiros. Eram camionistas, ladrões, acrobatas, editores, violadores e arquitectos. Passavam todos pelo
espírito de Pym, enquanto ia dejeep de campo para campo, com o cabo Kaufmann e
Sabina, fazendo interrogatórios, classificando e registando, para regressar depois,
levando a presa a Membury.
De início, a sua sensibilidade ficou chocada com tanta miséria, e Pym tivera dificuldade em disfarçar a sua preocupação por cada uma das pessoas com que falava: sim, vou
conseguir que você chegue a Montreal nem que me mate; sim, vou mandar dizer à sua
mãe, em Camber-ra, que você se encontra bem. Sentia-se também embaraçado pela sua
pouca experiência em matéria de sofrimento. Todas as pessoas que interrogava tinham
vivido mais num dia d» que ele em toda a sua ainda breve existência, e Pym sentia-se ressentido por isso. Alguns dos refu-
423
giados andavam a atravessar fronteiras desde crianças. Outros falavam da morte e da tortura tão despreocupadamente que Pym se indignava com a indiferença deles, até que
a sua reprovação os irritava e eles lhe respondiam num tom de sarcasmo. Mas Pym, o
bom trabalhador, tinha uma tarefa a cumprir, um comandante a quem agradar e, quando
se equipava, um espírito ágil e dissimulado que lhe permitia fazer tudo isso. Bastava-lhe
consultar a sua própria natureza para saber quando é que alguém estava a escrever nas páginas da memória, deixando de lado o texto principal. Sabia alimentar uma conversa
de circunstância enquanto observava, e decifrar os sinais que lhe chegavam. Quando lhe
descreviam a passagem nocturna da fronteira através dos montes, Pym ia com quem lho
contava, carregando as malas de Lippsie dos outros e sentindo o ar gelado da montanha
por dentro da roupa velha. Quando um dos interrogados dizia uma mentira descarada, Pym tentava alcançar versões mais próximas da verdade, com o auxílio da sua bússola
mental. Estava sempre a fervilhar de perguntas e, como advogado em germe que era,
aprendeu rapidamente a formulá-las segundo um modelo de acusação. «De onde é que
você vem? Que tropas é que viu por lá? Como eram os galões deles? Em que veículos
andavam e como é que estavam armados? Que caminho é que você seguiu, quantos guardas, barreiras, cães, vedações, campos de minas, encontrou? Que sapatos trazia
calçados? Como é que a sua mãe aguentou a viagem, ou a sua avó, se o desfiladeiro era
tão íngreme? Como é que conseguiu trazer duas malas e duas crianças pequenas, com a
sua mulher com a gravidez tão adiantada? Não será mais provável que os seus chefes da
polícia secreta húngara o tenham conduzido até à fronteira, desejando-lhe boa sorte e mostrando--lhe onde atravessar? Você não será um espião e, em caso afirmativo, não
gostaria mais de trabalhar para nós? Ou será um simples criminoso, e nesse caso
preferirá com certeza dedicar-se à espionagem a ser expulso para o outro lado pela
polícia austríaca?» Assim Pym colhia elementos nas suas próprias várias vidas paralelas
com o objectivo de desenredar as dos outros, e Sabina, com os seus sobrolhos zangados, as suas birras e os seus raros sorrisos bonitos, passou a ser a voz quente de Pym durante
todos os interrogatórios. Por vezes, Pym deixava que ela traduzisse o que ele dizia para
alemão, com o intuito de se atribuir a vantagem secreta de ouvir tudo duas vezes.
Onde aprendeu você a jogar esses estúpidos jogos? pergun-tou-lhe ela com um ar
severo, certa noite em que dançavam no hotel Wiesler perante os olhares de censura das esposas do exército.
424
Pym riu. No limiar da idade adulta, com a coxa de Sabina encostada à sua, porque é que
ele havia de dever alguma coisa a alguém? Por isso, inventou em intenção dela uma história acerca de um alemão astucioso que conhecera em Oxford e que viera a
descobrir-se ser um espião.
Travámos uma batalha de perspicácia extraordinária confes
sou Pym, escavando as suas recordações recém-inventadas. Ele ser
viu-se de todos os truques dos livros, e no início, eu era tão ingénuo como uma criança e acreditava em tudo o que ele me dizia. Gradual
mente, o combate passou a ser mais equilibrado.
Ele era comunista?
Vim a descobrir que sim. Fazia demasiado estardalhaço para o esconder, mas quando
me apliquei a observá-lo mais de perto, isso veio à tona.
E homossexual? perguntou Sabina, expressando uma suspei
ta sempre pronta a disparar, enquanto se agarrava mais a Pym.
Tanto quanto pude perceber, não. Tinha regimentos de mu
lheres.
O quê? Só dormia com mulheres de militares?
O que eu queria dizer é que ele tinha muitas mulheres. Estava a
usar uma metáfora.
Penso que ele andava a tentar disfarçar a homossexualidade dele. É normal.
Sabina falava da sua própria vida como se fosse a de alguém que odiasse. O estúpido do
pai, que era húngaro, fora abatido a tiro na fronteira. A tola da mãe morrera em Praga,
ao tentar produzir um filho para um amante indigno. O irmão mais velho era um idiota,
que estudava Medicina. Os tios eram uns bêbados e tinham arranjado maneira de ser mortos pelos nazis e pelos comunistas.
Quer que lhe dê uma aula de checo no sábado? perguntou-
-lhe Sabina, num tom ainda mais severo do que o habitual, quando vol
tavam para casa, três no mesmo banco.
Gostava muito respondeu Pym, pegando-lhe na mão. Es tou realmente a começar a interessar-me muito pelo checo.
Acho que desta vez fazemos amor. Vamos a ver disse ela, de
fovo com severidade, e, ao ouvir aquilo, Kaufmann quase enfiou o car
ona valeta.
O sábado chegou e nem a sombra de Rick nem os terrores de Pym o conseguiram impedir de tocar à campainha de Sabina. Ouviu passos mais 'geiros do que o modo
prático de andar que ela tinha habitualmente. Viu
425
o clarão do olhar dela através do postigo e fez um esforço para sorrir com uma expressão decidida e tranquila. Pym trouxera whisky da tropa em quantidade suficiente
para banir uma culpa secular, mas Sabina não tinha o menor sentimento de culpa, e
quando lhe abriu a porta, Pym viu que estava nua. Incapaz de articular palavra, Pym
ficou de pé diante dela, com a sua mala de mensagens na mão. Atordoado, viu Sabina
tornar a colocar o fecho de segurança na porta, tirar-lhe a mala das mãos inertes e ir até ao aparador desembrulhar as coisas que Pym trouxera. O dia estava quente, mas ela
acendera a lareira e abrira a cama.
Já tiveste muitas mulheres, Magnus? perguntou Sabina.
Regimentos de mulheres, como o teu amigo pouco recomendável?
Acho que não disse Pym. ■■■■■■.■ Es homossexual como todos os ingleses?
Não, podes ter a certeza que não. ■
Sabina levou-o para a cama. Fê-lo sentar-se e desabotoou-lhe a camisa. Com ar severo,
como Lippsie quando precisava de alguma coisa para a carrinha da lavandaria que
estava lá fora. Desabotoou-lhe o resto da roupa e dobrou-a em cima de uma cadeira. Fê-lo deitar-se de costas e deitou-se, por sua vez, em cima dele.
Não sabia disse Pym, em voz alta.
Como?
Pym começou a dizer alguma coisa, mas era demasiado difícil de explicar e a sua
intérprete já estava ocupada. O que ele queria dizer era: Eu não sabia, apesar de todos os meus anseios, aquilo por que ansiava, até agora. Queria dizer: posso voar e posso nadar
por sobre a minha fronte, as minhas costas, o meu flanco, a minha cabeça. Queria dizer:
estou completo e sou finalmente um homem.
Era uma tarde perfumada de sexta-feira, seis dias mais tarde. Nos jardins para onde
davam as janelas do enorme gabinete de Membury, o Rittmeister, de lederhosen, descascava ervilhas para Wolfgang. Membury estava sentado à sua mesa de trabalho,
com o uniforme de combate desabotoado até à cintura, enquanto elaborava um
questionário para os comandantes de traineiras, que se propunha enviar às centenas para
as frotas pesqueiras mais importantes. Há algumas semanas que andava empenhado em
determinar as migrações de Inverno das trutas marinhas, e os recursos da Unidade tinham sido espremidos de acordo com o seu capricho.
Fizeram-me uma abordagem bastante estranha, sir começou
Pym delicadamente. Uma pessoa que afirmava representar um potencial desertor.
Oh, mas que interessante para si, Magnus - disse Membury, com toda a simpatia, arrancando-se com esforço às suas preocupações.
Espero que não seja mais um guarda fronteiriço húngaro. Já tive a
minha dose deles. E Viena também, com certeza. Viena era uma fonte crescente de
preocupações para Membury, tal como Membury o era para Viena. Pym lera a dolorosa
correspondência entre eles, a qual se encontrava sempre cuidadosamente fechada à chave por Membury, na gaveta superior do lado esquerdo da sua frágil secretária. Podia
ser apenas uma questão de dias até o capitão de fuzileiros surgir em pessoa para tomar
posse do cargo.
Na realidade, não é húngaro, sir disse Pym. É checo. É
adido no quartel-general do Comando da Zona Sul, sediado nos arre dores de Praga.
Membury inclinou a sua grande cabeça para um lado, como se estivesse a tentar extrair
água de um dos ouvidos.
Bom, isso é encorajador observou ele, céptico. A Div Int
daria tudo por algum bom material acerca do sul da Checoslováquia. Ou, aliás, sobre qualquer outra zona da Checoslováquia. Os ameri
canos parecem convencidos de que têm o monopólio lá do sítio. Hou
ve alguém que mo disse noutro dia ao telefone, já não me lembro
quem foi.
A linha telefónica para Graz passava pela zona soviética. À noite, ouviam-se ao telefone os técnicos russos, cantando embriagados, músicas cossacas.
Segundo a minha fonte, é um sargento de secretaria desconten
te que trabalha na casa-forte deles insistiu Pym. Espera-se que ele
venha amanhã à noite, atravessando a zona soviética. Se não estivermos
'* para o receber, o homem segue o caminho mais curto e vai ter direc tamente com os americanos.
Não foi o Rittmeister quem lhe falou dele, não? perguntou
Membury, com algum nervosismo.
Com a perícia resultante de um longo hábito, Pym entrou no terre-0 mais perigoso. Não,
não fora o Rittmeister, assegurou ele a Membury. ek> menos não parecia o Rittmeister. A voz parecia mais jovem e mais firme.
Membury mostrou-se confuso. -■"
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427
Pode fazer o favor de me explicar melhor? disse ele. Pym ex
plicou.
Era uma terça-feira à noite, igual a todas as outras, disse Pym. Tinha ido ao cinema ver
Liebe 47, e no regresso pensou em passar pel0 Weisses Ross para tomar uma cerveja.
Acho que não conheço o Weisses Ross. É só mais um bar, sir, é o que é, mas os emigrados costumam
passar por lá com frequência, e toda a gente se senta nas mesmas gran
des mesas. Eu estava lá literalmente há dois minutos quando o criado
me chamou ao telefone. «Herr Leutenant, fíir sie.» Conhecem-me ali, e
não fiquei, por isso, muito surpreendido. Ainda bem disse Membury, impressionado.
Era uma voz de homem, que falava alemão. «Herr Pym? Tenho
um recado importante para si. Se fizer exactamente o que eu lhe digo,
não se arrependerá. Tem papel e caneta?» Eu tinha as duas coisas, e ele
começou a ler-me um texto a um ritmo de ditado. No fim, voltou a ler para ver se eu percebera bem, e desligou antes de lhe poder perguntar
quem era.
Pym tirou do bolso a folha de papel, arrancada do fim de uma agenda.
Mas se isso se passou ontem à noite, porque diabo não me con
tou a história mais cedo? objectou Membury, tirando-lhe a folha das mãos.
O meu coronel estava na reunião da comissão interserviços de in
formação.
Oh, caramba! Pois estava. E ele tratou-o pelo seu nome? ob
servou Membury com orgulho, ainda a olhar para o papel. Só o te nente Pym é que serve. É bastante lisonjeiro, devo dizer-lhe. Mem
bury torceu uma das suas orelhas salientes. Ouça lá, tenha muito
cuidado avisou ele, com a severidade de um homem incapaz de re
cusar a Pym fosse o que fosse. E não se aproxime demasiado da fron
teira, não vão eles tentar levá-lo para o outro lado.
uma semana antes, Pym e Membury tinham passado uma noite na planície da Caríntia à
espera de acolherem um capitão dos serviços secretos romenos, que vinha com a sua
amante, e que se supunha que iam chegar num avião desviado, cheio de segredos de
valor incalculável. Membury mandara a polícia austríaca delimitar a zona, e Pym lançou foguetões coloridos no vazio do céu, de acordo com as instruções recebidas em certas
mensagens secretas. Mas quando chegou a madrugada, nenhum avião aparecera.
E agora o que é que fazemos? lamentara-se Membury, com
uma irritação compreensível, enquanto os dois estavam sentados no
jeep, tremendo de frio. Sacrificamos o raio de um bode? Só queria que o Rittmeister fosse mais preciso. Assim, fazemos figura de idiotas.
Uma semana antes deste episódio, disfarçados com sobretudos verdes, os dois tinham
ido até uma estalagem fora de mão, situada na fronteira entre as zonas, em busca de um
Heimkherer de uma mina de urânio soviética, que esperavam a qualquer momento.
Quando abriram a porta, as conversas no bar pararam por completo, e houve uma quantidade de camponeses que ficou a olhar para ambos com uma expressão alvar.
O bilhar ordenou Membury, com uma resolução que nele
era rara, com a mão diante da boca. Há ali uma mesa. Vamos fazer
uma partida. Para nos integrarmos no ambiente.
Ainda de sobretudo verde, Membury inclinou-se para dar uma ta cada, mas foi interrompido pelo estrondo de um objecto metálico pe
sado batendo no chão de ladrilho, mesmo junto deles. Ao olhar para
baixo, Pym viu o revólver de calibre 38 do seu comandante caído jun
to aos grandes pés dele. Recolheu-o num ápice, mais rápido do que
nunca. Mas não com suficiente rapidez para evitar o debandar em di recção à saída dos camponeses aterrorizados, que dispersaram na escu
ridão, nem que o proprietário do estabelecimento se fechasse à chave na
cave. ■'..:•.■
Não fora esta de modo nenhum a primeira informação antecipai da chegada do desertor
a passar pelas mãos de Pym ao longo dos ul°" mos meses, não fora sequer a sexta vez
que aquilo acontecera, mas i01 a primeira informação do género a ser-lhe sussurrada ao
ouvido p° uma intérprete checa nua, no meio de um pomar à luz da lua. a^ 428
1
E agora posso regressar sir? perguntou Kaufmann. Não sou "e maneira nenhuma um soldado. Sou um cobarde.
Não, não pode disse Pym. E fique calado.
O celeiro destacava-se isolado, tal como Sabina indicara, no centro de um campo plano,
delimitado por larícios. Um caminho amarelado conduzia até ao celeiro, e por trás dele
havia um lago. Atrás do lago, uma 429
colina e na colina, ao cair da tarde, uma única torre de vigia dominava o vale. Irás vestido à civil, e estacionas o carro no cruzamento de Klein
Brandorf murmurara Sabina, junto às coxas dele, enquanto o beija-
va, acariciava e fazia renascer. O pomar tinha um muro de tijolo e ha
bitava-o uma grande família de lebres castanhas. Deixas as janelas
laterais iluminadas. Se fizeres batota e levares escolta de protecção, ele não aparecerá. Ficará furioso e não sairá da floresta.
Amo-te.
Há uma pedra pintada de branco. É aí que Kaufmann deve ficar.
Se Kaufmann passar para lá da pedra branca, ele não aparece; ficará na
floresta. Porque é que não vens também?
Ele não quer. Ele só quer Pym. Se calhar, é homossexual.
Obrigado disse Pym. i ;
A pedra branca brilhava diante deles. Fica aqui ordenou Pym. ; '•■■>.
Porquê? perguntou Kaufmann.
A neblina do anoitecer caía em farrapos por cima do campo. A superfície do lago
agitava-se com os saltos dos peixes. Com o pôr-do--sol, os larícios lançavam sombras
de uma milha de comprimento por cima do chão doirado. Junto à porta do celeiro, havia alguns troncos cortados, e caixotes cheios de gerânios enfeitavam as janelas. Pym
tornou a pensar em Sabina. Os seus flancos envolventes, a extensão larga do seu dorso.
«Aquilo que te vou dizer nunca o disse a nenhum inglês. Tenho em Praga um irmão
mais novo, chamado Jan. Se disseres isto a Membury, ele despede-me imediatamente.
Os ingleses não nos permitem que tenhamos parentes próximos em países comunistas. Percebes?»
Sim, Sabina, percebo. Vi o luar nos teus seios, a humidade do
teu corpo encheu os meus lábios, prendeu-se às minhas pálpebras. Per'
cebo.
Ouve. O meu irmão mandou-me este recado para ti. Só pafa Pym. Graças a mim, e porque só lhe contei coisas boas a teu respeIt0>
ele tem confiança em ti. O meu irmão tem um amigo que quer sair a
lá. Esse amigo é um tipo muito dotado, brilhante, com uma posição ífl1
portante. Poderá trazer-te numerosas informações secretas acerca d
russos. Mas, primeiro, tens de inventar uma história para para lhe explicares como é que recebeste esta mensagem. És i
ue baste. És capaz de inventar todas as histórias. Vais ter de inventar agora uma para o
meu irmão e para o amigo dele. Sim, Sabina, hei-de ser capaz de inventar a história. Por ti, pelo
teu querido irmão, sou capaz de inventar até um milhão de histórias. [)á-me a minha
caneta, Sabina. Onde é que puseste as minhas roupas? £ arranca uma folha da tua
agenda, que eu invento uma história de um homem misterioso que me telefonou para o
Weisses Ross, apresentando--rne uma proposta irresistível. Pym desabotoou o sobretudo. «Traz sempre a arma debaixo do braço», aconselhara o
seu instrutor no pequeno e triste posto militar do Sus-sex, onde o haviam ensinado a
lutar contra o comunismo. «Dá-te mais hipóteses quando o outro tipo dispara primeiro.»
Pym não tinha a certeza de que se tratasse de um bom conselho. Chegou à porta e viu
que estava fechada. Contornou o celeiro, procurando encontrar um ponto por onde espreitar para o interior. «As informações dele vão ser-te úteis», dissera Sabina. «Hão-
de tornar-te célebre em Viena, e a Membury também . É muito raro chegarem à Div /«í
boas informações acerca da Checoslováquia. A maior parte vêm por via dos americanos
e, por isso, já não são de fiar.»
O sol pusera-se e a escuridão ia-se fechando rapidamente. Do outro lado do lago, Pym ouviu o regougar de uma raposa. O fundo do celeiro estava ocupado por pequenas
casotas para galinhas com a palha de dentro limpa. Galinhas na terra de ninguém,
pensou Pym, levianamente. Ovos sem Estado. As galinhas estenderam o pescoço na sua
direcção eriçando as penas. Uma garça cinzenta levantou voo do lago e tomou a
direcção das colinas. Pym regressou à fachada do celeiro. Kaufmann!
Sir? : ..■,■•■ ..-, ■' ■ ...■:;■,.
Estavam à distância de cem metros um do outro, mas as vozes soa
vam tão próximas como as de amantes no silêncio do anoitecer. :■■■,
- Você tossiu? . . • ;■ .-. ■,:■■>. ; Não, sir. . ■.. .■-.. .; : . - ■:■ ■..
Bom, então continue sem tossir.
Acho que estava era a soluçar, sir.
Man tenha-se alerta, mas veja o que vir, não se aproxime mais a
nã<> ser que eu lhe dê ordem para o fazer. Gostava de fugir daqui, se fosse possível, sir. Prefiro ser um de-sertor a ver-me nesta
situação, honestamente. Sou um alvo parado. Sou U(io menos um ser humano.
430
431
i
I
Faça umas contas de cabeça para se entreter.
Não sou capaz. Já tentei. Não sai nada.
Pym levantou o fecho da porta, entrou e sentiu um cheiro a charu-to e cavalo. St. Moritz, pensou ele, com a cabeça leve no meio da sua apreensão. O celeiro era belo e
lembrava uma caverna, com um estrado de um dos lados, à semelhança de um navio
antigo. No estrado havia uma mesa e na mesa, para surpresa de Pym, um candeeiro de
petróleo aceso. À luz deste, admirou as traves antigas e o telhado. «Espera lá dentro, e
ele acabará por aparecer», dissera Sabina. «Ele quer ver-te entrar primeiro. O amigo do meu irmão é muito cauteloso. Como muitos checos, tem um espírito nobre, mas
cauteloso.» Duas cadeiras de madeira de espaldar alto haviam sido colocadas junto da
mesa, onde se viam revistas espalhadas, como na sala de espera de um dentista. Deve
ser aqui que o camponês trata da sua papelada. Numa das extremidades do celeiro, Pym
deu pela existência de uma escada rústica, que conduzia a um sótão. Nos fins-de-semana, vou-te trazer para aqui. Trarei vinho, queijo e pão, e cobertores para não nos
picarmos, e tu podes trazer a tua saia rodada sem nada por baixo. Pym subiu até meio da
escada e espreitou para cima. O chão estava em bom estado, o feno seco, nenhum sinal
de ratos. Um lugar excelente para uma sessão de rococó rústico. Pym voltou ao piso
inferior e dirigiu-se para o estrado, onde a luz brilhava, tencionando instalar-se numa das cadeiras. «Tens de ser paciente, esperar a noite toda, se necessário», dissera Sabina.
«Nesta altura do ano, é extremamente difícil atravessar a fronteira. Estamos no fim do
Verão, e os indecisos apressam-se antes de os desfiladeiros estarem bloqueados. Por
isso, há muitos guardas e espiões.» Havia uma passadeira de pedra entre dois regos para
o gado. Os passos de Pym ecoavam pesadamente sob o telhado. O eco parou e os seus pés ao mesmo tempo. Uma figura esguia estava sentada à cabeceira da mesa. O vulto
inclinava-se para diante, alerta, como que à espera de qualquer coisa. Tinha um charuto
numa das mãos e uma pistola automática na outra. O seu olhar, tal como o cano da arma
automática, fixava-se em Pym.
Continue a andar na minha direcção, Sir Magnus pediu Axel num tom notavelmente ansioso. Mãos ao ar e, por amor de Deus, não se ponha para aí a imaginar que é um
grande cowboy ou uin herói da guerra. Nenhum de nós pertence às classes disparadoras-
Vamos pôr de lado as nossas armas e conversar amigavelmente razoável. Por favor.
432
Só o Criador em pessoa, Tom, e com a ajuda de todos nós, seria capaz de descrever a
gama de pensamentos e emoções que se lançaram à carga sobre a pobre cabeça de Pym.
Tenho a certeza de que a sua primeira reacção foi não acreditar. Nos últimos anos,
encontrara-se muitas vezes com Axel, e este encontro era apenas mais um exemplo do
fenómeno. Axel a vigiá-lo durante o sono, Axel de pé à sua cabeceira com a boina na cabeça. «Vamos ver outra vez Thomas Mann.» Axel a rir-se de Pym por causa da sua
mania do alemão antigo e discutindo com ele por causa do seu mau hábito de jurar
lealdade a toda a gente que encontrava: aos comunistas de Oxford, a todas as mulheres
do mundo, aos Jacks e aos Michaels, e a Rick. «Você é completamente louco, Sir
Magnus», avisara Axel uma vez, quando Pym regressava aos seus aposentos depois de uma noite especialmente malabarista passada entre raparigas e inimigos da sociedade.
«Julga que, dividindo em pedaços todas as coisas, acabará por encontrar a passagem.»
Axel coxeara ao seu lado ao longo do caminho de sirga de Isis, e vira-o esmurrar as
paredes com o fito de impressionar Jemima. Na eleição suplementar, Pym não sabia
dizer quantas vezes, como uma cúpula branca, a fronte de Axel despontara entre a audiência das salas, ou as suas mãos longas e tranquilas se ergueram em aplausos
sarcásticos. Com Axel tão vivo na sua consciência, Pym sabia de ciência certa que ele
não existia. E com essa certeza no espírito, era perfeitamente lógico que a sua reacção
seguinte, ao ver Axel, fosse a mais pura indignação, por alguém tão completamente
interdito, alguém que fora literalmente, e por uma razão desconhecida, banido para lá das fronteiras do reino de Pym, deixando de ser visível ou sequer men-cionável, ter a
ousadia de estar ali sentado, a fumar, a sorrir e a apontar--lne uma pistola apontar-me
uma pistola a mim, Pym, membro fornicador e à prova de bala das classes britânicas
mais respeitáveis, dotado de poderes sobrenaturais. E depois, é claro, paradoxal como
sempre, v"! ficou mais exultante, mais emocionado e mais feliz por ver Axel d° que jamais ficara ao ver alguém, desde o dia em que Rick aparecera de bicicleta ao dobrar
da esquina, cantando «Underneath theArches».
Pym começou a andar, e depois a correr, na direcção de Axel. Con-Servou as mãos
acima da cabeça, como ele lhe recomendara. Esperou impacientemente, enquanto Axel
lhe tirava do coldre o seu revólver do Preito, poisando-o ao lado do seu próprio revólver a uma distância respeitável, no extremo oposto da mesa. E depois, por fim, desceu os
bra-Ç°s até à altura certa para os pendurar ejn torno do pescoço de Axel. ao me lembro
de ambos se terem abraçado mais alguma vez, antes ou
433
depois daquele momento. Mas recordo essa noite como sendo a última de ternura
infantil entre os dois, o último dia de Berna, porque os vejo abraçando-se e rindo à
maneira eslava, para depois se afastarem um pouco um do outro a fim de verificarem
que estragos os anos de separação haviam provocado em cada um deles. E podemos
deduzir das fotografias da época e das minhas recordações do que via ao espelho nesse tempo, quando o espelho desempenhava ainda um papel importante para a minha
imagem de oficial, que Axel viu os traços tipicamente anglo-sa-xónicos e ainda intactos
de um jovem loiro e de boa aparência, esforçando-se por envergar as vestes da
experiência, enquanto, no rosto de Axel, Pym verificou imediatamente um
endurecimento, uma vincada definição de traços irreversível. Axel iria conservar aquela fisionomia para o resto da vida. A vida pronunciara o seu veredicto. Tinha o rosto
humano e masculino que merecia. Os contornos mais suaves tinham desaparecido,
imprimindo-lhe uma nova vivacidade e segurança. A linha avançada do cabelo recuara,
consolidando-se na sua nova posição. Madeixas de cor grisalha juntavam-se ao anterior
negro do cabelo, revestindo-se de uma aparência expedita e militar. O bigode de palhaço, as sobrancelhas encurvadas de palhaço, tinham adquirido um humor mais
triste. Mas os olhos escuros e brilhantes que espreitavam por baixo das pálpebras
lânguidas continuavam alegres como sempre, enquanto tudo à volta de Axel p arecia dar
uma profundidade maior à sua inteligência.
Você está com bom aspecto, Sir Magnus! declarou ele, exu berantemente, ainda abraçando-o. Fez-se um tipo rijo, meu Deus.
Devíamos comprar-lhe um cavalo branco e mandá-lo para a índia.
Mas quem é você? exclamou Pym, igualmente excitado.
Onde é que você está? O que é que está aqui a fazer? Talvez eu devesse
prendê-lo, não? Talvez seja eu a prendê-lo a si. Talvez até já o tenha feito. Man
dei-o pôr as mãos no ar, lembra-se? Ouça. Estamos aqui em terra de nin
guém. Podemos prender-nos um ao outro.
Você está preso disse Pym.
Você também disse Axel. Como está Sabina? Óptima respondeu Pym, sorrindo.
Ela não sabe de nada, percebe? Só o que o irmão lhe disse. V006
vai protegê-la?
Prometo que sim disse Pym. ■ r;.;
Fez-se neste ponto uma pequena pausa, durante a qual Axel fing1 tapar os ouvidos com as mãos.
434
1
. Não prometa, Sir Magnus. Por favor, não prometa.
Para quem passara clandestinamente a fronteira, Axel vinha bem
equipado, observou Pym. Não havia o mínimo vestígio de lama nas bo
tas, a roupa estava bem passada a ferro e apresentava-se com um aspec
to cuidado. Soltando Pym, Axel agarrou numa pasta, atirou-a para cima da mesa, extraindo de lá de dentro dois copos e uma garrafa de vodka.
Depois, pepinos de conserva, salsichas e pão negro, como o que costu
mava pedir a Pym que lhe comprasse em Berna. Brindaram gravemen
te, como Axel lhe ensinara a fazer. Tornaram a encher os copos e bebe
ram de novo. Uma bebida para cada um por cada homem. E recordo que no momento em que se separaram, tinham já esvaziado a garrafa,
porque me lembro de Axel a lançar para o lago, para grande indignação
de alguns milhares de galinholas. Mas Pym podia ter bebido um caixo
te inteiro sem que isso o afectasse, tão fortes eram as suas emoções. E
mesmo quando começaram a conversar, Pym semicerrara os olhos ten tando verificar se as coisas continuavam as mesmas que há pouco vira
ao chegar tão semelhante, de um modo misterioso, era por vezes o
celeiro ao sótão de Berna, até ao pormenor do vento suave que zumbia
na clarabóia. E quando ouviu uma vez mais a raposa ao longe, Pym teve
a nítida sensação de que se tratava de Basti a ladrar nas escadas de ma deira, depois de todos terem saído. Só que, como te disse, esses tempos
sentimentais tinham acabado. Magnus matara-os; começava agora a
idade adulta da amizade. , ; :
Ora, é costume dos velhos amigos quando dão de caras um com o outro, Tom, deixarem
para o fim a causa imediata do seu encontro. Lomo prelúdio, preferem resumir o que se passou nos anos que, entretanto, decorreram, o que confere uma certa legitimidade ao
assunto que tem a tratar, seja este qual for. E foi o que fizeram Pym e Axel, mas já tetas
sem dúvida percebido, agora que te familiarizaste com o modo de "Uicionar do espírito
de Pym, que foi ele e não Axel quem conduziu esta Parte da conversa, que mais não
fosse para mostrar a si próprio e a Axel 1ue estava perfeitamente inocente em relação à questão delicada do desaparecimento do amigo. Fez a coisa bem feita. Naquela altura,
Pym erajá um actor experiente.
Sinceramente, Axel, nunca ninguém saiu da minha vida tão abruptamente como você
queixou-se ele, num tom de repreensão jo-COsa, enquanto partia fatias de salpicão,
barrava o pão de manteiga e, de 435
I
s
1
um modo geral, se ocupava com aquilo a que os actores chamam «trabalho». Estava
muito bem metido na cama, era de noite; tínhamos bebido um bocado e tínhamo-nos
despedido. Na manhã seguinte, bati com força na parede e ninguém respondeu. Fui lá abaixo e dei com a pobre Frau O. a chorar perdidamente. «Onde está Axel? Levaram o
nosso Axel! A Fremdenpolizei arrastou-o pelas escadas abaixo, e um dos homens deu
um pontapé a Basti.» Pelo que me contaram, eu devia estará dormir como morto.
Axel sorriu com o seu velho sorriso caloroso.
Se nós ao menos soubéssemos como é que os mortos dormem disse ele.
Organizámos uma espécie de vigília, ficámos por casa com algu
ma esperança de que você voltasse. Herr OUinger fez alguns telefonemas
inúteis que não levaram naturalmente a lado nenhum. Frau O. lem
brou-se de que tinha um irmão num ministério, mas ele também não conseguiu nada. No fim, pensei: «Que diabo, o que é que temos a per
der?», e fui pessoalmente à Fremdenpolizei. Com o passaporte em pu
nho. «Desapareceu um amigo meu. Foram uns homens buscá-lo a casa,
hoje de madrugada, dizendo que vinham daqui. Onde é que ele está?»
Bati na mesa, mas não consegui nada. E depois, dois cavalheiros, bas tante arrepiantes, vestidos com impermeáveis, levaram-me para outra
sala e disseram-me que se eu levantasse mais problemas me acontecia a
mesma coisa.
Foi corajoso da sua parte, Sir Magnus disse Axel. Estendeu a
mão pálida e deu umas leves pancadinhas no ombro de Pym, à laia de agradecimento.
Não, não foi. Nem por isso. Eu tinha sempre para onde ir. Era
inglês e estava em pleno gozo dos meus direitos.
Claro. E conhecia gente na embaixada. Também é verdade.
E eles ajudaram-me. Quer dizer, tentaram. Quando fui falar com eles.
Você fez isso?
Naturalmente. Foi mais tarde, claro. Não logo a seguir. Foi uma
espécie de último recurso. Mas fizeram uma diligência. E depois acabei
por regressar à Langgasse, e honestamente, sabe, enterrámo-lo. Foi nor rível. Frau O. estava no seu quarto, ainda a chorar, tentando escolher
coisas que você tinha lá deixado, mas sem conseguir olhar para el
Também não era muita coisa. A Fremdenpolizei parecia ter levado
maior parte dos seus papéis. Devolvi os seus livros da biblioteca. £•
436
discos que tocava no gramofone. Pendurámos as suas roupas na cave. E depois ficámos
todos a andar por casa de um lado para o outro, como a seguir a um bombardeamento.
«Pensar que podem acontecer destas coisas na Suíça», repetíamos nós. Foi exactamente
como uma morte. Axel riu. Foi simpático da vossa parte terem pelo menos posto luto por
mim. Obrigado, Sir Magnus. E também me organizaram exéquias?
Sem corpo e sem endereço? Frau O. só queria era descobrir um
culpado. Estava convencida de que alguém o tinha denunciado.
Quem é que ela culpava? Todos, àvez. Os vizinhos. Os lojistas. Talvez alguém do Cosmo.
Uma das Marthas.
E quem é que ela acabou por escolher?
Pym escolheu a mais bonita das raparigas, e franziu o sobrolho.
Se bem me lembro, foi uma loira de grandes pernas, que andava a estudar inglês.
Isabella? Isabella denunciar-me ? disse Axel, com ar incrédulo.
Mas ela estava apaixonada por mim, Sir Magnus. Porque é que iria
fazer uma coisa dessas?
Talvez fosse esse o motivo disse Pym, não sem audácia. Ela apareceu alguns dias depois de o terem levado, está a ver? Pergun
tou por si. Contei-lhe o que tinha acontecido. A rapariga pôs-se a gritar
e a chorar e disse que se ia matar. Mas quando contei a Frau O. que ela
tinha aparecido, Frau O. disse imediatamente: «Foi Isabella. Tinha ciú
mes das outras mulheres dele, por isso denunciou-o». E o que é que você achou disso?
Pareceu-me um bocado improvável, mas tudo o resto parecia
'gualmente improvável. Por isso, sim, talvez tenha sido Isabella. Ela real
mente tinha um ar um bocado louco, algumas vezes, se quer que lhe
diga a verdade. Consigo imaginá-la a fazer coisas horríveis por ciúme ~~ num acto impulsivo, percebe? e depois a convencer-se de que não
1Zera coisa nenhuma. É uma espécie de síndrome das pessoas ciumentas, não é?
Axel demorou algum tempo antes de responder. Para um desertor, nas dores de parto de
negociar os termos da sua entrega, mostrava-se ^vulgarmente descontraído, pensou
Pym. Não sei, Sir Magnus. Às vezes, não consigo acompanhar os seus °tes de imaginação.
Tem mais alguma jeoria?
Realmente, não tenho. Pode tef-se passado de tantas maneiras.
437
No silêncio da noite, Axel tornou a encher os copos, com um sorri so rasgado.
Estou a ver que pensou no caso muito mais do que eu con
fessou ele. Fico muito sensibilizado. Axel erguera, entretanto, lan
guidamente, as mãos à maneira eslava. Ouça. Eu estava numa situa
ção ilegal. Era um vagabundo. Sem dinheiro nem documentos. Andava fugido. Por isso, apanharam-me e expulsaram-me. É o que acontece às
pessoas em situação ilegal. Os peixes são apanhados por um anzol na
garganta. Os traidores levam um tiro na nuca. Os emigrantes ilegais são
expulsos para lá da fronteira. Não se escandalize tanto. Já passou. O que
interessa agora saber quem foi? Ao futuro! Ao futuro! disse Pym, e ambos beberam. E a propósito o
que é que aconteceu ao grande livro? perguntou Pym, na secreta
euforia da sua absolvição.
Axel riu.
Avançou muito, SíVMagnus. Quatrocentas páginas de reflexões filosóficas imortais. Imagine a Fremdenpolizti a deslindar tudo aquilo!
Quer dizer que lhe ficaram com o livro? Que o roubaram? É ver
gonhoso!
Talvez eu não fosse muito delicado no que dizia acerca dos cida
dãos suíços. Mas tornou a escrever o livro outra vez?
Nada conseguia deter o riso de Axel: *
Escrever outra vez? Ficava duas vezes pior. O melhor é enterrá-lo
juntamente com Axel H. Ainda tem o Simplicissimusí Não o vendeu?
Claro que não. ' Fez-se uma pausa. Axel sorria para Pym. Pym sorriu na direcção das suas próprias
mãos, e depois ergueu os olhos.
E aqui estamos os dois disse ele. ,- ;J
Poise. ■:■:• :j>:,
Eu sou o tenente Pym e você é o amigo inteligente de Jan. Pois é concordou Axel, ainda a sorrir. .j
Tendo deste modo, na sua própria apreciação, contornado com p rícia o único escolho
que os poderia separar, o predador de infornuÇ ^ que havia em Pym avançava agora
habilmente no sentido da ques pertinente de saber o que se passara com Axel desde o
seu desapareC mento, que caminho percorrera, e assim, por extensão pd° Iíie 438
era o que Pym esperava , que cartas seriam as do seu jogo, e que preço queria receber
em troca delas para escolher os ingleses em vez dos ̂ ericanos, ou mesmo ideia horrível
dos franceses. Nesta tentativa, Pym não deparou de começo com qualquer inibição desagradável por parte de Axel, uma vez que, sem dúvida por deferência para com a
posição de autoridade do amigo, ele parecia conformado com o seu papel passivo. E
Pym não podia deixar de notar que, ao contar a sua história, o seu velho camarada
assumia a humildade familiar das pessoas desalojadas na presença dos superiores. Os
suíços tinham-no posto do outro lado da fronteira com a Alemanha, disse ele e, para maior facilidade de referência, mencionou o posto fronteiriço, para o caso de Pym o
querer verificar. Fora entregue à polícia da Alemanha Ocidental, que, depois de um
espancamento ritual, o entregou aos americanos, os quais voltaram a espancá-lo,
primeiro por ter fugido, depois por ter voltado e, finalmente, é claro, por ser o criminoso
de guerra sangrento que Axel não era, mas cuja identidade adoptara imprudentemente. Os americanos meteram-no na prisão, enquanto instruíam contra ele um novo processo,
convocando novas testemunhas, demasiado assustadas para não o reconhecerem, e
marcaram a data do julgamento, com Axel sempre sem conseguir encontrar alguém que
lhe servisse de testemunha abonatória, ou dissesse que ele era apenas Axel de Carlsbad
e não qualquer monstro nazi. Pior ainda, como os testemunhos restantes pareciam cada vez mais fracos, disse Axel com um sorriso envergonhado, a sua própria confissão
tornava-se cada vez mais importante, por isso começaram a espancá-lo cada vez mais
frequentemente em vista de lha arrancarem. Mas não chegou a haver julgamento. Os
crimes de guerra, Wesmo os fictícios, estavam a passar de moda, por isso um dia os
americanos atiraram-no para outro comboio, entregando-o aos checos, que, Para não ficarem atrás, o espancaram pelo duplo crime de ter sido soldado alemão durante a
guerra e prisioneiro americano depois dela.
Por fim, um dia, desistiram de me bater, e libertaram-me dis-Se Axel, sorrindo e
erguendo as mãos uma vez mais. Devo isso, ao que Parece, ao meu querido e falecido
pai. Lembra-se do grande socialista, 'lue combateu na brigada Thâlmann em Espanha? Claro que sim disse Pym, e ocorreu-lhe, ao observar os gestos
taPidos das mãos de Axel e o brilho dos seus olhos escuros, que ele dei-
^a de parte o alemão que havia nele e adoptara definitivamente a sua
Parte eslava. Tornei-me um aristocrata ■ disse Axel. Na nova
^coslováquia, passei de repente a-ser*S/V Axel. Os velhos socialistas 439
I
tinham gostado muito do meu pai. Os novos tinham sido meus amigos na escola e encontravam-se no aparelho do Partido. «Porque é que estão a espancar, Sir Axel?»,
perguntaram eles aos meus guardas. «Trata-se de uma boa cabeça; parem de lhe bater e
deixem-no sair. Está bem, é verdade que ele lutou do lado de Hitler, mas está
arrependido, e agora vai combater por nós, não é verdade, Axel?» «Claro», disse eu.
«Porque não?», e então mandaram-me para a universidade. E o que é que estudou? perguntou Pym, surpreendido.
Thomas Mann? Nietzsche?
Melhor. Como servir-se do Partido para subir na vida. Como as
cender na União das Juventudes. Como brilhar nas comissões. Como
purgar as faculdades e os estudantes, subir à custa dos amigos e da re putação do pai. Quem pisar e que botas lamber. Onde falar de mais e
onde calar a boca. Talvez devesse ter aprendido isso mais cedo.
Sentindo que se estava a aproximar do nó da questão, Pym pensou se não seria altura de
tomar algumas notas, mas preferiu não interromper a torrente das palavras de Axel.
Houve um tipo que teve a lata de me chamar titista outro dia disse Axel. Desde 49, é o insulto em voga. Pym perguntou-se se
cretamente se seria aquele o motivo de Axel ter atravessado a fronteira.
Sabe o que é que eu fiz?
Oquê? , , ;
Denunciei o tipo. > ; Não! Porquê?
Não sei. Uma coisa má. Não importa o que se diz, o que impor
ta é a quem se diz. Você deve saber disso. Ouvi dizer que se transfor
mou num espião em destaque. Sir Magnus dos Serviços Secretos britâ
nicos. Parabéns. Acha que o cabo Kaufmann lá fora está bem? Não lhe quer levar nada?
Vou ocupar-me dele depois, obrigado.
Registou-se um hiato, enquanto cada um deles a seu modo saboreava o efeito desta
manifestação disciplinar. Fizeram mais um brinde, meneando filosoficamente a cabeça
perante os seus destinos. Mas no íntimo, Pym estava menos à vontade do que deixava transparecer. Tinha a impressão de que havia algo de escorregadio e de subentendido,
oculto nas palavras de Axel.
E em que é que tem trabalhado até estes últimos dias? Per'
guntou ele, esforçando-se por recuperar o seu ascendente. Corno e
que um sargento do quartel-general do Comando da Zona Sul apare ço
ce a passear na zona soviética da Áustria, preparando a sua deserção? Axel estava a
acender outro charuto e, por isso, Pym teve de esperar mu momento pela resposta.
Sargento, não sei. Na minha unidade, só há aristocratas. Tal como você, também eu sou um grande espião, Sir Magnus. É uma in
dústria em expansão nos tempos que correm. Fizemos bem em esco
lher o ramo.
Sentindo uma necessidade súbita de cuidar da sua aparência exterior, Pym alisou o
cabelo, com um gesto pensativo que andava a ensaiar havia algum tempo. Mas mesmo assim tem a intenção de passar para o nosso lado,
isto partindo do princípio que lhe podemos garantir as condições ade
quadas, claro? inquiriu ele, com uma cortesia agressiva.
Axel fez um gesto de desprezo perante uma ideia tão ridícula.
Paguei o meu bilhete, como você. E verdade que o meu país não é perfeito, mas é o meu país. Já desisti de passar fronteiras clandestina
mente. Agora eles vão ter de me aturar.
Pym teve a impressão de que havia ali qualquer inconsistência perigosa.
Então, o que é que está aqui a fazer, se não quer desertar, se me
dá licença que lhe pergunte? Ouvi falar de si. O grande tenente Pym da Div Int e mais recen
temente de Graz. O linguista. O herói. O amante. Fiquei divertidíssi-
mo com a ideia de você me andar a espiar. E eu a si. Era maravilhoso
imaginar que estávamos de novo juntos no nosso velho sótão, separados
apenas por aquela levíssima divisória toque, toque! «Tenho de entrar em contacto com aquele tipo», pensei eu. «Apertar-lhe a mão. Oferecer-
-lhe uma bebida. Talvez sejamos capazes de melhorar o mundo, como
costumávamos fazer nos velhos tempos.»
Estou a ver. Óptimo disse Pym. «Talvez possamos conjugar os nossos esforços. Somos pessoas ra
fáveis. Talvez ele não queira entrar em mais guerras. Talvez eu também
não queira. Talvez estejamos cansados de ser heróis. A gente boa escas
sa», pensei eu. «Quantas pessoas no mundo terão apertado a mão de
Thomas Mann?» Ninguém, a não ser eu disse Pym, com uma explosão sincera
^e riso, e voltaram os dois a brindar.
Devo-lhe tanto, Sir Magnus. Vocêíoi tão generoso. Nunca co
nheci um coração como o seu. Eu gritava consigo, praguejava. E o que
441
é que você fez? Segurou-me a cabeça enquanto eu vomitava. Fez-me chá. Limpou o
vomitado e a minha merda. Foi-me buscar livros, da biblioteca para casa e de casa para
a biblioteca. Passou noites inteiras a ler-me em voz alta. «Tenho uma dívida para com este homem», pensei. «Tenho a dívida de o fazer avançar um ou dois passos na carreira
dele. Devo fazer por ele um gesto que me é doloroso. Se o puder ajudar a conseguir uma
posição influente na vida, coisa rara, já será bom. Será bom para o mundo e bom
também para ele. Náo são muitos os homens de qualidade que conseguem hoje em dia
uma posição de influência. Portanto, vou arranjar um truquezinho para o descobrir. Para lhe apertar a mão. E para lhe dizer: obrigado, Sir Magnus. Para lhe levar um presente
que salde a minha dívida para com ele, ajudando-o na sua carreira», pensei. Porque
gosto muito desse homem, está a ouvir?
Axel não trouxera um chapéu de palha cheio de embrulhos coloridos, mas tirou da pasta
um dossier, que estendeu a Pym por cima da mesa.
Você conseguiu uma façanha, Sir Magnus declarou Axel com
orgulho, enquanto Pym abria o dossier. Tive de suar muito para con
seguir arranjar-lhe isto. Corri muitos riscos. Mas não faz mal. Parece-me
que sempre é melhor do que Grimmelshausen. E se alguma vez eles des cobrirem o que eu fiz, ofereço-lhe a minha cabeça numa bandeja.
Pym fecha os olhos e torna a abri-los, mas a mesma noite continua, no mesmo celeiro.
Sou um sargentozinho checo gordo, que gosta de vodka ex
plica Axel, enquanto Pym continua a virar as folhas do seu presente,
como num sonho. Sou um valente soldado Chevik. Chegámos a ler esse livro? Chamo-me Pavel. Está a ouvir? Pavel.
Claro que lemos esse livro. Era bestial. Isto é autêntico, Axel? Não
é uma brincadeira nem nada?
Acha que o gordo Pavel corria um risco destes para lhe trazer uma brincadeira? Tem
uma mulher que lhe bate, filhos que o detestam, pa' troes russos que o tratam abaixo de cão. Está a ouvir?
Sim, Pym está a ouvir, com metade da sua cabeça. E também esta a ler.
O seu bom amigo Axel H. não existe. Você não se encontrou co&
ele hoje à noite. Em Berna, há muito tempo, é verdade que conheceu
um soldado alemão doente, que andava a escrever um grande livro e qu 442
talvez se chamasse Axel, mas que peso tem um nome? E Axel desapareceu. Um tipo
ruim denunciou-o, e você nunca chegou a perceber o que tinha acontecido. Hoje
encontrou-se com o gordo sargento Pavel dos Serviços de Informações do exército checo, que gosta de alho e de mulheres, e de trair os seus superiores. Fala checo e
alemão, e os russos usam-no como cão de guarda, porque não confiam nos austríacos.
Uma semana anda pelo quartel-general deles, na Neustadt de Viena a fazer de moço de
fretes e de intérprete, na semana seguinte vai gelar os ossos para a fronteira da Zona à
caça de pequenos espiões. Na semana a seguir a essa, regressa à guarnição da Zona Sul da Checoslováquia, para ser maltratado por outros russos. Axel está a dar pancadinhas
no braço de Pym. Está a ver? Tome atenção. Está aqui uma cópia do livro de pré dele.
Olhe bem para aqui, Sir Magnus. Concentre-se. Ele trouxe-lhe a caderneta porque não
espera que acreditem nele, a menos que exiba Un-terlagen. Lembra-se dos Unterlagen.
Documentos? Era o que me faltava em Berna. Fique com isso. Mostre a Membury. Com relutância, Pym levanta os olhos do que está a ler durante o tempo suficiente para
ver o bloco de papel brilhante que Axel tem na mão e lhe mostra. Naquela época, uma
fotocópia era uma coisa séria: eram autênticas fotografias dispostas num bloco de folhas
presas por atacadores. Axel insiste com Pym para pegar naquelas folhas, e consegue que
ele, uma vez mais, se arranque o suficiente aos documentos do dos-«Vrpara examinar a fotografia do portador da caderneta; um homenzinho com ar de porco, mal barbeado, de
olhos inchados e boca de lábio inferior saliente.
Este sou eu, Sir Magnus diz Axel, dando uma palmada bas
tante forte no ombro de Pym, certificando-se de que ele está atento,
exactamente como tinha já o hábito de fazer em Berna. Olhe bem para ele, sim? É um tipo ávido, imundo. Está sempre a expelir gazes,
C0Ça a cabeça e rouba as galinhas do comandante. Mas não gosta que o
seu país esteja ocupado por um punhado de Ivans transpirados, que se
Pavoneiam pelas ruas de Praga e o tratam por checozito fedorento, e
também não gosta de ser despachado para a Áustria de acordo com os ^prichos de um tipo qualquer, para se pôr a bajular uma quantidade
"e cossacos bêbados. Por isso, é também corajoso, está a perceber? É
Urn pequeno cobarde gordo e corajoso.
Pym torna a interromper a sua leitura, desta vez para apresentar uma lueixa de natureza
burocrática, de que piais tarde se virá a envergonhar. Acho excelente que tenha inventado esta figura encantadora,
443
Axel, mas o que é que quer que eu faça com o tipo? argumenta eli num tom ofendido.
Eles estão à espera de que eu lhes apresente desertor e não uma caderneta. Lá em Graz, querem um corpo de cari e osso. E não tenho ninguém para lhes levar, pois não?
Mas que idiota! exclama Axel, fingindo-se exasperado pe]
estupidez de Pym. Seu bebezinho inglês ingénuo! Nunca ouviu fa-
lar em desertores que ficam no seu lugar? Pavel f'um desertor! Deserta,
mas fica onde está. Daqui a três semanas, torna a vir aqui para lhe tra zer mais material. Se você tiver juízo, ele vai desertar assim, não uma,
mas vinte ou cem vezes. É um funcionário de secretaria dos serviços de
informação, um mensageiro, um homem de mão de baixa patente, um
bêbado, um sargento codificador de mensagens e chulo. Não percebe o
que isto significa em termos de informações disponíveis? Vai trazer-lhe um material magnífico uma e outra vez. Os amigos que tem no regi
mento da fronteira ajudam-no a atravessar. Da próxima vez que nos en
contrarmos, você vai ter as perguntas de Viena para ele. Estará assim no
centro de uma indústria fantástica: «Pode-nos arranjar isto, Pavel? O que
é que isto significa, Pavel?» E se for simpático com ele, se vier sozinho, se lhe trouxer um bom presente, talvez ele lhe responda.
E será você? Será com você que virei encontrar-me?
Você virá encontrar-se com Pavel.
E você será Pavel?
Sir Magnus. Ouça. Afastando a pasta que estava entre eles, poisada na mesa, Axel assenta o seu copo ruidosamente junto ao de
Pym, puxa a cadeira para tão perto dele que o seu ombro toca no de Pym
e a sua boca se encontra junto ao ouvido de Pym. Está mesmo com
muita, muita atenção, agora?
Claro que sim. E que me parece que você é tão fantasticamente estúpido que tal
vez seja melhor nem sequer tentar jogar este jogo. Ouça. Pym está a
sorrir, exactamente como fazia quando Axel lhe explicava que ele era um
Trottel por não entender Kant. Aquilo que Axel está hoje a fazer por
si não o vai poder desfazer em toda a sua vida. Estou a arriscar o meu maldito pescoço por sua causa. Como Sabina lhe entregou o irmão dela,
Axel entrega-lhe Axel. Está a perceber? Ou é tão estúpido que não reco
nheça que estou a pôr o meu futuro nas suas mãos?
Não quero que faça isso, Axel. Prefiro devolver-lho.
É tarde de mais. Já roubei os papéis, já vim até aqui, você já viu tudo e sabe do que se trata. A boceta de Pandora não pode ser fechada
I
Ac novo. O seu simpático major Membury, aqueles brilhantes aristocratas da Div Int, nenhum deles teve jamais acesso a informações assim. Está-me a seguir, Pym?
Pym diz que sim e depois que não com a cabeça. Pym franze o sobrolho, sorri e tenta
por todas as formas parecer o guardião valoroso e eXperiente do destino de Axel.
Em contrapartida, você vai ter de me jurar uma coisa. Disse-lhe
há bocado que não devia fazer promessas. Agora digo-lhe que deve. A mim, Axel, você deverá prometer lealdade. Com o sargento Pavel, já o caso é diferente. Você poderá trair
ou inventar o sargento Pavel como e quanto quiser. De qualquer modo, ele não passa de
uma invenção. Mas eu, Axel, este Axel, que aqui está, olhe bem para mim, eu não
existo. Nem para Membury, nem para Sabina, nem mesmo para si próprio. Mesmo
quando você estiver sozinho e aborrecido e precisar de impressionar alguém, de comparar alguém ou de vender alguém, eu não serei parte do seu jogo. Se os seus
colegas o ameaçarem e o torturarem, você deve continuar a negar-me. Se o crucificarem
daqui a cinquenta anos, você será capaz de mentir por mim? Responda.
Pym consegue arranjar tempo para se maravilhar por, depois de ter passado tanto tempo
a negar energicamente a existência de Axel, lhe ter de prometer que a continuaria a negar por mais tempo ainda. E devia ser, sem dúvida, uma coisa muito rara recebermos
assim uma segunda oportunidade de provarmos a nossa lealdade depois de termos
falhado miseravelmente a primeira tentativa.
Sim disse Pym.
Sim, o quê? Sim, guardarei o seu segredo. Vou aferrolhá-lo na minha memó
ria e entrego-lhe a si a chave.
Para sempre. E também o irmão Jan, de Sabina.
Para sempre. Jan também. O que você me deu é toda a ordem de
batalha das forças soviéticas na Checoslováquia diz Pym em transe. ■ Se é que isto é realmente autêntico.
As informações são um pouco antigas, mas vocês, os ingleses, sabem dar valor às
antiguidades. Os vossos mapas de Viena e de Graz são mais velhos do que isto. E não
são tão autênticos. Você gosta de Membury?
Acho que sim. Porquê? Eu também. Você também se injerCssa por peixes? Ajuda-o no
repovoamento do lago?
444
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Às vezes. Sim. ^ Isso é um trabalho importante. Colabore com ele. Ajude-o.
é um mundo terrível, &V Magnus. Alguns peixes felizes torná-lo-ão
lhor.
Eram seis da manhã quando Pym se foi embora. Kaufmann já muito tempo se tinha ido
deitar no jeep. Pym via as botas dele a saírc da parte de trás. Pym e Axel avançaram juntos até à pedra branca, co Axel apoiando-se no braço de Pym, como costumava fazer,
quando dois passeavam junto ao Aare. Quando chegaram à pedra, Axel curvo„, -se e
apanhou uma papoila, estendendo-a a Pym. Depois, apanhou outra para si próprio, mas
após um momento de reflexão, deu-a também a Pym.
Existe um exemplar de mim e um de si, sir Magnus. Nunca mais haverá ninguém como eu nem como você. Você é o guardião da nossa
amizade. Mande o meu afecto a Sabina. Diga-lhe que o sargento Pavel
lhe manda um beijo especial para lhe agradecer a ajuda dela.
io^r
Um homem dispondo de uma fonte altamente apreciada é um hi mem admirado, e bem alimentado, Tom, como Pym veio rapidamente a descobrir nas semanas que se
seguiram. Oficiais Muito Importantes de Viena em visita convidam-no para jantar só
para estarem com ele < para saborearem por interposta pessoa as suas façanhas.
Membury também vai, um César risonho e saltitante travando o desenvolvimento d( seu
António, puxando-lhe a orelha, sonhando com os seus peixes e sor rindo às pessoas erradas. Outros oficiais menos importantes, mas aindt. consideráveis, alteram de um dia
para o outro a opinião que faziam de Pym, e enviam-lhe cartas de adulação, felicitando-
o pelo correio inter-zonas. «Marlene, manda-lhe um beijo e está tristíssima por você ter
sido obrigado a sair de Viena sem se despedir dela. Durante algum tempo, julgou-se que
eu viria a ser o seu comandante, mas o destino decidiu de outro modo. M. e eu esperamos ficar noivos assim que vier a autorização do ministério da Guerra.» Pym
torna-se objecto de culto e conhece--lo é estar no segredo dos deuses: «O trabalho
espantoso que o jovem Py111 tem feito, se eu fizesse a minha vontade, dava-lhe uma
terceira estrela; apesar de ele ainda estar como miliciano». «Devias ter ouvido Londres
ao telefone. Vão enviar o assunto para as instâncias mais altas.» Por ol~ dem de Londres, nada menos, o sargento Pavel recebe o nome de código de Greensleaves e
Pym, um louvor. As voluptuosas intérpretes checa5
446
têm muito orgulho nele, e mostram a sua satisfação de forma refinada. Não me podes contar nunca o que aconteceu, é uma regra
Ordenou-lhe Sabina, mordendo-o até quase o matar como os seus lábios tristes e cheios.
Não vou contar. >,
O amigo de Jan é atraente? É bonito? Como tu? Achas que me
apaixonava por ele à primeira vista? É alto e bonito e muito inteligente.
Esexy também?
Muito sexy.
Homossexual como tu?
Perfeitamente. A descrição agradou a Sabina, enchendo-a de uma satisfação profunda.
És um homem às direitas, Magnus asseverou-lhe ela. Tens
bom gosto, protegendo esse homem, tal como faz o meu irmão.
Chegou o dia aprazado para o sargento Pavel fazer a sua segunda aparição. Como Axel
previra, Viena preparara uma densa colheita de perguntas acerca dos temas abordados, na sequência do primeiro contacto. Pym chegou com as perguntas escritas num bloco
estenográfico. Trouxe também sanduíches de salmão fumado e um excelente Sancerre
de Membury. Levou cigarros, café e chocolates com recheio de hortelã pimenta, e tudo
o mais de que os peritos em gastronomia da Div Int foram capazes de se lembrar para
encher a barriga de um corajoso desertor em território inimigo. Enquanto comiam salmão fumado e bebiam vodka, esclareceram os pontos mais importantes.
Então e o que é que tem para mim desta vez? perguntou Pym
^egremente, quando surgiu uma pausa espontânea na ordem de tra
balhos.
Nada respondeu Axel, tranquilamente, servindo-se de mais i- Vamos deixá-los passar agora um bocado de fome. Ficam com
mais apetite para a próxima.
" Pavel está com uma crise de consciência comunicou Pym a Membury no dia seguinte,
seguindo à risca as instruções de Axel. ^tá a ter problemas com a mulher e a filha vai
para a cama com o estúpido de um oficial russo, sempre que Pavel é enviado para a Áustria. Eu esolvi não o pressionar. Disse-lhe que estávamos aqui e que ele podia
c°nfiar em nós, porque não queríamos aumentar-lhe os problemas. reio que a longo
prazo ele nos vai ficar grato por isto. Mas coloquei-
447
-lhe as nossas perguntas sobre os blindados concentrados a leste de ] ga, e as respostas
dele foram importantes.
Estava presente um coronel de Viena em visita.
O que é que ele disse? perguntou o coronel, seguindo atentl
mente as palavras de Pym. Ele diz que lhe parece estarem lá a guardar alguma coisa.
E faz alguma ideia do que seja?
Armamento. Talvez rockets.
- Mantenha-se em contacto com ele aconselhou o coronel, e Membury soprou,
esvaziando as bochechas, com o ar do pai orgulhoso em que, entretanto, se tornara. No terceiro encontro, a fonte Greensleaves resolveu o mistério dos blindados
concentrados, oferecendo adicionalmente uma estimativa do total do potencial aéreo dos
soviéticos na Checoslováquia, datada do mês de Novembro anterior. Ou quase do total.
Em todo o caso, Viena ficou estupefacta, e Londres autorizou o pagamento de duas
pequenas barras de ouro, sob a condição de o contraste britânico ser eliminado do metal, para a operação poder ser negada mais tarde. O sargento Pavel foi deste modo
caracterizado como um homem ambicioso, o que fez com que toda a gente se sentisse
melhor. Durante vários meses, Pym andou para trás e para diante entre Axel e
Membury, como um mordomo que trabalhasse para dois patrões. Membury perguntava
a si próprio se não deveria encontrar-se pessoalmente com Greensleaves. Viena parecia achar boa ideia. Pym intercedeu por ele, mas regressou com a triste notícia de que o
homem só negociaria com Pym. Membury resignou--se. Estava-se na época de
reprodução das trutas. Viena convocou Pym e banqueteou-o. Comodoros do ar e gente
da marinha, coronéis, rivalizaram, tentando fazer valer cada um os seus direitos sobre
Pym. Mas, na realidade, era Axel o seu autêntico proprietário e firma-mãe. Sir Magnus murmurou Axel. Aconteceu uma coisa terrí
vel. O seu sorriso perdera a vivacidade. Os olhos pareciam toldados
e mostravam vincos pesados à volta. Pym trouxera um sem número de
acepipes, mas Axel recusou-os globalmente. - Você tem de me ajudar,
Sir Magnus disse ele, lançando olhares assustados na direcção da p°r' ta do celeiro. Você é a minha única esperança. Ajude-me, por amo
de Deus. Sabe o que é que eles fazem a pessoas como eu? Não olhe p
mim dessa maneira! Veja se tem alguma ideia, para variar! E a sua vez.
Neste momento, estou ainda no celeiro, Tom. Vivi lá estes trinta e tal anos. O tecto estucado de miss Dubber desapareceu, deixando à vista as velhas traves e os morcegos
pendurados de cabeça para baixo no forro do telhado. Estou aqui sentado, e sinto o
cheiro do charuto de Axel, vejo as covas dos seus olhos escuros à luz do candeeiro,
enquanto ele murmura o nome de Pym, como o inválido que fora outrora: arranja-me
música, arranja-me livros de arte, vai-me buscar pão, vai-me buscar segredos. Mas, na sua voz não há auto-piedade, nem súplica, nem arrependimento. Axel nunca foi desse
género. Exige. É verdade que às vezes a sua voz se torna mais branda. Mas nunca deixa
de ter força. É senhor de si próprio, como sempre. É Axel, é ele o credor. Passou
clandestinamente fronteiras, foi espancado. De mim, a meu próprio respeito, não penso
nada, nem agora nem naquela altura. Estão a prender os meus amigos por lá, está a ouvir? Dois do nos
so grupo foram arrancados da cama ontem de manhã, em Praga. Outro
desapareceu a caminho do trabalho. Tive de lhes contar o que se passa
connosco. Era a única maneira.
O alcance desta declaração leva algum tempo a penetrar no espírito preocupado de Pym. Mesmo então, a sua voz continua incerta:
O que se passa connosco? Comigo? O que é que lhes disse? A
quem, Axel?
Não dei pormenores. Falei apenas de um modo geral. Não disse
nada de mal. Não lhes dei o seu nome. Está tudo bem, só um bocadi nho mais complicado. E exige mais atenção. Fui mais hábil do que os
outros tipos que eles apanharam. Afinal de contas, pode acabar por até
ser melhor assim.
Mas o que é que lhes disse de nósi
Nada. Ouça. Para mim, é diferente. Os outros trabalham em fá- bticas, nas universidades, não têm porta das traseiras por onde sair
nurna emergência. Quando são torturados, contam a verdade, e a ver
dade mata-os. Mas eu sou um grande espião, tenho uma posição for-
e> como você. Digo-lhes: «É claro que atravesso a fronteira, faz parte
0 rneu trabalho. Recolho informações, não se esqueçam...». Mostro- ttie indignado, peço para falar com o meu chefe. O meu chefe não é
au úpo. Não é cem por cento mau, não vai talvez além dos sessenta
P°r cento de maldade. Mas também odeia os Ivans. «Estou a criar um
^aidor britânico», digo-lhe eu. «É caça grossa. Um oficial do exército.
°nservei isto secreto mesmo em relação a si, por causa dos muitos ti- stas da nossa organização. Livre-me cia polícia secreta e vamos parti-
449
ruas^r
lhar os dois as informações que ele nos der, quando eu o espremer» Naquela altura, Pym
já desistira de dizer fosse o que fosse. Não se dá sequer ao trabalho de perguntar o que é
que o chefe vai responder ou até que ponto a vida real de Axel será comparável à vida
fictícia do sargento Pavel. Pym tem células a morrer por todo o corpo, no cérebro, entre as virilhas, na medula dos ossos. Os pensamentos apaixonados que consagrava a Sabina
são agora tão antigos como as recordações da infância. Existe apenas Pym, Axel, e o
mundo presa da catástrofe. Pym transforma-se num velho à medida que vai ouvindo.
Abate-se sobre ele a ignorância dos séculos.
Ele diz que eu tenho de lhe levar provas diz Axel pela segun da vez.
Provas? murmura Pym. Que tipo de provas? Provas? Não
estou a perceber.
Informações. Axel esfrega o indicador e o polegar, exactamente
como um dia fizera também E. Weber. Material. O pagamento. Qualquer coisa que um traidor inglês, como você, me pudesse dar sob
chantagem. Não é preciso serem os segredos da bomba atómica, mas tem
de ser uma coisa boa. Suficientemente boa, para ele se calar. Nada de
ferro velho, percebe? Ele também tem chefes. Axel sorri, um sorriso
que ainda hoje não gosto de recordar. Há sempre um tipo situado um grau acima, não é, SzVMagnus? Mesmo quando pensamos que che
gámos ao topo. E depois, quando chegamos ao topo, lá continuam eles,
abaixo de nós, agarrados às nossas botas. É assim que as coisas funcionam
num sistema como o nosso. O chefe disse-me: «Nada de coisas forjadas.
Seja o que for, precisa de valer a pena. Assim, tudo se poderá arranjar». Vai ter de roubar alguma coisa para mim, sir Magnus. Se tem estima
pela minha liberdade, arranje-me uma história maravilhosa qualquer.
Você está com o ar de quem anda a ver coisas do outro mundo
diz o cabo Kaufmann, quando Pym regressa zojeep.
É o meu estômago respondeu Pym. Mas, durante a viagem de volta até Graz, começou a sentir-se melhor. A vida é dever,
pensou ele. Trata-se apenas de saber que credor exige mais alto o que lhe é devido. A
vida tem de ser paga. A vida é fazer -se o que tem de ser feito, mesmo que se morra por
causa disso.
Havia uma meia dúzia de Pyms reconstruídos a vaguear pelas■ --da Graz naquela noite, Tom, e eu já não preciso de me envergonhar
nenhum deles, e poderia abraçá-los a todos com a maior felicidade, como filhos há
muito perdidos que tivessem saldado já a sua dívida para com a sociedade, regressando
a casa, e batendo agora à porta de miss Dubber para me dizerem: «Sou eu, pai». Julgo que não deve ter havido nenhuma noite na vida de Pym em que ele tenha pensado
menos em si próprio e mais nas suas obrigações para com os outros do que naquelas
horas durante as quais andava a patrulhar o seu reino na cidade, por entre as sombras
das glórias decadentes dos Habsburgos, detendo--se agora diante dos portões frondosos
das amplas instalações conjugais de Membury, depois à porta do bloco de apartamentos desengraça-do de Sabina, enquanto fazia os seus planos e enviava a um e a outra
promessas tranquilizadoras. Não se preocupe com nada, dizia Pym a Membury no seu
íntimo. O meu coronel não vai sofrer nenhuma humilhação, o seu lago vai continuar
povoado e o seu posto permanecerá seguro por todo o tempo que quiser enfeitá-lo. Os
Grandes da Terra continuarão a respeitá-lo como o génio que presidiu à operação Greensleaves. Os teus segredos estão nas minhas mãos, murmurou a seguir para a janela
sem luz de Sabina. O teu trabalho para os ingleses, o teu heróico irmão Jan, a tua
opinião exaltada acerca do teu amante Pym, tudo isso está em segurança. Acarinharei
esses teus segredos como acaricio o teu corpo suave e quente, quando dorme no seu
sono agitado. Pym não teve de tomar decisões, porque não tinha dúvidas. O cruzado solitário
identificara a sua missão, o espião hábil arranjar-se-ia quanto aos pormenores, o
companheiro fiel nunca mais trairia o seu amigo em troca da ilusão de servir os
interesses nacionais. As suas afeições, os seus deveres e as suas fidelidades nunca
haviam sido tão claros para Pym. Axel, estou em dívida para consigo. Juntos, conseguiremos mudar o mundo. Hei-de levar-lhe presentes, como os que você me
trouxe- Não voltarei a fazer com que o metam num campo de prisioneiros. * chegava a
pensar noutras alternativas, era apenas para as rejeitar como desastrosas. Ao longo dos
últimos meses, o inventivo Pym fizera do sargento Pavel uma figura causadora da
alegria e da admiração dos corredores secretos de Graz, Viena e Whitehall. Nas suas mãos hábeis, as herdeiras, as mulheres e os ímpetos de coragem quixotescos do pequeno
"erói colérico haviam-se tornado legendários. Mesmo que Pym estives-fe disposto a
trair a confiança de Axel pela segunda vez, como poderia r ter com Membury e dizer:
«Sir. O sargento Pavel não existe. Greens-eaves é o meu amigo Axel, que exige que
Jheentreguemos autênticos se-Bd britânicos». Os olhos amáveis de Membury arregalar-se-iam, o
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seu rosto inocente ensombrar-se-ia com os traços da tristeza e do deses-pêro. A sua
confiança em Pym ficaria murcha, e o mesmo aconteceria à sua própria reputação: Membury para a forca. Fora com Membury Membury, mulher e filhas para casa. Pym
provocaria uma catástrofe ainda pior se tentasse um compromisso atribuindo o dilema
de Axel ao fictício sargento Pavel. Pym encenara igualmente essa alternativa na sua
imaginação: «Sir. As passagens clandestinas de fronteira do sargento Pavel foram
detectadas. Ele disse à polícia secreta checa que tinha um contacto com um agente britânico. Por isso, temos de lhe dar algum material para alimentarmos a história dele».
A Div Int não tinha competência para dispor de agentes duplos. Graz ainda menos. Já
um desertor que permanecia em território inimigo significava esticar as coisas. Só a
insistência de Greensleaves em ser pessoalmente contactado por Pym evitara que
Londres tomasse em mão o caso há muito tempo, e falava-se muito e seriamente acerca de quem se encarregaria de Pavel quando terminasse o serviço militar de Pym. Colocar
Axel ou o sargento Pavel na posição de agente duplo seria desencadear uma série de
consequências imediatas, todas elas terríveis: Membury perderia Greensleaves em favor
de Londres; o sucessor de Pym descobriria o embuste em menos de cinco minutos; Axel
seria traído uma vez mais e perderia todas as suas hipóteses de sobrevivência; os Memburys seriam destacados para a Sibéria.
Não, Tom. Enquanto Pym passava aquela noite momentosa a vaguear sob um dossel de
ideais inatingíveis, evitando a cama de Sabina na sua pureza de alma, não tinha de se
atormentar no confronto de grandes opções, não tinha de examinar o seu espírito imortal
numa antecipação daquilo a que os puristas poderiam chamar um acto de traição. Não considerava que o dia seguinte era a data marcada para a sua irrevogável execução o dia
em que Pym ia perder toda a esperança, e nascer o teu pai. Via nascer o sol, abrindo um
dia de harmonia e beleza. Um dia em que um passado mau poderia ser corrigido, em
que o destino de todas as pessoas que dele dependiam estava à mercê da sua atenção,
em que os eleitores da sua circunscrição secreta cairiam de joelho e agradeceriam a Pym e ao Criador o facto de ele ter nascido para u1 fazer justiça. Pym resplandecia, exultava.
Deixava que a sua boa von de e a sua confiança em si próprio o enchessem de coragem.
O cruza secreto colocara a sua espada sobre o altar e estava a transmitir men eens
fraternas ao Deus dos Exércitos.
Axel, passe-se para o lado de cá! implorara-lhe Pym. u
%e Já o sargento Pavel. Poderá passar a ser um desertor como tantos outros. Eu olharei
por si. Arranjo-lhe tudo aquilo de que precisar. Pro-
meto
Mas Axel era tão destemido como resoluto. Não me aconselhe a trair os meus amigos, Sir Magnus. Só eu é que os posso salvar.
Não lhe disse já que me tinha deixado de atravessar fronteiras? Se me ajudar, podemos
obter uma grande vitória. Venha aqui ter na quarta-feira à mesma hora.
De pasta na mão, Pym avança rapidamente em direcção ao andar de cima da vivenda,
abre a porta do escritório. Sou um homem madrugador, toda a gente sabe. Pym levanta-se cedo, Pym é diligente, Pym já fez o trabalho de um dia inteiro enquanto a maior parte
de nós está ainda a fazer a barba. O escritório de Membury comunica com o seu através
de um par monumental de portas. Pym abre-as e entra. Ao fazê-lo, a sua sensação de
bem-estar torna-se insuportável: uma mistura estonteante de resolução, de acerto e de
alívio. Sou um eleito. A secretária metálica de Membury não é como as secretárias da Reichskanzelei. A parte de trás é metálica e velha, e o canivete suíço de Pym conhece
bem os quatro parafusos. Na terceira gaveta a contar de cima do lado esquerdo,
Membury guarda os seus materiais de consulta mais importantes: Ordens em vigor da
Unidade, Peixes de Todo o Mundo, Lista Classificada, Lagos e Rios da Áustria,
Formação de Batalha dos Serviços de Informação Militares de Londres, uma lista dos principais aquários e um mapa da Div Int de Viena, com a localização e as funções das
várias unidades, mas sem nomes. Pym enfia uma das mãos na gaveta. Não se trata de
uma invasão. Nem de uma retribuição. Ninguém está a gravar iniciais nas almo-radas da
parede. Estou aqui para administrar uma carícia. Pastas. Dos-nn. Instruções de
comunicação com a menção Ultra-Secreto Atenção e que Pym nunca vira. Estou aqui para contrair um empréstimo, e não P^a roubar. Abrindo a pasta, tira de lá de dentro
uma máquina foto-%*íxiaAgfa do Exército, com uma corrente de um pé de
comprimento Presa junto às lentes. É a mesma máquina que utiliza quando Axel lhe raz
material autêntico e Pym tem de o fotografar no momento. Regu-"a e coloca-a em cima
da secretária. Foi para isto que eu nasci, pensa e> não pela primeira vez. No principio, era o espião. ut um dossier com a palavra «Vertebrados» riscada na capa, escolhe
ormação de batalha da Div Int. Axehjá a conhece de qualquer ma-
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453
neira, pensa Pym. No entanto, há no início e no fim carimbos «ultra» secreto» que causam uma impressão satisfatória, e um carimbo de distribuição a garantir a
autenticidade. Se tem estima pela minha liberdade, arranje-me uma história maravilhosa
qualquer. E Pym fotografa a formação de batalha uma vez e, a seguir, outra,
experimentando uma sensação de anticlímax. Esta película tem trinta e seis fotografias.
Para que hei-de ser sovina e dar-lhe só duas? Tenho agora ocasião de fazer alguma coisa pelo nosso entendimento mútuo. Axel merece melhor. Pym lembra-se de uma
apreciação recente do ministério da Guerra sobre a ameaça soviética. Se engolirem isso,
engolem tudo o que eu lhes der. Está na gaveta de cima, ao lado do Manual dos
Mamíferos Marinhos, e começa por um resumo das conclusões. Pym fotografa-o página
por página, gastando nisso toda a película. Axel, consegui! Estamos livres! Corrigimos o mundo, exactamente como você dizia! Somos homens da terra de ninguém, fundámos
o nosso próprio país, com a população de dois habitantes!
Prometa que nunca mais me torna a trazer uma coisa tão boa,
Sir Magnus disse Axel, no encontro seguinte. Se o fizer, eles pro
movem-me a general, e não poderemos continuar a encontrar-nos. Querido Pai
escreveu Pym, para o hotel Magestic, Karachi, onde Rick estava
a viver, aparentemente por motivos de saúde obrigado pelas tuas duas
cartas. Fico muito feliz por saber que te estas a dar bem com o Aga Khan.
Creio que estou afazer um bom trabalho por aqui e que te podes orgulhar demim. ; . „
I
I
XIV
Quando Mary Pym, aos dezasseis anos, decidiu que era tempo de perder a virgindade,
fingiu que estava com uma crise grave de melancolia adolescente e conseguiu que a
directora a mandasse para a cama, em vez de para o jogo de hóquei. E lá ficou na ala
das doentes a olhar para a parede até que soou a campainha das três horas, informando-a de que a directora estaria fora até às cinco. Esperou exactamente mais cinco minutos,
contados pelo seu relógio, que fora uma prenda de Crisma; susteve a respiração durante
trinta segundos, o que sempre ajudava a ganhar coragem e, depois, desceu pé ante pé a
escada de pedra das traseiras, passou pelas cozinhas e pela lavandaria, atravessou um
pequeno relvado mal cuidado até chegar a um velho barracão de tijolo onde se guardavam vasos e o ajudante de jardinagem montara uma cama improvisada com
cobertores e sacas velhas. Os resultados foram mais espectaculares do que ela pudera
esperar, mas o que Mary mais tarde saboreava não era tanto o acontecimento em si
como a sua antecipação: 0 estar audaciosamente deitada na cama com a saia enrolada à
volta da cintura, sabendo que nada a faria parar, agora estava decidida; a sensa-Ção de liberdade quando atravessou a fronteira para o país do pecado.
E era essa mesma sensação que ela agora experimentava, sentada Modestamente na fila
do meio da sala de estar excessivamente mobilada de Caroline Lumsden, com as suas
horríveis mesas tailandesas e os seus espalhafatosos quadros chineses, a sua prateleira
cheia de budas fabricados em série, ouvindo Caroline tentando parecer a rainha, gemendo ao longo dos minutos da última reunião da Secção de Viena da '"Sociação das
Esposas de Diplomatas, num luxuoso canto do cisne. É 0 que vou fazer, disse Mary para
consigo, extremamente calma. Se não Or de uma maneira, é de outra. Espreitou para a
janela. No Mercedes ^ugado, do outro lado da rua, Georgie e Fergus estavam sentados,
com ^ cabeças juntas, dois namorados que fingiam examinar uma planta da 455
cidade, enquanto vigiavam a porta da rua e o Rover de Mary, estacili nado no caminho
de acesso do jardim de Caroline. Vou sair pelas seiras. Se resultou naquela altura,
também há-de resultar agora. Chegou-se assim por unanimidade lamentava-se Caroline -
à conclusão de que o relatório dos inspectores do ministério dos Neg
cios Estrangeiros sobre o custo de vida local era, ao mesmo tempo, dií|
torcido e injusto, e de que se devia formar imediatamente uma subco
missão financeira, dirigida, como tenho o gosto de anunciar, por Mn McCormick murmúrios de respeito. Ruth McCormick era mulh
do representante da secção da Economia, um autêntico génio financ
ro. Ninguém mencionou o facto de ela andar a ir para a cama com o adij
do militar holandês. A subcomissão sistematizará todas as nossas e
gências e, depois disso, apresentará uma reclamação por escrito à nossa associação de Londres, para que esta a transmita pelos canais adequa
dos ao chefe dos Serviços de Inspecção em pessoa.
Ruído monótono de aplausos em tom de soprano vindo de catorze pares de mãos
femininas, incluindo as de Mary. Excelente, Caroline, excelente. Numa outra vida, serás
tu o jovem diplomata em ascensão e será a vez de o teu marido ficar em casa a imitar-te. Caroline ocupava-se agora de Vários Outros Assuntos.
Na próxima segunda-feira, vai ter lugar o nosso almoço transa
tlântico semanal no Manzis. Ao meio-dia e meia em ponto, e quatro
centos xelins por cabeça, em dinheiro por favor, incluindo dois copos
de vinho e é favor não chegarem atrasadas, porque foi necessária muita persuasão para convencer Herr Manzi a ceder-nos uma sala reservada.
Pausa. Vá lá, idiota, diz o que tens a dizer, espicaçou-a Mary de si para
si. Caroline não disse. Ainda não. E depois, na sexta-feira, de hoje a
uma semana, Marjory de Weever vai apresentar aqui a sua fascinante
conferência com diapositivos sobre ginástica aeróbica, que ensinou com muito sucesso a uma classe com pessoas de todos os níveis no Sudão,
onde o marido ocupava o segundo lugar na embaixada. Não é verdade,
Marjory?
Bem, na realidade era ele que se ocupava de tudo rosnou Ma*"
jory, na fila da frente. O embaixador só lá esteve de passagem, treS meses em catorze. Não é que Brian tenha recebido mais por isso, m3S
também não tem importância.
Por amor de Deus!, pensou Mary, furiosa. Agora!, Mas esquecera-se de que o maldito
marido de Penny Sharlow recebera uma medalha.
E tenho a certeza de que todas nós gostaríamos de felicitar Peru1;
pelo apoio fantástico que tem dado a James ao longo dos anos e sem o qual, aposto, ele
não teria conseguido coisíssima nenhuma.
Aparentemente, aquilo era uma piada, porque se ouviu um riso histérico de um número
reduzido de vozes, riso que Caroline fez parar com um olhar lúgubre dirigido para o meio da sala. Depois, pôs a sua voz de Luto Oficial.
E Mary, minha querida, disseste que não te importavas que eu me referisse a isso Mary
apressou-se a olhar para o regaço , estou certa de que todas elas gostariam que eu te
dissesse como lamentamos o falecimento do teu sogro. Sabemos que Magnus ficou
muito afectado e esperamos que ele recupere depressa, voltando para junto de nós, com a sua boa disposição habitual, que todas achamos tão refrescante.
Murmúrios de simpatia. Mary segredou «obrigado», inclinando-se levemente. Sentiu a
pausa ansiosa, durante a qual todas esperaram que a sua cabeça tornasse a erguer-se,
mas isso não aconteceu. Mary começou a tremer e ficou impressionada ao ver lágrimas
autênticas escorreram-lhe para as mãos unidas. Engasgou-se um pouco e, na sua cegueira voluntária, ouviu a alegre Mrs. Simpson, mulher do guarda da chancelaria,
dizer: «Venha para aqui, minha querida», enquanto rodeava com um braço enorme os
ombros de Mary. Mary voltou a engasgar--se, empurrou Mrs. Simpson sem muita
convicção e esforçou-se por se pôr em pé, lavada em lágrimas: lágrimas por Tom,
lágrimas por Magnus, lágrimas por ter sido desflorada no barracão, e aposto que estou grávida. Deixou que Mrs. Simpson lhe segurasse o braço, abanou a cabeça e gaguejou:
«Estou bem». Ao chegar ao hall, descobriu que Caroline Lumsden a seguira. «Não,
obrigada... A sério que não me quero deitar... Prefiro dar um passeio a pé... Podia-me
dar o casaco, por favor?... Azul com uma gola de pele velha... Preferia ir sozinha, se não
se importa É muito simpático da sua parte... Oh, meu Deus, vou desatar a chorar outra vez...»
Chegada ao grande jardim das traseiras dos Lumsden, Mary avan-
Çou ainda curvada pelo caminho, até ao ponto onde ele se tornava invi
sível atrás das árvores. Depois, avançou mais rapidamente. O treino,
pensou ela, com gratidão ao abrir o portão das traseiras: não há nada como o treino para recuperar o sangue frio. Dirigiu-se à pressa para a pa-
ragem de autocarro. Passava um de catorze em catorze minutos. Mary
«tudara o horário. .
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Foi muito simpático da parte deles exclamou Mrs. MemburjH
extremamente satisfeita, enquanto enchia o copo de Brotherhood com
o seu vinho de sabugueiro caseiro. Ah, acho isso inteligente e ajuiza
do. Nunca pensei que o ministério da Guerra tivesse metade da com
preensão necessária para uma coisa dessas. E tu, Harrison? Ele não é sur do explicou ela a Brotherhood, enquanto os dois esperavam. Só
que pensa devagar. E tu, querido?
Harrison Membury regressara do regato que ficava ao fundo do jardim, onde estivera a
cortar juncos, e ainda trazia as botas de borracha calçadas. Era corpulento e saltitante,
conservando aos setenta anos um ar de rapaz, faces rosadas e imaturas, cabelo branco e sedoso. Sentou-se na outra extremidade da mesa, comendo o bolo caseiro e servindo-se
do chá de um grande bule de barro, com a palavra «Avô» escrita no bojo. Brotherhood
verificou que ele se deslocava a um ritmo que era exactamente metade do da mulher,
falando a metade do volume da voz dela.
Oh, não sei disse Harrison, quando já toda a gente se esque cera da pergunta. Havia alguns tipos bastante espertos que por lá
andavam. Aqui e ali.
Faça-lhe perguntas acerca de peixes, que a resposta será muito
mais rápida disse Mrs. Membury, deslocando-se ruidosamente até
ao canto da sala, e tirando alguns álbuns de entre as obras completas de Evelyn Waugh. Como estão as trutas, Harrison?
Oh, estão óptimas disse Membury, com um sorriso.
Não temos autorização para as comer, sabe? Só o lúcio é que pode
fazê-lo. Acha que tem interesse ver as minhas fotografias? Quer dizer, vai
ser uma história ilustrada? Não me diga. Isso duplica os custos. Era o que dizia The Observar. As ilustrações duplicam o custo de um livro. Mas a
verdade é que eu acho que duplicam também os atractivos. Especial
mente, no caso das biografias. Não suporto biografias, se não poder ver
as pessoas que estão a ser biografadas. Harrison consegue. Ele é um ce
rebral. Eu sou mais visual. E você? Acho que sou mais no seu género disse Brodierhood com um sorriso, desempenhando o
seu papel enfadonho.
A aldeia era um desses povoados georgianos semiurbanizados dos arredores de Bath,
onde os católicos ingleses, gozando de certa posição social, decidiram reunir-se no seu
desterro. A casa ficava do lado do campo, e era uma pequenina mansão de adobe, com um jardim exíguo e inclinado, descendo depois até um trecho de ribeira, e eles estavam
sentados na cozinha cheia de móveis, em cadeiras de costas redondas, ro-
deados de louças e de peças soltas vagamente votivas: um azulejo rachado da virgem de
Lourdes; uma cruz de entrançado a desintegrar-se, entalada atrás do fogão; um mobile de papel para crianças figurando anjos, a girar na corrente de ar; uma fotografia de
Ronald Knox. Durante a conversa, netos sujíssimos entravam e ficavam a olhar para
eles, até que as suas mães de elevada estatura os vinham buscar. Era um lar em
permanente e benevolente desordem, impregnado pela emoção não excessivamente
intensa da perseguição religiosa. O sol branco da manhã espreitava por entre a neblina de Badi. Ouvia-se o som de uma água lenta a pingar nas goteiras.
Você é um universitário? perguntou subitamente Membury,
do outro lado da mesa.
Querido, eu já te disse. É um historiador.
Bom, sou mais um militar reformado, segundo penso, sir, para lhe dizer a verdade respondeu Brotherhood. Foi uma sorte ter
conseguido este trabalho. Se isto não tivesse aparecido, já eu estaria na
prateleira.
Então, e quando é que o livro vai sair? perguntou com entu
siasmo Mrs. Membury, como se toda a gente ouvisse mal. Tenho de sa ber com meses de antecedência para poder dar o nome a Mrs. Lanyon.
Tristram não estejas a puxar. Temos cá uma biblioteca itinerante, sabe?
Magda, minha querida, toma conta do Tristram, ele está a tentar arran
car-me uma página da História. Eles vêm cá uma vez por semana, e são
uma verdadeira dádiva celeste, contanto que não nos importemos de es perar. Olhe, esta é a vivenda de Harrison, quando tinha o seu gabinete
oficial e todos lá trabalhavam para ele. O corpo central é de 1680, e a
ala de construção recente. Bom, quer dizer, do século XK. Isto é o lago
dele. Povoou-o inteiramente a partir do nada. A Gestapo lançara gra
nadas lá para dentro e tinha dado cabo do peixe todo. Era mesmo o gé nero de coisa que eles faziam. Uns porcos.
Segundo o que me dizem os meus superiores, isto começará por
ser um trabalho para consulta interna disse Brotherhood. E de
pois vão publicar uma versão resumida para o mercado.
Você não é o M.R.D. Foot, pois não? disse Mrs. Membury. Não, não pode ser. Você chama-se Marlow. Bom, de qualquer modo,
acho que se trata de uma bela inspiração. É muito boa ideia falarem com ^ pessoas antes
delas desaparecerem.
O que é que você fazia quando estava no activo? perguntou
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Digamos que fiz um pouco de tudo sugeriu Brotherhood
com um acanhamento propositado, enquanto punha os seus óculos de
leitura.
Cá está ele disse Mrs. Membury, espetando um pequenino dedo numa fotografia de grupo. Ali. É este o jovem por quem você
estava a perguntar. Magnus. Foi ele o autor de todo o melhor trabalho.
Este é o velho Rittmeister, que era um amor. Harrison, como é que se
chamava o criado da messe, aquele que estava para ser noviço, mas aca
bou por desistir por falta de forças? Esqueci-me disse Membury.
E quem são as raparigas? perguntou Brotherhood, sorrindo.
Oh, meu Deus, só arranjavam sarilhos, elas. Cada uma mais lou
ca do que a outra, e quando não ficavam grávidas, fugiam com aman
tes indesejáveis, ou cortavam os pulsos. Eu podia ter aberto uma clíni ca como Marie Stopes a funcionar para elas a tempo inteiro, se nesse
tempo já fôssemos partidários do planeamento familiar. Agora estamos
a meio caminho. As nossas filhas tomam a pílula, mas ainda engravidam
por engano.
Eram as nossas intérpretes disse Membury, enchendo o ca chimbo.
Houve alguma intérprete envolvida na operação Greensleaves?
perguntou Brotherhood.
Não foi preciso disse Membury. O tipo falava alemão. Pym tratava de tudo sozinho.
Completamente sozinho? Sim, sozinho. Foi Greensleaves quem insistiu nesse ponto. Por
que é que não vai falar com Pym?
Mas quem é que o substituiu quando Pym se foi embora?
Fui eu disse Membury, com orgulho, sacudindo o tabaco mo
lhado da parte da frente da sua camisola sujíssima. Não há nada como um bloco de notas de capa vermelha para introduzir ordem numa
conversa desconexa. Tendo aberto um desses blocos, com ar decidido, por entre os
restos de várias refeições e agitado o braço direito como p relúdio à sua adopção daquilo
a que chamava uma atitude um pouco mais oficial, Brotherhood tirou uma caneta do
bolso com tanta cerimónia como um polícia de aldeia no local da ocorrência. Os netos tinham sido afastados. De uma sala do primeiro andar, vinham os sons de alguém que
tentava tocar música religiosa num xi-lofone.
Talvez seja melhor começar por tomar nota de tudo isso, e depois voltamos aos
pormenores disse Brotlierhood. Excelente ideia disse Mrs. Membury severamente. Harri
son, meu querido, escuta.
Como já vos disse, infelizmente, a maior parte do material sobre
Greensleaves foi destruído, mal arrumado, ou perdeu-se, o que faz pe
sar uma responsabilidade ainda maior sobre os ombros das testemunhas que restam. Quer dizer, você. Vamos lá?
Por uns momentos, após esta recomendação desagradável, Membury pareceu recuperar
a sua lucidez, enquanto recordava com precisão surpreendente as datas e os factos
relativos aos principais êxitos de Greensleaves, e o papel desempenhado pelo tenente
Magnus Pym do Serviço de Informações. Brotherhood ia tomando diligentemente as suas notas, e fazia poucas perguntas, interrompendo-se apenas para lamber o polegar e
virar as páginas do bloco.
Harrison, meu querido, estás outra vez a ser muito lento co
mentava uma vez por outra Mrs. Membury. Marlow não tem o dia
todo. E depois: Marlow tem de voltar para Londres, meu queri do; ele não é um dos teus peixes.
Mas Membury continuou a nadar ao seu próprio ritmo, descrevendo ora a localização
das forças militares soviéticas no sul da Checoslováquia, ora as formas processuais
laboriosas destinadas a obter dos cofres de guerra de Whitehall as pequenas barras de
ouro que Greensleaves exigia como remuneração, ora as lutas que travara com a Div Int para evitar que o seu agente preferido fosse sobrecarregado sem critério. E Brotherhood,
apesar do pequeno gravador que trazia de novo aninhado no bolso, no lugar do porta-
moedas, continuou a anotar tudo aquilo, só para eles verem, pondo as datas na coluna da
esquerda e as informações a meio da folha.
Greensleaves nunca teve outro nome de código, pois não? per guntou Brotherhood como quem não quer a coisa, enquanto conti
nuava a rabiscar. Às vezes, as fontes de informação são rebaptizadas
Por razões de segurança ou porque o anterior nome de código foi iden
tificado pelo inimigo.
Pensa, Harrison pressionou Mrs. Membury. Membury tirou o cachimbo da boca.
Fonte Wentworth? sugeriu Brotherhood, virando uma pá
gina.
Membury fez com a cabeça um sínal negativo.
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Também havia uma fonte... Brotherhood gaguejou ligeira
mente, como se o nome lhe escapasse. Serena, era isso. Não, Sabina
Fonte Sabina, trabalhando com base em Viena. Ou seria Graz? Talvez
fosse Graz antes do seu tempo, sir. Aliás, era uma coisa habitual baralhar com o sexo os nomes de código. Segundo me disseram, é um truque de
desinformação bastante generalizado.
Sabina? exclamou Mrs. Membury. - Não era a nossa Sabina?
Ele está a falar de uma fonte, minha querida disse Membury
com firmeza, intervindo com uma prontidão superior à habitual. A nossa Sabina era uma intérprete, e não uma agente. São coisas muito
diferentes.
Bom, a nossa Sabina era uma perfeita...
Mas não era uma fonte disse Membury com decisão. Vá
lá, deixa-te de tagarelices. Poppy. Desculpe? disse Brotherhood.
Magnus queria dar-lhe o nome de Poppy. Foi o que fizemos du
rante algum tempo. Fonte Poppy. Por mim, gostava bastante do nome.
Depois, veio o Dia da Memória e uma besta qualquer de Londres des
cobriu que Poppy era um nome que desrespeitava os caídos: as papoilas são para os heróis e não para os traidores. É uma daquelas manias ca
racterísticas desses tipos. E se calhar o homem foi promovido por cau
sa da ideia. Uma autêntica palhaçada. Eu fiquei furioso e Magnus tam
bém. «Poppy é um herói», disse ele. Gostei de o ouvir dizer aquilo. Era
um tipo fixe. Agora, já temos aqui o esqueleto disse Brotherhood, passan
do os olhos pelas suas notas. Vamos tentar revesti-lo de carne, está
bem? Brotherhood leu os tópicos que escrevera no bloco antes de se
dirigir para a entrevista.
Personalidades; bem, é o ponto de que estamos a tratar. Impor tância ou não dos milicianos nos serviços de informação nos tempos da
paz: eram uma ajuda ou um empecilho? É o ponto de que vamos tratar
a seguir. E esses milicianos, foram para onde, mais tarde: alcançaram po
sições de destaque na carreira que a seguir escolheram? Bom, pode ser
que saiba como as coisas se passaram, pode ser que não. Trata-se de um assunto que nos diz mais respeito a nós do que a si, sir.
Bom, a propósito, o que é que acabou por acontecer a Magnus.
perguntou Mrs. Membury. Harrison ficou sempre com mui»
pena por ele nunca nos ter escrito. Bom, e eu também. Nem sequer nos
chegou a dizer se se tinha convertido. Sentíamos que estava muito/"1'
I
to da conversão. Só precisava de um empurrãozinho mais. Durante anos, Harrison
também foi exactamente assim. Foram precisas muitas conversas com o padre D'Arcy para ele ver a luz, não foi, meu querido?
O cachimbo de Membury tinha-se apagado, e ele estava a olhar desconsoladamente para
a chávena vazia.
Nunca gostei do tipo explicou Membury com uma espécie
de remorso embaraçado. Nunca o achei grande coisa. Não sejas tolo, meu querido. Tu adoravas Magnus. Praticamen
te, adoptaste-o. Bem sabes, que foi assim mesmo.
Oh, Magnus era um tipo bestial. O outro tipo. A fonte. O tal
Greensleaves. Achava que ele era um bocado uma fraude, para dizer toda
a verdade. Nunca disse nada, porque não me pareceu conveniente. Com a Div Int e Londres aos saltos de satisfação, porque é que havíamos de
ser nós a queixar-nos?
Que disparate! disse Mrs. Membury, com ar extremamente
decidido. Marlow, não lhe dê ouvidos. Meu querido, estás a ser ex
cessivamente modesto como de costume. Foste tu a mola da operação, sabes isso muito bem. O que Marlow está a escrever é História. E vai fa
lar de ti. Não lhe podes estragar o trabalho, não acha, Marlow? Hoje, é
isso que está na moda: demolição, demolição. Por mim, fico doente com
esse género de coisa. Veja o que fizeram ao pobre capitão Scott na tele
visão. O meu pai conheceu Scott. Era um homem maravilhoso. Membury continuou como se a mulher não tivesse dito nada.
Todos os brigadeiros de Viena, impantes de felicidade. Aplausos
estrondosos do ministério da Guerra. Eu não ia matar a galinha dos ovos
de ouro, uma vez que eles estavam tão contentes, pois não? O jovem
Magnus estava transbordante de alegria. E eu também não quis estra gar-lhe a festa.
E além disso, ele estava a ser catequizado disse Mrs. Membury
com intenção. Harrison combinara que ele conversasse com o padre
Moyniham duas vezes por semana. Além disso, Magnus é que organi
zava a equipa de críquete da guarnição. Além disso, estava a aprender cneco. Não se fazem todas essas coisas num dia.
Ah, isso é interessante. Quero dizer, ele estar a aprender checo,
foi por estar a trabalhar com uma fonte checa, não?
■ Foi porque Sabina decidiu lançar-lhe a mão, a atrevida disse Mrs. Membury, mas
desta vez o marido,interrompeu-a. ■ O material era sempre tão espãmpanante, sempre, de uma ma-
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neira ou de outra disse Membury, imperturbável. Parecia sempre de excelente qualidade
na travessa, mas quando chegava a altura de o mastigarmos, não era nada de especial. Pelo menos, era a minha opinião Membury soltou um risinho de perp lexidade. Era
como tentar comer um lúcio. É só espinhas. Recebíamos um relatório, dávamos-lhe uma
primeira vista de olhos. Caramba, isto é mesmo bom, pensávamos nós. Mas, quando
víamos melhor as coisas, era apenas aborrecido. SirnJ isto é verdade, porque já o
sabemos... Sim, isto é possível, mas não i demos verificá-lo, porque não temos nada sobre essa região. Eu não que-l ria dizer nada, mas penso que os checos estavam talvez
a atacar e a de-l fender ao mesmo tempo. Fiquei sempre com a ideia de que foi por isso'
que Greensleaves não tornou a aparecer depois de Magnus regressar a Inglaterra. Não
tinha a certeza de conseguir enrolar um tipo mais velho. Maldade minha, suponho.
Afinal, não passo de um falhado com a mania dos peixes, não é Hannah? É o que ela me costuma chamar. Um falhado com a mania dos peixes.
A descrição agradara tanto a ambos que os dois ficaram a rir por um momento; por isso,
Brotherhood teve de rir com eles e adiar a sua pergunta até Membury se encontrar em
condições de o ouvir claramente.
Quer dizer que nunca se encontrou com Greensleaves? Ele nun ca apareceu nos encontros? Desculpe, sir disse Brotherhood, con
sultando uma vez mais o seu bloco , não disse agora mesmo que pas
sou a dirigir pessoalmente a fonte Greensleaves, quando Pym saiu de
Graz?
Pois foi. E agora diz que nunca se encontrou com ele, sir?
E é inteiramente verdade. Nunca me encontrei com ele. Dei
xou-me a secar, à espera dele, não foi, Hannah? Ela obrigou-me a vestir
o meu melhor fato, fez embrulhos de todas as estúpidas iguarias espe
ciais de que ele, segundo se dizia, era apreciador e só Deus sabe como essa história começou , mas ele nunca chegou a aparecer.
Provavelmente, Harrison enganou-se na noite marcada disse
Mrs. Membury, com um novo acesso de riso. Em matéria de horá
rios, Harrison é uma desgraça, não é, meu querido? Nunca teve qual
quer preparação para os serviços secretos, sabe? Era bibliotecário em Nairobi. E um bibliotecário, aliás, muito bom. Depois, encontrou nao
sei bem quem no navio e foi pescado para os serviços.
Mas saí disse Membury com alegria. Kaufmann também
foi. Kaufmann era o motorista. Um fulano encantador. Bom, o tip°
conhecia o local dos encontros como a palma da sua mão. Não me enganei na noite,
minha querida. Fui lá na noite certa, tenho a certeza. Passei a noite toda sentado num
celeiro vazio. Ele não mandou recado nem coisa nenhuma. Não tínhamos maneira de o
contactarmos, aquilo funcionava tudo apenas num sentido. Comi uma parte das
estúpidas comidas que levara para ele. Bebi uma parte das bebidas, e gostei. Voltei para casa. Tornei a fazer a mesma coisa na noite seguinte e na outra. Fiquei à espera de uma
mensagem qualquer, de um telefonema como acontecera da primeira vez. Nada de nada.
Nunca mais se ouviu falar no tipo. Claro que devia ter havido uma transmissão formal
na presença de Pym, mas Greensleaves não aceitou. Uma. prima donna, está a ver,
como todos os agentes. Um tipo só de cada vez. Lei de ferro. Membury bebeu distraidamente pelo copo de Brotherhood. Em Viena, ficaram furiosos.
Responsabilizaram-me por tudo. E então eu disse-lhes que, de qualquer maneira, o tipo
não prestava, o que também não ajudou as coisas a comporem-se. Membury soltou uma
nova risada sonora. Acho que me teriam despedido se a história transpirasse. Não mo
disseram, mas aposto que isso me ajudou a sair! Mrs. Membury fizera risotto de atum, porque era sexta-feira, e um bolo de cerejas, que
não permitiu que o marido provasse. Quando acabou o almoço, ela e Brotherhood foram
até à margem do regato ver Membury a cortar os juncos, cheio de satisfação. Havia
redes e arames finos estendidos à tona de água em todas as direcções. Entre os viveiros,
uma velha barcaça afundava-se, encalhada. O sol, rompendo a neblina, brilhava radiosamente.
Então, conte-me lá a história dessa malvada Sabina sugeriu
habilidosamente Brotherhood, fora do alcance dos ouvidos de Mem
bury.
Mrs. Membury não se fez rogada. Repetiu que Sabina era uma gal-déria. Bastou-lhe olhar uma vez para Magnus, para se começar a ver
com um passaporte inglês, um excelente marido inglês e nada com que
se ralar durante o resto da vida. Mas Magnus era esperto de mais para
e'a, o que muito me agradou. Ele deve tê-la deixado. Nunca nos contou
lsso, mas foi o que concluímos. Em Graz, um dia. E no dia seguinte, já 'á não estava.
E para onde é que ela foi depois? perguntou Brotherhood.
A versão dela é que ia voltar para casa, para a Checoslováquia.
A nossa teoria é que desapareceu, corrida, com o rabo entre as pernas.
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! í
l?
Deixou um bilhete para Harrison, a dizer que tinha saudades de casa e que ia voltar para junto do seu antigo namorado, apesar de o regime de lá ser terrível. Como pode
imaginar, o caso não era de molde a agradar a Londres. A história não fez subir em nada
a cotação de Harrison Eles disseram que ele devia ter previsto o que ia acontecer e
resolvido a questão.
Gostava de saber o que lhe terá acontecido meditou Brothe- rhood, num devaneio de historiador. Por acaso, não se lembra do
apelido dela?
Harrison, como era o apelido de Sabina?
A resposta atravessou a água com uma rapidez surpreendente.
Kordt. K-O-R-D-T. Sabina Kordt. Uma rapariga muito bonita. Encantadora.
Marlow gostava de saber o que é que lhe aconteceu.
Só Deus sabe. As ultimas notícias que tivemos diziam que mu
dara de nome e arranjara um emprego num dos ministérios checos. Um
dos desertores disse-nos que ela estivera todo aquele tempo a trabalhar para eles.
Em vez de admirada, Mrs. Membury sentiu confirmadas as suas suspeitas.
Ora, aí está! Estamos casados há quase cinquenta anos, passaram
trinta e tal desde que estivemos na Áustria, e ele nem sequer me tinha
dito que Sabina aparecera na Checoslováquia a trabalhar num ministé rio! Imagine, se eu soubesse toda a verdade, talvez descobrisse que tam
bém Harrison teve um caso com ela. Aliás, tiveram quase todos. Bom,
meu querido, ela devia ser mesmo uma espia, não te parece? É uma coi
sa que se vê a léguas. Nunca a teriam reintegrado no ministério, se náo
a tivessem tido a trabalhar para eles o tempo todo; são vingativos de mais para isso. Portanto, Magnus fez muito bem em se livrar dela nessa altu
ra, não fez? Tem a certeza de que não quer ficar para o chá?
■ Se fosse possível, gostava de levar algumas daquelas velhas fotografias disse
Brotherhood. O que naturalmente será referido, com os devidos agradecimentos, no
livro. Mary dominava a técnica perfeitamente. Em Berlim, vira Jack Brotherhood utilizá-la
uma dúzia de vezes, e ajudara-o com frequência. N" campo de treinos, chamavam-lhe o
jogo dos polícias e ladrões: com" marcar um encontro com uma pessoa em quem não se
tem confianÇ*'
I
\ única diferença estava em que hoje era Mary o objecto da operação, e o autor anónimo
do bilhete quem não confiava nela:
Estou de posse de informações que nos podem levar a ambos até Magnus. Peço-lbe o favor de fazer o seguinte. Uma destas manhãs, entre as dez e o meio-dia, você irá
sentar-se no átrio do hotelAmbassador. Ou, uma destas tardes, entre as duas e as seis, irá
tomar um café ao Mozart. Uma destas noites, entre as nove e a meia-noite, estará no
salão do hotel Sacher. Mr. Konig irá buscá-la.
O Mozart estava meio vazio. Mary instalou-se numa mesa central, onde podia ser vista com facilidade, pedindo um café e um brandy. Eles viram-me chegar e agora estão à
espreita, verificando se fui ou não seguida. Fingindo consultar a sua agenda, observou
dissimuladamente as pessoas que estavam à volta e os chars à banes e fiacres,
estacionados na praça, do outro lado das vidraças, enquanto procurava alguma coisa que
se parecesse com um cerco. De qualquer maneira, quando se tem uma consciência como a minha, tudo nos parece suspeito, pensou ela: das duas freiras que observam
atentamente as cotações da bolsa na montra do banco ao amontoado dos jovens
cocheiros de chapéu de coco, que fazem barulho com os pés e vêem as raparigas que
passavam. Num canto do café, um gordo cavalheiro vienense manifestava o seu
interesse por ela. Eu devia ter vindo com um chapéu, pensou. Assim, não pareço uma mulher sozinha respeitável. Levantou-se, foi à estante dos jornais e, sem pensar,
escolheu Die Presse. E agora devia enrolá-lo e ir passear com ele de baixo do braço, só
com as meias calçadas, pensou estupidamente Mary, enquanto abria o jornal nas páginas
de cinema.
Frau Pym? Uma voz feminina, um peito feminino. Um rosto feminino, sor-indo com deferência.
Era a empregada da caixa.
Sou, sim disse Mary, retribuindo o sorriso.
A empregada tirou de trás das costas um envelope, que tinha escrito a lápis «Frau Pym».
Herr Kõnig deixou para si este recado. Pede imensa desculpa. Mary deu-lhe cinquenta xelins, e abriu o envelope.
Por favor, pague a despesa e saia do café imediatamente, e cá fora vire à
lreha, no sentido da Meysedergasse, conservando-se sempre no passeio do
ku»> direito. Quando chegar à zona reservada aos peões, vire à esquerda, e
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mantenha-se sempre do lado esquerdo, andando devagar e admirando as montras.
Mary tinha vontade de ir à casa de banho, mas não se atreveu a fazê--lo, para o homem
não pensar que fora deixar um aviso a alguém. Guardou o bilhete na mala, acabou o
café e dirigiu-se com o talão até à cai-xa, onde a rapariga lhe tornou a sorrir. Os homens são todos os mesmos disse a rapariga, enquanto
o troco tilintava ao ser entregue a Mary.
Está-me a dizer isso a mim disse Mary. E começaram as duas
a rir.
Ao sair do café, viu entrar um jovem casal, e teve a sensação de que eram americanos disfarçados. Mas a verdade é que era esse o caso de muitos austríacos. Voltou à direita e
chegou logo à Meysedergasse. As duas freiras ainda estavam a observar as cotações da
bolsa. Mary man-teve-se no passeio do lado direito. Eram três e vinte, e a reunião das
esposas não terminaria, certamente, depois das cinco, para todas as participantes
poderem ir para casa e mudarem de vestido e de malas de mão, antes de se dirigirem à feira de gado nocturna. Mas mesmo quando todas se tivessem ido embora e só o carro
de Mary continuasse no jardim dos Lumsdens, Fergus e Georgie partiriam talvez do
princípio de que ela ficara mais algum tempo para tomar uma bebida em sossego e a sós
com Caroline. Se conseguir regressar às seis menos um quarto, ainda tenho hipóteses,
concluiu Mary. Deteve-se diante de uma loja de linge-rie, dando por si a admirar uma espécie de combinação preta de puta. Haverá alguém que compre estas coisas? Bee
Lederer, apostava o que quisessem. Mary esperava que acontecesse rapidamente alguma
coisa, antes que a embaixatriz saísse da loja com um monte daquelas peças de roupa, ou
que um dos muitos homens sós que por ali andavam a tentasse engatar.
Frau Pym? Venho da parte de Herr Kõnig. Por favor, venha de pressa.
A rapariga era bonita, estava mal vestida e nervosa. Enquanto a seguia, Mary foi
invadida pela impressão de estar de novo em Praga a visitar um pintor que não agradava
às autoridades. A rua lateral encontrava-se durante um minuto atulhada de compradores
para ficar vazia no minuto seguinte. Todos os sentidos de Mary estavam alerta. Senti o cheiro das charcutarias, do gelo, do tabaco. Olhou de relance o mte rior de uma loja e
reconheceu o homem do café Mozart. A rapariga vi
rou à esquerda e, depois, outra vez à esquerda. Onde estou? Chegaram a uma praça
calcetada. Estamos na Kãrntnerstrasse. Não estamos. Um hippie tirou uma fotografia a Mary e tentou fazê-la aceitar um cartão. Mary afastou-o. Um urso de plástico vermelho
tinha a boca aberta para recolher contribuições para uma organização de caridade. Um
conj unto pop asiático cantava canções dos Beatles. Do outro lado da praça, havia uma
faixa dupla para os automóveis, e do lado de cá da faixa, estava um Peugeot à espera,
com um homem sentado ao volante. Ao ver aproximarem-se as duas mulheres, o homem abriu a porta de trás. A rapariga segurou a porta e disse: «Entre, por favor».
Mary entrou e a rapariga entrou atrás dela. Deve ser o Ring. Mesmo assim, não se
tratava de uma parte do Ring que ela reconhecesse. Viu um Mercedes preto, seguindo--
os lentamente. Fergus e Georgie, pensou ela, sabendo que não eram eles. O condutor do
carro de Mary olhou para os dois lados, e depois dirigiu o carro para a divisória entre as faixas: bong, são os pneus da frente, bong, são as minhas costas que você acaba de
partir. Todos os carros começaram a buzinar, e a rapariga espreitou ansiosamente pela j
anela de trás. O automóvel saiu da praça e enfiaram a grande velocidade por uma rua
lateral, atravessando outra praça e continuando até à ópera, onde pararam. A porta do
lado de Mary abriu-se. A rapariga mandou-a sair. Mary mal tinha posto ainda o pé no passeio quando uma segunda mulher, roçando-a à passagem, tomou o seu lugar no
carro. Este afastou-se rapidamente: Mary nunca vira uma substituição de pessoas tão
bem feita. O Mercedes preto seguiu o automóvel, mas pareceu a Mary que já não se
tratava do mesmo. Um jovem elegante e embaraçado conduziu-a a um pátio interior,
através de uma porta larga. Vá no elevador, por favor, Mary disse o jovem em euro-ame-
ricano, estendendo-lhe um papel. Apartamento seis, por favor. Seis.
Você vai subir sozinha. Percebeu bem? ■
Seis disseMary. •
O rapaz sorriu. Às vezes, quando estamos assustados, parece que nos esquecemos de tudo.
Pois é disse ela. Avançou para a porta e o rapaz, sorrindo, ace-
lou-lhe com a mão. Mary empurrou a porta e viu um velho elevador à
espera, com as portas abertas, e um velho porteiro, igualmente sorri
dente. Andaram todos na mesma escola de charme, pensou ela. Entrou lo elevador e disse ao porteiro: «Seis, porfavor», e o porteiro lançou-a
fa escalada. À medida que a porta ia submergindo sob o seu olhar, Mary
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teve um último relance do rapaz, de pé, no pátio, ainda a sorrir, e de duas raparigas bem vestidas, atrás dele, examinando um papel qualquer. O papel que Mary tinha na mão
dizia: «Seis Herr Kõnig». É estranho, pensou ela, ao guardá-lo na carteira. Comigo,
acontece precisamente o contrário. Quando estou assustada, não me esqueço de nada.
Como a matrícula do carro. Como a matrícula do segundo Mercedes que nos seguia.
Como a franja de cabelo preto pintado, na nuca do motorista. Como o perfume Opium que a rapariga usava e que Magnus insiste sempre em me trazer quando viaja de avião.
Como o grosso anel de ouro, com um sinete vermelho, na mão esquerda do rapaz.
A porta do número seis estava aberta. Uma placa de cobre ao lado da porta dizia:
«Interhansa Áustria AG». Mary entrou e a porta fechou--se atrás dela. Mais uma
rapariga, mas desta vez não era bonita. Uma rapariga mal-humorada e forte, com um rosto achatado de eslava e uma atitude de ressentimento antipartido. Com ar de censura,
acenou com a cabeça mandando Mary avançar. Ela entrou para uma sala escura e não
viu ninguém. Na outra extremidade da sala, havia outra porta de dois batentes aberta. A
mobília era Viena antigo de imitação. Arcas pseudo--antigas e quadros a óleo passavam
por Mary à medida que ela seguia em frente. Candeeiros de parede de imitação debruçavam-se do papel de parede pomposo. Enquanto andava, Mary reviveu a
expectativa erótica que sentira na reunião das Esposas. Ele vai mandar-me despir e eu
vou obedecer. Vai conduzir-me até uma cama de dossel vermelho e fazer--me violar
pelos lacaios para seu deleite. Mas a segunda sala não continha qualquer cama de
dossel, era uma sala de estar como a primeira, com uma secretária e duas poltronas, além de uma pilha de Vogues antigas em cima da mesinha para o café. E mais nada.
Irritada, Mary fez meia volta, na intenção de dizer alguma coisa de desagradável à
eslava de rosto achatado. Mas, em vez disso, deu por si a olhá-A> fixamente. Ele estava
de pé junto à porta, a fumar um charuto, e por um segundo, Mary sentiu-se perplexa por
não notar o cheiro do tabaco, mas, de modo misterioso, percebeu que nada naquele homem a surpreenderia jamais. No instante seguinte, o aroma do charuto atingiu-a e
Mary apertou-lhe a mão preguiçosa, como se sempre assim se tivessem cumprimentado
quando se encontravam vestidos dos pés à cabeça neste ou naquele apartamento de
Viena.
Você é uma mulher corajosa observou ele. Eles estão à espera de que você volte depressa, ou o que é que combinou? O que é podemos fazer para lhe facilitar a vida?
Está perfeitamente certo, pensou ela, com uma absurda sensação de alívio. A primeira
coisa que se pergunta a um agente é sempre de quanto tempo dispõe. A segunda é se ele
precisa de qualquer auxílio imediato. Magnus está em boas mãos. Mas isso já Mary sabia.
Onde é que ele está? perguntou ela.
O homem tinha uma autoridade que lhe permitia reconhecer os seus falhanços.
Se ao menos o soubéssemos, ficaríamos felizes, nós os dois!
concordou ele, como se a pergunta dela fosse uma confissão de deses pero, e apontou-lhe com a mão alongada a cadeira onde Mary devia sen
tar-se. Nós, pensou ela. Somos os dois iguais e, no entanto, tu é que di
riges as operações. Não admira que Tom se tenha apaixonado por ti à
primeira vista.
Estavam sentados um diante do outro, ela no sofá doirado, ele na cadeira doirada. A rapariga eslava trouxera uma bandeja com vodka, pepinos de conserva e pão escuro, e a
devoção que manifestava por ele chegava a ser obscena, tantos eram os seus trejeitos e
os seus sorrisos de cumplicidade. É uma das Marthas dele, pensou Mary; era assim que
Magnus chamava às suas secretárias dos Serviços. Ele preparou dois vod-kas puros,
pegando cautelosamente primeiro num dos copos e a seguir no outro. Bebeu à saúde dela, espreitando-a por cima do bordo do copo. É assim que Magnus faz, pensou ela. E
foi contigo que aprendeu.
Ele telefonou? perguntou ele.
Não. Não pode.
Claro que não concordou ele, compreensivo. O telefone de casa está sob escuta e ele sabe disso. E escreveu?
Mary abanou negativamente a cabeça.
Foi prudente. Andam a procurá-lo por toda a parte. Estão extre
mamente irritados com Magnus.
E você? Como é que eu me posso zangar quando lhe devo tanto? A últi
ma mensagem que ele me mandou dizia que não me queria ver mais.
Dizia que era livre, e adeus. Senti uma verdadeira pontada de ciúme.
Que liberdade terá ele descoberto tão repentinamente para a não poder
Partilhar connosco? Ele disse-me a mesma coisa a mim, essa história de ser livre. Acho
^ue o disse a várias pessoas, incluindo áTom.
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Porque é que estou a falar contigo como se fosses um antigo amante? Que espécie de prostituta sou eu, capaz de deitar fora as minhas fi-delidades juntamente com a minha
roupa? Se ele se tivesse inclinado para Mary, agarrando-lhe a mão, ela teria consentido.
Se ele a puxasse para si...
Ele devia ter vindo ter comigo quando eu lhe disse para o fazer
disse o homem no mesmo tom de filosófica censura. «Acabou-se tudo, SÍV Magnus», disse-lhe eu; é assim que eu o trato. Perdoe-me.
Em Corfu disse ela.
Em Corfu, em Atenas, em todos os lugares onde consegui falar
com ele. «Venha comigo. Estamos ultrapassados, você e eu. Já é tempo
de nós, os velhotes, darmos lugar à próxima geração angustiada.» Mag- nus não queria ver isso. «Você quer ser como um desses pobres velhos
actores, que é preciso literalmente arrancar do palco?», disse-lhe eu. Mas
ele não me quis ouvir. Estava convencido de que o iam ilibar.
Isso quase aconteceu. Talvez tenha mesmo acontecido. Magnus
pensava que sim. Brotherhood ganhou durante um breve período, e nada mais.
Nem mesmo Jack podia fazer recuar para sempre a maré. Além disso,
Jack juntou-se agora aos maus da fita. Não há fúria no Inferno compa
rável à de um protector desiludido.
Foi com ele que Magnus aprendeu o seu estilo, pensou ela, num novo clarão de reconhecimento. O estilo por que ansiava para o seu romance. Aprendeu com ele a estar
acima das fraquezas humanas e a rir de si próprio com um riso divino, como uma forma
de evitar a auto-compaixão. Este homem fez por Magnus todas as coisas pelas quais
uma mulher se sente agradecida, só que Magnus é um homem.
Ao que parece, o pai dele era um autêntico homem-mistério disse ele, acendendo outro charuto. O que é que acha que se passa
va realmente?
Não sei, nunca o cheguei a conhecer. E você?
Eu encontrei-o muitas vezes. Na Suíça, quando Magnus era es
tudante, o pai era um grande comandante da Marinha britânica, que fora para o fundo com o seu navio.
Mary riu. Valha-me Deus, estou mesmo a rir. Agora fui eu quem descobriu o estilo.
Oh, sim! Depois, quando tornei a ouvir falar dele, já era um gran-
de barão da finança. Os seus tentáculos estendiam-se por todas as casas
bancárias da Europa. Escapara miraculosamente ao afogamento.
Oh, meu Deus disse Mary. E explodiu novamente num riso
catártico e incontrolável.
Como nessa altura eu era alemão, fiquei naturalmente muito ali viado. Até então, sentira-me mal com a ideia de ter afundado no mar o
pai dele. O que terá o seu marido para nos fazer sentir tão mal connos
co próprios?
É a energia dele disse Mary sem pensar, bebendo um longo
eolo de vodka. Estava a tremer e tinha as faces a escaldar. Ele ficou a olhar para ela tranquilamente, ajudando-a a recompor-se.
Você é a outra vida dele disse ela.
Ele sempre me disse que eu era o seu amigo mais antigo. Se souber
que isso, afinal, não é verdade, por favor não destrua as minhas ilusões.
Mary estava a recuperar a sua presença de espírito. A sala tornara-se mais nítida, tal como as suas ideias.
Segundo o que percebi, esse lugar estava reservado a alguém cha
mado Poppy disse Mary.
Onde é que ouviu esse nome?
Está no grande livro que Magnus tem andado a escrever. «Poppy, o meu amigo mais querido e de mais longa data.»
Só isso?
Oh, não. Há muita coisa mais. Poppy ocupa uma passagem enor
me de cinco em cinco páginas. Poppy isto, Poppy aquilo. Quando des
cobriram a máquina fotográfica e o livro de código, descobriram tam bém papoilas secas à laia de recordação.
Mary esperara desconcertá-lo mas tudo o que conseguiu foi arrancar-lhe um sorriso de
satisfação.
Sinto-me lisonjeado. Poppy é o nome de código fantasista que
ele me deu, uma vez, há muitos anos. Fui Poppy durante a maior parte das nossas duas vidas.
Mary procurou resistir de um modo ou de outro.
Então, o que é que vem a ser Magnus? exigiu ela saber.
Um comunista? Não pode ser. É demasiado ridículo.
Ele abriu as suas mãos alongadas. Tornou a sorrir, contagiosa-mente, numa garantia imediata da sua perplexidade. Era invulnerável.
Pus muitas vezes a mim próprio essa mesma pergunta. E depois,
Penso: bom, quem é que hoje em dia acredita no casamento? Magnus é
^n aventureiro. Não será isso bastante?Tenho a certeza de que na nos-
Sa profissão não devemos pedir mais. Consegue imaginar-se casada com
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um ideólogo sedentário? Um dos meus tios era pastor luterano. Aborrecia-nos de morte.
Mary sentia-se mais forte. Menos louca e mais indignada.
O que é que Magnus fazia para si? perguntou ela. Espiava. Selectivamente, é verdade. Mas também é verdade que
se tratava de traição. E fazia-o muitas vezes com grande energia, é uma
coisa que você deve compreender da parte dele. Quando é feliz, Mag
nus acredita em Deus e quer que todos tenham a sua prenda. Quando
está em baixo, amua e recusa-se a ir à igreja. Aqueles de entre nós que o dirigem têm de saber viver com isso.
Não acontecera nada a Mary. Estava sentada muito direita a beber vodka, no
apartamento secreto de um estranho. Ele pronunciou a sentença, pensou ela,
calmamente, como se estivesse a assistir ao julgamento de outra pessoa. Magnus
morreu. Mary morreu. O casamento deles morreu. Tom é um órfão, com um traidor por pai. Todos estão perfeitamente bem.
Pois é, mas eu não o dirijo objectou ela, respondendo à ob
servação dele com absoluta calma.
Ele pareceu não reparar na recente frieza da voz de Mary.
Permita-me que faça um pouco de propaganda da minha pes soa. Gosto muito do seu marido.
E não fazes mais do que a tua obrigação, pensou ela. Afinal de contas, foi a ti que ele
nos sacrificou.
Além disso, estou em dívida para com ele continuou o ho
mem. Posso dar-lhe tudo o que ele quiser para o resto da vida. Sou, de longe, preferível a Jack Brotherhood e aos serviços dele.
Não, não és, pensou ela. De maneira nenhuma.
Disse alguma coisa? perguntou ele.
Mary sorriu-lhe tristemente e sacudiu a cabeça.
Brotherhood quer apanhar o seu marido e castigá-lo. Eu quero o contrário. Quero encontrá-lo e recompensá-lo. Dar-lhe-emos tudo o
que ele permitir que lhe demos. O homem puxou uma fumaça do
charuto.
Não passas de um impostor. Seduzes o meu marido e intitulas-te amigo dele e meu.
Você conhece o nosso ofício, Mary. Não preciso de lhe dizer que um homem na posição dele é um artigo muito desejável. Para falar com
a maior franqueza, não podemos dar-nos ao luxo de o perder. A última
coisa do mundo que queremos é vê-lo passar o resto da sua vida uu
numa prisão inglesa, a explicar às autoridades o que andou a fazer nos últimos trinta e tal anos. Também não temos especial vontade de que ele escreva um livro.
O que vocês querem, pensou ela. Então, e nós?
Preferiríamos, de longe, que ele gozasse connosco uma reforma
merecida distinções, medalhas, a família à volta, se for essa a vonta
de de todos , ficando nós com a possibilidade de o consultarmos quando disso tivermos necessidade. Não posso garantir que lhe permi
tamos levar a vida dupla a que está habituado, mas sob todos os outros
aspectos, faremos o melhor que podermos para lhe fazermos a vontade.
Mas ele já não quer nada com vocês, pois não? É por isso que
está escondido. O homem puxou uma fumaça do charuto, pondo a mão entre eles, para evitar que o
fumo a incomodasse. Mas incomodava-a, de qualquer maneira. Aquele fumo ia
envergonhá-la, enojá-la e acusá-la durante o resto da sua vida. Ele recomeçara,
entretanto, a falar. Razoavelmente.
Já não sei o que é que hei-de fazer, para ser franco. Fiz tudo o que pude para despistar Brotherhood e todos os outros e ser eu a encontrar, antes deles, o seu marido. Continuo
sem fazer a menor ideia do sítio onde ele está, e sinto-me completamente idiota.
O que é que aconteceu às pessoas que ele traiu? perguntou
Mary.
Magnus? Oh, ele detesta derramamentos de sangue. Sempre dei xou isso muito claro.
Isso ainda não impediu ninguém de derramar sangue.
Uma vez mais, o homem fez uma pausa, entregando-se à sua grave meditação privada.
Tem razão concordou ele. Magnus escolheu uma profis
são dura. Penso que é um pouco tarde de mais agora, para nos pormos a ponderar a moralidade de cada um de nós.
Alguns de nós só agora é que tomaram conhecimento de muita
coisa disse Mary. Mas não logrou abalá-lo. Porque é que me pe-
("u para eu vir cá?
O olhar dela encontrou o dele e viu que, embora nada na sua ex-pressão tivesse mudado, o seu rosto estava diferente, o que às vezes acon-tec'a quando olhava assim para
Magnus.
" Antes de você vir, pensava que você e o seu filho podiam estar in-eressados em
começar uma nova vida na Checoslováquia e que Magnus Se sentiria depois fortemente
tentado a ir ter convosco. O homem
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apontou a pasta que tinha ao lado. Trouxe passaportes para vocês e todas as outras
complicações do género. Era absurdo. Depois de a conhecer, percebo que você não é do
género desertor. No entanto, ainda me ocorre como possibilidade que você saiba onde ele está e tenha conseguido, sendo a mulher capaz que é, não dizer a ninguém. Você não
pode supor que ele ficará melhor com os seus perseguidores do que ficaria comigo. Por
isso, se sabe alguma coisa, acho que ma devia dizer agora.
Eu não sei onde ele está disse Mary. E fechou a boca antes de
poder acrescentar: e se soubesse, tu serias a última pessoa da terra a quem eu o diria.
Mas você tem teorias. Tem ideias. Certamente, não tem pensa
do noutra coisa, noite e dia, desde que ele se foi embora. «Magnus, onde
estás?», é esse o seu único pensamento, não é verdade?
Não sei nada. Você sabe mais sobre ele do que eu. Mary estava a começar a odiar a hipocrisia dele. A sua maneira de ponderar as coisas
antes de falar com ela, como se não tivesse a certeza de que Mary estaria à altura da
pergunta.
Ele falou-lhe alguma vez de uma mulher chamada Lippsie?
perguntou ele. Não.
Ela morreu quando ele era pequeno. Era judia. Todos os amigos e
parentes dela tinham sido mortos pelos alemães. Parece que adoptou
Magnus, como uma espécie de apoio. E depois mudou de ideias e matou-
-se. Como é habitual com Magnus, os motivos são nebulosos. Apesar dis so, foi um exemplo curioso para uma criança. Magnus é um grande imi
tador. Mesmo quando não dá por isso. Na realidade, às vezes penso que
ele foi inteiramente montado com peças de outras pessoas, coitado.
Ele nunca me falou nela repetiu Mary obstinadamente.
O homem tornou-se mais vivo. Exactamente, como Magnus poderia ter feito. Vá lá, Mary. Você não tem o pensamento reconfortante de que
há alguém a tomar conta dele? Eu tenho a certeza que sim. O que eu
sempre achei de Magnus é que são apenas os seres humanos que o
atraem, e nunca as ideias. Ele detesta estar sozinho, porque nessa altura
o seu mundo fica vazio. Portanto, quem estará a cuidar dele? Vamos ten tar pensar em quem ele gostaria que tomasse conta dele: não estou a ra
lar de mulheres, percebe? Refiro-me somente a pessoas amigas.
Mary estava a alisar a saia, a procurar o casaco.
Vou apanhar um táxi disse ela. Não precisa de telefonar a
chamar um. Há uma praça mesmo na esquina. Reparei nisso quando
vim.
. Porque não a mãe? Deve ser boa pessoa.
Mary ficou a olhar para ele, incapaz por um momento de acreditar no que estava a
ouvir. Não há muito, ele falou-me da mãe pela primeira vez expli
cou ele. Disse que começara a visitá-la outra vez. Fiquei surpreendi
do. E também lisonjeado, confesso. Magnus desenterrou-a não sei de
onde, e arranjou-lhe uma casa. Costuma ir vê-la muitas vezes?
Mary manteve a cabeça no seu lugar. Sentiu mesmo a tempo a sua astúcia voltar a funcionar e guiá-la. Magnus não tem mãe, seu idiota. A mãe morreu, ele mal a conheceu
e nunca se importou com isso. A única coisa autêntica que eu sei sobre Magnus e que
serei capaz de jurar em seu favor no Dia do Juízo é que Magnus Pym não é nem nunca
foi o filho adulto de nenhuma mulher. Mas Mary não perdeu a cabeça. Não o insultou,
nem escarneceu dele, nem se pôs a rir alto, aliviada por Magnus ter mentido ao seu amigo mais querido e de mais longa data com a mesma precisão com que mentira à
mulher, ao filho e ao país. Falou de maneira razoável e sensata, como faz sempre um
bom espião.
Gosta de conversar com ela uma vez por outra, claro admitiu
Mary. Pegando na carteira, espreitou lá para dentro, como se verificas se se tinha dinheiro para o táxi.
Então, ele não poderia ter-se retirado para o Devon para estar
junto dela? Ela ficou-lhe tão agradecida por ter finalmente ali um pe
dacinho de ar do mar. E Magnus ficou tão orgulhoso por ter sido capaz
de fazer esse passe de magia em sua intenção. Falava-me interminavel mente dos passeios maravilhosos que davam os dois juntos pela praia.
Como a levava à igreja ao domingo e lhe tratava do jardim. Talvez o que
ele está a fazer agora seja tão inocente como isto.
A casa dela foi o primeiro lugar onde eles o foram procurar
mentiu Mary, fechando a carteira. Assustaram imenso a pobre se- ihora. Como é que eu entro em contacto consigo se precisar de si? Ati-
r° um jornal por cima do muro?
Mary pôs-se de pé. Ele também se pôs de pé, mas não com a mes-•fia desenvoltura.
Manteve o sorriso e os olhos dele continuaram sábios, e tristes e alegres, com o estilo
que Magnus tanto invejava. - Não me parece que você vá precisar de mim, Mary. E talvez tenha razão quando diz
que Magnus também já não quer nada comigo. O problema é ele ainda querer alguma
coisa com alguém. É com isso que nos
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devemos preocupar, se gostamos dele. Há tantas maneiras de uma pessoa se vingar do
mundo. As vezes, a literatura realmente não basta.
Esta mudança de tom interrompeu momentaneamente a pressa de sair de Mary.
Ele há-de encontrar uma resposta disse ela despreocupada-
mente. Sempre encontrou. É precisamente disso que eu tenho medo.
Dirigiram-se os dois até à porta da rua, andando lentamente por causa do coxear dele. O
homem chamou o elevador para Mary, e correu o gradeamento. Ela entrou. A última
imagem que dele teve foi através das grades; e o homem continuava a olhá-la. Nessa
altura, Mary começara já a gostar dele outra vez, e sentia-se cheia de medo. Ela planeara já o que ia fazer. Tinha consigo o passaporte e o cartão de crédito.
Verificara-o quando espreitara para dentro da carteira. Tinha o seu próp rio plano que era
o que utilizara nos exercícios de treino em pequenas cidades inglesas e, mais tarde, em
Berlim, com algumas modificações. No mundo do comum dos mortais era o lusco-
fusco. No pátio, dois padres conversavam em voz baixa com as cabeças muito juntas e os rosários balouçando nas mãos atrás das costas. A rua estava apinhada de gente a fazer
compras. Poderiam estar cem pessoas a vigiá-la, e quando começou a enumerar
mentalmente as possibilidades, uma centena pareceu-lhe, com efeito, o número mais
aproximado. Imaginou uma espécie de Viena Quom, com Nigel por Senhor, Georgie e
Fergus com chicotes, o pequeno Lederer com a sua barba à cabeça do grupo, e bandos de malfeitores checos em acesa perseguição. E o velho Jack, sem cavalo, caminhando
penosamente ao fundo do horizonte, atrás deles.
Mary escolheu o Imperial, de que Magnus tanto gostava pela sua pompa.
Não trouxe bagagem, mas queria um quarto para esta noite disse ela ao recepcionista de
cabelo grisalho, estendendo-lhe o cartão de crédito, e o recepcionista que a reconheceu imediatamente, disse: «Como está o seu marido, minha senhora?».
Um chasseur conduziu-a a um quarto magnífico no primeiro andar. O quarto 121, o que
toda a gente pede, pensou ela; exactamente o tnes-mo quarto para onde eu o trouxe no
dia dos anos dele, para jantarmos e passarmos uma noite de amor. A recordação não a
comoveu minimamente. Ligou para o mesmo recepcionista e pediu-lhe que reservasse um
lugar para ela no voo da manhã seguinte para Londres: «Com certeza, prau Pym».
Fumo, recordou ela. Fumo era o nome que dávamos ao facto de conseguirmos iludir
alguém. Ficou sentada na cama, a ouvir os passos no corredor que se iam tornando mais raros à medida que a hora do jantar se aproximava. Uma porta de batente duplo com
doze pés de altura. Um quadro de Eckenbrecher intitulado Fim de tarde no Bósforo.
«Hei--de amar-te até sermos os dois muito velhos» dissera ele, com a cabeça poisada
naquela mesma almofada. «E depois continuarei a amar-te.» O telefone tocou. Era o
porteiro a dizer que só havia lugares em classe turística. Mary disse-lhe que marcasse o lugar na mesma. Tirou os sapatos e foi com eles na mão até à porta, que abriu
devagarinho, espreitando para o corredor. Se me parecer que estou a ser seguida, ponho
os sapatos lá fora para engraxar. Do bar chegavam ruídos confusos e o som de música
gravada. Da sala de jantar, uma baforada de molho de endro. Peixe. O peixe aqui é
excelente. Mary avançou até ao patamar, ficou à espera, mas ninguém apareceu. Estátuas de mármore. Retrato de um aristocrata de suíças. Calçou os sapatos, subiu um
lanço de escada, chamou o elevador e desceu até ao rés-do-chão, saindo por um
corredor lateral que não era visível da recepção. Uma passagem escura conduzia às
traseiras do hotel. Mary enfiou por lá, dirigindo-se para a porta de serviço na outra
extremidade. A porta estava entreaberta. Empurrou-a, exibindo antecipadamente um sorriso de desculpas. Um velho criado estava a dar os últimos retoques numa mesa de
jantar que ia ser levada para um dos quartos do hotel. Atrás dele, uma segunda porta
aberta, conduzindo a uma rua lateral. Com um Guten Abend jovial endereçado ao
criado, Mary saiu rapidamente para o exterior e chamou um táxi. «Wienerwald» disse
ela ao motorista, e ouviu-o anunciar pelo intercomunicador: «Wienerwald». Ninguém os seguia. Quando chegaram ao Ring, Mary deu-lhe cem xelins, saiu numa passagem de
peões e tomou um segundo táxi para o aeroporto, onde ficou sentada a ler na casa de
banho das senhoras, durante uma hora, até ao último voo para Francfort.
Um pouco mais cedo, nessa mesma noite.
A casa era geminada e as traseiras davam para uma linha de caminho--de-ferro, exactamente como Tom a descrevera. Uma vez mais, Brothe-rnood procedeu a um
reconhecimento antes de se aproximar. A estrada era tão a direito como a linha de
caminhojde-ferro, e aparentemente tão comprida como ela. Nenhum obstáculo"
perturbava a linha do horizonte
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para além do sol poente de Outono. Havia a estrada, havia o aterro da li nha com os seus
fios eléctricos e os seus escoadouros, e havia o céu imen so da infância esfarrapada de
Jack, sempre cheio de nuvens brancas deixadas pelas paragens e arranques dos
comboios a vapor atravessando os pântanos a caminho de Norwich. As casas tinham todas o mesmo traçado, e enquanto as examinava, aquela simetria começava a parecer-
lhe bela, sem que ele soubesse porquê. Tal era a ordem do mundo, pensou. Era aquela
fila de pequenos caixões ingleses, que eu acreditava estar a defender. Homens
respeitáveis e brancos, dispostos em fileiras bem ordenadas. O número setenta e cinco
substituíra o portão de madeira por um outro de ferro trabalhado, com a palavra Eldorado escrita em letras floreadas. 0 número setenta e sete instalara um caminho de
cimento com conchas incrustadas no jardim. O número oitenta e um revestira a fachada
de teca em estilo rústico. E o número setenta e nove, para onde Brotherhood agora se
dirigia, resplandecia com uma bandeira inglesa tremulando num belo poste branco
instalado mesmo à entrada do seu território. No pequeno caminho de acesso de saibro, viam-se as marcas de pneus de um veículo pesado. Junto à campainha brilhante, havia
um intercomunicador eléctrico. Brotherhood carregou no botão e esperou. Foi saudado
por um ruído de interferências, seguido por uma voz masculina ofegante.
Quem diabo aí está?
O senhor é Mr. Lemon? disse Brotherhood para o interco municador.
E se for? disse a voz.
Chamo-me Marlow. Queria saber se poderia conversar consigo
calmamente acerca de um assunto particular.
Tenho dois e ambos funcionam. Ponha-se a andar. Na janela, a cortina de renda afastou-se o suficiente para Brotherhood ver de relance um
pequeno rosto bronzeado e lustroso, muito enrugado, observando-o no escuro.
Vamos pôr as coisas noutros termos disse Brotherhood em voz mais baixa, ainda para o
intercomunicador. Sou amigo de Magnus Pym. Nova série de interferências ruidosas, enquanto a voz do outro Ia" parecia recobrar
forças.
Caramba, então porque é que não começou por aí? Entre, e
nha beber um copo. >|
Syd Lemon era agora um velho baixinho e atarracado, inteiram^ te vestido de castanho como um coelho. O seu cabeloéastanho sem
única branca encontrava-se separado ao meio por uma risca. A gravata castanha era
enfeitada por cabeças de cavalos que olhavam no sentido do coração de Syd, com uma
expressão de dúvida. Trazia vestido um casaco de malha castanho, novo, e calças castanhas bem vincadas, e as suas biqueiras castanhas brilhavam como o pêlo de um
cavalo castanho. Por entre um emaranhado de rugas tisnadas pelo sol, coruscavam
alegremente dois olhos vivos de animal, embora Syd respirasse com dificuldade. Usava
uma bengala de abrunheiro com a ponta de borracha, e quando andava meneava as
ancas estreitas como se trouxesse uma saia, movendo-se arrastadamente. Da próxima vez que tocar àquela campainha, basta dizer que é
um inglês aconselhou ele, enquanto indicava o caminho através do
pequeno hall imaculado. Nas paredes, Brotherhood viu fotografias de
cavalos de corrida e de um Syd Lemon mais jovem com o equipamen
to de Ascott. E depois, diz-me exactamente o que é que quer, e eu torno a mandá-lo passear concluiu ele, com uma risada, virando-se
com dificuldade apoiado na bengala, a fim de poder piscar o olho a Bro
therhood, mostrando-lhe que tudo aquilo era apenas a sua brincadeira
favorita.
Então como vai o cachorrinho? perguntou Syd. Está em forma, obrigado disse Brotherhood.
Sem mais, Syd sentou-se abruptamente numa cadeira de espaldar alto, e depois
inclinou-se para a frente com precaução, apoiado na bengala, como uma viúva
aristocrática, até atingir o ângulo que lhe era menos desconfortável. Brotherhood
reparou nos vincos escuros por baixo dos olhos dele e na testa perlada de suor. Vai ter de ser você a fazer as honras da casa, squire, porque eu
hoje não estou nos meus dias disse Syd. Está aí no canto. Levan
te a tampa. Eu vou tomar uma gota de whisky para me recompor, e você
toma o que lhe apetecer.
Um espesso tapete castanho cobria a sala toda. Um quadro sombrio representando uma paisagem suíça pendia por cima da lareira com azulejos, ao lado da qual estava um
armário de bebidas de nogueira. Quando Brotherhood levantou a tampa, uma caixinha
de música começou a tocar, conforme Syd esperara que acontecesse.
Conhece esta música, não? perguntou Syd. Ouça. Baixe
°utra vez a tampa, assim mesmo, e agora levante-a outra vez. Ora aí está. É Underneath theArches disse Brotherhood com um sorriso.
■ Claro. Foi o pai dele que me deu isso. Disse-me: «Syd, neste mo-
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mento não tenho dinheiro para um relógio de ouro, e infelizmente, a tua pensão está suspensa por um problema temporário de liquidez. Mas há uma peça de mobiliário que
eu possuo, com a qual muito nos temos divertido ao longo do corredor dos anos, e que
sempre vale alguma coisa. Gostava que ficasses com ela, como prenda». Então, eu e
Meg fomos lá com a carrinha antes que os oficiais de diligências lhe deitassem a mão.
Foi há cinco anos. Ele tinha comprado seis armários como este nos armazéns Harrods para oferecer aos seus contactos. Só lhe sobrava este. Nunca me pediu que lho
devolvesse, nem uma vez. «Ainda toca, não, Syd?», perguntava-me ele. «Um velho
violino pode continuar a tocar muito boa música, sabes? Ainda os hei-de espantar.» E
era bem capaz disso. Não havia porcaria de fechadura que se mostrasse segura quando
ele andava por perto. Foi assim até ao fim. Não pude ir ao funeral dele. Estava adoentado. Como é que correu aquilo?
Disseram-me que foi muito bonito disse Brotherhood.
Já era de esperar. Ele era uma pessoa importante. Não era um
qualquer que ia a enterrar, sabe? Aquele homem apertou a mão de al
guns dos Grandes da Terra. Tratava o duque de Edimburgo por Philip. Saiu alguma notícia nos jornais quando ele morreu? Procurei em vários
jornais, mas não vi grande coisa. E depois, pensei que provavelmente es
tavam a guardar as notícias para as edições de domingo. É claro que com
Fleet Street nunca se sabe. Se eu estivesse bem nessa altura, teria lá ido
oferecer-lhes uns dinheiros para ter a certeza de que saía alguma coisa. Você é da polícia?
Brotherhood riu.
É o que parece. Estive na cadeia por causa dele, sabe? Aliás, não
fui eu o único. «Lemon», dizia ele, que me tratava sempre pelo apelido
quando precisava muito de que eu lhe fizesse alguma coisa, nunca per cebi porquê, «Lemon, eles vão-me aborrecer por causa da minha assi
natura naqueles documentos. Se eu negasse que era a minha assinatura
e tu dissesses que a tinhas falsificado, ninguém ia saber, pois não?» Eu
disse-lhe: «Bom, ia saber eu. Ia passar muito tempo na cadeia por causa
disso. Se estar na cadeia torna uma pessoa mais sábia, vou ficar tão sá bio como Matusalém», disse eu. Mas olhe que, apesar de tudo, fiz-lhe o
jeito. Não sei porquê. Ele disse que me dava cinquenta mil dólares quan
do eu saísse. Mas eu sabia que aquilo não era para levar a sério. Acho
que é o que se pode chamar uma amizade verdadeira. Nessa altura, na°
era possível salvar a cabeça com armários de bebidas como este. A saú de dele. E à sua.
. Tchim! disse Brotherhood, e bebeu enquanto Syd o olhava aprovadoramente.
Então, se você não é chui, o que é que vem a ser? Um dos amigos maricas que ele tem
no ministério dos Negócios Estrangeiros? Você não tem ar de maricas. Parece mais um boxeur, se sempre não é da polícia. Alguma vez entrou em combates de boxe? Nós
tínhamos sempre lugares na primeira fila. Estávamos lá na noite em que Jo Baksi
arrumou o pobre Bruce Woodcock. Tivemos de ir a seguir tomar banho para nos
lavarmos do sangue. E depois, fomos para o clube Albany e lá estava Jo no bar, sem
uma beliscadura, entre duas beldades, e Rickie disse-lhe: «Porque é que não acabaste com ele, Jo? Porque é que prolongaste assim o combate de wwWpara round?» Tinha
uma maneira de falar espantosa. Jo disse: «Rickie, não fui capaz. Não tive coragem, a
verdade é essa. A cada golpe, ele fazia uuu, assim; e eu não era capaz de lhe dar o golpe
final, a verdade é essa». Enquanto ouvia, Brodierhood deixou que os seus olhos contemplassem
preguiçosamente a marca de um móvel ausente, a um dos cantos da sala. A marca
revelava uma forma quadrada, dois pés por dois, e o móvel deixara rasgões no pelo do
tapete deixando à vista a tela do
avesso. Magnus também estava lá nessa noite? perguntou Brothe
rhood jovialmente, fazendo regressar com subtileza a conversa ao ob
jectivo da sua visita.
Era novo de mais para isso, sir respondeu Syd, com resolu
ção. Era tenro de mais ainda. Rickie levava-o, mas Meg disse que não. «Deixa-o comigo», disse ela. «Você e os rapazes podem ir divertir-se um
bocado. Mas Titch fica aqui comigo e vamos ver uma fita, passamos
uma noite agradável, e pronto.» Bom, quando Meg dizia uma coisa des-
taSj era impossível discutir com ela, ou só se discutia da primeira vez e
não se voltava a insistir. Se não fosse ela, eu estava hoje falido. Tinha- -lhe dado, a ele, o meu dinheiro todo. Mas Meg, não. Guardava sempre
^guma coisa. Conhecia bem o seu Syd. Também conhecia o seu Rickie;
eu até achava às vezes que ela o conhecia bem de mais. Mas não a posso
censurar. Ele era teimoso, sabe? Éramos todos teimosos, nós, mas o pai
de Titch era realmente muito teimoso. Demorei muito tempo antes de perceber isso. Mesmo assim, se ele voltasse, acho que tornávamos todos
a fazer a mesma coisa. Syd riu, embora lhe custasse fisicamente fazê-
-lo Fazíamos a mesma coisa ou até mais, aposto que sim. Então, Titch
u-se em sarilhos?
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Porque é que diz disso? perguntou Brotherhood, afastando
os olhos do canto da sala.
Diga-me você. Você é que é o polícia, e não eu. Com uma cara
dessas você até podia dirigir uma prisão. Eu não devia estar a falar con sigo. É o que me diz o meu faro. Havia dias em que eu entrava no escri
tório. Audley Street. Mount Street. Chester Street. Old Burlington.
Conduit. Park Lane. Sempre nas zonas melhores. Estava tudo em or
dem. Tudo bem arrumado e como deve ser. E a recepcionista sentada à
secretária como a Mona Lisa. «Bom dia, Mr. Lemon», «Bom dia, mi nha querida.» Mas eu percebia. Lia no rosto dela. Ouvia o silêncio. Di
zia para comigo: olá, são os chuis. Vieram falar com Rickie. Vamos em
bora, Syd, é sair, e depressa, pelas traseiras. Nunca me enganei. Nem
uma vez. Mesmo que isso representasse mais doze meses sem fiança no
caso de me apanharem a fugir, eu pirava-me sempre, porque tenho um faro especial para as complicações com os chuis.
Quando é que o viu pela última vez?
Há uns dois anos. Talvez mais. Ele afastou-se desde que Meg
morreu, não sei porquê. Julguei que ele aparecesse mais vezes, mas ele
não quis. Acho que não gosta que as pessoas lhe morram. Também não gostava que as pessoas fossem pobres ou desgraçadas. Uma vez, candi
datou-se ao Parlamento, sabe? E ganhava, se tivéssemos começado uma
semana mais cedo. Era como com os cavalos. Sempre demasiado lentos
no final. Ele telefonava, é claro. Gostava imenso de telefones, sempre
gostou. Só estava contente com o telefone a tocar. Eu queria falar de Magnus disse Brotherhood pacientemen
te. Titch.
Foi o que eu pensei disse Syd. Começou a tossir. Tinha o
whisky na mesa à sua frente, mas não lhe tocara, embora o tivesse junto
à mão. Este já deixou de beber, pensou Brotherhood. Aquilo é só para enfeitar. A tosse passou e deixou Syd sem fôlego.
Magnus veio visitá-lo disse Brotherhood.
Ah, sim? Não dei por isso. Quando é que foi?
Quando ia a caminho do colégio de Tom. Depois do funeral.
Conte-me lá como é que ele fez uma coisa dessas. Veio de carro até aqui. Esteve aqui sentado consigo. Conversou
acerca dos velhos tempos. Ficou contente por ter vindo. Disse-o alom>
mais tarde. «Tive uma conversa encantadora com Syd», disse ele. «r01
exactamente como dantes.» Queria que toda a gente ficasse a saber.
E contou-lhe isso a si?
Contou a Tom.
Mas a si, não. Senão, você não precisava de vir até cá. Foi sempre
esse o meu raciocínio. E nunca me enganei. «Se os chuis fazem pergun tas, é porque não sabem. Por isso, não lhes digas nada. Se fazem per
guntas e sabem, é porque te estão a tentar apanhar em falso. Portanto,
não lhes digas nada na mesma.» Eu costumava dizer isto a Rickie, mas
ele não me queria dar ouvidos. Em parte, por ser mação. Achava que isso
o tornava intocável, contanto que falasse o bastante. Foi assim que o ca çaram. Nove em cada dez vezes. Falava de mais e metia-se em sarilhos
por causa disso. Syd quase não se deteve. Ouça, squire. Vou fazer
um acordo consigo. Você diz-me o que é que quer e eu mando-o em
bora. O que é que acha?
Seguiu-se um longo silêncio, mas o sorriso paciente de Brotherhood não desarmou. Diga-me uma coisa. Porque é que tem lá fora a bandeira inglesa?
perguntou astuciosamente Brotherhood. Tem algum significado
especial ou é só uma flor grande para o jardim?
É um espantalho para afastar os estrangeiros e os chuis.
Como se mostrasse uma fotografia de família, Brotherhood estendeu-lhe o seu cartão verde, o mesmo que mostrara a Sefton Boyd. Syd tirou do bolso os óculos e leu a frente
e o verso do cartão. Um comboio passou, atroadoramente, mas Syd pareceu não o ouvir.
Isto é algum truque? perguntou ele.
O meu trabalho tem a ver com aquela bandeira disse Brothe
rhood. Não sei se acha que é um truque. Podia ser. Tudo é possível.
Você esteve no Oitavo Exército, não é verdade? Ouvi dizer que,
além disso, ganhou uma medalhinha em Alamein. Isso também foi al
gum truque?
Podia ter sido. Magnus Pym meteu-se num sarilhozito disse Brotherhood.
Para ser perfeitamente honesto para consigo, como sou sempre com
toda a gente, parece que ele desapareceu por uns tempos.
O pequeno rosto de Syd contraíra-se. A respiração tornou-se-lhe rápida e rouca.
E quem é que o fez desaparecer? Você? Ele não anda metido com °s rapazes de Muspole, não?
Quem é Muspole? ^ •*-''
Um amigo de Rickie. E conhecia muita gente.
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Pode ter sido raptado ou pode ter-se escondido algures. Andava
a fazer um jogo perigoso na companhia de alguns estrangeiros do pior. Estrangeiros, hein? Ele sabe falar a língua deles, não é?
Ele estava a fazer um trabalho clandestino. Era para o país e para
mim.
Então, não passa de um idiota completo disse Syd, irritado, e
tirou do bolso um lenço meticulosamente passado a ferro, com o qual limpou o rosto reluzente. Não tenho paciência para ele. Meg perce
beu logo. Ele há-de acabar mal, dizia ela. Há um chui naquele rapaz, po
des crer. É um denunciante nato, nasceu fadado para isso.
Não se tratava de denunciar, mas de arriscar a pele respondeu
Brotherhood. Isso é o que você diz. E talvez seja o que você acha. Mas está enga
nado. Aquele rapaz nunca estava satisfeito. Nem Deus era suficiente
mente bom para ele. Pergunte a Meg. Ah, não pode. Ela já se foi. Era
uma mulher com cabeça. Era mulher, mas via melhor só com um olho
do que você e eu e mais metade do mundo, todos juntos. Esteve a fazer o jogo duplo, tenho a certeza. Meg sempre disse que ele era assim mesmo.
Como é que ele estava quando o veio ver?
Estava com um ar saudável. Como toda a gente. Com aquelas es
túpidas bochechas bem rosadas. Eu sei sempre quando é que ele quer al
guma coisa. É encantador como o pai. Eu disse-lhe: «Parece-me que não te ficava mal um ar um bocadinho mais enlutado». Mas ele disse que
não punha luto. «Foi uma bela cerimónia, Syd», disse ele. «Havias de
ter gostado.» Foi logo começar por me atirar poeira para os olhos. «Es
tavam apertados como sardinhas, e mesmo assim não cabiam todos na
igreja.» Disparates, disse eu. «Havia gente na praça, diante da igreja. Ha via gente em fila, pela rua abaixo, Syd. Deviam estar umas mil pessoas.
Se os irlandeses tivessem lá posto uma bomba, teriam privado este país
das suas melhores cabeças.» «E Philip estava lá?», perguntei eu. «Claro
que estava.» Bom, é evidente que ele não podia ter lá estado, não é? Se
não, isso tinha aparecido nos jornais e na televisão. Bom, talvez ele pu desse ter ido incógnito. Parece que agora fazem isso muito, por causa dos
irlandeses. Ele dantes tinha um amigo. Kennie Boyd. A mãe dele era
uma lady. Rick teve um caso com a tia. Talvez ele tenha ido ter com o
jovem Kennie. É possível.
Brotherhood abanou a cabeça. Belinda? Ela foi sempre decente com ele, embora ele a enganas
se. Há sempre a possibilidade de ter ido ter com ela.
Brotherhood tornou a sacudir negativamente a cabeça.
Caramba, mil pessoas no enterro objectou Syd. Credores, quanto muito. Não eram pessoas de luto. Não se põe luto por Rick. A ver
dade é essa. Para ser franco, até se suspira de alívio. E depois, olho para a
carteira e agradeço à velha Meg por ainda lá estar alguma coisa para mim.
É claro que não disse isto a Titch. Era pouco próprio. E Philip sempre
lá foi? Você ouviu alguma coisa? Era mentira disse Brotherhood.
Syd ficou chocado.
Oh, não. Essa é um bocado forte de mais. Isso é conversa de chui.
Digamos que aquilo que Magnus fez foi enganar-me, como o pai dele
costumava fazer. Porquê? perguntou Brotherhood.
Syd não ouviu.
O que é que ele queria? perguntou Brotherhood. Porque
é que ele se deu a todo esse trabalho de o enganar?
Syd levou a representação longe de mais. Franziu o sobrolho. Apertou os lábios com força. Limpou a ponta do nariz castanho.
Queria agradar-me, não é verdade? disse ele com excessiva ani
mação. Queria pôr-me bem disposto. «Vou conversar um bocado
com o velho Syd. Animá-lo.» Nós sempre fomos amigos. Grandes ami
gos. Fui muitas vezes como um pai para ele. E Meg foi uma mãe abso lutamente fora de série. Talvez Syd tivesse perdido com a idade a
arte de mentir. Ou talvez nunca a tivesse possuído. Foi uma visita de
circunstância, mais nada. Reconforto, no fundo é só isso. Eu reconfor
to-te, tu reconfortas-me. Ele sempre gostou muito de Meg, sabe? Mes
mo quando ela o percebia bem de mais. Fidelidade. Isso posso eu ga rantir.
Quem é Wentworth? perguntou Brotherhood. ■
O rosto de Syd fechou-se, como uma porta de prisão.
Quem é quem, meu velho?
Wentworth.
Não. Não, não me parece. Não me parece que conheça algum
Wentworth. Deve ser uma terra, não? Porque é que pergunta? Há al
gum Wentworth a causar-lhe problemas?
Sabina. Ele falou-lhe alguma vez numa Sabina? Isso é um cavalo de corrida, não é? Não foi uma Princesa Sabina
^ue esteve para ganhar o Grande Prémio, no'ano passado?
Quem é Poppy?
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Caramba, Magnus anda outra vez a brincar com as beldades?
Também não era filho do pai dele, se o não fizesse.
O que é que ele veio cá fazer? Já lhe disse. Reconforto. E depois, por uma espécie de mag
netismo cruel, o olhar de Syd deslizou até ao ponto onde em tempos es
tivera um móvel, para regressar de novo a Brotherhood, com uma ex
pressão excessivamente descarada.
Pois bem disse Syd. Diga-nos uma coisa, por favor, sim? disse Brotherhood. 0
que é que estava ali naquele canto?
Onde?
Ali.
Nada. Um móvel? Alguma lembrança?
Nada.
Algum objecto da sua mulher que você tenha vendido?
De Meg? Eu não ia vender nada que tivesse sido dela, nem que
estivesse a morrer de fome. Então, o que é que deixou ali aquelas marcas?
Que marcas?
Ali, onde eu estou a apontar. No tapete. O que é que as pôs lá?
Deve ter sido alguma fada. O que é que você tem a ver com isso?
E o que é que Magnus tem a ver com isso? Nada. Já lhe disse. Não se repita. É uma coisa que me incomoda.
E onde é que aquilo que ali estava foi parar?
Desapareceu. Não era nada.
Deixando Syd sentado na cadeira, Brotherhood subiu os degraus das escadas estreitas
dois a dois. Em frente às escadas, ficava a casa de banho. Espreitou lá para dentro, e depois passou ao quarto de dormir, do lado esquerdo. Um grande divã com folhos
enchia quase todo o quarto. Brotherhood espreitou por baixo do divã, remexeu as
almofadas e levantou--as. Abriu a porta do guarda-fatos e afastou uma quantidade de
sobretudos de pêlo de camelo e de vestidos caros de mulher. Nada. Do outro lado do
patamar havia outro quarto de cama, mas sem qualquer móvel pesado, de dois por dois pés, apenas um amontoado de belíssimas ma' Ias de pele branca. Regressando ao rés-do-
chão, Brotherhood inspeccionou a sala de jantar, a cozinha e, pela janela das traseiras, o
pequeno jardim voltado para o aterro. O jardim não tinha barracão nem gara' gem.
Brodierhood voltou à sala de estar. Estava a passar outro comboio-
Esperou que o ruído se desvanecesse antes de começar a falar. Syd estava sentado na
cadeira, muito inclinado para diante. Tinha as mãos cruzadas, segurando a bengala, e o
queixo passivamente apoiado nas mãos.
E as marcas de pneus no jardim? disse Brotherhood. Tam
bém foi alguma fada que as deixou? Então, Syd decidiu-se a falar. Tinha os lábios crispados e as palavras pareciam doer-lhe.
Você é capaz de me jurar, palavra de escuteiro, seu polícia, que
isto tudo é realmente pelo nosso país?
Sim.
E aquilo que ele fez, em que não acredito e que não quero saber, é antipatriótico ou pode sê-lo?
Pode ser. O mais importante de tudo para todos nós é encon
trá-lo.
E jura pela sua saúde que o que me está a dizer é verdade?
Pela minha saúde. Está bem, seu polícia. Porque a verdade é que eu gosto muito
daquele rapaz, mas nunca prejudiquei o meu país. Ele veio cá para me
enganar, é verdade. Ele queria o ficheiro. Um ficheiro verde, muito ve
lho, que Rick me confiava quando estava em viagem. «Agora que Rick
está morto, podes entregar-me os papéis dele. Não tem nada de mal», disse ele. «É perfeitamente legal. Os papéis agora são meus. Sou eu o her
deiro, não sou?»
Que papéis eram esses?
Ávida do pai dele. Todas as suas dívidas. Pode-se dizer que eram os seus segredos.
Rickie guardava-os sempre nesse ficheiro especial. Quanto é que devia a cada um de nós. Um dia havia de compensar toda a gente, e nunca mais nos faltaria nada. Eu
comecei por lhe dizer que não. Tinha dito sempre que não, enquanto Rick era vivo, e
não me parecia que as coisas agora tivessem mudado. Eu disse-lhe: «Ele morreu. Deixa-
o estar em paz. Nunca tiveste um amigo melhor do que o teu Pai, e tu sabes disso.
Portanto, pára de fazer perguntas e mete-te na tua vida». Há algumas coisas más naquele ficheiro. Wentworth era uma delas. Não conheço os outros de quem você falou. Talvez
também lá estejam.
• Talvez.
■ Ele continuou a insistir. Por isso, eu acabei por dizer: «Leva-o». J>e Meg ainda cá
estivesse, ele nunca o teria daqui levado, herdeiro legal °u não; mas ela já cá não está. Não fui capaz de lho negar, a verdade é
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essa. Nunca fiú capaz de lhe dizer que não a nada, nem a ele nem ao pai Ele ia escrever
um livro. Também não gostei dessa história. «O teu pai nunca gostou de livros, Titch», disse eu. «Tu sabes disso. Estudou na universidade da vida.» Mas ele não me deu
ouvidos. Nunca me dava ouvidos quando queria alguma coisa. «Está bem», disse eu.
«Leva-o. E talvez assim te livres dele. Enfia-o no carro e pira-te. Vou chamar o gran-
dalhão do Mick da casa ao lado, para ele te ajudar a transportá-lo.» Ele não quis. «Este
carro não dá para isso», disse ele. «O ficheiro vai para outro lado.» «Está bem», disse eu. «Então, deixa-o cá ficar e cala-te.»
Ele deixou cá ficar mais alguma coisa?
Não.
Trazia uma pasta?
Trazia uma coisa preta amaricada com as armas da rainha e duas fechaduras.
Quanto tempo é que ele cá esteve?
O tempo de que precisou para me enrolar. Uma hora, meia hora,
sei lá. Nem sequer se quis sentar. Não podia. Passou o tempo todo a an
dar de um lado para o outro e a sorrir com a sua gravata preta. Não para va de olhar pela janela. «Ouve lá», disse-lhe eu. «Então, que banco é que
assaltaste? Vou ter de tirar o meu dinheiro cá de casa.» Ele costumava rir-
-se com estas piadas. Desta vez, não riu, mas sorriu, sorriu o tempo todo.
Bom, os funerais afectam as pessoas de maneira muito diferente, não é ver
dade? Mas, seja como for, eu teria passado muito bem sem aquele sorriso. E depois, ele foi-se embora. Com o ficheiro?
Claro que não. Mandou cá um camião, não acha?
Mas é claro disse Brotherhood, amaldiçoando-se pela sua es
tupidez.
Brotherhood estava sentado perto de Syd e poisara o seu whisky ao lado do de Syd em cima da mesa indiana de cobre trabalhado, tão bem areada que brilhava como o sol do
oriente. Syd falava com grande relutância, e a sua voz quase não se ouvia.
Quantos eram? .
Dois tipos.
E você ofereceu-lhes uma chávena de chá? Claro que sim.
Viu o camião deles?
Claro que sim. Estava à espera de o ver aparecer, percebe? Um
camião é uma grande distracção por estes sítios.
De que empresa era?
Não sei. O camião não tinha nada escrito, percebe? Era um ca
mião vulgar. Devia ser alugado.
Cor?
Verde. Alugado a quem?
Como é que quer que eu saiba?
Você assinou alguma coisa?
Eu? Você está doido? Os tipos tomaram o chá, carregaram o mó
vel e piraram-se. Para onde é que eles o iam levar?
Para o depósito, não acha?
Depósito, aonde? '
Em Canterbury.
Tem a certeza? Claro que tenho a certeza. Canterbury. Uma encomenda para
Canterbury. E depois, queixaram-se por aquilo ser muito pesado. E o
costume. Acham que lhes faz mal.
Não disseram que a encomenda era para Pym? >
Para Canterbury. Já lhe disse. , . E tinham alguma indicação de um nome?
Lemon. Ir a casa de Lemon buscar a encomenda para Canter
bury. Lemon sou eu. A Resposta é um limão39.
Viu a matrícula?
Claro que sim. Até tomei nota dela. As matrículas de camiões são o meu hobby.
Brotherhood conseguiu sorrir.
Bom, e pelo menos lembra-se de que marca era o camião? per
guntou ele. Sinais particulares ou coisas do género?
Era uma pergunta bastante inofensiva, e inofensivamente colocada. O próprio Brotherhood não esperava dela grande coisa. Era o tipo de pergunta que, a não ser feita,
deixa um espaço em branco, mas que, quando a fazemos, não produz dividendos; faz
parte da bagagem indispensável do ofício de inquiridor. E, no entanto, foi a última que
Brotherhood fez a Syd naquele fim de tarde de Outono e, na realidade, foi ^mbém a
última na sua curta, mas desesperada perseguição atrás de ^agnus Pym, porque depois dela, apenas lhe restava ocupar-se das res-Postas. Mas Syd recusou-se terminantemente.
Começou a falar, mas tnudou de ideias e fechou a boca com um pequeno estalido. O
queixo 'evantou-se-lhe das mãos, a cabeça ergueu-se, e depois, a pouco e pou-
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co, todo o seu pequeno corpo se ergueu também da cadeira, com difi. culdade, mas
aprumo, como se um clarim distante o tivesse convocado para uma última parada. De
costas curvadas, apoiou-se na bengala que tinha ao seu lado.
Não quero ver esse rapaz na cadeia disse Syd, com a voz en-rouquecida. Está a ouvir?
E não vou ajudá-lo a metê-lo lá. O pai dele esteve na cadeia. Eu estive na cadeia. E não quero ver o rapaz lá metido. É uma ideia que não me agrada. Não tenho nada de pessoal
contra si, seu polícia, mas vá-se embora e siga o seu caminho.
Acabou-se, pensou calmamente Brotherhood, percorrendo com o olhar a mesa das
reuniões cheia de gente a toda a volta, na suite de Bram-mel no Quinto Andar. É este o
meu último festim convosco. Quando sair por aquela porta, serei um tipo de sessenta anos, filho de um guar-da-caça. Uma dúzia de pares de mãos estavam estendidas sob a
luz do candeeiro como cadáveres por identificar. À esquerda de Brotherhood,
definhavam as mangas de lã talhadas à medida do representante do ministério dos
Negócios Estrangeiros, Dorney. Leões heráldicos enfeitavam os seus botões de punho
de ouro. A seguir a Dorney, repousavam as pontas dos dedos bem cuidados do seu chefe Brammel, cujas raízes no centro do Surrey eram mais do que evidentes. Depois de Bo,
estava Mountjoy do Gabinete. E finalmente, os outros. Bo seu alheamento crescente,
Brotherhood sentia dificuldade em ligar as vozes às mãos. Mas isso já não tinha
importância, porque naquela noite, todos eles eram uma única voz e uma só mão inerte.
Eles são a entidade organizada que eu em tempos acreditei ser maior do que a soma das suas partes, pensou ele. Durante a minha vida, presenciei o nascimento do avião a jacto,
da bomba atómica e do computador, e a morte das instituições britânicas. É apenas de
nós próprios que temos de nos libertar. O ar húmido da noite tinha um cheiro a
decomposição. Nigel lia a certidão de óbito.
Eles esperaram à porta da casa dos Lumsden até às seis e doze, e depois, telefonaram para lá de uma cabina, ao fundo da rua. Mrs. LurnS" den disse que ela e a criada
estavam naquele momento à procura de Mrs-Pym. Mary tinha ido passear no jardim das
traseiras e ainda não voltara. Saíra há mais de uma hora. O jardim estava vazio. Quanto
a Lurns den estava na Residência. Aparentemente, o embaixador tinha-o con vocado.
Espero que ninguém vá tentar responsabilizar os Lumsden por
isto disse Dorney.
Claro que não disse Bo.
Mary não deixou nenhum bilhete, nenhum recado a ninguém prosseguiu Nigel. Durante o dia mostrara-se preocupada, mas
isso era bem natural. Verificámos as listas de passageiros e descobrimos
que ela fizera uma reserva em classe turística para o voo da British Air
ways, que vem para Londres amanhã de manhã. Como endereço, indi
cou o Imperial, de Viena. Para o voo de hoje de manhã corrigiu alguém, e Brotherhood
viu o relógio de ouro de Nigel cintilar de ira na sua direcção.
Está bem, no voo de hoje de manhã concordou Nigel, com
impaciência. Quando fomos ao Imperial, ela já não estava no quar
to, e quando tentávamos o aeroporto pela segunda vez, descobrimos que Mary ocupara uma desistência no último voo do dia da Lufthansa, para
Francfort. Infelizmente, não conseguimos obter esta informação antes
do voo de Francfort já ter chegado ao seu destino.
Ela enganou-vos, pensou Brotherhood, com uma satisfação vizinha do orgulho. Mary é
uma rapariga como deve ser e conhece as regras do jogo. Não acha que é uma pena não terem descoberto essa história de
Francfort da primeira vez que foram ao aeroporto? disse audaciosa
mente um céptico, da outra ponta da mesa.
Claro que foi pena respondeu bruscamente Nigel. Mas se
tivesse estado com um pouco mais de atenção, ter-me-ia ouvido dizer que Mary apanhou uma desistência no voo. Portanto, a lista de passa
geiros oficial, com o nome dela, só ficou completa no preciso momen
to em que o avião descolou.
Mesmo assim, parece-me que houve aí alguma desorganização
disse Mountjoy. Então, e a lista de passageiros provisória? Não, pensou Brotherhood. Não é desorganização. Para haver de
sorganização, tem de começar por haver uma ordem. Isto é inércia, é
anormalidade. Aquilo que em tempos foi um grande serviço é hoje um
ser híbrido e imobilizado meio burocrata, meio pirata, e servindo-se
dos argumentos de um para negar o outro. Então, onde é que ela está? perguntou alguém.
Não sabemos disse Nigel, com satisfação. E a menos que
vamos pedir aos alemães, e eventualmente aos americanos, que proce
dam a buscas em todos os hotéis de Francfort, o que me parece no mí-
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nimo excessivo, não consigo ver que mais poderemos fazer. Ou pudéssemos ter feito.
Francamente.
Jack? disse Brammel.
Brotherhood ouviu perder-se na escuridão uma versão mais antiga da sua própria voz. Só Deus sabe disse ele. Provavelmente, estará muito bem
sentada em Praga.
De novo, Nigel.
Não sabemos que ela tenha feito nada de mal. Não podemos
mantê-la presa contra a sua vontade, sabem? Ela é uma cidadã livre. Se o filho quiser ir ter com ela, para a semana que vem, também não po
demos fazer grande coisa contra isso.
Mountjoy deu voz a uma preocupação que estivera já a ruminar.
Acho que a nossa escuta daquele telefonema para a embaixada
americana é realmente extraordinária. Essa Lederer sentada em Viena a berrar para o marido uma história de duas pessoas que trocavam men
sagens na igreja. Era da nossa igreja que ela estava a falar. Mary estava
lá. Não podíamos ter deduzido daí alguma coisa?
Nigel já tinha a resposta preparada:
Infelizmente, isso só seria possível bastante mais tarde. De modo perfeitamente compreensível, os funcionários do serviço de escutas não
viram nada de especial naquele telefonema e só no-lo transmitiram vin
te e quatro horas depois. A informação que nos poderia ter posto de so
breaviso ou seja, a de que Mary talvez tivesse sido vista num aparta
mento secreto dos serviços checos, onde o tal Petz Não Sei Que Mais já tinha estado instalado chegou assim até nós antes do telefonema.
Não nos podem censurar por não termos posto o carro à frente dos bois,
pois não?
Ninguém parecia ter opinião formada sobre o assunto.
Mountjoy disse que era tempo de se tomar uma decisão. Dorney disse que precisavam realmente de decidir se haviam ou não de meter a polícia no caso, fazendo circular a
fotografia de Pym, e tanto pior. Ao ouvir aquilo, Brammel ressuscitou bruscamente.
Se fizermos uma coisa dessas, só nos resta depois fechar a loja
disse ele. Estamos tão próximos do nosso objectivo! Quente, Tão é
verdade, Jack? Infelizmente, parece-me que não disse Brotherhood.
Mas é claro que estamos!
É uma questão de nos pormos a adivinhar. Mesmo assim. Preci-
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i samos de descobrir o camião de mudanças. Isso também não vai ser um trabalho
simples.
Ele deve ter-se servido de uma firma semiclandestina. A polícia sabe
; como se chega lá. Nós não temos qualquer hipótese. Ele usa agora o nome de
Canterbury. Pelo menos, é o que pensamos. Chegámos a essa t conclusão, porque, no passado, todos os seus nomes profissionais foram nomes de
lugares, é um dos tiques dele. Coronel Manchester, Mr. Hull, Mr. Gulworth. Por outro
lado, também é possível que eles tenham mes-
1 mo levado o ficheiro para Canterbury e que Canterbury seja o lugar onde ele está. Ou
que os homens o tenham levado para Canterbury e não seja lá que ele está. Precisamos de uma praça junto ao mar e de uma casa com uma mulher de quem ele aparentemente
gosta muito. Não na Escócia, nem no País de Gales, porque é aí que ele diz que ela está.
Não temos condições para passar a pente fino todas as cidades costeiras do Reino
Unido. Mas a polícia tem.
Ele é louco disse um fantasma. Sim, é louco. Há mais de trinta anos que nos anda a trair e até
agora não o conseguimos perceber. O erro foi nosso. Mas também de
vemos concordar que ele consegue bastante bem parecer normal quan
do tem necessidade disso, e que o seu trabalho é realmente de qualida
de. Haverá alguém que esteja mais próximo dele do que eu? A porta abriu-se e tornou a fechar-se. Kate estava diante deles com uma pilha de
dossiers listados de vermelho. Estava pálida e muito direita, como uma sonâmbula.
Colocou um dossier diante de cada um dos presentes.
. Isto acabou de chegar da Sign Int disse ela, dirigindo-se ape-
nas a Bo. Confrontaram as transmissões checas com o livro Simpli- ( cissimus. Os resultados são positivos.
Às sete da manhã, as ruas de Londres estavam vazias, mas Brotherhood percorria-as
como se estivessem cheias, com as costas direitas por entre os fracos e os vacilantes, um
homem forte no meio da multidão. Um polícia solitário deu-lhe os bons-dias.
Brotherhood era o género de pessoa que os polícias cumprimentam. Obrigado, guarda, pensou ele, avançando com ar ainda mais determinado. Você acabou de sorrir ao
homem que protegeu amigavelmente o mais recente dos traidores de amanhã o homem
que desfez as críticas endereçadas a esse seu protegido, até já não haver resposta
possível, e que depois desfez os ar-
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gumentos que o defendiam, quando a situação se tornou insustentá vel. Porque é que eu
estou agora a começar a compreendê-lo? per. guntou-se Brotherhood, surpreendido pela sua própria tolerância. Porque é que, no meu coração, senão na minha inteligência, sinto
um impulso de compreensão perante o homem que passou a vida a transformar os meus
êxitos em fracassos? Ele fez-me pagar pelo que o obriguei a fazer.
Belinda dissera: «A culpa foi tua». Então, porque é que, como lhe acontecera quando
ficara com o braço desfeito e pendente, Brotherhood estava ainda à espera de sentir a dor?
Ele está em Praga, pensou. A perseguição montada nestes últimos dias foi uma dança
dos véus checa para nos fazer olhar para outro lado, enquanto o punham em lugar
seguro. Mary nunca teria ido para lá se Magnus não tivesse ido primeiro. Mary nunca
iria para um sítio daqueles, ponto final. Iria? Não iria? Brotherhood não sabia e não confiaria em ninguém que dissesse saber.
Deixar para trás Plush e toda a sua natureza britânica? Por Magnus, agora? Ela nunca o
faria. Ela fá-lo-ia por Magnus. Para ela, Tom virá sempre em primeiro lugar. Ela fica.
Ela vai levar Tom consigo. Preciso de uma mulher.
Na esquina de Half Moon Street, havia um café que estava aberto toda a noite e, numa outra madrugada, Brotherhood poderia lá ter parado e deixar que as prostitutas cansadas
se metessem com o seu cão; em contrapartida, Brotherhood ter-se-ia metido com elas,
oferecendo--lhes café e conversando, porque gostava daquele ofício, daquelas caras,
daquela mistura de delicadeza humana e estupidez. Mas o cão estava morto e, de
momento, estava morta também a sua vontade de se divertir. Abriu a porta de casa e dirigiu-se ao armário onde estava o vodka. Serviu-se de um reconfortante meio copo e
bebeu. Pôs a água a correr, ligou o transístor e levou-o para a casa de banho. O
noticiário referia desgraças um pouco por toda a parte, mas não falava de um casal de
diplomatas ingleses que tivesse aparecido em Praga. Se os checos quiserem chamar as
atenções, vão fazê-lo à hora do almoço para apanharem o noticiário da noite na televisão e os jornais de amanha, pensou ele. Começou a fazer a barba. O telefone
estava a tocar, b i^1"
gel a dizer que o descobrimos, que ele tinha passado todo este tempo no clube. É o
funcionário de serviço a avisar que o ministério dos Negócios Estrangeiros de Praga convocou uma conferência de imprensa ao meio-dia, para correspondentes estrangeiros.
É Steggie a dizer que gosta de homens fortes.
Desligou o rádio, foi nu até à sala de estar, agarrou no auscultador, disse: «Sim?», e
ouviu um silvo, e depois mais nada. Contraiu os lábios, prevenindo-se a si próprio para
não falar. Brotherhood implorava. Estava, de facto, a implorar. Fala, implorou. Diz alguma coisa. E depois ouviu três pequenos toques de uma moeda ou de uma lima no
bocal: Código de Praga. Olhou à sua volta à procura de um objecto metálico, viu a
caneta de tinta permanente na secretária e conseguiu alcançá-la sem largar o telefone.
Deu um toque como resposta: Estou a ouvir. Mais dois toques, e depois outros três.
Fique onde está, dizia a mensagem. Tenho informações para si. Deu quatro toques com a caneta no bocal e ouviu dois como resposta, antes do autor da chamada desligar.
Passou os dedos pelo cabelo cortado curto. Levou o vodka para a secretária e sentou-se
com a cara entre as mãos. Mantém-te vivo, implorou. São as redes de agentes. É Pym a
compor tudo. Mantém-te alerta. Estou aqui, se é isso que queres saber. Estou aqui, à
espera do teu próximo sinal. Não telefones outra vez enquanto não estiveres preparado. O telefone gritou uma segunda vez. Brotherhood levantou o auscultador, mas era apenas
Nigel. Disse que a descrição e fotografia de Pym já tinham sido mandadas para todas as
esquadras de polícia do país. Os serviços só mantinham em funcionamento os telefones
das operações. Bo mandara desligar as linhas de Whitehall. Os tipos da Imprensa
começavam já a arrombar as portas. Porque é que ele me telefonou? interrogou-se Brotherhood. Será por se sentir sozinho ou para me dar uma oportunidade de dizer que
acabei de receber um telefonema estranho de um agente que se serviu do código de
Praga? Foi por causa do telefonema, decidiu ele.
Acabei de receber um telefonema de um engraçadinho qualquer com um sinal do
código da Checoslováquia disse Brotherhood. Uei-lhe o sinal para falar, mas ele não quis. Só Deus sabe o que terá sido.
Se houver mais alguma coisa, informa-me imediatamente. Ser
ve-te da linha das operações.
Já me tinhas dito disse Brotherhood.
Outra vez a espera. Pensando em to.dos os agentes que alguma vez tinham atravessado o território inimigo. Demora o tempo que for pre-
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ciso. Anda com precaução e confiança. Não entres em pânico. Não cor ras. Demora o
tempo que for preciso. Escolhe bem a cabine. Ouviu ba ter à porta. Bolas, é alguém a pedir. Foi Kate que exagerou na dose dos comprimidos. É aquele idiota do rapaz árabe
que vive lá em baixo e que está sempre a dizer que os canos da minha casa de banho
estão rotos e molham a dele. Enfiou um roupão, abriu a porta e viu Mary. Puxou-a para
dentro e fechou a porta com força. Não soube nunca o que, a seguir, lhe passou pela
cabeça. Alívio ou fúria, remorso ou indignação. Deu-lhe uma bofetada e depois outra, e num dia normal tê-la-ia levado imediatamente para a cama.
Há um sítio chamado Farleigh Abbott, ao pé de Exeter disse ela.
E então?
Magnus disse-lhe que tinha arranjado uma casa para a mãe, ao
pé do mar, no Devon. Disse, a quem?
A Poppy. O chefe checo dele. Estudaram juntos em Berna. Ele
acha que Magnus se vai matar. Percebi de repente. É isso que está na
Caixa Destruidora, juntamente com o material secreto. A arma da de
legação de Viena. Não é verdade? Como é que sabes que é em Farleigh Abbott?
Ele disse que a mãe estava no Devon. Ele não tem porcaria de
mãe nenhuma. O único lugar dele no Devon é Farleigh Abbott. Quan
do dizia: «Uma vez, estive no Devon», ou então: «Vamos passar umas fé
rias no Devon», era sempre Farleigh Abbott. Nunca chegámos a ir, e ele deixou de falar no assunto. Rick costumava levá-lo lá nas saídas do co
légio. Faziam piqueniques e andavam de bicicleta na praia. E um dos
seus lugares ideais. Ele está lá com uma mulher. Tenho a certeza.
XV Não sei se poderás imaginar, Tom, com que alegria no seu coração juvenil o brilhante
oficial dos serviços de informações e incomparável amante celebrou o termo dos seus
dois anos de serviço devotado à bandeira, na longínqua Áustria, preparando-se para
regressar à Inglaterra civil. A sua despedida de Sabina não foi tão dilacerante como ele
receara, porque, à medida que o dia se aproximava, ela simulava uma indiferença eslava perante a sua partida.
Serei uma mulher feliz, Magnus. As tuas esposas inglesas não
hão-de ficar a olhar para mim com ar irritado. Serei uma economista e
uma mulher livre, e não a cortesã de um soldado frívolo. Nunca nin
guém chamara antes frívolo a Pym. Sabina chegou a meter uma licen ça antes de ele partir, a fim de evitar a dor da despedida. Ela está a mos
trar-se corajosa, disse Pym para consigo. O seu adeus a Axel, embora
assombrado pelos boatos de novas purgas, não foi também demasiado
conturbado para Pym.
Sir Magnus, independentemente do que me acontecer, fizemos juntos um excelente trabalho disse ele, na luz do fim de tarde, en
quanto se encontravam frente a frente à entrada do celeiro, que se con
vertera na segunda casa de Pym. Não se esqueça de que me deve du
zentos dólares.
Não me esquecerei disse Pym. Iniciou a longa caminhada de regresso até aojeep do sargento Kauf-ann. Voltou-se para
acenar, mas Axel já desaparecera na floresta.
Os duzentos dólares recordavam a Pym a crescente intimidade en-tre ambos, ao longo
dos últimos meses daquela relação.
" O meu pai tornou-me a pedir dinheiro dissera Pym certa noi-te> enquanto os dois fotografavam um livro de código que Pym tirara "° armário de críquete de Membury. A
polícia da Birmânia quer Prendê-lo.
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Então, mande-lhe o dinheiro respondera Axel, fazendo rodar
a película da máquina fotográfica. Depois, pôs o rolo no bolso e colo
cou um novo na máquina. Quanto é que ele quer?
Seja quanto for, não o tenho. Sou um oficial subalterno, que re
cebe treze xelins por dia, não sou milionário. Axel parecera desinteressar-se do assunto, e começaram os dois a falar do sargento
Pavel. Axel disse que era tempo de encenarem uma nova crise na vida de Pavel.
Mas ele ainda o mês passado teve uma crise objectara Pym.
A mulher pô-lo fora do apartamento por embriaguez, e nós tivemos
de o ajudar a comprar o regresso a casa. Precisamos de uma crise repetira Axel, com firmeza. Vie
na está a começar a contar com ele a todo o momento, e eu não estou a
gostar do tom das perguntas deles.
Pym foi encontrar Membury sentado à secretária. O sol da tarde fazia-lhe brilhar uma
das faces do rosto amigável, enquanto lia um livro acerca de peixes. Infelizmente, Greensleaves quer um bónus de duzentos dólares
em dinheiro disse ele.
Oh, meu caro, mas nós já lhe pagámos imenso dinheiro este mês!
Que diabo, para que é que ele quer tantos dólares?
Tem de pagar um aborto à filha. O médico só aceita dólares americanos e o caso está a tornar-se urgente.
Mas a filha só tem catorze anos. Quem foi o homem? Deviam
mandá-lo para a cadeia.
É aquele capitão russo do quartel-general.
Que porco. Que perfeito animal. Pavel também é católico, sabe? recordou Pym. Concordo
que não é muito bom católico, mas também não é fácil para ele.
Na noite seguinte, Pym contou duzentos dólares na mesa do celeiro. Axel devolveu-
lhos.
Para o seu pai disse ele. É um empréstimo que lhe faço. Não posso fazer isso. Isto é dinheiro dos serviços.
Agora já não é. Agora pertence ao sargento Pavel. Pym con'
tinuou a não querer aceitar o dinheiro. E o sargento Pavel em
presta-lhos como amigo disse Axel, arrancando uma folha do
seu bloco. Tome, passe-me um recibo. Assine-o e um dia eu cobrar- -lho-ei.
Pym partiu com o coração aliviado, confiando que Graz e todas
suas responsabilidades, como acontecera com Berna, deixariam de existir no momento
em que o seu comboio entrasse no primeiro túnel.
Ao entregar as armas no depósito dos serviços de informação do exército, no Sussex,
Pym recebeu a seguinte carta PARTICULAR E CONFIDENCIAL das mãos do oficial
encarregado da desmobilização: Grupo de Investigações no Estrangeiro do Governo Britânico
Caixa Postal 777, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Londres SW1.
Caro Pym:
amigos comuns da Áustria falaram-me no seu nome, dizendo que você poderia estar
interessado num emprego mais estável. Se isto corresponde à verdade, gostaria de almoçar comigo no Travellers' Club, para termos uma conversa informal, sexta-feira,
dia 19, as 12 e 45?
(ass.) Sir Alwyn Leith, C. M. G.
Durante vários dias, um misterioso escrúpulo impediu Pym de responder. Preciso de
novos horizontes, disse ele para consigo. São bons tipos, mas limitados. Uma manhã em que se sentiu mais forte, escreveu, lamentando não poder aceitar por tencionar seguir a
carreira eclesiástica.
Há sempre a Shell, Magnus disse a mãe de Belinda, que le
vava muito a peito o futuro de Pym. Belinda tem um tio na Shell,
não é verdade, minha querida? Ele quer fazer alguma coisa que valha a pena, mãezinha dis
se Belinda, batendo com o pé e fazendo abanar a mesa do pequeno-al-
Já é tempo de alguém querer isso mesmo disse o pai de Belinda de trás do seu
Tefegraph, achando por uma razão desconhecida niuita graça ao seu comentário e
continuando a rir por entre os dentes Separados, enquanto Belinda saía tempestuosamente para o jardim, lum acesso de fúria.
Candidato mais interessante aos serviços de Pym era Sefton Boyd, que recebera uma
herança e tinha a intenção de abrir um nightclub com Viu. Escondendo de Belinda essa
informação, porque ela tinha uma
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opinião desfavorável dos night clubs e dos Sefton Boyd, Pym disse n um compromisso
o obrigava a visitar o seu antigo colégio e dirigiu.Sen propriedade familiar dos Sefton
Boyd, na Escócia, onde Jemirna o f 1 buscar à estação. Conduzia o mesmo Land Rover
de onde o observa carrancudamente quando os dois eram crianças. Estava mais bonita c que nunca.
O que é que achaste da Áustria? perguntou ela, enquanto sw
guiam em alegres solavancos pelas Highlands de cor púrpura, em diJ
recção a um monstruoso castelo vitoriano.
Foi óptimo disse Pym. Passaste o tempo todo a praticar boxe e râguebi?
Não, nem todo confessou Pym.
Jemima lançou-lhe um longo olhar interessado.
Os Sefton Boyd viviam num mundo sem pais. Um velho criado com ar desaprovador
serviu-lhes o jantar. Depois, jogaram o gamão até Jemima se sentir cansada. O quarto de Pym era do tamanho de um campo de futebol e igualmente frio. Acordou do seu sono
leve e ficou imóvel a olhar uma luz vermelha intermitente, a brilhar na escuridão como
um pirilampo. A luz baixou e desapareceu. Uma forma clara avançou para ele. Pym
respirou um cheiro a cigarro e a pasta de dentes e sentiu o corpo nu de Jemima
acomodar-se suavemente contra o seu, e os lábios de Jemima encontrarem os seus próprios lábios.
Se não te importas, pomos-te na rua na sexta-feira, está bem?
disse ela, durante o pequeno-almoço que os três tomaram na cama,
numa bandeja transportada por Sefton Boyd. É só porque Mark
vem cá passar o fim-de-semana. Quem é Mark? perguntou Pym.
Bom, a verdade é que vou casar com ele disse Jemima. &
pudesse casava com o Kenneth, mas ele é muito convencional nessas
coisas.
Renunciando às mulheres, Pym escreveu ao British Council oferecendo-se para distribuir cultura entre os primitivos, e ao seu velho pr° fessor Willow, pedindo-lhe um
lugar de professor de alemão. «i>int muito a falta da disciplina do colégio e fiquei-lhe
com uma lealdade toda a prova desde a altura em que o meu pai não pagou as propinas-'
Escreveu a Murgo a dizer que tencionava fazer um longo retiro, em ra tivesse a
prudência de deixar no vago a questão das datas. Escrev
os católicos de Farm Street, solicitando prosseguir a educação religiosa que iniciara em
Graz. Escreveu para uma escola inglesa em Genebra para uma escola americana em
Heidelberg, e ainda para a BBC sempre no mesmo espírito de mortificação. Escreveu
para as velhas escolas de Leis de Londres, informando-se acerca das possibilidades de estudar Direito. Depois de assim se ter cercado de uma infinidade de alternativas,
preencheu um enorme formulário, onde descrevia em pormenor a sua brilhante
existência até àquele momento, e enviou-o para a comissão de colocação de Oxford,
procurando uma nova possibilidade. Era uma manhã cheia de sol, e a velha cidade
universitária deslumbrou-o com recordações descuidadas dos seus tempos de informador comunista. O seu interlocutor era excêntrico, senão completa-mente louco.
Pôs os óculos, ajustando-os no alto do nariz. Prendeu-os entre os caracóis grisalhos,
como um corredor de automóveis efeminado. Ofereceu xerez a Pym e pôs-lhe uma das
mãos no rabo para o empurrar na direcção de uma grande janela que dava para uma fila
de casas camarárias. E que tal passar a vida no mundo repugnante da indústria?
sugeriu ele.
Para mim, estaria óptimo.
Só se gostar de comer na companhia do pessoal. Gosta de co
mer com o pessoal? Sabe, na realidade, eu não tenho grande consciência de classe, sir.
Que encanto! E gosta de estar engordurado até aos cotovelos?
Pym disse que, na realidade, isso também não lhe fazia impressão,
mas nessa altura estava já a ser conduzido até a uma segunda janela de onde se viam
alguns pináculos e um relvado. Tenho um emprego subalterno na biblioteca do Museu Britâni-
co e uma espécie de lugar de terceira na Câmara dos Comuns, que é a
versão proletária da Câmara dos Lords. Tenho umas insignificâncias no
Quénia, Malásia e no Sudão. Quanto à índia, não posso fazer nada por
S1> porque ma tiraram. Gosta do estrangeiro, ou detesta? Pym disse que o estrangeiro era óptimo, que tinha andado na uni-versidade em Berna. O
seu interlocutor ficou perplexo. Julguei que tinha feito a universidade aqui. Aqui
também disse Pym. Ah! Diga-me, você gosta do perigo? Na realidade, gosto imenso.
Meu pobre rapaz. Não esteja sempre a dizer «na realidade». E
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£t
será capaz de depositar uma confiança absoluta em quem for suficjeri I temente ousado
para o contratar? Sim.
Será capaz de adorar o seu país para o melhor e para o pior, com
a ajuda de Deus e do Partido Conservador?
Sim disse Pym, rindo.
Acredita que nascer inglês é ser um vencedor nato na grande lo taria da vida?
Bom, sim, para dizer a verdade, também acredito nisso.
Então, faça-se espião sugeriu o seu interlocutor, tirando da
secretária mais um formulário de candidatura, e estendendo-o a Pym.
Jack Brotherhood manda cumprimentos e pergunta porque diabo não contactou você com ele nem quer almoçar com o simpático recru-
tador?
Podia encher páginas e páginas, Tom, a descrever os prazeres voluptuosos de se ser
entrevistado. De entre as artes de integração que Pym dominava e que foi apurando ao
longo da sua vida, a da entrevista deve ocupar o lugar de honra. Nesse tempo, não tínhamos esses al-drabões do ministério, como lhes chama o teu tio Jack. Não havia
ninguém que não fosse ele próprio um cidadão do mundo secreto, abençoado pela
inocência imaculada do privilégio. Aquilo que eles conheciam de mais próximo da
experiência da vida era a guerra, e viam a paz como a sua continuação por outros meios.
No entanto, de acordo com as normas do mundo exterior, as vidas dos senhores dos Serviços tinham sido tão isentas de provação, tão infantis e suaves na sua simplicidade,
tão fechadas na sua rede imediata de relações, que precisavam de uma esquadrilha de
marginais para entrarem em contacto com a sociedade que julgavam piamente estarem a
proteger. Pym sentava-se diante deles, calmo, pensativo, resoluto, modesto. Pym dava
ao rosto ora uma ora outra expressão, umas vezes de reverência, outras de receio, de zelo, de sinceridade apaixonada ou de bom humor delicado. Exibia um ar de agradável
surpresa quando ouvia dizer que os seus tutores pensavam maravilhas a respeito dele, e
um orgulho severo a saber que o exército também o apreciara. Mostrava-se escrupuloso
com modéstia e gabava-se com modéstia. Separava os semicrentes d crentes e não
descansava até os transformar a todos em membros talícios, com as quotas pagas de antemão, do clube dos apoiantes Pym.
Agora fale-nos do seu pai, está bem, Pym? disse um horne"1
de bigode pendente, que lhe lembrava incomodamente o de Axel. parece-me ser um tipo
bastante pitoresco. Pym sorriu pesarosamente, pressentindo a intenção. Pym gaguejou delicadamente antes
de se recompor.
Infelizmente, ele às vezes é um pouco pitoresco de mais, sir
disse ele, num confuso riso masculino. Para ser franco, não o vejo
muitas vezes. Continuamos amigos, mas prefiro manter-me afastado. Na realidade, sou obrigado a fazê-lo.
Pois. Bom, não me parece que o possamos responsabilizar pelos
pecados do seu velhote, não é verdade? disse com indulgência o seu
interlocutor. É a si que estamos a entrevistar, e não o seu paizinho.
O que é que eles saberiam de Rick e a que ponto os preocupava o que sabiam? Ainda hoje, me vejo limitado a conjecturas, porque essa questão nunca mais foi levantada, e
tenho a certeza de que ficou oficialmente esquecida alguns dias depois da admissão de
Pym. Afinal de contas, os gentlemen ingleses não se discriminam entre si por motivos
de filiação, mas apenas de educação e maneiras. Uma vez por outra, eles devem ter lido
notícias acerca das quedas mais espectaculares de Rick, e talvez se tenham permitido um sorriso divertido. Aqui e além, presumivelmente, foram postos de pé atrás pelos
seus contactos comerciais. Mas suspeito que Rick, no fundo, era um trunfo. Uma dose
benéfica de tendências criminosas na hereditariedade de um jovem espião nunca o
prejudicou, raciocinavam eles. «Ele cresceu numa escola dura» diziam uns aos outros.
«Pode vir a ser útil.» A última pergunta da entrevista e a resposta de Pym ecoam para sempre na minha
cabeça. O autor da pergunta foi um militar vestido de tweed.
Ouça lá, jovem Pym disse ele, movendo a cabeça bucólica.
*ocê é entendido nas questões checas. Fala um bocadinho a língua de
les, conhece a gente de lá. O que é que me diz sobre as purgas e as pri sões que por lá se estão a dar? Preocupam-no?
Acho que as purgas são perfeitamente assustadoras, sir. Mas
eram de esperar disse Pym, fixando o seu olhar sério numa estrela
distante e inatingível.
Porque é que eram de esperar? perguntou o militar, como se tudo devesse ser inesperado.
E um sistema corrupto. Sobreposto a um sistema tribal. Só pode
sobreviver através do exercício da opressão. -
Sim, sim. É verdade. E o que é que você faria perante a situação? 504
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Em que qualidade, sir? Na qualidade de um de nós, seu tolo. Como oficial dos nossos
serviços. Falar é fácil. Nós fazemos coisas.
Pym não precisou de pensar para responder. A sua sinceridade patente respondeu por
ele no mesmo instante:
Eu jogaria o jogo deles, sir. Dividi-los-ia, uns contra os outros Espalharia boatos e suspeitas, acusações falsas. Agiria segundo a lei da
selva.
Quer dizer que não se importava de fazer com que inocentes fos
sem metidos na cadeia pela polícia do seu próprio país? Não acha que
é um bocado duro de mais? Um bocado imoral? Não, se isso abreviar a vida do sistema. Não, sir, acho que não.
E também não estou assim tão convencido da inocência desses homens.
Proust diz que, na nossa vida, acabamos por nos dedicar não ao primeiro, mas ao
segundo dos nossos talentos. Qual seria o primeiro talento de Pym é algo que nunca
saberei. Aceitou a oferta dos serviços. Abriu o seu Times e leu com igual desprendimento a notícia do seu noivado com Belinda. O meu caso está já resolvido,
pensou ele. Metade de mim para os serviços e metade para Belinda, nunca mais me
faltará nada.
Olha agora o primeiro grande casamento de Pym, Tom. Realiza-se, em larga medida,
sem a sua participação, durante os seus últimos meses de preparação e treinos, no intervalo entre a aprendizagem dos métodos de assassinato silencioso e um seminário de
três dias intitulado «Conheça o seu Inimigo», dirigido por um jovem instrutor vibrante
da London School of Economics. Imagina o modo como Pym gozou esta preparação
inverosímil da sua nova condição de homem casado. A graça que aquilo teve. A
sensação de irrealidade vertiginosa. Perseguiu o fantasma de Buchan através dos pântanos de Argyll. Andou às voltas em barcos de borracha, operando desembarques
nocturnos em bancos de areia, com chocolate quente à sua espera no quartel-general do
inimigo vencido. Lançou-se de aviões, embrenhou-se nas tintas secretas, aprendeu
morse e martelou mensagens de rádio escatológicas para a atmosfera estimulante da
Escócia. Viu um avião Mosquito planar cem pés acima dele na escuridão e lançar um caixote cheio de pedras em vez de abastecimentos autênticos. Entrou em jogos secretos
de perseguição nas ruas de Edimburgo, fotografou cidadãos inocentes sem eles da-
rem por isso, disparou balas verdadeiras sobre alvos móveis em salas de estar de cenário
e mergulhou o seu punhal no diafragma de um saco Je areia pendurado a oscilar tudo pela Inglaterra e pelo rei Harry. Nos momentos de calma, foi enviado para a galante
Bath a fim de aperfeiçoar o seu checo aos pés de uma senhora idosa chamada Frau
Kohl, que vivia numa casa em forma de meia-lua de um esplendor empobrecido.
Enquanto bebiam chá e comiam muffins aloirados, Frau Kohl mostrava-lhe álbuns de
fotografias da sua infância em Carlsbad, agora chamada Karlovy Vary. Mas você conhece muito bem Karlovy Vary, Mr. Sanderstead!
exclamou ela quando Pym exibiu os seus conhecimentos. Já lá es
teve, não é verdade?
Não disse Pym. Mas tenho um amigo que esteve lá.
E depois, Pym regressava à base, algures na Escócia, para retomar o fio rubro da violência que se entretecia em todas as coisas novas que estava agora a aprender. Essa
violência não diz apenas respeito ao corpo. F, também a necessária violação da verdade,
da amizade e, se preciso for, da honra, no interesse da Mãe Inglaterra. Somos os tipos
que fazem o trabalho sujo, para que almas mais puras possam dormir à noite em
sossego. É claro que Pym já antes ouvira estes argumentos na boca dos Mi-chaels, mas agora tem de os ouvir de novo da boca dos seus novos patrões, que vêm de Londres em
peregrinação para prevenirem os jovens por polir contra os estrangeiros manhosos com
os quais terão de lidar um dia. Lembras-te da tua própria visita, Jack? Foi uma noite de
gala, perto do Natal: vem cá o grande Brotherhood! Pendurámos fitas nas traves do
tecto. Sentas-te à mesa dos responsáveis, na nossa excelente cantina, enquanto nós, jovens, esticávamos o pescoço para ver de relance um dos grandes mestres do Jogo.
Depois de jantar, reunimo-nos à tua volta em semicírculo com o nosso cálice de Porto
subsidiado na mão, e tu contaste-nos histórias de feitos de bravura até à hora de irmos
para a cama, sonhar que viríamos a ser como tu, embora, infelizmente, já não
pudéssemos viver a tua querida guerra, mesmo que fosse para isso que estávamos a ser treinados. Lembras-te como de manhã, antes de partires, visitaste Pym, enquanto ele
estava a fazer a barba, e o felicitaste pelas excelentes provas dadas até ao momento?
E vais casar com uma bela rapariga disseste.
Ah, sim, conhece-a, sir? disse Pym.
Não, mas os relatórios dizem bem dela respondeste, compla- '^"temente.
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E depois, foste-te embora, convencido de que atiraras um pouCo mais de poeira mágica
para os olhos de Pym. E a verdade é que o tinha, feito, Jack. É verdade. Só que com Pym aquilo que sobe também costuma descer, e incomodou-o descobrir que o seu
casamento eminente recebera a aprovação dos Serviços ainda antes de ter recebido a sua
própria aprovação.
Precisamente, de que é que você vive, meu velho? Não percebi
muito bem perguntou o pai de Belinda, e não pela primeira vez, a meio de uma discussão acerca de quem seriam os convidados.
E um laboratório de línguas patrocinado pelo governo, sir
disse Pym, de acordo com as directivas sumárias dos Serviços acerca da camuflagem.
Organizamos intercâmbio de universitários entre vários países e damos-lhes cursos.
Isso a mim, soa-me mais a serviços secretos disse o pai de Be linda, com o seu estranho casquinar, de alguém que parecia sempre sa
ber de mais.
Em contrapartida, Pym contava à futura esposa tudo o que sabia do seu trabalho, e mais
ainda. Mostrava-lhe como era capaz de lhe desfazer uma artéria com um só golpe e de
lhe arrancar sem esforço os olhos apenas com dois dedos. E como Belinda podia esmagar os pequeninos ossos do pé de alguém que a estivesse a incomodar por baixo da
mesa. Contava-lhe tudo o que fazia dele um herói secreto da Inglaterra, a endireitar o
mundo sozinho.
Então, quantas pessoas é que mataste? perguntou-lhe triste
mente Belinda, descontando já aquelas que Pym se limitara a deixar aleijadas.
Não estou autorizado a revelar isso disse Pym, e, crispando
os maxilares, desviou o olhar dela, dirigindo-o para o duro deserto do
seu dever.
Então, não digas pediu-lhe Belinda. E não contes nada ao pai, senão ele conta à mãe. .
Querida Jemima,
escreveu Pym, num buraco do horário, uma semana antes do
grande dia é tão estranho irmos os dois casar em datas tão próximas.
Continuo a perguntar-me se estaremos afazer a coisa mais acertada. Estou farto do meu trabalho maçador epenso mudar. Amo-te
Magnus
Pym esperou, ansioso, pelo correio e vigiou atentamente os pântanos à volta do campo
de treinos, à procura de um Land Rover, a bordo do qual ela se precipitaria, aparecendo no horizonte, para o salvar. Mas nada aconteceu, e na véspera do casamento, Pym
estava de novo sozinho consigo próprio, a passear à noite pelas ruas de Londres,
fingindo que lhe faziam lembrar Karlovy Vary.
E que marido espantoso foi Pym, Tom! Que cerimónia magnífica! Sacerdotes cheios de
humildade aristocrática, a grande igreja célebre pela sua antiguidade e fastos de outrora, a recepção frugal num hotel fúnebre de Bayswater, e no meio da multidão, o nosso
príncipe encantado em pessoa, tagarelando brilhantemente com as cabeças coroadas dos
subúrbios. Pym não se esqueceu do nome de ninguém, foi fluente e prolixo acerca dos
laboratórios de línguas patrocinadas pelo governo, dedicou a Belinda prolongados e
ternos olhares. Tudo isto, pelo menos, até que alguém cortou o som, incluindo o da voz de Pym, e os rostos dos circunstantes se desviaram dele misteriosamente, procurando a
causa da interrupção. De súbito, as portas, na outra extremidade da sala, até então
fechadas, foram abertas de par em par por mãos invisíveis. E Pym teve o pressentimento
imediato, apenas pela escolha do momento e pela interrupção, pelo modo como toda a
gente se afastava deixando um grande espaço vazio, de que alguém esfregara a lâmpada do Génio. Entraram dois criados, com a desenvoltura de quem recebera boas gorjetas,
transportando bandejas cheias de garrafas de champagne ainda fechadas e travessas de
salmão fumado, embora a mãe de Belinda não tivesse encomendado salmão e tivesse
decretado também que não seria servido champagne antes do brinde em honra dos
noivos. A seguir, repetiu-se a cena da eleição de Gulworth, porque o primeiro a aparecer foi Mr. Muspole, seguido por um homem magro e com uma cicatriz de lâmina na cara, e
cada um deles tomou de assalto a sua ombreira da porta, enquanto Rick passava entre os
dois, envergando um traje completo de Ascott, inclinado para trás e de braços abertos,
sorrindo em todas as direcções ao mesmo tempo. «Olá, meu filho! Não reconheces o teu
velho camarada? Esta rodada sou eu que ofereço, rapazes! Onde é que está a noiva? Meu Deus, filho, é uma beleza! Venha cá, minha querida. Dê um beijo ao seu velho
sogro! Meu Deus, é de se tirar o chapéu, meu filho. Onde é que a tiveste escondida estes
anos todos?»
Dando o braço aos dois, Rick conduziu o par nupcial até ao pátio
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do hotel, onde estava um Jaguar novinho em folha, pintado do amarelo dos liberais,
estacionado de modo a impedir a passagem de toda a gente, enfeitado com fitas brancas
de casamento e um ramo enorme de gardénias dos armazéns Harrods transbordando do
lugar ao lado do condutor, e Mr. Cudlove ao volante, com um cravo na lapela do seu uniforme cor de amora.
Já viste alguma coisa assim, meu filho? Sabes o que é? É o pre
sente do teu velho para vocês os dois, e nunca ninguém vo-lo há-de ti
rar enquanto eu for vivo. Cuddie vai levar-vos para onde quiserem, e
depois deixa-vos lá o carro. Não é verdade, Cuddie? Desejo a ambos as maiores felicidades na vida que escolheram,
sir disse Mr. Cudlove, com os seus olhos fiéis cheios de lágrimas.
Do longo discurso de Rick, recordo apenas que foi belo e modesto, isento de hipérboles,
assente no tema de que, quando dois jovens se amam, nós, os mais velhos, que já
tivemos a nossa vez, devemos afastar-nos, porque se há alguém que o mereça são eles. Pym nunca tornou a ver o carro, e passou muito tempo sem ver
Rick, porque, quando voltaram a sair, Mr. Cudlove e o Jaguar amarelo
tinham desaparecido e dois inequívocos detectives da polícia à paisana
estavam a falar em voz baixa com o atarantado director do hotel. Mas
devo dizer-te, Tom, que foi aquele o melhor dos nossos presentes de casamento, talvez à excepção de um ramo de papoilas vermelhas lança
do para os braços de Pym, sem um cartão nem outras explicações, por
um homem envergando uma gabardina Burberry e com ar polaco, en
quanto Pym e Belinda avançavam na direcção do poente para um fim-
-de-semana em Eastbourne. , i < Ponha-o a trabalhar no terreno enquanto ele não está marcado diz o responsável da
secção de pessoal, que tem o costume de falar acerca das pessoas como se estas não
estivessem sentadas à sua frente do outro lado da secretária.
Pym acabou os treinos, Pym está a postos. Pym está equipado e pronto, e só resta um
problema. Que capa vai ele usar? Que disfarce cobrirá o esqueleto secreto da sua maturidade? Numa série de entrevistas incondusivas, que lembravam a da comissão de
colocações de Oxford, o responsável pela secção de pessoal desdobra um caos de
possibilidades. Pym será umfree-lancer. Mas saberá ele escrever e estará Fleet Street
disposta a aceitá-lo? Com uma franqueza desarmante, Pym é con-
I
J aos gabinetes da maior parte dos nossos jornais nacionais, cujos resp onsáveis fingem
inutilmente não saberem de onde ele vem nem porquê, embora daí em diante o fiquem
para sempre a conhecer como um tipo dos Serviços, e vice-versa. Pym encontrava-se já a caminho do estrelato no Telegraph, quando um génio do Quinto Andar se lembrou de
uma coisa melhor:
Ouça lá, não gostava de entrar outra vez para o Partido Comu
nista, e servir-se dos seus antigos conhecimentos para se lançar nos
meios da esquerda internacional? Sempre quisemos meter uma lança nessa África.
Parece-me uma ideia fascinante disse Pym, e começa a ver-se
a vender O Marxismo Hoje pelas esquinas, durante o resto da vida.
Um plano mais ambicioso é fazê-lo entrar no Parlamento, onde poderá manter debaixo
de olho alguns deputados que são companheiros de jornada: «Alguma preferência de Partido, ou não somos esquisitos?», pergunta o responsável pela secção de pessoal,
ainda com o fato de tweed do seu fim-de-semana no Wiltshire.
Preferia que não fossem os liberais, se não vos fizer diferença
diz Pym.
Mas em política nada dura muito tempo, e uma semana mais tarde, decide-se que Pym irá para um desses bancos privados, cujos directores passam o tempo a entrar e a sair da
Sede dos Serviços, resmungando contra o ouro russo e acerca da necessidade de
proteger as nossas rotas comerciais contra os bolcheviques, Pym é convidado para
almoçar no Instituto dos Gestores de Bancos por uma sucessão de magnatas, que julgam
estar cheios de oportunidades. Conheci em tempos um Pym diz um eles, já no segundo ou
terceiro brandy. Tinha um grande escritório sujo, algures em Mount
Street. Era o melhor especialista do seu ofício que jamais conheci.
E que ofício era o dele, sir? pergunta educadamente Pym.
Vigarista diz o seu anfitrião, com um riso cavalar. É seu Parente?
■ Deve ser um parente afastado e degenerado diz Pym, rindo também, e apressando-se a
regressar ao santuário dos Serviços.
A dança continua, e nunca saberei se aquilo era mesmo a sério, por-9ue Pym não
partilha ainda as decisões dos bastidores, embora esprei-te com frequência algumas gavetas de secretárias e armários metálicos Achados à chave. E depois, subitamentex,os
ventos mudam.
Ouça lá diz o responsável da secção de pessoal, tentando es-
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conder o seu ar ofendido. Porque diabo não nos lembrou que sabia falar checo?
Antes de passado um mês, Pym é colocado numa empresa de electrónica, em
Gloucester, na qualidade de gestor estagiário, «sem necessidade de experiência no
ramo». O director da empresa andara no colégio com o chefe reinante dos Serviços,
facto que lamentaria mais tarde e durante muito tempo, e cometera o erro de aceitar uma série de importantes contratos governamentais numa altura em que a sua situação era
difícil. Pym é colocado no departamento de exportações e encarregado de abrir o
mercado da Europa de Leste. A sua primeira missão foi quase também a última.
Bom, porque é que não dá uma volta pela Checoslováquia para
testar o mercado? diz o patrão teórico de Pym, desanimadamente. E em voz muito baixa: E por favor, lembre-se de que todas as outras
coisas em que se meter não têm nada a ver connosco, está bem?
Uma volta rápida diz alegremente a Pym o seu chefe, na casa
dos Serviços em Camberwell, onde as crias de agentes recebem as ins
truções antes de perderem os dentes de leite. Estende a Pym uma má quina de escrever portátil, com algumas cavidades dissimuladas na ar
mação.
Sei que parece idiota diz Pym , mas o certo é que eu não
sei escrever à máquina.
Toda a gente sabe pelo menos um bocadinho diz o chefe de Pym. Pratique durante o fim-de-semana.
Pym apanha o avião para Viena. Recordações, recordações. Pym aluga um carro. Pym
atravessa a fronteira sem a inenor dificuldade, contando ver Axel à sua espera do outro
lado.
O campo era como na Áustria, belíssimo. Havia muitos celeiros junto a muitos lagos. Em Plzen, Pym visitou uma fábrica em situação desesperada, na companhia de alguns
homens de rosto quadrado. A noite, quedava-se em segurança no seu hotel, vigiado por
um par de polícias secretos que ficavam a beber café até ao momento de Pym se ir
deitar. As visitas seguintes eram ao norte do país. Na estrada para Ustí, ry1" viu
camiões militares e decorou a insígnia da unidade a que pertenciam-A leste de Ústí, havia uma fábrica que os Serviços suspeitavam que pr°
duzisse contentores de isótopos. Pym não sabia muito bem o que seria um isótopo, nem
que aspecto teriam os seus contentores, mas esboçou esquemas dos edifícios principais
e escondeu-os na máquina de escrever. No dia seguinte, foi até Praga e, à hora combinada, sentou-se na famosa igreja Tom, com a sua janela dando para a antiga casa
de Kaf-ka. Turistas e funcionários circulavam por ali sem um sorriso.
Então K. começou a afastar-se devagar, leu Pym, sentado na nave do lado sul, na
terceira fila a contar do altar. K. sentiu-se abandonado e só, ao avançar entre as filas dos
bancos vazios da igreja, com os olhos do padre cravados nele, tanto quanto podia senti-lo de costas voltadas.
Tendo necessidade de repousar, Pym ajoelhou e rezou. Grunhindo e soprando, um
homem corpulento avançou para o lado dele, arrastando os pés, e sentou-se. Pym sentiu
um cheiro a alho e lembrou-se do sargento Pavel. Por uma fresta entre os dedos,
identificou os sinais de reconhecimento: unha da mão esquerda suja de branco, nódoa azul no punho esquerdo, uma massa de cabelo preto de aspecto vergonhoso, casaco
preto. O meu contacto é um artista, compreendeu Pym. Porque é que não pensei nisso
antes? Mas Pym não se sentou, não tirou do bolso o pequeno embrulho para depois o
colocar entre os dois em cima do banco. Continuou ajoelhado e em breve descobriu
porque o estava a fazer. O som de passos cadenciados avançava ruidosamente na sua direcção ao longo da nave. Os passos detiveram-se por fim. Uma voz masculina disse
em checo: «Acompanhe-nos, por favor». Com um suspiro de resignação, o vizinho de
Pym levantou-se com ar fatigado e seguiu-os até à saída.
Pura coincidência assegurou o chefe de Pym muito divertido,
quando ele regressou. Ele já contactou connosco. Foram buscá-lo para um interrogatório de rotina. Fazem-lhe um de seis em seis semanas.
Nem sequer lhes passou pela cabeça que ele poderia estar a participar
numa entrega clandestina de material. Muito menos com um tipo da sua
idade.
Acha que ele... que ele, bom, não lhes disse? perguntou Pym. O velho Kyril? Denunciá-lo, a sP. Deve estar a brincar. Não se
preocupe. Damos-lhe outra oportunidade daqui a uma semana.
Rick não gostou de saber da contribuição que Pym estava a dar ao "npulso exportador
britânico, e disse-lho numa das suas visitas secretas que o traziam da Irlanda, onde
estabelecera o seu quartel de Inver-
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no, enquanto deixava que se esclarecessem alguns mal-entendidos com a Scodand Yard,
e tentava com dificuldade arranjar um lugar na nova e concorrida profissão de correr
com os proprietários de West End.
A trabalhar como caixeiro viajante? O meu rapaz? exclamou
ele, alarmando as mesas adjacentes. A vender máquinas de barbear eléctricas a um punhado de comunistas estrangeiros? Nós já fizemos
tudo isso, meu filho. Agora acabou-se. Para que é que eu te paguei os
estudos? Onde é que está o teu patriotismo?
Não são máquinas de barbear, pai. Vendo geradores de corren
te alterna, osciladores e velas de automóveis. Que tal a bebida? A hostilidade para com Rick era uma ideia nova e estonteante para Pym. Exprimia-a
com precaução, mas também com uma excitação crescente. Quando iam ao restaurante,
Pym insistia em pagar para poder saborear a desaprovação de Rick ao ver o seu próprio
filho deixar bom dinheiro onde uma assinatura teria bastado.
Não estás metido em nenhum negócio escuro lá fora, não? perguntou Rick. As portas da tolerância só se abrem até determina
do ponto, sabes, Pym? Até mesmo para ti. O que é que andas a fazer?
Conta-nos lá.
A pressão no braço de Pym tornou-se subitamente ameaçadora. Pym procurou brincar
com aquilo, sorrindo rasgadamente. Oh, pai, isso magoa disse ele, com uma expressão extrema
mente divertida. Era a unha do polegar de Rick o que ele sentia me
lhor, cravando-se-lhe numa artéria. Não te importas de parar com
isso, pai? disse ele. É realmente incómodo. Rick estava dema
siado ocupado a crispar os lábios e a abanar a cabeça. Disse que era uma tristeza um pai renunciar a tudo pelo seu filho para ser depois tratado
como «uma pobre aia». Rick queria dizer «pária», mas tratava-se de uma
noção que nunca chegara a assimilar. Pondo o cotovelo em cima da
mesa, Pym descontraiu o braço inteiro e deixou que a pressão de Rick
o agitasse de um lado para o outro. Depois, contraiu o braço abrupta mente, tal como o tinham ensinado a fazer, esmagando os dedos gor
dos de Rick contra a aresta da mesa e fazendo saltar os copos e dançar
os talheres, que caíram no chão. Recolhendo a mão magoada, Rick des
viou o olhar de Pym para consagrar um sorriso de resignação aos súb
ditos que comiam à sua volta. Depois, com a mão intacta, tocou ao a leve na borda do seu copo de Drambuie para indicar que precisava
de mais uma dose. Exactamente como, apenas por desapertar os ata
dores dos sapatos, dava a entender que alguém devia ir buscar-lhe o
chinelos. Ou como, por se deitar de costas, com os joelhos afastados depois de um prolongado banquete, anunciava um apetite carnal.
Mas, como sempre, nada continua a ser o que é por muito tempo com Pym, e em breve
uma estranha serenidade começa a substituir o seu nervosismo inicial à medida que as
missões secretas se sucedem. Os domínios silenciosos e sombrios que a princípio lhe
pareciam tão ameaçadores transformam-se num ventre secreto onde ele se pode refugiar, mais do que num lugar de pesadelo. Basta-lhe atravessar a fronteira para se
desmoronarem os muros das suas prisões inglesas: nada de Belinda, nada de Rick e
quase nada de Serviços. Sou o representante no estrangeiro de uma companhia de
electrónica. Sou sir Mag-nus, vagueando livremente. As suas noites solitárias em
cidades despovoadas da província, onde inicialmente o latir de um cão bastava para o fazer vir à janela coberto de suor, inspiram-lhe agora uma sensação de segurança. A
atmosfera de opressão universal que paira sobre todo o país envolve-o num misterioso
abraço. Nem mesmo os muros de prisão do seu colégio lhe tinham dado aquela sensação
de tranquilidade. Em viagens de carro e de comboio através de vales onde corriam rios,
passando colinas encimadas por castelos da Boémia, Pym errava ao longo de reinos de um tal contentamento interior que até o próprio gado parecia ser seu amigo. Vou-me
instalar aqui, decide ele. E esta a minha verdadeira pátria. Que estupidez da minha parte
ter pensado que Axel a poderia alguma vez trocar por outra! Pym começa também a
apreciar as suas conversas formais com os funcionários. O seu coração exulta quando
consegue arrancar-lhes um sorriso. Tem orgulho no seu caderno de encomendas, que se vai enchendo lentamente; sente uma responsabilidade paternal para com os seus
opressores. Até os seus desvios operacionais, quando não se impede de pensar neles,
conseguem ser enfiados à força sob o vasto guarda-sol da sua generosidade: «Sou um
campeão das zonas intermédias», diz para consigo Pym, usando uma velha expressão de
Axel, ao tirar de um muro urna pedra solta, para retirar da cavidade um embrulho e substituí-lo Por outro. Estou a auxiliar uma terra ferida.
Mas, apesar de todo este autocondicionamento preliminar, foram Precisas mais seis
viagens de Pym para ele conseguir persuadir Axel a sair das sombras da sua existência
aventurosa.
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Mr. Canterbury! O senhor está bem, Mr. Canterbury? Res
ponda!
Claro que estou bem, miss D. Estou sempre bem. O que é?
Pym abriu a porta. Miss Dubber estava de pé, no meio do escuro, com papelotes no cabelo e Toby ao colo, para a proteger.
Você tem feito tanto barulho, Mr. Canterbury. E range os den
tes. Há uma hora estava a cantarolar. Nós começámos a pensar que tal
vez estivesse doente.
Nós, quem? perguntou Pym, incisivamente. Eu e Toby, seu tonto. Porquê, acha que eu tenho algum amante?
Pym fechou-lhe a porta e dirigiu-se rapidamente à janela. Uma carrinha estacionada,
provavelmente verde. Um carro estacionado, branco ou cinzento, com matrícula do
Devon. Um leiteiro madrugador, que Pym nunca tinha visto antes. Voltou para junto da
porta, encostou o ouvido e escutou atentamente. Um estalido. Um passo de pés descalços com chinelos. Pym abriu a porta. Miss Dubber ia a meio do corredor.
Miss D.?
Sim, Mr. Canterbury.
Andou alguém a fazer perguntas a meu respeito?
Porque é que haviam de fazer perguntas, Mr. Canterbury? Não sei. Às vezes, as pessoas fazem perguntas. Perguntaram-lhe
alguma coisa?
Devia era ir dormir, Mr. Canterbury. Por muito que o país pre
cise de si, poderá sempre esperar até amanhã.
A cidade de Strakonice é mais conhecida pela sua indústria de motorizadas e de barretes turcos do que por qualquer preciosidade cultural. Pym dirigiu-se para lá, porque fora a
uma caixa de correio fantasma em Pisek, que ficava a dezanove quilómetros para
nordeste, e as instruções dos Serviços exigiam que não deixasse registada a sua presença
numa cidade-alvo, onde houvesse uma caixa de correio fantasma à espera de ser
esvaziada. Por isso, Pym dirigiu-se de automóvel a Strakonice, sentindo-se oco e aborrecido, como sempre se sentia no fim de realizar mais uma tarefa para os Serviços,
e assinou o livro de recepção de um velho hotel com uma escadaria imponente, e depois
vagueou pela cidade procurando admirar os antigos talhos do lado sul da praça e a igreja
renascentista, que, segundo o guia, fora
reconstruída em estilo barroco; e a igreja de S. Wenceslau, a qual, embora originalmente
gótica, fora transformada no século XIX. Tendo--se consagrado a estas distracções e
sentindo-se ainda mais cansado, devido ao calor prolongado do dia de Verão, arrastou-
se escadas acima até ao quarto, pensando em como seria agradável que aquelas escadas
o conduzissem ao apartamento de Sabina, em Graz, no tempo em que ele era um jovem agente duplo, sem dinheiro e sem preocupações.
Meteu a chave na fechadura, mas o fecho não estava corrido. O facto não o surpreendeu
demasiado, porque era àquela hora que as criadas vinham abrir as camas e os polícias
secretos davam uma última vista de olhos pelos hotéis. Pym entrou e distinguiu, meio
escondido após um raio oblíquo de sol que entrava pela janela, a figura de Axel, à espera dele, como noutros tempos, com a cúpula da sua cabeça encostada ao espaldar da
cadeira, ligeiramente inclinada a fim de lhe permitir ver quem entrasse por entre as
luzes e as sombras do quarto. E em todas as aulas de combate corpo a corpo desarmado,
de combates com navalhas e de tiro à queima-roupa, que Pym recebera nos Serviços,
ninguém se lembrara de lhe ensinar como acabar com a vida de um amigo enfraquecido, sentado atrás de um raio de sol.
Axel estava pálido como se viesse da prisão e pesava menos alguns quilos. A
recordação que Pym conservara dele no momento da despedida não lhe permitia pensar
que Axel pudesse emagrecer mais. Mas os organizadores das purgas, os inquisidores e
os carcereiros tinham conseguido fazê-lo perder ainda mais carne, como só eles sabem fazer, alimentando-se copiosamente dela. Tinham-lhe arrancado carne do rosto, dos
pulsos, das articulações dos dedos e dos tornozelos. Tinham-lhe esgotado o último
pouco sangue das faces. Tinham guardado também um dos seus dentes, embora Pym
não tenha dado imediatamente por isso, porque Axel mantinha os lábios cerrados, e um
dedo filiforme diante da boca num sinal de aviso, enquanto acenava com a outra mão na direcção da parede do quarto de Pym, indicando que havia microfones a funcionar.
Tinham desfeito ainda a pálpebra direita de Axel, que lhe descaía sobre o olho como um
chapéu de três bicos, acentuando o seu ar de pirata. Mas, apesar de tudo isto, o casaco
continuava a pender-lhe dos ombros como uma capa de mosqueteiro, o seu bigode
florescia e devia ter herdado de alguém um magnífico par de botas, que pareciam de madeira preciosa e cujas solas,eram como estribos de um carro de luxo.
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Magnus Richard Pym? perguntou Axel, com uma aspereza
teatral.
Sim? disse Pym, depois de várias tentativas infrutíferas para
dizer alguma coisa.
É acusado dos crimes de espionagem, provocação do povo, in citamento à traição e assassínio. E também de sabotagem por conta de
uma potência imperialista.
Ainda languidamente reclinado na sua cadeira, Axel juntou as mãos com um vigor
inesperado, emitindo um som que ressoou por todo o enorme quarto, ficando sem
dúvida registado nos microfones. Depois disso, produziu o grunhido prolongado de alguém que acaba de apanhar um forte soco no estômago. Vasculhou no bolso do
casaco de onde tirou do forro uma pequena pistola automática e, pondo de novo o dedo
junto aos lábios, agitou-a no ar para Pym a poder ver bem.
Vire-se para a parede! berrou, pondo-se de pé com dificulda
de. As mãos na cabeça, porco fascista! Marche. Poisando delicadamente uma das mãos no ombro de Pym, Axel conduziu-o na direcção
da porta. Pym saiu à frente dele para o corredor escuro. Dois homens corpulentos e de
chapéu ignoram-no.
Revistem-lhe o quarto! ordenou-lhes Axel. Descubram
tudo o que puderem, mas não tirem nada do sítio! Vejam com atenção a máquina de escrever, os sapatos e o forro da mala. Não saiam do quar
to até eu vos dar pessoalmente ordem para isso. Desça as escadas deva
gar disse ele a Pym, espetando-lhe o cano da pistola nos rins.
Isto é um abuso disse Pym, num protesto débil. Exijo que
chamem imediatamente o cônsul britânico. No átrio, a recepcionista estava sentada a fazer malha, como uma megera junto à
guilhotina. Axel empurrou Pym, fazendo-o passar por ela, na direcção de um carro
estacionado no exterior. Um gato amarelo abrigara-se por baixo do automóvel. Abrindo
a porta da frente, Axel fez um gesto de cabeça, mandando Pym entrar, e depois de
empurrar com um pontapé o gato para a berma do passeio, entrou também e ligou o motor.
Se colaborar plenamente connosco, não lhe faremos mal
anunciou Axel com a sua voz oficial, apontando uma série de furos mal
feitos no tablier. Se tentar fugir, será abatido.
Isto é um acto ridículo e escandaloso murmurou Pym. v meu governo vai exigir que os responsáveis sejam castigados.
Mas, uma vez mais, as suas palavras nada tinham do tom confian-
\\
te de que se haviam revestido no barracão acolhedor de Argyll, onde ele e os seus
colegas tinham praticado as técnicas de resistência aos interrogatórios.
Temos estado a vigiá-lo desde o momento em que entrou no país disse Axel em voz
alta. Os protectores do povo observaram todos os seus movimentos e contactos. Você
não tem outra alternativa senão confessar imediatamente a sua culpa perante todas as acusações.
O mundo livre verá neste acto absurdo a última prova da bruta
lidade do regime checo declarou Pym, com mais convicção. Axel
abanou a cabeça com ar aprovador.
As ruas estavam vazias e as velhas casas também. Entraram naquilo que outrora fora um luxuoso bairro de vivendas patrícias nos arredores. Sebes por podar escondiam as
janelas dos pisos mais baixos. Os portões de ferro, suficientemente largos para deixarem
passar carruagens, encontravam-se bloqueados com hera e arame farpado.
Saia ordenou Axel.
Estava um belo começo de noite. A lua cheia derramava uma luz branca e irreal. Vendo Axel a fechar o carro, Pym sentiu o cheiro do feno e ouviu o rumor dos insectos. Axel
conduziu-o ao longo de um caminho estreito entre dois jardins, até chegarem a uma
abertura na sebe de teixo, do lado direito. Agarrando o pulso de Pym, Axel fê-lo passar
pela abertura. Encontravam-se no terraço daquilo que outrora fora um grande jardim.
Por detrás deles, erguia-se no céu um castelo de muitas torres. Mais adiante, quase perdido num maciço de roseiras, havia um pavilhão decrépito. Axel lutou com a porta,
mas esta recusava-se a ceder.
Dê-lhe um pontapé, sir Magnus disse ele. Isto é a Che
coslováquia.
Pym atirou o pé contra a almofada da porta. A porta cedeu e os dois entraram. Em cima de uma mesa coberta de ferrugem, estava a familiar garrafa de vodka e uma bandeja
com pão e pepinos de conserva. O revestimento esgarçado das cadeiras de vime
derramava o estofo cinzento.
Você é um amigo muito perigoso, sir Magnus lamentou-se
Axel, estendendo as suas pernas magras e examinando as suas belas bo tas. Por amor de Deus, porque é que não havia de ter usado um
nome falso? Às vezes, penso que você foi posto nesta terra só para ser o
meu anjo negro.
Eles disseram que o melhor era eu ser eu próprio respondeu
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estupidamente Pym, enquanto Axel abria a garrafa de vodka. Chamam a isso
camuflagem natural.
Durante um longo momento, Axel pareceu não encontrar nada de útil para dizer, e Pym
sentiu que não tinha o direito de interromper o devaneio do seu raptor. Estavam sentados lado a lado, com as pernas paralelas, como um casal de reformados na praia.
Lá fora, ao fundo, talhões de milho estendiam-se até uma floresta. Um monte de carros
estragados, mais numerosos do que todos os que Pym vira pelas estradas checas, sujava
a extremidade inferior do jardim. Morcegos rodopiavam muito adequadamente à luz do
luar. Sabia que esta casa era da minha tia? perguntou Axel.
Bom, na realidade, não sabia disse Pym.
Mas era. A minha tia era uma mulher com espírito. Uma vez
contou-me como tinha anunciado ao pai dela que queria casar com o
meu tio. «Mas porque é que queres casar com ele?», perguntou o pai. «Ele não tem dinheiro. E muito baixinho e tu também és baixinha. Te
rão filhos baixos. É como as enciclopédias que me obrigas a comprar to
dos os anos. Parecem muito bonitas, mas quando as abres e vês o que
está lá dentro deixam de te interessar.» Ele enganou-se. Os filhos dela
eram grandes e ela foi muito feliz. Axel fez uma pequena pausa. Eles querem que eu faça chantagem consigo, sir Magnus. É essa a úni
ca boa notícia que tenho para si.
Quem é que quer isso? perguntou Pym.
Os aristocratas para quem eu trabalho. Acham que eu devia mos
trar-lhe as fotografias de nós os dois a sairmos juntos do celeiro na Áus tria e obrigá-lo a ouvir as gravações das nossas conversas. Dizem que eu
devia pôr-lhe debaixo do nariz aquele recibo dos duzentos dólares que
nós extorquimos a Membury para o seu pai, e que você me assinou.
E o que é que você lhes respondeu? disse Pym.
Eu disse que sim. Aqueles tipos não lêem Thomas Mann. São muito grosseiros. Isto é um país grosseiro, como, sem dúvida, terá no
tado ao longo das suas viagens.
De modo nenhum disse Pym. Gosto muito desta terra.
Axel bebeu um pouco de vodka e olhou fixamente para as colinas.
E vocês não facilitam nada as coisas. O seu departamentozinho detestável tem interferido seriamente na política do meu país. Afinal, o
que é que vocês são? Uma espécie de mordomos dos americanos? O que
é que andam a fazer, quando incriminam falsamente os nossos funcio
nários, semeiam a suspeita e seduzem os nossos intelectuais? Porque e
que fazem com que algumas pessoas sejam desnecessariamente espancadas, quando
alguns anos de prisão seriam suficientes? Não vos ensinam a ter o sentido das realidades
por lá? Não terá você nenhum sentido das realidades também?
Eu não sabia que os Serviços faziam isso disse Pym.
Faziam o quê? Intervinham na política interna. Faziam com que as pessoas fos
sem torturadas. Deve ser outra secção. A nossa é só uma espécie de ser
viço postal para pequenos agentes.
Axel suspirou.
Talvez não andem a fazer isso. Talvez eu tenha sido vítima de uma lavagem ao cérebro por parte da nossa estúpida propaganda des
tes tempos que correm. Talvez vos esteja a acusar injustamente. À sua.
À sua disse Pym.
Então, e o que é que eles vão descobrir no seu quarto? per
guntou Axel, depois de acender um charuto e tirar várias baforadas. Mais ou menos tudo, suponho.
O que é «tudo»?
Tintas secretas. Películas fotográficas. •
Películas fotográficas dos vossos agentes?
Sim. Reveladas?
Presumo que não.
Da caixa de correio fantasma em Pisek?
Sim.
Então, se fosse eu, não me dava ao trabalho de as revelar. É só
sucata de feira. Dinheiro? , '
Sim. Algum. .■■■'■
Quanto? ■ '
Quinhentos dólares. ; Cadernos de códigos? ■ \-"-
Alguns.
Alguma coisa de que eu me esteja a esquecer? Uma bomba ató
mica?
Há uma máquina fotográfica escondida. Calculo que deva estar na caixa de pó de talco.
Sim. Tirando o cartão da tampa, descobre-se a lente.
Mais alguma coisa? ^ •
Um mapa de fuga, em seda. Numa das minhas gravatas.
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Axel puxou mais uma fumaça, com o espírito aparentemente distante dali. Subitamente,
bateu com o punho na mesa metálica.
Temos de nos safar desta, Sir Magnus! exclamou ele com ir
ritação. Temos de nos safar. Temos de subir na vida. Temos de nos ajudar mutuamente até sermos nós próprios os aristocratas que podem
mandar à fava os outros filhos da mãe. Axel fitou a escuridão que se
adensava. Você torna as coisas tão difíceis para mim, sabia? Quan
do me via sentado naquela maldita prisão, tinha maus pensamentos a
seu respeito. Você faz com que me seja muito difícil ser seu amigo. Não vejo porquê.
Oh! Ele não vê porquê! Ele não vê que, quando o bravo Sir Mag
nus Pym pede um visto para uma visita de negócios, até mesmo os po
bres checos podem consultar o seu ficheiro e descobrir que houve um
cavalheiro com o mesmo nome que foi um espião fascista imperialista militarista na Áustria, e que um certo chefe de fila chamado Axel foi seu
companheiro de conspiração. A sua fúria lembrou a Pym os dias de
febre de Axel em Berna. A sua voz adquirira o mesmo tom cortante e
desagradável. Será você tão ignorante acerca do país que vem espiar
que não perceba o que, hoje em dia, significa para um homem como eu ter vivido no mesmo continente onde vive um homem como você,
e, para mais, ter sido seu companheiro de conspiração num jogo de es
pionagem? Você não perceberá mesmo que neste mundo de murmú
rios e acusações, eu posso literalmente morrer por sua causa? Você leu
George Orwell, não é verdade? Eles são os homens que são capazes de reescrever o boletim meteorológico de ontem!
Eu sei disse Pym.
Então, também deve saber que posso ser fatalmente contamina
do, como todos esses pobres agentes e informadores que vocês enchar cam de dinheiro e instruções. Não percebe que os está a mandar para a
forca, a menos que eles já nos pertençam? Sabe, pelo menos, o que é que
lhe vão fazer a si, presumo, não sabe? A menos que eu consiga que eles
me ouçam. Esses meus aristocratas, se não podermos satisfazer os ape
tites deles por outros meios, tencionam prendê-lo e exibi-lo perante a imprensa de todo o mundo, com os seus estúpidos agentes e associados.
Pretendem organizar mais um espectacular julgamento, enforcar algu
mas pessoas. Quando começarem com isso, só por pura distracção dei
xarão de me enforcar a mim também. Axel, o lacaio imperialista que
espiou por sua conta, na Áustria! Axel, o revanchista titista trotsquista e assim por diante, cúmplice de Pym em Berna! Eles teriam preferido
uni americano, mas, entretanto, fazem um esforço e enforcam um inglês enquanto não
conseguem apanhar o que realmente os interessa. _ Axel deixou-se cair para trás na
cadeira, esgotada a sua cólera. Temos de nos safar desta, Sir Magnus repetiu ele. Temos de subir, subir, subir. Estou farto de maus superiores, má comida, más prisões e maus
torcionários. Puxou mais uma baforada irritada. É tempo de eu olhar pela sua carreira e
de você olhar pela minha, e, desta vez, como deve ser. Não somos nenhuns burgueses
que recuem perante as grandes cartadas. Desta vez, somos profissionais, vamos direitos
aos diamantes maiores, aos bancos mais importantes. Estou a falar a sério. Repentinamente, Axel fez girar a cadeira até ficar de frente para Pym, depois tornou a
sentar-se, riu e bateu vigorosamente no ombro de Pym com as costas da mão, para o
animar.
Chegou a receber as flores, Sir Magnus?
Eram magníficas. Alguém no-las veio entregar, quando já está vamos no táxi, à saída da recepção.
E Belinda gostou delas?
Belinda não sabe que você existe. Eu nunca lho disse.
E de quem é que você disse que vinham as flores?
Disse que não fazia ideia. Que, provavelmente, até seriam para outro casamento.
Essa foi boa. Como é ela?
Maravilhosa. Foi a minha namorada de infância.
Julguei que a sua namorada de infância fora Jemima.
Bom, Belinda também foi. As duas ao mesmo tempo? Que grande infância a sua! disse
Axel, com um riso fresco, tornando a encher o copo de Pym.
Pym conseguiu rir também, e os dois beberam.
Então, Axel começou a falar, amável e gentil, sem ironia ou amargura, e tenho a
sensação de que continuou a falar durante trinta anos, porque as suas palavras permanecem hoje tão nítidas aos meus ouvidos como o foram então aos ouvidos de
Pym, apesar do ruído das cigarras e do guinchar dos morcegos.
Sir Magnus, no passado, você traiu-me, mas, mais importante
ainda, traiu-se a si próprio. Mesmo quando diz a verdade, você mente.
Mas é capaz de lealdade e afecto. Mas a quê? A quem? Não conheço to dos os seus motivos. O seu grande pai. A sua mãe aristocrática. Um dia,
talvez você me explique. E talvez tenha dedicado erradamente o seu
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amor, uma vez por outra. Axel inclinou-se para a frente e havia no seu rosto uma afeição verdadeira e calorosa, e nos seus olhos um sorriso reconfortante e repassado de
sofrimento. Mas você também tem a sua moral. Você procura. O que eu estou a tentar
dizer, Sir Magnus, é o seguinte: por uma vez, a natureza produziu uma combinação
perfeita. Você é um espião perfeito. Só precisa de uma causa. Eu tenho-a. Sei que a
nossa revolução é jovem e que às vezes é dirigida pelas pessoas erradas. Na busca da paz, fazemos demasiadas guerras. Na busca da liberdade, construímos demasiadas
prisões. Mas, a longo prazo, não me importo. Porque há uma coisa que sei. Todo o lixo
que fez de si o que você é: os privilégios, o snobismo, a hipocrisia, as igrejas, os
colégios, os pais, o sistema de classes, as mentiras históricas, os pequenos lordes do
campo, os pequenos lordes dos grandes negócios e todas as guerras vorazes que daí resultam, tudo isso será varrido para sempre por nós. Para vosso bem. Porque estamos a
construir uma sociedade que nunca produzirá tristes criaturas mesquinhas da laia de Sir
Magnus. Axel estendeu a mão. Pronto. Já disse. Você é um bom homem e eu gosto de
si.
Nunca esquecerei aquela mão estendida. Sou capaz de a ver de novo, sempre que olho para a palma da minha mão: seca, franca e capaz de perdão. E o riso: um riso que vinha
do coração, como sempre, quando Axel deixava a táctica de lado e tornava a ser meu
amigo.
XVI Parece justo, Tom, que ao recordar todos os anos que se seguiram ao nosso encontro no
pavilhão do jardim checo, eu só veja América, América, as suas costas douradas,
brilhando no horizonte como a promessa da liberdade, após as repressões da nossa
Europa convulsa e, depois, avançando na nossa direcção e enchendo a chegada de uma
alegria estival! Pym tem ainda mais de um quarto de século para servir os dois amos das suas duas casas, na melhor tradição da sua lealdade omnívora. O adolescente treinado,
casado, endurecido pela experiência, envelhecido, precisa ainda de se tornar um homem
mas quem descobrirá jamais o código genético onde se inscreve o momento em que
acaba a adolescência de um inglês da classe média e começa a sua idade adulta? Uma
meia dúzia de perigosas cidades europeias, de Praga a Berlim e a Estocolmo, e à capital ocupada da sua Inglaterra natal, separam os dois amigos do seu objectivo. No entanto,
parece-me hoje que essas cidades não foram mais do que escalas para abastecimento e
recuperação de forças, de onde olhar as estrelas e preparar a viagem. E pensa bem, por
um momento, qual era a horrível alternativa que nos restava, Tom: o medo de falhar,
soprando como um vento siberiano contra as nossas costas desprotegidas. Imagina o que teria significado para dois homens como nós passarmos toda a nossa vida de espiões
sem nunca termos feito espionagem na América!
É preciso referir rapidamente, para o caso de ainda restar no teu espírito alguma dúvida
a esse respeito, que, depois do encontro no pavilhão, o caminho de Pym estava marcado
para toda a vida. Ele renovara °s seus votos, e de acordo com as regras segundo as quais o teu tio Jack e eu sempre vivemos, Tom, não havia saída. Pym tornara-se propriedade
alheia, fora apanhado e estava comprometido. Acabou-se. Depois do celeiro na Áustria,
bom, sim, ainda houvera uma certa margem de manobra, embora sem perspectivas de
redenção. E já viste como ele ten-
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tou, ainda que debilmente, libertar-se do mundo dos serviços secretos e enfrentar as
contingências do mundo real. Sem convicção, é verdade Mas tentou, embora sabendo
que nesse mundo seria aproximadamente tão útil como um peixe fora de água, a morrer de excesso de oxigénio. Mas, depois do encontro no pavilhão, as instruções de Deus
para Pym tornaram-se claras: acabaram-se as perturbações, deixa-te estar no teu lugar
natural, no elemento para que a natureza te predestinou. Pym não precisou de terceiro
aviso.
Sim, ouço-te gritar, Tom: desabafa. Volta depressa para Londres, vai à secção de
pessoal, paga o preço que tens a pagar pelo que fizeste, começa tudo de novo! Bom, é
claro que Pym pensara nisso também. No automóvel, de regresso a Viena; no avião, de
regresso a Inglaterra; no autocarro, de Heathrow para Londres, Pym viveu com angústia
intensa esse dilema, porque nesses momentos toda a sua vida lhe passava pela cabeça com uma nitidez de banda desenhada. Onde é que tudo começou? perguntou ele a si
próprio, não sem motivo. Com Lippsie, por cuja morte ainda se sentia responsável, nas
suas horas mais sombrias? Com as iniciais de Sefton Boyd? Com a pobre Dorothy, que
Pym levara à loucura? Com Peggy Wentworth, também ela uma vítima, declarando-lhe
aos gritos a sua miséria? Ou com o primeiro dia em que forçara a fechadura do ficheiro de Rick ou da secretária de Membury? Precisamente, quantos episódios da sua vida
queres tu que ele revele perante os olhares críticos dos seus admiradores?
Então, demite-te! Foge para junto de Murgo! Aceita o lugar de professor no colégio de
Willow! Pym também pensara nisso. Lembrou-se de meia dúzia de buracos sombrios,
onde poderia enterrar o resto da sua vida, e esconder o seu encanto pecaminoso. Nenhum desses lugares o atraiu nem por cinco minutos.
Os homens de Axel teriam realmente desmascarado Pym, se ele tivesse rompido o pacto
e fugido? Duvido, mas a questão não está aí. A questão é que Pym muitas vezes amava
os serviços tanto quanto amava Axel. Adorava a confiança áspera e obtusa que nele
depositavam, a má utilização que faziam da sua pessoa, os seus abraços vestidos de tweed, o seu falso romantismo e a sua integridade duvidosa. Sorria para consigo cada
vez que entrava nas Reicbskanzelei e palácios secretos dos Serviços, recebendo a
saudação sisuda dos seus vigilantes sempre alerta. Os Serviços eram para ele o lar, o
colégio e a corte, mesmo quando os traia-Pym sentia realmente que tinha muito para
lhes dar, do mesmo moo° que tinha muito para dar a Axel. Na sua imaginação, via-se com aves
I
cheias de meias de nylon e chocolate do mercado negro, o suficiente para suprir as necessidades de toda a gente e, no fundo, um Serviço de Informações não é mais do que
um mercado negro institucionalizado de bens deterioráveis. E desta vez, era Pym em
pessoa o herói da fábula. Nenhum Membury o separava da congregação.
Imagine que, numa viagem solitária até Plzen?, 5z> Magnus, você
parava o carro e dava boleia a dois operários a caminho do trabalho. Seria capaz de fazer uma coisa dessas? sugerira Axel, às primeiras ho
ras da manhã, ainda no pavilhão, depois de ter reconfortado Pym.
Pym admitiu que sim.
E imagine, Sir Magnus, que como gente simples que são, eles lhe
confiavam, ao longo do trajecto, o seu medo de manipularem material radioactivo sem vestuário de protecção adequado. Você arrebitaria a
orelha?
Pym riu, e concordou que sim.
E imagine também que, como grande coordenador de operações
e espírito generoso, Sir Magnus, você anotava os nomes e moradas de les e prometia trazer-lhes uma ou duas libras de bom café inglês quan
do voltasse a visitar a região.
Pym admitiu que seria muito possível meter-se numa história assim.
E imagine continuou Axel que, depois de deixar os tipos
no limite exterior da zona protegida onde eles trabalham, você tinha a coragem, a iniciativa, as qualidades profissionais, que certamente tem,
para estacionar o seu carro num lugar discreto e subir esta colina.
Axel apontava para a colina, de que estava a falar, num mapa militar
que, por acaso, trouxera consigo e que desdobrara em cima da mesa de
ferro. E imagine que, lá do alto, fotografava a fábrica, conveniente mente escondido num bosque de tílias, cujos ramos mais baixos preju
dicaram ligeiramente as fotografias, como mais tarde se poderia verifi
car. Os seus aristocratas admirariam a sua iniciativa? Aplaudiriam o
grande Sir Magnus? Dar-lhe-iam instruções para recrutar os dois ope
rários e obter mais pormenores acerca da produção e os objectivos da fábrica?
Certamente que sim disse Pym, convicto.
Parabéns, Sir Magnus.
Axel coloca a película na mão expectante de Pym. Material dos pró-Pfios Serviços.
Embrulhado num verde anónimo. Pym esconde aquilo na sua máquina de escrever. Pym entrega a colheita aos seus chefes. A
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tou, ainda que debilmente, libertar-se do mundo dos serviços secrer e enfrentar as
contingências do mundo real. Sem convicção, é verdad Mas tentou, embora sabendo que nesse mundo seria aproximadame te tão útil como um peixe fora de água, a morrer
de excesso de oxigé nio. Mas, depois do encontro no pavilhão, as instruções de Deus
par Pym tornaram-se claras: acabaram-se as perturbações, deixa-te estar no teu lugar
natural, no elemento para que a natureza te predestinou. Pym não precisou de terceiro
aviso. Sim, ouço-te gritar, Tom: desabafa. Volta depressa para Londres, vai à secção de
pessoal, paga o preço que tens a pagar pelo que fizeste, começa tudo de novo! Bom, é
claro que Pym pensara nisso também. No automóvel, de regresso a Viena; no avião, de
regresso a Inglaterra; no autocarro, de Heathrow para Londres, Pym viveu com angústia
intensa esse dilema, porque nesses momentos toda a sua vida lhe passava pela cabeça com uma nitidez de banda desenhada. Onde é que tudo começou? perguntou ele a si
próprio, não sem motivo. Com Lippsie, por cuja morte ainda se sentia responsável, nas
suas horas mais sombrias? Com as iniciais de Sefton Boyd? Com a pobre Dorothy, que
Pym levara à loucura? Com Peggy Wentworth, também ela uma vítima, declarando-lhe
aos gritos a sua miséria? Ou com o primeiro dia em que forçara a fechadura do ficheiro de Rick ou da secretária de Membury? Precisamente, quantos episódios da sua vida
queres tu que ele revele perante os olhares críticos dos seus admiradores?
Então, demite-te! Foge para junto de Murgo! Aceita o lugar de professor no colégio de
Willow! Pym também pensara nisso. Lembrou-se de meia dúzia de buracos sombrios,
onde poderia enterrar o resto da sua vida, e esconder o seu encanto pecaminoso. Nenhum desses lugares o atraiu nem por cinco minutos.
Os homens de Axel teriam realmente desmascarado Pym, se ele tivesse rompido o pacto
e fugido? Duvido, mas a questão não está aí. A questão é que Pym muitas vezes amava
os serviços tanto quanto amava Axel. Adorava a confiança áspera e obtusa que nele
depositavam, a ma utilização que faziam da sua pessoa, os seus abraços vestidos de tweed, o seu falso romantismo e a sua integridade duvidosa. Sorria para consigo cada
vez que entrava nas Reichskanzelei e palácios secretos dos Serviços, recebendo a
saudação sisuda dos seus vigilantes sempre alerta. Os Serviços eram p ara ele o lar, o
colégio e a corte, mesmo quando os traia. Pym sentia realmente que tinha muito para
lhes dar, do mesmo modo que tinha muito para dar a Axel. Na sua imaginação, via-se com caves
-heias de meias de nylon e chocolate do mercado negro, o suficiente tara suprir as
necessidades de toda a gente e, no fundo, um Serviço je informações não é mais do que
um mercado negro institucionalizado de bens deterioráveis. E desta vez, era Pym em pessoa o herói da fábula. Nenhum Membury o separava da congregação.
Imagine que, numa viagem solitária até Plzen?, 57rMagnus, você
parava o carro e dava boleia a dois operários a caminho do trabalho.
Seria capaz de fazer uma coisa dessas? sugerira Axel, às primeiras ho
ras da manhã, ainda no pavilhão, depois de ter reconfortado Pym. Pym admitiu que sim.
E imagine, Sir Magnus, que como gente simples que são, eles lhe
confiavam, ao longo do trajecto, o seu medo de manipularem material
radioactivo sem vestuário de protecção adequado. Você arrebitaria a
orelha? Pym riu, e concordou que sim.
E imagine também que, como grande cootdenador de operações
e espírito generoso, Sir Magnus, você anotava os nomes e moradas de
les e prometia trazer-lhes uma ou duas libras de bom café inglês quan
do voltasse a visitar a região. Pym admitiu que seria muito possível meter-se numa história assim.
E imagine continuou Axel que, depois de deixar os tipos
no limite exterior da zona protegida onde eles trabalham, você tinha a
coragem, a iniciativa, as qualidades profissionais, que certamente tem,
para estacionar o seu carro num lugar discreto e subir esta colina. Axel apontava para a colina, de que estava a falar, num mapa militar
que, por acaso, trouxera consigo e que desdobrara em cima da mesa de
ferro. E imagine que, lá do alto, fotografava a fábrica, conveniente
mente escondido num bosque de tílias, cujos ramos mais baixos preju
dicaram ligeiramente as fotografias, como mais tarde se poderia verifi car. Os seus aristocratas admirariam a sua iniciativa? Aplaudiriam o
grande Sir Magnus? Dar-lhe-iam instruções para recrutar os dois ope
rários e obter mais pormenores acerca da produção e os objectivos da
fábrica?
Certamente que sim disse Pym, convicto. Parabéns, Sir Magnus.
Axel coloca a película na mão expectante de Pym. Material dos p róprios Serviços.
Embrulhado num verde anónimo. Pym esconde aquilo • sua máquina de escrever. Pym
entrega a colheita aos seus chefes. A
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magia não fica por aqui. Quando o material é enviado à pressa para os peritos de
Whitehall, descobre-se que a fábrica é a mesma que foi recentemente fotografada do ar
por um avião americano! Afectando relutância, Pym fornece a descrição dos seus dois informadores inocentes e, até então, também fictícios. Os nomes são arquivados,
fichados, controlados, processados e comentados no bar dos oficiais superiores. Até
que, por fim, graças às leis divinas da burocracia, se tornam objecto de uma comissão
especial.
Ouça lá, jovem Pym, o que é que o leva a pensar que estes tipos não o vão denunciar da próxima vez que você lhes bater à porta?
Mas Pym está em maré de entrevistas, tem um público numeroso e mostra-se imbatível.
É um palpite, sir, nada mais. Conta devagar até dois. Acho
que eles confiaram em mim. Acho que vão calar a boca e esperar que eu
apareça uma destas noites, exactamente como lhes disse que faria. E os acontecimentos dão razão a Pym, como seria de prever, não é verdade, Jack?
Desafiando tudo e todos, o nosso herói regressa à Checoslováquia e torna a aparecer,
indiferente aos riscos, à porta de casa deles e como não o faria, se é Axel quem o leva
até lá e procede às apresentações? É que desta vez não haverá sargentos Pavel. Nasceu
uma companhia de teatro, leal e de olhos brilhantes; Axel é o produtor, e os outros dois homens, os membros fundadores. A rede é construída perigosa e dolorosamente. Por
Pym, um tipo de sangue frio como nunca houve outro. Pym, o mais recente herói de
todos os corredores dos Serviços, o tipo que recrutou Conger.
Os processos de selecção natural dos serviços, acelerados pela insistência de Jack
Brotherhood, tornaram-se irresistíveis. Entrou para o ministério dos Negócios Estrangeiros? repete o pai
de Belinda, num tom de espanto artificial e forçado. Colocado em
Praga? Como é que se consegue isso quando se trabalha numa empresa
de electrónica moribunda? Caramba, mas que coisa!
É uma nomeação de circunstância. Precisam de pessoas que ra- lem checo diz Pym.
Ele está a incrementar o comércio britânico, pai. Tu és incapaz
de perceber. Não passas de um corretor da bolsa diz Belinda.
Bom, pelo menos, podiam ter-lhe arranjado um disfarce de jei
to, não achas? diz o pai de Belinda, com o seu risinho irritante.
No mais recente e secreto apartamento dos Serviços em Praga, Pym e Axel bebem à
nomeação de Pym para o cargo de segundo secretário comercial e funcionário
encarregado dos vistos da embaixada britânica. Axel engordou, observa Pym com
agrado. As linhas do sofrimento começam a desvanecer-se do seu rosto encovado. À pátria da liberdade, sir Magnus.
À América diz Pym.
Querido Pai,
Fico muito contente por aprovares a minha nomeação. Infelizmente, não estou em
posição que me permita tentar convencer Pandita Nerhu a conceder-te uma audiência, para lhe apresentares o teu plano de apostas mútuas no futebol, embora imagine com
facilidade o avanço que isso poderia representar para a economia periclitante da índia.
Então, não havia agentes verdadeiros? ouço-te perguntar, Tom, num tom desapontado.
Eram todos simulados? A verdade é que eram autênticos agentes. Não tenhas medo! E
muito bons, os melhores. E todos beneficiaram da experiência enriquecida de Pym, admirando Pym, tal como Pym admirava Axel. E Pym e Axel também admiravam à sua
maneira aqueles verdadeiros agentes, vendo neles os embaixadores involuntários do
plano, e outras tantas testemunhas da direcção segura e da adequação deste. E os dois
usavam os seus bons ofícios para protegerem e promoverem os agentes, argumentando
que cada progresso nas suas condições de existência era uma glória para as redes de informação. E faziam--nos passar ilegalmente a fronteira austríaca para treinos
clandestinos e exercícios de reciclagem. Os verdadeiros agentes eram as nossas
mascotes, Tom. As nossas estrelas. Esforçávamo-nos por que nada lhes faltasse,
enquanto ali estivessem Pym e Axel para lhes servir de providência. E, na realidade, foi
assim que tudo acabou por desandar. Mas só mais tarde. Gostaria de saber descrever-te melhor, Jack, o prazer que é sermos realmente bem
dirigidos. Nada de inveja, nem de ideologia. Axel em-Penhava-se tanto em que Pym
amasse a Inglaterra como se empenhava em fazê-lo chegar à América, e fazia parte do
seu génio, na nossa associação, elogiar as liberdades do Ocidente, dando ao mesmo
tempo a entender que estava ao alcance de Pyrri trazer para o Leste algumas des-
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sas liberdades, o que, além do mais, constituía a sua obrigação de homem livre. Oh,
bem te podes rir, Jack! E podes sacudir os teus cabelos grisalhos ante as profundidades da inocência de Pym! Mas não serás capaz de imaginar como foi fácil para Pym colocar
sob a sua protecção um pequeno país empobrecido, quando a sua própria pátria era tão
privilegiada, cheia de vitórias e tão bem nascida? E do seu ponto de vista tão absurda.
Amar a pobre Checoslováquia, em todas as suas terríveis vicissitudes, como um rico
protector, por amor de Axel? Perdoar antecipadamente os seus erros e responsabilizar por eles os muitos crimes que a sua Mãe Inglaterra, contra a Checoslováquia,
perpetrara? Ficarás sinceramente espantado por Pym, forjando novos laços com o
interdito, fugir uma vez mais àquilo que o prendia? Por ele, que amara o seu caminho
que deixara para trás já tantas fronteiras, amar agora o caminho que o levava a passar
uma outra, com Axel a seu lado, mostrando--lhe como caminhar e como atravessar. Desculpa, Bei dizia Pym a Belinda, ao abandoná-la uma vez
mais diante do tabuleiro de scrabble, no seu apartamento sombrio do
ghetto diplomático de Praga. Tenho de viajar pelo país. Talvez de
more um dia ou dois. Vá lá, Bei. Dá-me um beijo. Não preferias estar
casada com um homem das nove às cinco, pois não? Não encontro o Times disse ela, empurrando-o. Deves tê-
-lo deixado outra vez no raio da embaixada.
Mas por muito abalados que estivessem os nervos de Pym ao chegar aos encontros,
Axel fazia-o recompor-se sempre que se viam os dois. Nunca tinha pressa, nunca era
inoportuno. Nunca deixava de respeitar as dores e escrúpulos do seu agente. Não era imobilidade de um lado e só movimento do outro, Tom, longe disso. As ambições de
Axel eram tanto para si próprio como para Pym. Não era Pym o seu alimento, a sua
fortuna, em todos os sentidos da palavra, o seu passaporte para os privilégios e o
estatuto de um aristocrata remunerado pelo Partido? Oh, como Axel estudava Pym!
Com que delicadeza o convencia e domesticava! Como rinha o cuidado de vestir o traje que Pym precisava de vê-lo vestir ora o manto do pai firme e sábio que Pym nunca
tivera, ora os farrapos ensanguentados do sofrimento que eram o uniforme da autoridade
de Axel, ora a sotaina do único confessor de Pym, o seu Murgo absoluto. Axel teve de
aprender os códigos e as evasivas pessoais de Pym. Tinha de ler em Pym mais
rapidamente do que este podia ler em si próprio. Tinha de o repreender e de lhe perdoar, como um pai que nunca seria capaz de lhe fechar a porta na cara, nr
quando Pym estava melancólico e manter acesa a chama de todas as crenças de Pym
quando ele estava abatido, e dizia: «Não posso, estou só e tenho medo».
Acima de tudo, Axel tinha de conservar o seu agente constante-mente alerta contra a tolerância aparentemente ilimitada dos Serviços, pois como é que qualquer de nós
ousaria acreditar que as queridas florestas mortas da Inglaterra não eram uma
camuflagem de um jogo de manobras magistrais? Imagina as dores de cabeça que Axel
sofreu à medida que Pym continuava a fornecer-lhe as suas montanhas de informações,
para convencer os seus chefes de que não estavam a ser vítimas de um grandioso logro imperialista! Os checos admiravam-te tanto, Jack. Os mais velhos conheciam-te da
guerra. Conheciam os teus talentos e respeitavam-nos. Todos os dias se davam conta do
perigo que seria subestimar o mais astucioso dos seus adversários. Axel teve de lutar
mais do que uma vez taco a taco com eles. Teve de discutir com os mesmos lacaios que
o tinham torturado, para evitar que eles tirassem Pym do terreno e lhe aplicassem uma dose do tratamento, que serviam periodicamente uns aos outros, no fito de lhe
arrancarem uma confissão verdadeira: «Sim, trabalho para Brotherhood», era o que
queriam ouvi-lo gritar. «Sim, estou aqui para vos encher de desinformação. Para desviar
a vossa atenção das nossas actividades anti-socialistas. E, sim, Axel é o meu cúmplice.
Levem-me, enforquem-me, tudo menos isto!» Mas Axel levou a melhor. Implorou e ameaçou e deu murros na mesa, e quando foram decididas novas purgas para explicar o
caos provocado pelas anteriores, obrigou os seus inimigos a calarem-se, ameaçando
acusá-los de subestimarem a necessidade histórica da decadência do imperialismo. E
Pym ajudou-o a cada passo do caminho. Uma vez mais, à cabeceira de Axel se bem que
apenas em termos metafóricos , deu-lhe alimento e coragem, animou-o. Pilhou os ficheiros da delegação de Praga. Municiou-o com exemplos escandalosos da
incompetência dos Serviços britânicos a nível mundial. Até que, lutando assim pela
sobrevivência um do outro, Pym e Axel se tornaram ainda mais próximos, depondo-se
mutuamente aos pés os fardos irracionais das suas pátrias.
E, uma vez por outra, quando terminava vitoriosamente uma batalha, ou quando um grande golpe fora bem sucedido de um lado ou de outro, Axel vestia as roupagens do
libertino e organizava uma incursão nocturna ao seu equivalente frugal de St. Moritz,
um pequeno castelo
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branco nas Montanhas Gigantes, reservado pelos seus Serviços às pessoas de quem eles
tinham a mais alta opinião. Da primeira vez que lá foram, tratava-se da comemoração de
um aniversário, e os dois dirigiram-se para o local numa limusine com vidros rumados.
Pym estava em Praga havia dois anos.
Decidi oferecer-lhe um excelente novo agente, Sir Magnus anunciou Axel, enquanto ziguezagueavam alegremente pela estrada de saibro. A rede
Watchman debate-se com uma terrível falta de informações sobre a indústria. Os
americanos estão convencidos do colapso da nossa economia, mas os Serviços
britânicos não lhes fornecem nada que confirme o seu optimismo. O que é que acharia
de um quadro médio do nosso grande Banco Nacional da Checoslováquia, com acesso a alguns dos nossos mais sérios erros de gestão?
E onde é que eu diria tê-lo descoberto? objectou cautelosa
mente Pym, porque estas decisões eram delicadas e implicavam uma
demorada correspondência com a Sede, até esta autorizar a abordagem
de uma nova fonte potencial. A mesa de jantar estava posta para três, os candelabros acesos. Os dois homens tinham
dado um longo e lento passeio na floresta, e agora tomavam o aperitivo diante da
lareira, esperando a chegada do terceiro conviva.
Como está Belinda? perguntou Axel.
Não se tratava de um assunto que discutissem muitas vezes, porque Axel tinha pouca paciência para relações insatisfatórias.
Bem, obrigado, como sempre.
Não é isso que nos dizem os nossos microfones. Dizem que vo
cês brigam como cão e gato, dia e noite. Os nossos encarregados de es
cutas estão a ficar profundamente deprimidos com vocês os dois. Diga-lhes que vamos tentar portar-nos melhor disse Pym,
com um dos seus raros lampejos de acidez.
Um carro vinha a subir a colina. Ouviram os passos do velho criado atravessando o hall,
e o ruído metálico dos fechos da porta. - Vai conhecer o seu novo agente disse Axel.
A porta abriu-se com estrondo e Sabina entrou. Talvez com as ancas um pouco mais de
matrona; com uma ou duas rugas de dureza devidas às suas funções; mas continuava a
ser a sua deliciosa Sabina. Trazia um vestido preto severo, com uma gola branca, e pe~
sados sapatos pretos, que deviam ser o seu orgulho, porque tinham brilhantes verdes na tira e um fulgor de camurça de imitação. Ao ver
Pym, empertigou-se com rigidez e franziu o sobrolho com desconfiança. Por um
momento, a sua atitude reflectiu a mais radical das desaprovações. E depois, para deleite
de Pym, explodiu no seu louco riso eslavo, e correu, envolvendo-o no seu corpo, como costumava fazer em Graz, quando lhe dava as suas primeiras balbuciantes lições de
checo.
E foi assim, Jack. Sabina subiu cada vez mais, até se tornar o agente mais importante da
rede Watchman, e a menina querida dos seus sucessivos chefes britânicos, embora só a
conheças como Watchman 1, ou como a intrépida Olga Kravitsky, secretária da comissão interna dos Assuntos Económicos de Praga. Se bem te lembras, reformámo-la
quando estava à espera do seu terceiro filho do quarto marido, durante um jantar
especial com que a homenageámos em Berlim Ocidental, por altura da última reunião
dos gestores de banco do Comecon, a que assistiu, em Potsdam. Axel conservou-a em
funções durante mais algum tempo, antes de seguir o teu exemplo. Fui colocado em Berlim disse Pym a Belinda, na segurança
de um jardim público, no termo da sua segunda comissão em Praga.
Para que é que me estás a dizer isso? perguntou Belinda.
Queria saber se gostarias de vir também respondeu Pym, e
Belinda começou de novo a tossir, com a sua tosse prolongada e ines gotável, provavelmente devida ao clima.
Belinda regressou a Londres e começou a tirar um curso de jorna
lismo na Universidade Aberta, mas sem nada aprender acerca dos mé
todos de matar silenciosos. No seu trigésimo sétimo ano de vida, aca
bou por se lançar no caminho aventuroso das causas liberais na moda, onde, depois de conhecer vários Paul, casou com um deles, e teve uma
filha rebelde que a criticava por tudo o que ela fazia, o que dava a Be
linda a sensação de se ter reconciliado com os seus próprios pais. En
tretanto, Pym e Axel iniciaram a etapa seguinte da sua peregrinação. Em
Berlim, esperava-os um futuro mais brilhante e uma traição mais ama durecida. ■..-,.;■...
a/c. Coronel Evelyn Tremaine, D.S.O Pioneer Corps, na reserva. Cx. Postal 9077
MANILA
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Para Sua Excelência
Sir Magnus RichardPym, Condecorado,
Alto Comissariado Britânico, •
BERLIM
Querido filho, - Apenas umas linhas, com que espero não te Incomodar no teu Caminho Ascendente,
pois ninguém deve esperar Gratidão até ao momento de comparecermos perante o Pai
de todos nós, o que espero fazer numa data já próxima. Encontrando-se aqui as Ciências
Médicas num Estádio Primitivo, parece-me que este Verão Cruel será o Derradeiro do
autor desta Carta, apesar de ter Sacrificado o Álcool e outras Consolações. Se Enviares dinheiro para Tratamentos, ou Funeral, por favor não te esqueças de passar o cheque e
endereçar o envelope ao Coronel, e não a Mim Próprio, uma vez que o nome de Pym, é
Persona Non Grata para os Nativos, e além disso, nessa altura, poderei estar já Morto.
Implorando ao Senhor que me poupe
RickT. Pym. ■*, •■■•■ ' ■ ' ■ ■ PS. Preveniram-me de que o Ouro 916pode ser obtido em Berlim,
a um preço módico, e que a Mala Diplomática está à disposição das pessoas
Bem Colocadas que pretendam aproveitar uma oportunidade de remune
ração não oficial. Perce Loft continua na sua antiga Morada epoderá cola
borar contigo, mediante uma comissão de dez por cento, mas tem cuidado comele. ■■■■■•• v . ■ ■ ■■■■■■ .■...■ . , .-..JÍ...
Berlim. Que guarnição de espiões, Tom! Que armário cheio de inúteis segredos
líquidos, que parque de diversões para todos os alquimistas, fazedores de milagres,
tocadores de flautas para ratos, que, vestindo o hábito, afastaram o olhar das obrigações
desagradáveis da realidade política! E sempre no centro de tudo, o grande e generoso coração americano, batendo corajosamente ao seu nobre ritmo, em nome da liberdade e
da democracia, e inspirando a libertação dos povos.
Em Berlim, os Serviços britânicos tinham agentes de influência, de ruptura, de
subversão, de sabotagem e de desinformação. Tínhamos até um ou dois que nos
forneciam informações, embora estes constituíssem um grupo desfavorecido, mantido em funções mais por uma tra-
dição respeitável do que pelo seu valor profissional intrínseco. Tínhamos escavadores
de túneis e contrabandistas, encarregados de escutas e falsários, instrutores e
recrutadores, caçadores de talentos e mensageiros, vigilantes e sedutores, assassinos e tripulantes de aeróstatos, especialistas na leitura dos movimentos dos lábios e artistas da
caracterização. Mas fosse o que fosse que os britânicos tivessem, os americanos tinham-
no em maior número, e fosse o que fosse que tivessem os americanos, os alemães
orientais tinham-no quintuplicado, e os russos, decuplicado. Pym ficava diante destas
maravilhas como uma criança à solta numa loja de doces, sem saber o que havia de agarrar primeiro. E Axel, entrando e saindo da cidade sorrateiramente, com um sem
número de passaportes falsos, seguia, em silêncio, Pym através da loja de doces com o
seu cesto, recolhendo o que ele tirava das prateleiras. Em apartamentos dos Serviços e
restaurantes sombrios, nunca duas vezes no mesmo sítio, tomávamos refeições
tranquilas, trocávamos as nossas mercadorias e olhávamos um para o outro com a satisfação incrédula que sentem os montanhistas quando chegam ao cume. Mas mesmo
então, nunca esquecíamos o monte mais alto que nos esperava, enquanto erguíamos os
nossos copos de vodka, murmurando à luz das velas: «Ao nosso ano que vem na
América!».
E as comissões, Tom! Berlim não era suficientemente segura para as albergar. Reuníamo-nos em Londres em salas douradas e luxuosas, adequadas aos jogadores do
jogo do mundo. E éramos uma amostra extremamente ousada, diversificada e
brilhantemente inventiva dos dirigentes da nossa sociedade, porque eram aqueles os
anos de renovação da Inglaterra, quando os talentos ocultos do país eram retirados da
sua concha e dedicados ao serviço da nação. Os espiões só olham uns para os outros, era o que todos proclamavam. Era demasiado incestuoso. Em Berlim, tínhamos de abrir as
portas ao mundo real dos professores, advogados e jornalistas. Precisamos de
banqueiros, sindicalistas e industriais, tipos que põem o dinheiro naquilo que lhes dá de
comer e sabem o que é que faz girar o mundo. Precisamos de deputados que nos possam
dar alguma coisa do clima das tribunas e que profiram discursos severos acerca do dinheiro dos contribuintes!
E o que é que aconteceu a esses homens sábios, Tom, a esses homens de fora, astutos, e
que nunca faziam uma insensatez, cães de guarda da guerra secreta? Entraram
precipitadamente para lugares que os próprios «piões receariam frequentar. Frustrados
por muito tempo pelas limitações do mundo a descoberto, esses espíritos brilhantes e desembara-
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çados apaixonaram-se de um dia para ò outro por todas as conspirações, fraudes e
caminhos escusos que possas imaginar. Sabe o que é que eles agora inventaram? espumava Pym, an
dando de um lado para o outro pela carpete do apartamento de servi
ço, em Lowndes Square que Axel alugara pelo período de tempo que
durava uma conferência anglo-americana sobre acções não oficiais.
Acalme-se, Sir Magnus. Tome outra bebida. Acalmar-me? Quando aqueles lunáticos tencionam seriamente
mexer no controlo de voos soviético, dirigirem um MIG para o espaço
aéreo americano, abatê-lo e, se por acaso o piloto sobreviver, dar-lhe a
escolher entre ser julgado por espionagem e encenar uma deserção pú
blica perante os microfones? O plano foi cozinhado pelo responsável pela rubrica de defesa do Guardian, valha-nos Deus! Vai desencadear
uma guerra. É o que ele quer. Assim acabará por ter alguma coisa para
pôr no jornal. Foi apoiado por um sobrinho do arcebispo de Cantuá-
ria e por um director-geral adjunto da BBC.
Mas Axel não permitia que o seu amor pela Inglaterra fosse atingido pelas pieguices de Pym. Através da janela de um Ford sem motorista do parque automóvel dos Serviços,
Axel olhou demoradamente o palácio de Buckhingam, batendo levemente as palmas ao
ver a bandeira real flutuar iluminada.
Volte para Berlim, Sir Magnus. Um dia há-de ser a bandeira
americana. O seu apartamento de Berlim ficava no centro de Kurfursten-damm, no último andar de
uma grande casa de Biedermeier, que escapara milagrosamente aos bombardeamentos.
O quarto de Pym dava para o jardim, por isso não ouviu o carro deles a estacionar, mas
ouviu os passos abafados nas escadas e recordou a Fremdenpolizei a subir
sorrateiramente as escadas de madeira de Herr OUinger nas primeiras horas da madrugada, altura do dia preferida dos polícias, e Pym soube que chegara o fim, embora
nunca tivesse imaginado, em nenhuma das suas antecipações, que este chegaria daquele
modo. Os homens de acção pressentem estas coisas e aprendem a confiar no seu
instinto, e Pym era um duplo homem de acção. Por isso, soube que chegara o fim e, nem
surpreendido nem desconcertado, permaneceu tranquilo-Saiu da cama e foi até à cozinha em menos de um segundo, porque era na cozinha que estavam escondidos os
rolos fotográficos para o seu
próximo encontro com Axel. Quando eles tocaram à campainha, Pym já desenrolara seis
bobinas, inutilizando-as, e destruíra o bloco de códigos de ignição instantânea, que tinha escondido dentro de um plástico no autoclismo. Na sua aceitação lúcida do destino,
chegou a encarar a possibilidade de um acto ainda mais drástico, porque Berlim não era
Viena e Pym tinha uma pistola na mesa de cabeceira e outra numa gaveta do bali. Mas
alguma coisa no modo humilde como eles murmuraram: «Herr Pym, por favor, acorde»,
através da abertura para as cartas na porta da rua, o dissuadiu disso, e quando espreitou pelo óculo e viu a silhueta amigável do tenente da polícia Dollendorf e o jovem sargento
ao seu lado, invadiu-o uma consciência que o envergonhava do choque que teria
causado a ambos cometendo esse acto radical. Portanto, estão a fazer uma entrada
suave, pensou Pym ao abrir a porta: primeiro, dispõem-se os lobos à volta do edifício, e
depois, manda-se avançar o senhor Boa Pessoa. O tenente Dollendorf era, como quase toda a gente em Berlim, cliente de Jack
Brotherhood e recebia pequenas gratificações para olhar para outro lado quando os
agentes eram transportados de um lado para o outro do troço lucrativo do Muro que
ficava na sua zona. Era um bá-varo de ar satisfeito, com todos os apetites bávaros e o
seu hálito cheirava permanentemente a Weisswurst. Desculpe, Herr Pym. Desculpe incomodá-lo tão tarde co
meçou ele, com um sorriso excessivo. Estava de uniforme. Tinha a pis
tola ainda no coldre. O nosso Herr Kommandant pede-lhe que ve
nha imediatamente à esquadra para tratar de um assunto pessoal e
urgente explicou ele, ainda sem tocar na arma. Mas havia na voz de Dollendorf tanto de decisão como de embaraço, e o seu sargento
espreitava atentamente, para cima e para baixo, o poço das escadas.
O Herr Kommandant garantiu-me que tudo poderá ser tratado
discretamente, Herr Pym. Nesta fase, ele quer acima de tudo ser deli
cado. Não contactou os seus superiores insistiu Dollendorf, en quanto Pym ainda hesitava. O Kommandant tem-no em alta consi
deração Herr Pym.
Tenho de me vestir.
Mas depressa, por favor. O Kommandant gostaria de ter o as
sunto resolvido antes de se ver obrigado a passá-lo para o turno do dia. Pym voltou-se e dirigiu-se com precaução até ao seu quarto. Ficou à espera de ouvir os
polícias atrás de si, ou uma ordem gritada, mas os
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homens preferiram ficar no hall, observando as gravuras dos pregões de Londres, oferta da secção de alojamentos dos Serviços.
Posso usar o seu telefone, Herr Pym?
Faça favor.
Pym vestiu-se com a porta aberta, esperando ouvir a conversa. Mas a única coisa que
ouviu foi: «Tudo em ordem, Herr Kommandant. O nosso homem vai para aí imediatamente».
Desceram as escadas largas, os três a par, e dirigiram-se a um carro da polícia
estacionado com a luz acesa. Nada para além do carro. Nada de noctívagos a vaguear
nas ruas. É mesmo típico dos alemães terem desinfectado toda a zona, antes de me
prenderem. Pym sentou-se à frente com Dollendorf. No céu vermelho agitavam-se nuvens negras. Ninguém disse mais nada.
E na esquadra da polícia, vai estar Jack, à espera, pensou Pym. Ou a Polícia Militar. Ou
Deus.
O Kommandant levantou-se para o receber. Dollendorf e o seu sargento desapareceram.
O Kommandant considerava-se um homem sobrenaturalmente subtil. Era alto, grisalho, com as costas abauladas, olhos parados e uma boca pequena e faladora que trabalhava a
uma velocidade suicida. O Kommandant inclinou-se para trás na cadeira e juntou as
pontas dos dedos. Falou num tom monótono e angustiado, dirigindo-se a uma gravura
que representava a sua terra natal, na Prússia Oriental, pendurada na parede por cima da
cabeça de Pym. Segundo a estimativa serena de Pym, o homem falou durante cerca de seis horas sem interrupção e sem parecer tomar fôlego, o que, para ele, constituía um
aquecimento rápido antes de entrarem na parte séria da discussão. O Kommandant disse
que era um homem vivido e pai de família, habituado àquilo a que chamava a esfera
íntima. Pym disse que respeitava tudo isso. O Kommandant disse que não era um
espírito didáctico nem um político, embora fosse democrata-cristão. Pertencia à igreja evangélica, mas Pym podia estar descansado porque ele não tinha nada contra os
católicos romanos. Pym respondeu que não esperava dele outra coisa. O Kommandant
disse que os delitos eram uma espécie de espectro situado entre os erros humanos
desculpáveis e o crime organizado. Pym concordou e ouviu um som de passos no
corredor. O Kommandant çeàm a Pym que tivesse presente que os estrangeiros num pais estranho tinham muitas vezes uma sensação de falsa segurança, quando
ponderavam a hipótese de cometer aquilo que, em rigor, poderia ser considerado um
crime.
Posso falar com franqueza, Herr Pym?
Claro que sim! disse Pym, que começava a ter agora uma pre
monição ameaçadora de que não era ele, mas Axel quem estava preso.
Quando mo trouxeram, olhei para ele. Ouvi o que ele tinha a
dizer. E disse: «Não, não pode ser. Herr Pym, não. Este homem é um impostor. O tipo está a tentar fazer valer um conhecimento distinto.
Mas, continuando a ouvi-lo, detectei nele, como hei-de dizer?, um sen
tido de visão. Há ali uma grande energia, uma grande inteligência e pos
so dizer também que um grande encanto. Pensei que era possível aque
le homem ser quem dizia que era. Pensei: só Herr Pym, porém, no-lo poderá confirmar». O Kommandant carregou num botão da sua se
cretária. Posso confrontá-lo consigo, Herr Pym?
Apareceu um velho guarda, bamboleando-se à frente deles, enquanto o seguiam por um
corredor de tijolos pintados, que cheirava fortemente a ácido fénico. O guarda abriu
uma porta gradeada, que fechou depois de passarem. Abriu uma segunda grade. Era a primeira vez que eu via Rick numa prisão, Tom, e desde então, esforcei-me por que
fosse também a última. De futuro, Pym passaria a mandar-lhe comida, roupa, charutos
e, na Irlanda, Drambuie. Pym esgotava por ele a sua conta bancária e, se fosse
milionário, preferiria falir a vê-lo ali outra vez, ainda que apenas em sonhos. Rick
estava sentado num canto, e Pym percebeu imediatamente que ele escolhera aquele lugar para gozar de uma perspectiva mais ampla da cela, pois Rick sempre precisara de
mais espaço do que aquele que Deus lhe dava. Estava sentado com a sua grande cabeça
inclinada para a frente, franzindo o sobrolho com o mau humor de um preso, e posso
jurar que Rick desligara interiormente os ouvidos e nem sequer nos sentira chegar.
Pai disse Pym. Sou eu. Rick aproximou-se das grades e pôs uma das mãos de cada lado e a cara entre elas.
Olhou primeiro para Pym, depois para o Kommandant e para o guarda, sem perceber
qual a situação de Pym. Tinha uma expressão sonolenta e mal-humorada.
Então, também te apanharam a ti? Não é verdade, meu filho?
disse ele, suponho que não sem alguma satisfação. Sempre achei que devias andar metido em alguma. Devias ter estudado Direito, como
eu te disse que fizesses. Lentamente, a verdade começou a revelar-se-lhe.
O guarda abriu a porta da cela, o simpático Kommandant disse: «Faça
favor, Herr Pym», e afastou-se dando-lJtie passagem. Pym avançou para
Rick e abraçou-o, mas com delicadeza, pensando que lhe poderiam ter
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batido e que ele poderia estar magoado. Gradualmente, Rick foi retomando confiança. Meu Deus do céu, filho, que raio me andam eles a fazer? Não poderá um tipo honesto
fazer uns negociozitos neste país? Já viste a comida que aqui nos servem, estas salsichas
alemãs? Para que é que pagamos os nossos impostos? Para que é que andámos na
guerra? De que é que serve ter um filho que manda no ministério dos Negócios
Estrangeiros, se ele não consegue conservar o pai a salvo destes assassinos alemães? Mas naquela altura, já Pym estava a dar um abraço apertado a Rick, a dar-lhe
pancadinhas nos ombros e a dizer-lhe que, independentemente das circunstâncias, era
uma alegria vê-lo. Então, Rick começou a chorar e o Kommandant retirou-se
delicadamente para outra sala, enquanto os dois companheiros reunidos celebravam um
no outro o seu salvador. Não te quero desapontar, Tom, mas a verdade é que esqueci, talvez deliberadamente, os
pormenores das transacções de Rick em Berlim. Era do seu próprio julgamento que
Pym então estava à espera, e não do de Rick. Lembro-me de que havia duas irmãs de
nobres famílias prus-sianas que viviam numa velha casa em Charlottenburg, porque
Pym as visitou para lhes oferecer algum dinheiro pelos quadros que, como de costume, faltavam e que Rick deveria ter vendido por conta delas, e pelo broche de diamantes que
ele levara para limpar, e pelos casacos de peles que estavam a ser remodelados por um
dos seus amigos, que era um alfaiate de primeira em Londres e que faria o serviço
grátis, porque tinha uma grande admiração por Rick. Lembro-me também de que as
duas irmãs tinham um sobrinho transviado, que andava envolvido num negócio escuro de armas, e que algures, num dado ponto da história, Rick tivera um avião para vender,
o bombardeiro melhor e mais bem conservado que era possível imaginar, em perfeito
estado por dentro e por fora. E tanto quanto sei, esse bombardeiro devia estar a ser
pintado por aqueles liberais de sempre, os Balhams de Brinkley, e com certeza seria
capaz de levar toda a gente para o céu. Foi também em Berlim que Pym cortejou a tua mãe, Tom, e a roubou ao patrão de
ambos, Jack Brotherhood. Não estou certo de que tu ou qualquer outra pessoa tenha um
direito natural a saber por que espécie de acidente foi concebido, mas tentarei ajudar-te
o melhor que puder. Os motivos de Pym não foram inteiramente transparentes,
confesso. O amor, o que de amor houve, veio mais tarde.
Parece que Jack Brotherhood e eu andamos com a mesma mu
lher disse um dia, maliciosamente, Pym a Axel, numa conversa de
cabine telefónica para cabine telefónica.
Axel exigiu imediatamente saber de quem se tratava. Uma aristocrata disse Pym, ainda a meter-se com ele. Uma
das nossas. Igreja e espionagem de primeira, se é que isto te diz alguma
coisa. As ligações entre a família dela e os serviços secretos remontam a
Guilherme o Conquistador.
É casada? Bem sabe que eu não vou para a cama com mulheres casadas, a
menos que elas insistam muito.
É divertida?
Axel, estamos a falar de uma senhora.
O que eu queria saber é se ela era uma mulher de sociedade insistiu com impaciência Axel. É aquilo a que você chama umagm-
ha diplomática? É uma burguesinha? Os americanos gostariam dela?
É uma Martha de primeira, Axel. Já lhe disse. É muito bonita,
rica e extremamente britânica.
Então, talvez seja ela o nosso bilhete para Washington disse Axel, que exprimira recentemente a sua apreensão perante o número de
mulheres ocasionais que passavam pela vida de Pym.
Pouco tempo depois, Pym recebeu do teu tio Jack um conselho semelhante.
Mary contou-me o que se passa entre vocês, Magnus disse ele,
chamando-o de parte, com os seus modos mais avunculares. E se queres saber a minha opinião, podias ter ido mais longe e não encon
trares nada tão bom. Mary é uma das melhores raparigas que cá temos
e já é tempo de ganhares um ar mais respeitável.
Por isso, Pym, com ambos os seus mentores a empurrarem-no na mesma direcção,
seguiu os conselhos deles e tomou Mary, tua mãe, como legítima colaboradora no Altar da aliança anglo-americana. E na realidade, a seguir a tudo aquilo a que ele renunciara
já, pareceu-lhe um sacrifício bastante razoável.
Dá-lhe a mão, Jack escreveu Pym - , ele ia coisa mais preciosa que
eu tive.
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Mabs, perdoa-me escreveu Pym , querida, querida Mabs, perdoa-me. Se o amor éaquilo que nos resta trair, lembra-te que foram muitas as vezes que te traí.
Começou a escrever também um bilhete para Kate, mas rasgou-o. Escrevinhou
«Querida Belinda» e interrompeu-se, assustado com o silêncio à sua volta. Olhou
bruscamente para o seu relógio. Cinco horas. Porque é que o relógio da igreja não bateu
as horas? Estou surdo. Estou morto. Estou numa cela acolchoada. Do outro lado da praça, soou a primeira badalada. Uma. Duas. Posso fazê-lo parar, no momento que
escolher, pensou Pym. Posso fazê-lo parar à primeira, à segunda, à terceira badalada.
Posso agarrar em qualquer pedaço de qualquer hora e fazê-la parar. O que não posso
fazer é pôr o relógio a dar a meia-noite à uma hora. Isso é uma coisa que Deus é capaz
de fazer, mas eu não. Descera sobre Pym uma imobilidade atordoada, e era literalmente a imobilidade da
morte. Estava uma vez mais de pé diante da janela, a ver as folhas que se arrastavam na
praça vazia. Tudo o que via parecia tocado de uma inactividade agoirenta. Não havia
uma cabeça às janelas, nem uma só porta aberta. Nem cães, nem gatos, nem esquilos,
nem uma única criança a gritar. Refugiou-se tudo nas colinas. Estão à espera de uma incursão dos piratas. Mas, em pensamento, Pym está na cave de um prédio de
escritórios decadente, em Cheapside, vendo duas beldades fanadas e de joelhos, que
abrem os últimos dossiers de Rick, e lambem as pontas dos dedos com grandes unhas, a
fim de passarem as folhas mais depressa. Rodeiam-nas montes cada vez maiores de
papéis, que esvoaçam no ar como pétalas num torvelinho, à medida que elas vão inspeccionando e deitando fora os documentos que em vão tinham organizado:
declarações bancárias escritas a sangue, facturas, cartas furibundas de advogados,
mandatos, convocatórias, cartas de amor cheias de censuras. O pó daqueles papéis
invade as narinas de Pym, enquanto ele continua a olhar; o som das gavetas metálicas é
como o som das portas gradeadas de uma prisão; mas as beldades não atendem a nada do que ele sente; são viúvas ávidas a vasculhar o arquivo de Rick. No meio dos
destroços, gavetas e armários de pernas para o ar, ergue-se a secretária da última
Reichskanzelei de Rick, com as suas serpentes enroladas nos pés arqueados, como
jarreteiras de ouro. Na parede está
pendurada a última fotografia do grande T.P., revestido das insígnias de presidente da
Câmara, e na chaminé, por cima de uma grelha de falsos carvões e das últimas pontas de
charuto de Rick, o busto de bronze do Fundador e Director em pessoa, irradiando o que
lhe restava de integridade. Na porta aberta, por trás de Pym, está pendurada a placa
comemorativa das doze companhias perdidas de Rick, mas um letreiro ao lado da campainha diz: «Carregue aqui para chamar», porque, nos momentos em que Rick não
estava ocupado em salvar a economia hesitante do seu país, trabalhava nos últimos
tempos como porteiro nocturno do prédio.
A que horas é que ele morreu? pergunta Pym, antes de lhe
ocorrer que já o sabe. À noite, meu querido. Os pubs tinham acabado de abrir diz
uma das beldades, com o cigarro na boca, atirando mais um maço de
papéis para a pilha do lixo.
Ele estava a beber um copo, aqui mesmo ao lado diz a outra
beldade, que, tal como a primeira, nem por um momento abranda a sua tarefa.
Mesmo ao lado, onde? pergunta Pym.
No quarto de dormir diz a primeira beldade, pondo de par
te mais um dossier velho.
E quem é que estava com ele? pergunta Pym. Você estava lá com ele? Quem é que estava com ele?, digam-me, por favor.
Estávamos as duas, meu querido responde a segunda belda
de. Se quer saber, estávamos todos a acariciarmo-nos. O seu pai gos
tava de beber e isso tornava-o sempre muito afectuoso. Tínhamos fei
to cedo um agradável jantar, por causa dos compromissos dele, bifes de cebolada, e ele tivera uma pequena altercação ao telefone com a Com
panhia dos Telefones por causa de um cheque, que lhes mandara pelo
Correio. Estava um bocado deprimido, não estava, Vi?
A primeira beldade suspende as investigações, embora com relutância. A segunda faz o
mesmo. Repentinamente, as duas passaram a ser mulheres sérias de Londres, com rostos simpáticos e corpos fatigados pelo excesso de trabalho.
Para ele, tudo tinha acabado, meu querido diz uma delas,
afastando uma madeixa de cabelo, com o pulso rechonchudo.
Tudo, o quê?
Ele disse que, se ficasse sem telefone, teria de se ir embora. Dis se que aquele telefone era a sua linhade ligação à vida e que, se lho ti-
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rassem, seria uma sentença definitiva; como é que ele ia poder tratar dos seus negócios
sem um telefone e uma camisa lavada? Tomando o silêncio de Pym como um sinal de reprovação, a outra beldade zanga-se
com ele.
Não esteja a olhar para nós com essa cara, meu querido. Ele já
se tinha apoderado há muito tempo de tudo o que nós tínhamos. Pa
gávamos o gás e a electricidade e fazíamos-lhe as refeições, não é ver dade, Vi?
Fizemos tudo o que podíamos diz Vi. E também o recon
fortámos.
Fazíamos-lhe mais arranjos do que é natural, não é verdade, Vi?
Às vezes, três por dia. Mais diz Vi.
Ele teve muita sorte em vos ter diz Pym, com sinceridade.
Muito obrigado por terem tomado conta dele.
Este agradecimento satisfaz as beldades e as duas sorriem timidamente.
Por acaso, não tem uma garrafinha nessa sua grande pasta preta, não, querido?
Infelizmente, não.
Vi dirige-se ao quarto. Através da porta aberta, Pym vê a grande cama pomposa de
Chester Street, com as cortinas rasgadas e manchadas pelo uso. O pijama de seda de
Rick está desdobrado em cima da colcha. Pym sente o cheiro da loção de Rick e da brilhantina de Rick. Vi regressa com uma garrafa de Drambuie.
Ele falou de mim, nos últimos dias? pergunta Pym, enquan
to as duas bebem.
Ele tinha muito orgulho em si, meu querido diz a amiga de
Vi. Muito orgulho. A beldade não parece satisfeita com a resposta que deu. Mas, ao mesmo tempo, não lhe queria ficar atrás. Foram
praticamente as últimas palavras dele, não é verdade, Vi?
Estávamos as duas abraçadas a ele diz Vi, com uma funga-
dela. Percebia-se que ele estava a acabar, por causa da respiração.
«Digam à Companhia dos Telefones que eu lhes perdoo», disse ele. «E digam ao meu filho Magnus que, em breve, seremos os dois embaixa
dores».
E depois disso? pergunta Pym.
«Dá-me mais um bocadinho de Napoléon, Vi» diz a amiga de
Vi, agora também a chorar. Mas não era Napoléon, era Drambuie. E
depois, ele disse: «Naquele ficheiro, há o suficiente para nada vos faltar até ao dia em
que vierem ter comigo, meninas».
Foi como se ele tivesse adormecido diz Vi, com um lenço à
frente da boca. Se não fosse o coração ter parado, não daríamos por que estava morto.
Ouve-se um ruído vindo da porta. Três pancadas. Vi entreabre-a ligeiramente; depois
abre-a de par em par, e afasta-se com ar desaprova-dor para dar passagem a Ollie e Mr.
Cudlove, munidos de grandes baldes de gelo. Os anos não pouparam os nervos de Ollie,
e as lágrimas que lhe enchem os olhos esborrataram-lhe a maquilhagem. Mas Mr. Cudlove não mudou, até a sua gravata de motorista permanece a mesma. Mudando o
balde para a mão esquerda, Mr. Cudlove aperta a direita de Pym com um gesto másculo.
Pym segue-os por um corredor estreito, com as paredes cobertas de fotografias de
imbatíveis. Rick está deitado na banheira, com uma toalha enrolada à volta dos rins, os
pés de mármore cruzados como se obedecessem a alguma prescrição ritual do Oriente. Tem as mãos entreabertas em concha, como se se preparasse para arengar perante o
Criador.
Foi só porque não tínhamos fundos, sir murmura Mr. Cu
dlove, enquanto Ollie despeja o gelo para dentro da banheira. Nem
nmpenny, para dizer a verdade, sir. Acho que aquelas duas senhoras devem ter tomado algumas liberdades.
Porque é que não lhe fecharam os olhos? pergunta Pym.
Para dizer a verdade, até fechámos, sir, mas eles voltavam-se a
abrir e pareceu-nos uma falta de respeito insistir mais.
Pondo um joelho em terra, diante do pai, Pym passa um cheque de duzentas libras, quase escrevendo «dólares» por engano.
Depois, dirige-se de carro até Chester Street. Há já vários anos que a casa mudou de
mãos, mas naquela noite encontra-se às escuras, como se estivesse de novo à espera da
visita dos oficiais de diligências. Pym aproxima-se cuidadosamente. Do lado de fora da
entrada, uma vela brilha apesar da chuva. E junto à vela, jaz, como um animal morto, uma velha boa de uma cor malva de luto aliviado, semelhante à pertencente à tia Nell,
de que Pym se servira uma vez para entupir a casa de banho em The Glades, havia
muitos anos. Será de Dorothy? De Peggy Went-worth? Terá sido alguma criança na
brincadeira? Terá sido aqui posta pelo fantasma de Lippsie? A boa não tem qualquer
cartão preso nas penas encharcadas. Nenhum sequestrador deixou nela a lista das suas exigências. O único indício é a palavra «sim», rabiscada tremulamente a
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giz na porta, como um sinal indicando um lugar seguro na cidade-alvo de uma operação.
Voltando as costas à praça deserta, Pym dirigiu-se impacientemente à casa de banho e abriu a clarabóia, cujos vidros, anos atrás, esborratara de verde para assegurar um maior
recato a miss Dubber. Através de uma fresta, examinou os jardins contíguos e concluiu
que, também eles, estavam anormalmente vazios. Não, não estava lá Stanley, o lobo de
Alsá-cia, preso à cisterna do número oito. Não se via Mrs. Aitken, a mulher do
carniceiro, que costumava gastar todas as suas horas de vigília a cuidar das roseiras. Fechando ruidosamente a clarabóia, Pym inclinou-se sobre o lavatório e salpicou o rosto
com água; depois, olhou, com uma expressão de ira, o seu reflexo no espelho, até este
lhe devolver um sorriso falsamente radioso. O sorriso de Rick, revestido por Pym para
escarnecer de Pym, aquele sorriso demasiado feliz para poder fechar os olhos. Aquele
sorriso que se aperta contra nós e nos comprime, como uma criança assustada. O sorriso que Pym mais detestava.
Fogo de artifício, meu filho disse Pym, macaqueando a entoação de Rick, nos seus
piores momentos de devoção. Lembras-te como gostavas de fogo de artifício? Lembras-
te da nossa velha noite de Guy Fawkes e do grande fogo preso com as iniciais do teu
velhote, RTP, iluminando toda a Ascott? Pois então. . Pois então, ecoava o esp írito de Pym.
Pym está de novo a escrever. Alegremente. Não há caneta que aguente tanta energia.
Letras precipitadas e livres correm pelo papel. Linhas luminosas, caudas de foguetes,
estrelas e riscas zumbem por cima da cabeça de Pym. À sua volta, ouve-se a música de
mil aparelhos de rádio, os rostos alegres dos estranhos sorriem-lhe e Pym retribui. É o 4 de Julho. É a noite das noites de Washington. Os Pyms diplomáticos chegaram há uma
semana, e ele ia entrar em funções como director adjunto da Delegação. A ilha de
Berlim acabara por se afundar. Ficara para trás um turno de trabalho em Praga, em
Estocolmo, em Londres. O caminho para a América nunca foi fácil, mas Pym venceu a
distância, Pym conseguiu, Pym conquistou e quase ascende aos céus avermelhados, repetidamente invadidos de brancura pelas luzes, pelos fogos de artifício e pelos focos.
A multidão agita-se à sua volta e
Pym faz parte da multidão, os homens livres da terra tornaram-no um dos seus, e Pym e
aquelas crianças grandes felizes, que comemoram a sua libertação de algo que nunca as prendeu, são um só. A banda dos fuzileiros navais, o coro infantil de Breckenbridge, o
grupo do Simpósio Coral da Área Metropolitana, cortejaram-no e seduziram-no sem
que ele oferecesse resistência. Festa atrás de festa, Magnus e Mary foram aclamados por
metade dos aristocratas dos serviços secretos de Georgetown, comeram peixe-espada à
luz das velas em pátios de tijolo vermelho, tagarelaram por baixo de lâmpadas penduradas em caramanchões, abraçaram e foram abraçados, apertaram mãos e
encheram a cabeça de nomes, mexericos e champagne. «Ouvi falar muito de si,
Magnus», «Magnus, bem vindo a bordo! Meu Deus, é a sua mulher? É um escândalol»
Até que Mary, preocupada com Tom o fogo de artifício deixou-o excitadíssimo , decide
regressar a casa e Bee Le-derer acompanha-a. Vou já ter contigo, minha querida murmura Pym, quando
ela se despede. Tenho de ir ter com os Wexler, senão eles ainda pen
sam que estou a evitá-los.
Onde estou? No Mall? Na Hill? Pym não faz ideia. Os braços e as coxas nuas e os seios
livres das jovens americanas roçam-no com satisfação. Mãos amigáveis abrem-lhe caminho; risos, cheiro a erva, inundam a noite escaldante. «Como é que te chamas, pá?
És inglês? Vá lá, dá cá um aperto de mão e bebe uma golada disto.» Pym acrescenta um
golo de bourbon à mistura impressionante que já ingerira. Está a subir uma encosta, que
não consegue perceber se é de relva ou de asfalto. A Casa Branca brilha lá em baixo.
Diante dela, erecto e inundado de luz, o obelisco branco do monumento a Washington rasga o seu caminho fulgurante em direcção às estrelas inacessíveis. Jefferson e Lincoln,
cada um no seu eterno pedaço de Roma, ladeiam Pym. Pym ama-os a ambos. Todos os
patriarcas e Pais Fundadores me pertencem. Chega ao alto da encosta. Um negro
oferece-lhe pipocas. São salgadas e quentes como o próprio suor de Pym. Ao fundo do
vale, explodem e mergulham no céu as batalhas inofensivas de outros espectáculos de fogo de artifício. A multidão, ali em cima, é mais densa, mas as pessoas continuam a
sorrir-lhe e afastam-se para lhe dar passagem, enquanto exclamam «Ah» e «Oh»,
perante o fogo de artifício. Gritam «Amizade!» uns aos outros, e irrompem em canções
patrióticas. Uma rapariga bonita mete-se com Pym. «Ouça lá, porque é que não está a
dançar?» Bom, obrigado, danço com o maior prazer, mas deixe-me só ti-
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rar o casaco responde Pym. Mas a resposta é demasiado palavrosa; entretanto, a
rapariga já descobriu outro par. Pym começa a gritar. A princípio, não ouve a sua própria voz, mas ao chegar a um lugar menos ruidoso, esta revela-se-lhe com uma
nitidez surpreendente. «Poppy! Poppy! Onde estás?», e querendo ajudar, as pessoas
simpáticas que o rodeiam, repetem o grito. «Despacha-te, Poppy! Está aqui o teu
namorado!» «Anda lá, Poppy, grande cadela. Onde é que te meteste?» Atrás e acima de
Pym, os foguetes são agora uma fonte ininterrupta sobre o fundo carmezim das nuvens em torvelinho. Diante dele, abre-se um guarda-chuva de ouro, abrangendo toda a
montanha branca e iluminando a rua que vai ficando vazia. Instruções ecoam
remotamente na cabeça de Pym. Lê os números das ruas e das portas. Encontra a porta
e, finalmente, com um rompante de alegria, sente uma mão ossuda familiar a apertar-lhe
o pulso e uma voz também familiar a admoestá-lo. A sua amiga Poppy não pode vir hoje, Sir Magnus diz Axel
baixinho. Por isso, se não se importa, pare de gritar o nome dela.
Os dois homens sentam-se lado a lado nos degraus do Capitólio, olhando para baixo, na
direcção do Mall, os incontáveis milhares de pessoas que tomaram sob a sua protecção.
Axel trouxe um cesto, contendo um termo de vodka bem gelado e os melhores pepinos de conserva e pão escuro que se podem obter na América.
Conseguimos, Sir Magnus sussurra ele. Chegámos final
mente.
Querido Pai, .
Fico muito contente por poder informar-te do meu novo posto. Conselheiro cultural poderá não te parecer grande coisa, mas éum lugar que merece a maior consideração por
parte das altas esferas, aqui na América, eque me dá até acesso à Casa Branca. Sou
também o orgulhoso detentor de um objecto chamado Salvo-Conduto Cósmico, o que
significa à letra que já não há para mim portas fechadas.
XVII
Oh, meu Deus, Tom, como nos divertimos! Como foi esplêndida e vertiginosa aquela
última lua-de-mel, embora as nuvens se começassem já a adensar!
Seria desculpável se pensasses que os deveres de um director adjun to de Delegação, embora elevados, eram inferiores aos do seu chefe.
Não é verdade. O director da delegação em Washington flutua no ar ra
refeito da diplomacia dos Serviços de Informações. A sua tarefa é mas
sajar o cadáver da Relação Especial e convencer toda a gente, incluin
do ele próprio, de que ela está viva e de boa saúde. Todos os dias, o pobre Hal Tresider se levantava cedo, punha a sua velha gravata de Shirburn
e o seu fato tropical manchado de suor, e pedalava convictamente na
sua bicicleta até ao inebriante país dos sonhos das salas das comissões,
deixando as mãos livres ao teu pai para vasculhar o arquivo da delega
ção, supervisionar as subdelegações de San Francisco, Boston e Chica go, ou correr a auxiliar um agente de campo em trânsito para a Améri
ca Central, para a China ou para o Japão. Outra tarefa ocasional era
conduzir cientistas ingleses de rostos cinzentos através dos viveiros da
alta tecnologia americana, onde os segredos científicos, mais tarde ne
gociados em Washington, têm a sua concepção artificial. Levar as po bres criaturas a jantar, Tom, quando outros as teriam deixado a apo
drecer nos seus motéis. Consolá-las do seu exílio no estrangeiro, sem
mulheres e mal pago. Conversar com os tipos numa gíria aprendida à
pressa acerca de ogivas, Gees, raios de acção, comunicações subaquáti
cas e deslocações teleguiadas. Pedir-lhes emprestados os documentos de trabalho para os devolver na manhã seguinte. «Olá, isso parece muito
interessante. Posso tirar uma fotocópia para o nosso adido naval? Ele
tem andado atrás do Pentágono há anos por causa disso, mas eles não
o quiseram ouvir.» „ *
O adido naval recebia uma fotocópia, Londres recebia uma fotocó-
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pia, Praga recebia uma fotocópia. Pois, para que serve um salvo-con-duto cósmico sem
um auditório cósmico? Pobre Hall, tão parvo e tão sério! Como Pym abusou sistematicamente da tua confiança
e torpedeou as tuas inocentes ambições! Não faz mal, se o National Trust não te aceitar,
poderás sempre contar com o Royal Automobile Club, ou com uma empresa próspera
da City.
Ouça lá, Pymmie, vem aí um grupo horrível de físicos visitar o Laboratório de Armamento de Livermore, para o mês que vem dizias, num tom de desculpa e
desconfiança. Se calhar, você podia lá dar um salto, para dar de comer e beber a alguns
deles e não os deixar assoarem-se à toalha da mesa, que lhe parece? Não consigo
perceber porque diabo é que este serviço tem de funcionar como um depósito de tipos
da segurança com os pés chatos. Estou decidido a mandar uma carta para Londres sobre o assunto, se conseguir arranjar um minuto livre.
Nunca houve país onde a espionagem fosse mais fácil, Tom, nação que expusesse tão
abertamente os seus segredos, que tão prontamente os ventilasse, os partilhasse, os
confiasse ou tão depressa os lançasse para a lixeira da obsolescência programada dos
americanos. Sou novo de mais para saber se já terá havido uma época em que os americanos foram capazes de refrear a sua admirável paixão de comunicar, mas duvido.
E certo que, desde 1945, se entrou numa curva descendente, porque em breve se tornou
óbvio que informações, que ainda há dez anos teriam custado aos serviços de Axel
milhares de dólares em divisas, em meados dos anos 70 podiam ser obtidas a troco de
alguns cobres no Washington Post. Se fôssemos de uma natureza mais mesquinha, tê-lo--íamos levado a mal algumas vezes, pois há poucas coisas mais humilhantes no
mundo da espionagem do que arranjar um grande furo para Praga e para Londres numa
semana, e depois ler, na semana seguinte, o mesmo material na Aviation Weekly. Mas
nós não nos queixávamos. No grande pomar da tecnologia americana, havia fruta que
chegasse para toda a gente, e nunca viria a faltar nada a nenhum de nós. Agora só me resta dar-te mais alguns enfeites, Tom, mais algumas peças para
completares a figura. Olha os dois amigos que brincam des-preocupadamente por baixo
de um céu que escurece, agarrando os últimos raios de sol antes do fim do jogo. Olha-os
a roubar como crianças que sabem que a polícia está ali mesmo ao virar da esquina.
Pym não se apaixonou pela América numa noite, nem num mês, apesar de todos os esplêndidos fogos de artifício do 4 de Julho. O seu amor por aquele lugar cresceu
juntamente com o de Axel. Sem Axel, poderia até
nunca se ter declarado. Acredites ou não, Pym estava inicialmente decidido a condenar
tudo o que via. Aquele mundo era jovem de mais para ele, excessivamente destituído de autoridade. Pym não encontrava nada a que se agarrar, nenhum veredicto severo contra
o qual se revoltar. Aquelas pessoas ordinárias que só procuravam o prazer, tão francas e
barulhentas, eram demasiado desinibidas para a sua vida resguardada e complexa. Os
americanos amavam a sua opulência de maneira demasiado óbvia, eram de uma
mobilidade e de uma flexibilidade excessivas, mostravam-se excessivamente independentes do lugar, das origens e da classe social. Não compreendiam aquele
silêncio que, ao longo de toda a vida de Pym, fora a música de fundo da sua inibição. É
verdade que, quando reunidos, voltavam rapidamente à sua matriz, tornando a ser os
principezinhos guerreiros dos países europeus que haviam deixado para trás. Eram
capazes de nos montar cabalas que fariam corar a Veneza medieval. Eram capazes de ser holandeses, obstinados escandinavos lúgubres, balcânicos homicidas e tribais. Mas,
quando se misturavam uns com os outros, eram americanos loquazes e desarmantes, e
Pym viu-se em dificuldades para encontrar terreno para
trair.
Porque é que eles não lhe tinham feito mal nenhum? Porque é que não o tinham cercado, assustado, obrigado os seus membros a adopta
rem posições impossíveis desde o berço? Deu por si com saudades das
ruas vazias e escuras de Praga e do amplexo tranquilizador das cadeias.
Queria estar de novo nos seus horríveis colégios. Queria tudo menos
os horizontes maravilhosos que abriam para vidas que ele não vivera. Queria espiar os movimentos da própria esperança, ver o sol nascer atra
vés de um buraco de fechadura e negar as possibilidades que perdera. E
durante todo esse tempo, ironicamente, a Europa preparava-se para o
vir buscar. Pym sabia-o. E Axel também. Ainda não passara um ano,
quando começaram a chegar aos seus ouvidos os primeiros murmúrios insidiosos da suspeita. No entanto, foi precisamente este anúncio de
fim que arrancou Pym à sua relutância e o fez assumir o lugar predo
minante na relação de ambos, no preciso momento em que Axel dizia:
«Acaba com isso, vamos embora». Foi tomado de uma misteriosa gra
tidão para com a j usta América e pela punição eminente, enquanto ela, como um gigante corpulento e perplexo, se debruçava demoradamen
te sobre ele, acumulando na sua mão enorme as provas cada vez mais
numerosas da sua duplicidade. „ -
Alguns aristocratas de Langley e Londres começam a ficar preo-
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cupados com as nossas redes checas, Sir Magnus avisou Axel, no seu inglês rígido e conciso, durante um encontro improvisado no parque de estacionamento do estádio
Robert F. Kennedy. Infelizmente, começaram a descortinar certas regularidades.
Que regularidades? Não há regularidades nenhumas.
Repararam que as redes checas fornecem excelente material
quando somos nós a dirigi-las e quase nada quando são outros. A regu laridade é essa. Hoje em dia, eles têm computadores. Bastam-lhes cin
co minutos para virarem tudo de pernas para o ar e examinarem depois
como é a posição certa das coisas. Fomos descuidados, Sir Magnus. Fo
mos demasiado gulosos. Os nossos pais é que tinham razão. Se queremos
uma coisa bem feita, temos de ser nós próprios a fazê-la. Jack Brotherhood é capaz de dirigir essas redes tão bem como
nós. Os agentes principais são tipos competentes, transmitem tudo o
que conseguem apanhar. Todas as redes passam por fases de exaustão,
uma vez por outra. É normal.
Estas redes só passam por fases dessas quando nós não estamos em cena, Sir Magnus repetiu Axel, pacientemente. É o que pen
sa Langley. E isso incomoda-os.
Então, arranje melhor material para as redes. Comunique com
Praga. Diga aos seus aristocratas que precisamos de um furo.
Axel abanou a cabeça tristemente. Você conhece Praga, Sir Magnus. Conhece os meus aristocra
tas. O homem ausente é o homem contra quem eles conspiram. Eu não
tenho poder para os convencer.
Pym encarou calmamente a alternativa que lhe restava. Ao jantar, na sua elegante casa
de Georgetown, enquanto Mary desempenhava o papel de gentil anfitriã, de gentil senhora inglesa, gentil geisha diplomática, Pym perguntou a si próprio se não seria,
afinal de contas, altura de persuadir Poppy a saltar mais uma fronteira. Imaginou-se sem
mácula, finalmente marido, filho e pai, gozando a sua respeitabilidade. Lembrou-se de
uma velha casa de campo, com a sua quinta, do tempo da Revolução que ele e Poppy
haviam admirado na Pensilvania, instalada entre campos planos e muros de pedra, com cavalos de raça que os olhavam no meio da neblina matinal, que o sol ia dissipando.
Lembrou--se das igrejas caiadas, tão radiosas e cheias de esperança, contrastando com
as criptas bolorentas da sua infância, e imaginou a família Pym, ali reinstalada a
trabalhar e a dar graças a Deus, e Axel no balouço do jardim, bebendo vodka e
descascando ervilhas para o almoço.
Vou vender Axel a Langley e comprar a minha liberdade, pensou Pym, enquanto
deslumbrava uma matrona de dentes como pérolas, contando-lhe uma anedota. Vou
negociar a minha amnistia administrativa e limpar o meu cadastro.
Nunca o fez, e nunca o faria. Axel era o seu guardião e a sua virtude, era o altar onde Pym depusera os seus segredos e a sua vida. Transformara-se nessa parte de Pym que a
mais ninguém pertencia.
Precisarei de te dizer, Tom, como o mundo nos parece esplêndido e desejável quando
sabemos que os nossos dias estão contados? Como toda a vida cresce e desabrocha
diante de nós e nos convida a entrar, justamente quando nos julgávamos rejeitados? Como a América se tornou um paraíso quando Pym soube que tinha a cabeça a prémio?
Toda a sua infância se precipitava de novo sobre ele! Levou Mary, numa excursão pela
montanha, a Winterthur na região dos palácios e sonhou com a Suíça e com Ascott.
Vagueou pelo belo cemitério Oak Hill, em Georgetown, e imaginou que estava com
Dorothy em The Glades, entrincheirado no pomar húmido onde o seu rosto culpado se encontrava ao abrigo do olhar dos transeuntes. Minnie Wilson era a nossa caixa de
correio em Oak Hill, Tom. A primeira que tivemos em toda a América um dia, hás-de ir
lá vê-la. Encontra-se em cima de um pedestal e da sua base ornamentada, um pouco
abaixo, na encosta em socalcos do cemitério uma rapariga vitoriana morta, nas suas
pregas de mármore. Deixávamos as nossas mensagens num recesso frondoso entre o fundo das costas de Minnie e a pessoa do protector, um tal Thomas Entwisthle, que
morrera numa idade mais avançada. O decano do corpo diplomático repousava mais
para cima, junto do terreno de saibro onde Pym estacionava o seu carro oficial. Axel
descobriu o túmulo e certificou-se de que Pym o descobriria também. Era Stefan
Osusky, co-fundador da República Checoslovaca, que morrera no exílio, em 1973. Nenhuma oferta dissimulada a Axel parecia completa sem uma oração silenciosa,
saudando o nosso irmão Stefan. Depois de Minnie, quando o volume dos nossos
negócios aumentou, vimo-nos obrigados a nomear carteiros mais próximos do centro da
cidade. Escolhemos generais de bronze, há muito esquecidos, principalmente franceses,
que haviam combatido ao lado dos americanos para contrariar os ingleses. Gostávamos dos seus chapéus moles, dos seus telescópios e dos seus cavalos, e das flores de
uniforme vermelho depostas a seus pés. Os seus
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campos de batalha eram praças ajardinadas, cheias de estudantes ociosos, e as nossas caixas de correio podiam ser tanto o canhão curto e grosso que os protegia como as
coníferas anãs, cujos ramos mais resguardados formavam excelentes ninhos castanhos
de caruma. Mas o lugar favorito de Axel era o recém-inaugurado Museu Nacional do Ar
e do Espaço, onde podia olhar devotadamente o SpiritofSt. Louis e o Friend-ship 7 de
John Glenn, e tocar com o indicador a Relíquia da lua, com tanta unção como se molhasse os dedos na pia de água benta. Pym nunca o viu fazer nada disto. Limitava-se
a ouvi-lo descrever a cena mais tarde. O truque consistia em deixar os embrulhos em
cacifos separados do vestiário e trocar as chaves na escuridão da sala de projecções
Samuel P. Langley, enquanto o público ofegava e agarrava os braços das cadeiras e o
ecrã derramava à volta as deslumbrantes emoções do voo. E longe dos olhos e ouvidos de Washington, Tom, não sei de que te hei-de falar
primeiro. Talvez de Sillicon Valley e da pequena aldeia espanhola, a sul de San
Francisco, onde monges semelhantes a Murgo nos fizeram ouvir cantochão depois do
jantar. Ou da paisagem de Palm Springs, semelhante à do Mar Morto, onde os golf-carts
tinham insígnias de Rolls Royce, e as montanhas de Moab se debruçavam sobre o estuque das bacias rochosas artificiais do nosso motel murado; onde emigrantes
mexicanos ilegais vagueavam pelos relvados, de saco às costas, varrendo folhas
invisíveis que poderiam ofender os olhos dos milionários como nós. Poderás imaginar o
êxtase de Axel quando accionava as máquinas de ar condicionado do exterior, que
humedeciam o ar do deserto e sopravam uma mini-neblina por cima dos turistas estendidos ao sol, com as caras recobertas de lama verde? Deverei falar-te do jantar de
adopção de cães organizado pela Sociedade Humanitária de Palm Springs, em que
participámos, comemorando o facto de Pym ter conseguido os mais recentes projectos
do focinho do avião bombardeiro StealtB. Deverei contar-te como os cães foram
trazidos para o palco, penteados e cheios de laçarotes, para serem entregues a senhoras humanitárias, enquanto toda a gente chorava como se se tratasse de órfãos vietnamitas?
E o canal de rádio dos impingidores da Bíblia, funcionando vinte e quatro horas por dia,
e onde o Deus cristão era apresentado como campeão da riqueza, uma vez que a riqueza
era inimiga do comunismo? Chamavam a Palm Springs a sala de espera de Deus. A
cidade tem uma piscina para cada cinco habitantes e fica a duas horas
de automóvel das maiores fábricas de armamento do mundo. As suas indústrias são a
caridade e a morte. Nessa noite, sem que dessem por isso os bandidos reformados e os
comediantes senis, que constituíam a corte geriátrica da cidade, Pym e Axel
acrescentaram a espionagem à lista das glórias de Palm Springs. Nunca tornaremos a voar tão alto, Sir Magnus disse Axel, ao
examinar reverentemente a oferenda de Pym, no silêncio da suite de seis
centos dólares por noite. Acho também que nos podemos reformar.
Deverei falar-te da Disneylândia e dessa outra sala de projecções de ecrã circular que
nos exibiu o sonho americano? Serei capaz de te convencer de que Pym e Axel derramaram lágrimas sinceras ao verem os refugiados das perseguições europeias
desembarcando no solo americano, enquanto o comentador falava de uma Nação das
Nações e de uma Terra da Liberdade? Acreditámos em tudo aquilo, Tom. E Pym ainda
acredita. Pym nunca se sentiu tão livre na sua vida, antes da noite da morte de Rick.
Tudo o que ele ainda conseguia amar em si próprio estava ali, pronto a ser amado, naqueles que o rodeavam. A facilidade de se abrirem aos estranhos. A astúcia que só lá
estava para proteger a inocência. A fantasia que se inflamava, mas nunca os dominava
por inteiro. A capacidade de receberem todas as influências e de se manterem, apesar de
tudo, soberanos. E Axel também os amava, mas não tinha tanta certeza de ser
correspondido na sua afeição. Wexler está a organizar uma equipa de investigações, Sir Mag
nus avisou ele, uma noite, em Boston, enquanto jantavam na dig
nidade colonial do Hotel Ritz. O maldito de um desertor andou a
contar-lhes coisas. É tempo de sairmos de cena.
Pym não respondeu. Atravessaram o parque a pé, e olharam os barcos em forma de cisne no lago. Instalaram-se num tumultuoso e desa-dornado pub irlandês, a transbordar
dos crimes que os ingleses esqueciam. Mas Pym continuava fechado no seu mutismo.
Alguns dias depois, no entanto, ao visitar em Yale um professor inglês que fornecia às
vezes alguns petiscos aos Serviços, deu por si diante da efígie do herói americano
Nathan Hale, que fora enforcado pelos ingleses acusado de espionagem. Tinha as mãos atadas atrás das costas. No pedes- tal, estavam gravadas as suas últimas palavras: «Só
lamento ter apenas uma vida para dar pelo meu país». Durante várias semanas, após este
encontro, Pym não pôde pensar noutra coisa.
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Pym falava. Pym deslocava-se. Pym estava algures no quarto. Os
braços colados ao corpo, com as mãos abertas, como alguém que qui
sesse voar ou nadar. Vergava os joelhos, com as costas encostadas à pa
rede. Agarrou-se ao ficheiro verde e abanou-o, fazendo-o vacilar com o
seu gesto, como um velho relógio de caixa prestes a esmagá-lo com o seu peso, e a Caixa Destruidora agitava-se e oscilava em cima do fi
cheiro, como se dissesse: «Segura-me». Pym praguejava, mas apenas
mentalmente. Falava, mas apenas mentalmente. Ansiava por que o am
biente que o rodeava lhe desse calma, mas não conseguia. Estava de
novo sentado à secretária e o suor gotejava sobre os papéis que o cerca vam. Escrevia. Estava calmo, mas o maldito quarto continuava a não
querer acalmar-se, e interferia na sua escrita. #
De novo, em Boston.
Pym visitara o semicírculo brilhante que fica junto à estrada 128: Bem-vindos à Estrada
Tecnológica da América. Trata-se de um lugar parecido com um crematório sem chaminé. Fábricas e laboratórios discretos e escondidos aninhavam-se entre as moitas e
elevações ajardinadas. Pym roubou algumas ideias da delegação de cientistas britânicos
em visita e tirou algumas fotografias proibidas, com uma máquina que trazia escondida
na pasta. Foi convidado para almoçar em privado em casa de um grande patriarca da
indústria americana chamado Bob, de quem se tornara amigo por causa da indiscrição dele. Estiveram os dois sentados na varanda, de onde contemplaram um jardim de
relvados inclinados que um negro aparava sonolentamente, com um aparelho de lâmina
tripla. Depois do almoço, Pym dirige-se de carro até Needham, onde Axel o espera
perto de uma curva do Charles River, que lhes serve de Aare local. Uma garça voa por
cima dos juncos azuis esverdeados. Falcões de cauda vermelha fitam--nos de cima das árvores mortas. O caminho que segue sobe, embrenhando-se nos bosques, ao longo da
saliência de uma sedimentação glaciar.
Então, diga lá qual é o problema diz, finalmente, Axel.
Porque é que há-de haver algum problema?
Você está tenso e não diz nada. É uma suposição razoável pen sar que haja algum problema.
Fico sempre tenso antes das entrevistas para fazer o ponto da si
tuação.
Mas não dessa maneira.
Ele não quis falar comigo.
Quem? Bob?
Perguntei-lhe como iam as coisas com o contrato Nimitz de re
parações. Ele respondeu que a sua companhia estava a avançar muito na Arábia Saudita. Quis saber como tinham corrido as suas discussões
com o almirante da esquadra do Pacífico. Ele perguntou-me quando é
que eu ia trazer Mary a passar o fim-de-semana no Maine. A expressão
dele está diferente.
Diferente, como? Está com um ar irritado. Alguém o deve ter prevenido contra
mim. Acho que está mais irritado com eles do que comigo.
E que mais? pergunta Axel, pacientemente, sabendo que com
Pym há sempre mais uma porta a abrir.
Fui seguido até casa dele. Um Ford verde, com os vidros fuma dos. Lá por perto não há nenhum sítio para onde se possa ir de carro
para passear um bocado, e os vigilantes americanos não andam a pé; por
isso, tornaram a ir-se embora.
Equemais? : vv
Pare de perguntar «e que mais?»! > E que mais?
Subitamente, um grande abismo de reserva e desconfiança passou a separar os dois
homens.
Axel • ■ disse, finalmente, Pym.
Era raro Pym tratá-lo pelo nome; as boas maneiras da espionagem restringiam habitualmente essa forma de tratamento.
Sim, Sir Magnus.
Quando estivemos juntos em Berna. Quando éramos estudan
tes. Você não era, pois não?
Não era estudante? Não era espião, não espiava ninguém. Nem os OUingers. Nem
o Cosmo. Nem a mim. Ninguém o dirigia nesse tempo. Você era ape
nas você.
Não era espião. Ninguém me dirigia. Ninguém mandava em mim.
Isso é verdade?
Mas Pym já tinha percebido que sim. Percebeu-o pelo raro brilho de fúria que
surpreendeu nos olhos de Axel. Pela solenidade e tom de desagrado da sua voz.
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Foi pela sua cabeça que passou a ideia de que eu era um espião,
Sir Magnus; essa ideia nunca passou pela minha.
Pym viu-o acender outro charuto e notou que a chama do fósforo tremia.
Essa ideia foi da cabeça de Jack Brotherhood corrigiu Pym. Axel puxou uma fumaça e os seus ombros descaíram lentamente.
Não tem importância disse ele. Com a nossa idade, é per
feitamente irrelevante.
Bo autorizou um interrogatório hostil disse Pym. No do
mingo, vou até Londres para ver como me safo desta. Para quê falar a Axel de interrogatórios? E ainda por cima, hostis? Como tive a coragem
de comparar as poses nocturnas dos advogados mansos dos Serviços, numa casa do
Sussex, com os espancamentos, choques eléctricos e privações de toda a espécie que,
durante duas décadas, tinham constituído a sorte intermitente de Axel? Coro agora só de
pensar que empreguei essas palavras diante dele. Segundo vim a saber mais tarde, em 52, Axel denunciara Slansky e pedira para ele a pena de morte, não muito
energicamente, porque também o próprio Axel se encontrava semimorto.
Mas isso é terrível! exclamara Pym. Como é que você con
segue servir um país que lhe faz coisas dessas?
Não foi nada terrível, obrigado. Era o que eu devia ter feito mais cedo. Assegurei a minha sobrevivência e Slansky teria morrido quer eu
o denunciasse, quer não. Dê-me outro vodka.
Em 56, Axel fora preso outra vez: «Dessa vez, foi menos problemático», explicou ele,
acendendo um charuto. «Denunciei Tito e nem sequer houve ninguém que se desse ao
trabalho de o ir matar.» No início dos anos 60, quando Pym estava em Berlim, Axel apodrecera durante três
meses numa masmorra medieval nos arredores de Praga. Nunca cheguei a perceber o
que é que o obrigaram a prometer dessa vez. Foi no ano em que os próprios estalinistas
foram saneados, se bem que com pouca convicção, e em que Slansky foi declarado de
novo em vida, embora somente a título póstumo (e embora continuasse a ser declarado culpado pelos seus crimes, como é sabido, com a diferença de que os cometera em toda
a inocência). Seja como for, Axel voltou, parecendo dez anos mais velho, e durante
alguns meses, pronunciou os rr como se estivesse quase a gaguejar.
Ao lado de experiências destas, o inquérito a Pym era realmente uma insignificância. Estava lá Jack Brotherhood para o defender. O responsável da secção de pessoal cuidou
dele como uma galinha velha, assegurando-lhe que se tratava de responder apenas a
meia dúzia de perguntas. Um lacaio sem queixo das Finanças passou o tempo a avisar
os meus perseguidores que corriam o risco de exceder as suas atribuições, e os meus
dois carcereiros fizeram questão de me ir contando histórias dos seus filhos. Depois de cinco dias e cinco noites destas andanças, Pym sentia-se tão bem disposto como se
estivesse estado a passar uns dias de férias no campo, e os seus inquisidores saíram
como tinham entrado.
A viagem foi boa, querido? perguntou Mary, já em George-
town, depois de uma manhã na cama, durante a qual Pym aliviara tem porariamente a sua tensão.
Óptima disse Pym. E Jack manda beijinhos.
Mas, a caminho da embaixada, Pym viu uma seta branca desenhada recentemente a giz
no muro de tijolo na loja de vinhos de Fayre: era o sinal de Axel, avisando-o de que não
devia contactá-lo até nova ordem. E agora, Tom, é o momento de eu te contar o que andava, entretanto, Rick a fazer,
porque o teu avô tinha ainda um último golpe a tentar antes do final. Foi o melhor de
todos, como seria de esperar. Rick recuou. Abandonou a monstruosidade que fora o seu
modo de vida e veio ter comigo a chorar e todo encolhido como um animal espancado.
E quanto mais pequeno e vulnerável se tornava Rick, menos seguro se sentia Pym. Era como se o mundo dos Serviços e Rick o esmagassem, cada um do seu lado, cada um
com a sua banalidade lamentosa e envergonhada, e Pym, como um acrobata no arame,
entre os dois, via--se repentinamente sem nada onde se pudesse apoiar. Pym rezou
mentalmente a Rick. Gritou-lhe: «Continua mau, continua monstruoso, mantém as
distâncias, não desistas!». Mas lá vinha Rick arrastando-se e sorrindo afectadamente, como um mendigo, sabendo que o seu poder era bem maior agora que se encontrava
enfraquecido. «Fiz tudo por ti, meu filho. Foi graças a mim que conseguiste o teu lugar
entre os Grandes da Terra. Tens uns cobres para o teu velhote, não? E que tal uma bela
espetada mista? Ou será que tens vergonha de levar o teu velhote ao restaurante?»
Atacara pela primeira vez num dia'de Natal, menos de seis semanas
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depois de Pym ter recebido um pedido de desculpas formal da Sede. Georgetown estava
coberta por uma camada de neve de dois pés, e os Lederer haviam sido convidados para
o almoço. Mary estava a trazer os pratos para a mesa quando o telefone tocou. O embaixador Pym aceita uma chamada à cobrança de New Jersey? Aceita.
Olá, meu filho. Como é que o mundo se tem servido de ti?
Vou atender o telefone lá em cima diz Pym para Mary, com
a voz dura, e toda a gente exibe um ar de compreensão, porque sabem
que no mundo dos Serviços não há dias de descanso. Feliz Natal, meu filho diz Rick, quando Pym levanta o aus
cultador do telefone do quarto.
Feliz Natal para ti também, pai. O que é que estás a fazer em New
Jersey?
Deus é o décimo segundo homem da equipa de críquete, meu filho. É Deus que nos manda manter o taco firme pela vida fora. Ele e
mais ninguém.
Foi isso que sempre disseste. Mas não estamos na época do crí
quete. Estás bêbado?
Deus é árbitro, juiz e júri, ao mesmo tempo, nunca te esqueças disso. E impossível enganar Deus. Sempre foi. Estás contente por eu te
ter pago os estudos, hein?
Não estou a enganar Deus, pai; estou a tentar comemorar o Na
tal com a minha família.
Cumprimenta Miriam diz Rick, e ouvem-se protestos abafa dos, antes de Miriam vir ao telefone.
Olá, Magnus diz Miriam.
Olá, Miriam diz Pym. .,
Olá repete Miriam, pela segunda vez. ■ < ■, «s
Alimentam-te bem nessa tua embaixada, meu filho, ou é só en latados e batatas fritas?
Temos uma cantina perfeitamente decente para o pessoal subal
terno, mas de momento estou a tentar comer em casa.
Peru? ;,
Sim. > Com recheio inglês?
Espero que sim.
E o meu neto, está bem? Tem também a mesma testa que her
daste de mim e de que toda a gente fala?
Tem uma testa magnífica.
Olhos azuis, como os meus?
Os olhos são como os de Mary.
Ouvi dizer que ela é de primeira, meu filho. Dizem-me o melhor possível dela. Disseram-me que tem uma bela propriedade no Dorset,
que vale muito dinheiro.
Só tem o usufruto diz Pym, com rudeza.
Mas Rick já então começou a afundar-se no abismo da sua auto-compaixão. Começa a
chorar e o choro transforma-se em uivo. Como ruído de fundo, ouve-se também o choro de Miriam, num lamento mais agudo, como um cachorro fechado numa casa grande de
mais.
Meu querido diz Mary, quando Pym retoma o seu lugar à ca
beceira da mesa. Magnus. Estás transtornado. O que foi?
Pym abana a cabeça, rindo e chorando ao mesmo tempo. Pega no copo de vinho e levanta-o.
Aos amigos ausentes proclama ele. A todos os nossos amigos ausentes! E mais tarde,
de modo a que apenas Mary o ouvisse: Era só um agente já muito, muito velho, minha
querida, que conseguiu descobri-me e me queria desejar um Natal cheio de felicidades.
Alguma vez terias pensado, Tom, que o maior país do mundo poderia ser pequeno de mais para um filho e para o seu velho pai? E, no entanto, foi isso que aconteceu. Era
perfeitamente natural, parece-me, que Rick se dirigisse a todos os lugares onde pudesse
gozar da protecção do seu filho, e depois de Berlim, passou a ser provavelmente
inevitável. Sei agora que ele foi primeiro para o Canadá, depositando uma confiança
injustificada nos laços da Commonwealth. Os canadianos cansaram-se dele rapidamente, e quando ameaçaram repatriá-lo, Rick pagou uma pequena quantia como
entrada da compra de um Cadillac e dirigiu-se para sul. As minhas investigações
revelam que em Chicago, ele sucumbiu às múltiplas propostas tentadoras das
companhias imobiliárias que o convidavam a habitar nos novos bairros da periferia,
vivendo lá durante três meses sem pagar renda, explorando uma medida de promoção. Um certo coronel Hanbury residiu em Fairview Gardens e um certo Sir William Forsyth
abrilhantou com a sua presença Sun-leigh Court, onde Rick prolongou a sua estadia
mediante demoradas negociações destinadas a comprar o último andar para o seu
mordomo. O que teria feito cada um destes personagens para conseguir liquidez é, como
sempre, um mistério, embora existissem, sem dúvida,
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algumas beldades agradecidas nos bastidores. O único indício disponível é uma carta
azeda dos dirigentes do Clube Hípico local, comunicando a Sir William que os seus
cavalos seriam bem-vindos quando o aluguer das baias fosse pago. Pym só remotamente se dava conta destas tempestades distantes, e as suas estadias fora de Washington
davam--lhe uma ilusória sensação de segurança. Mas em New Jersey sucedeu algo que
mudou definitivamente a pessoa de Rick, e a partir daí, seja o que for que tenha
acontecido, Pym passou a ser a sua única actividade. Seria o mesmo vento de juízo final
que estaria a agitar os dois homens ao mesmo tempo? Estaria Rick realmente doente? Ou simplesmente ciente, tal como Pym, de que o fim estava próximo? Tenho a certeza
de que Rick julgou estar doente. Tenho a certeza de que Rick pensou que tinha de estar
doente.
Vejo-me obrigado a andar permanentemente apoiado a uma sólida bengala (vinte e nove
dólares apronto), por causa do coração e de outros males ainda mais sinistros escrevia Rick. O meu médico está-me a esconder o Pior e recomenda uma Dieta Frugal (sópratos
simples e cham-pagne, nada de vinho da Califórnia) como meio de Prolongar esta pobre
existência edeme dar forças para Resistir durante mais alguns Meses, antes de ser
Chamado à presença do Senhor.
E verdade que Rick se habituou a andar de óculos escuros como os da tia Nell. E quando violou a lei em Denver, o médico da prisão ficou tão impressionado com o seu
estado que conseguiu que o libertassem, logo a seguir a Pym ter pago os cuidados
terapêuticos.
E depois de Denver, decidiste que já estavas morto, não foi? E começaste a assombrar-
me com a tua pequenez. A todas as cidades onde ia, levava o meu medo de ver aparecer o teu patético fantasma. Sempre que entrava ou saía de um apartamento dos Serviços,
contava ver-te à espera junto ao portão, exibindo a tua miséria voluntária e agressiva.
Sabias onde eu ia estar antes de eu lá chegar. Eras capaz de obter um bilhete por meio
de uma intrujice qualquer, viajando cinco mil milhas só para me mostrares em que
estado lastimável te encontravas. E lá íamos ao melhor restaurante da cidade e eu pagava a conta e gabava-me dos meus feitos diplomáticos, ouvindo em contrapartida as
tuas gabaroli-ces. Inundava-te de todo o dinheiro de que podia dispor, rezando para
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que esse dinheiro te permitisse acrescentar mais algum Wentworth ao teu ficheiro verde. Mas mesmo quando te adulava, trocava contigo sorrisos radiosos, andava de braço dado
contigo e apoiava os teus planos idiotas, sabia que tu tinhas conseguido o melhor golpe
da tua vida. Já não eras nada. O teu manto real passara para os meus ombros, fazendo de
ti um pobre homem nu e de mim o maior vigarista de sempre.
Porque é que esses tipos não te dão o título de cavaleiro, meu filho? Ouvi dizer que, por esta altura, já deverias ser subsecretário permanente. Deves ter algum cadáver na arca,
não? Talvez eu devesse dar um salto a Londres para ter uma conversa com esses tipos
da secção de pessoal.
Como é que ele dava comigo? Como é que o serviço de informações dele conseguia ser
melhor que o dos cães de trela da CIA, que se estavam a transformar rapidamente para mim em companheiros regulares e indesejáveis? Primeiro, pensei que Rick se servia de
detectives particulares. Comecei a recolher as matrículas dos carros suspeitos, a tomar
nota das horas das chamadas de telefone em que ninguém respondia depois de eu
atender, tentando distingui-las das de Langley. Insisti com a minha secretária: «Alguém
que se tenha apresentado como meu pai, andou a importuná-la para obter informações?». Acabei por descobrir que um dos empregados itinerantes da embaixada
tinha o vício de jogar snooker inglês num albergue maçónico dos bairros mais
duvidosos da cidade. Rick conhecera-o aí e impingira-lhe uma história inventada sem
pés nem cabeça: «Tenho problemas de coração», dissera ele ao palerma. «Posso ter um
ataque a qualquer momento, percebe, mas agora não vá contar ao meu filho. Não gosto de lhe dar preocupações, quando ele já tem tanto em que pensar. O que queria que você
fizesse era que agarrasse no telefone e me desse uma apitade-la sempre que o meu rapaz
sair da cidade, para eu saber onde hei-de encontrá-lo quando se aproximar a minha
hora.» E tenho a certeza que algures nesta história deve ter entrado um relógio de ouro.
E bilhetes para o Final da Taça do ano seguinte. E uma ajuda para a pobre mãe do rapaz, da próxima vez que Rick desse um pulo a Inglaterra, para respirar um pouco de ar da
pátria.
Mas a minha descoberta veio tarde de mais. Nessa altura já tinha havido San Francisco,
e Denver, e Seattle, e Rick já passara por todos esses lugares, chorando e definhando
bem diante dos meus olhos, até que a única coisa que dele restava era a parte de Pym que se encontrava sob o seu domínio; e parecia-me que a-única coisa que restava de
Pym, à me-
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dida que eu ia entretecendo as minhas mentiras e lisonjas, e cometendo perjúrio perante sucessivos tribunais particulares dos Serviços, era um vigarista falhado, cambaleando
nos últimos passos da sua credibilidade.
E foi assim que as coisas se passaram, Tom. A traição é uma profissão repetitiva, e não
te vou maçar com mais exemplos. Chegámos ao fim, embora visto daqui o fim se pareça
bastante com o começo. Os Serviços retiraram Pym de Washington e mandaram-no para Viena, a fim de ele poder retomar a direcção das suas redes de agentes e para o seu
exército de acusadores cada vez mais numerosos poder apertar-lhe com mais força à
volta do pescoço o seu maldito nó de regularidades informatizadas. Não havia salvação
possível; no final, não havia realmente salvação. Poppy sabia-o. E Pym também,
embora jamais o admitisse, nem mesmo no seu íntimo. Só mais um golpe, repetia Pym para consigo: um último golpe vai compor tudo. Poppy insistia com ele, implorava,
ameaçava-o. Pym mostrava-se inflexível: deixe-me em paz, eu hei-de ganhar a batalha,
eles gostam de mim, dei-lhes toda a minha vida.
Mas a verdade, Tom, é que Pym queria sobretudo pôr à prova os limites da tolerância
daqueles que amava. Queria estar aqui, sentado no quarto do primeiro andar da casa de miss Dubber, à espera da vinda de Deus, a olhar os jardins e, ao fundo, a praia onde os
melhores companheiros de sempre tinham atirado uma bola de futebol até ao fim do
mundo, e atravessado o mar nas suas bicicletas dos armazéns Harrods.
XVIII É uma noite de fogo de artifício em Plush, pensou Mary, mergulhando o olhar na
escuridão da praça. É uma fogueira à espera de que Tom a venha acender. Através do
pára-brisas do carro estacionado, Mary fitou o coreto vazio e imaginou o que lhe restava
de familiares e serviçais apinhados no velho pavilhão de críquete. Os passos abafados
eram os passos dos guardas-caça, aproximando-se do seu irmão Sam, recém-chegado a casa para a sua última licença. Imaginou que ouvia a voz do irmão, um pouco militar de
mais para o gosto dela, ainda áspera das tensões da Irlanda. «Tom?», diz Sam. «Onde
está o velho Tom?» Nada. Tom está enfiado por baixo do casaco de pele de ovelha de
Mary, com a cabeça encostada às pernas da mãe, e nada de menos peso que o Natal o
conseguirá fazer sair de lá. «Vá lá, Tom Pym, és o mais novo», exclama Sam. «Onde é que ele está? Para o ano, já serás muito grande, sabes, Tom?» E depois a desistência
brutal. «Que se lixe. Vai ser outra pessoa qualquer.» Tom fica coberto de vergonha, os
Pym caíram em desgraça, Sam irrita-se, como de costume, por Tom não sentir prazer
em fazer explodir o mundo. Uma criança mais corajosa aproxima o fósforo, e o mundo
incendeia-se. Os foguetes militares do irmão de Mary recobrem-no de salvas perfeitas. Todas se sentem pequenos enquanto olham para o céu nocturno.
Mary estava sentada ao lado de Brotherhood, que lhe agarrava o pulso, exactamente
como o médico costumava agarrar-lho quando ela estava à espera do seu pequeno
cobarde. Para a tranquilizar. Para a fazer sentir-se mais segura. Para lhe dizer: «quem
manda aqui sou eu». O carro estava parado numa rua secundária, e atrás deles estava a carrinha da polícia, e atrás da carrinha da polícia, uma caravana de uns seiscentos carros
de polícia, carrinhas de rádio, ambulâncias e camióes--tanque, todos eles tripulados por
companheiros de Sam, que falavam silenciosamente e com os olhos imóveis. Junto ao
carro, do lado de
565
Mary, havia uma loja chamada Sugar Novelties, com uma montra iluminada a néon e
um gnomo de plástico a empurrar um carrinho de mão carregado de doces cobertos de
pó; junto à loja, uma espécie de asilo de granito, com as palavras «Biblioteca Pública»
inscritas por cima de uma porta lúgubre. Do outro lado da rua, estava uma horrível
igreja baptista, que anunciava que Deus não era uma coisa muito divertida. Depois da igreja, ficava a praça do Senhor e o Seu coreto, e as Suas araucárias, e entre a quarta e a
quinta árvore do lado esquerdo, porque Mary já contara vinte vezes aquelas árvores, e a
três quartos da altura dos troncos, espreitava uma janela de arco iluminada, com as
cortinas laranja corridas, a qual, na opinião dos meus homens, é a do quarto do seu
marido, minha senhora, embora as nossas informações indiquem que o conhecem aqui pelo nome de Canterbury e que a comunidade o estima muito.
Toda a gente o estima sempre muito responde Mary, zangada.
Mas era a Brotherhood que o superintendente realmente se estava
a dirigir. Falava para dentro do carro, pela janela de Brotherhood e tratava-o como tutor
de Mary. E Mary sabia que o superintendente tinha recebido ordens para lhe dizer o menos possível do que se estava a passar, o que parecia ser difícil para ele. E o facto de
Brotherhood se atribuir a tarefa de responder em vez dela, sendo algo admissível,
permitia ao superintendente o máximo de piedade a que se podia entregar sem correr o
risco de ser repreendido pelos seus superiores. O superintendente era um homem do
Devon, um chefe de família pesadamente tradicional. Fico tão feliz por ele ir ser preso por um homem do Devon, pensou Mary, cheia de ferocidade, imitando mentalmente o
modo de falar matraqueado de Caroline Lumsden. Sempre pensei que era muito mais
agradável ser-se feito prisioneiro por um homem da nossa terra.
Tem a certeza que não quer vir até ao salão paroquial, minha se
nhora? insistia, pela centésima vez, o superintendente. Está mui to mais quente no salão, e lá terá uma excelente companhia. Uma com
panhia cosmopolita, se contarmos com os americanos.
Ela está melhor aqui murmurou Brotherhood, em resposta,
É só que, para dizer a verdade, não podemos autorizar este se
nhor a ligar o motor, minha senhora, está a ver? E como ele não pode ter o motor ligado, bom, vão ter de ficar sem aquecimento, entende?
Gostava que o senhor se fosse embora disse Mary.
Ela está bem assim disse Brotherhood.
É só que isto pode durar a noite toda, percebe, minha senhora?
E todo o dia de amanhã também. Se o nosso amigo decidir resistir, ou assim, se quer
saber toda a verdade.
Depois se vê disse Brotherhood. Quando você precisar
dela, ela estará aqui.
Bom, sir, infelizmente, não vai poder aqui ficar, para dizer a ver dade, pelo menos quando entrarmos na casa, se tivermos de o fazer.
Nessa altura, a senhora terá de se retirar para um sítio um pouco mais
seguro, para dizer a verdade, e o senhor também. É só que os outros to
dos estão lá no salão paroquial, não sei se me está a seguir, sir, e o chefe
da Polícia, e todos os não-combatentes têm também de ir para lá nesse ponto das operações, incluindo os americanos.
Ela não quer ir ter com os outros todos disse Mary, antes de
Brotherhood poder dizer fosse o que fosse. E ela não é americana. É
a mulher dele.
O superintendente foi-se embora e regressou quase logo a seguir. Ele é o intermediário. Escolheram-no pelo seu modo de lidar com as pessoas.
Mensagem do telhado, sir começou ele no tom de quem pede
desculpa, curvando-se uma vez mais para a janela de Brotherhood.
Por acaso, saberá de que tipo e calibre exactos é a arma que o nosso ami
go tem oficialmente consigo? Uma Browning 38 automática. Velha. Já não deve ser limpa há
anos.
Tem alguma teoria quanto ao tipo de munições, sir? É só que os
rapazes gostariam de saber o alcance.
Balas correntes, suponho. \ Nem silenciador, por exemplo, nem balas explosivas?
Para que raio ia ele querer as balas explosivas?
Sei lá, sir. Neste caso, as informações parecem ouro em pó, pela
maneira como as passam, se me permite a comparação. Já há muito,
muito tempo que não via tantas bocas fechadas juntas numa só sala. Quantas balas terá o nosso amigo, fará uma ideia?
Uma caixa. E talvez uma sobresselente.
Mary ficou subitamente furiosa.
Por amor de Deus. Ele não é nenhum maníaco! Não vai provo- car um...
Provocar o quê? perguntou o superintendente, cujos modo?:
rústicos começavam a resvalar para a grosseria quando não o tratavani
com o devido respeito. '''
566
56È
I
Parta do princípio de que há uma caixa e outra sobresselente disse Brotherhood.
Então, talvez nos possa dizer também que tal é ele como atira
dor sugeriu o superintendente, como se passasse a pisar terreno mais
seguro. Não podemos censurá-los por quererem saber uma coisa
dessas, pois não? Ele foi sempre treinado e reciclado, durante toda a sua carreira
disse Brotherhood.
E um excelente atirador disse Mary.
E como é que a senhora sabe isso, se lhe posso fazer esta simples
pergunta? Costuma atirar com a pistola de pressão de ar de Tom.
Atira a ratos e coisas do género? Ou alvos maiores?
Alvos de papel.
Ah, sim? E obtém boas marcas, não, minha senhora?
Tom diz que sim. Mary olhou de relance para Brotherhood e percebeu o que ele estava a pensar. Deixem-
me ir lá dentro buscá-lo, com arma ou sem ela. Mary estava a pensar algo de muito
semelhante: «Magnus, sai daí, e não sejas tão ridículo». O superintendente estava de
novo a falar, desta vez dirigindo-se directamente a Brodierhood.
Tenho mais uma pergunta, esta dos nossos especialistas em ex plosivos disse ele, como se tudo aquilo fosse um pouco insensato,
mas não houvesse outra alternativa. Diz respeito ao dispositivo da
quela caixa que o nosso amigo tem com ele. Tentei averiguar no salão
paroquial, mas lá toda a gente parece estar bastante acima dos porme
nores técnicos, e mandaram-me perguntar-lhe a si. Os nossos homens compreendem que não podem saber muitas coisas acerca dessa caixa,
mas gostavam de beneficiar dos seus conhecimentos, sir, quanto à car
ga que a caixa contém.
É um dispositivo de autodestruição respondeu Brotherhood.
Não é uma arma. Ah, e não poderia ser usada como arma se, por hipótese, caísse
nas mãos de algum desequilibrado?
Só se ele conseguisse meter alguém lá dentro respondeu Bro
therhood, e o superintendente deixou escapar uma alegre gargalhada
rústica. Vou contar essa aos rapazes? perguntou ele. Os rapazes gostam de ouvir uma piada lá
em cima, alivia-lhes a tensão. A voz do su-
perintendente tornou-se mais baixa, falando apenas para Brodierhood. O nosso amigo
alguma vez perdeu a cabeça a ponto de se pôr aos tiros com a sua arma, sir? Aquela arma não é dele.
Ah, mas está a fugir à minha pergunta, não é verdade, sir?
Que eu saiba, ele nunca se meteu num tiroteio.
O nosso amigo nunca perde a cabeça disse Mary.
Ele já alguma vez capturou alguém, sir? Capturou-nos a nós disse Mary.
Pym fizera cacau e aconchegara o xaile novo nos ombros de miss Dubber, embora ela
lhe dissesse não sentir frio. Pym partira para Toby o pedaço de galinha que lhe
comprara no supermercado como petisco especial, e se miss Dubber o tivesse
autorizado, limparia também a gaiola do canário; porque o canário era o seu orgulho secreto desde uma noite em que o encontrara morto depois de miss Dubber se ter ido
deitar, conseguindo substituí-lo por um outro canário vivo, sem que ela desse por nada,
de colaboração com Mr. Loring da loja de animais. Mas miss Dubber não queria que
Pym tratasse de mais nada. Queria apenas vê-lo sentado ao seu lado, onde podia tê-lo
debaixo de olho, ouvindo-o a ler a última carta da ti Al enviada do longínquo Sri Lanka, que chegou ontem, Mr. Canterbury, mas o senhor não ligou nenhuma.
Esse Ali é o dhobi40 que o ano passado lhe roubou as rendas?
perguntou ela, com brusquidão, interrompendo-o. Porque é que ela
continua a dar-lhe trabalho se ele a rouba? Julguei que essa história de
Ali já tinha acabado há muito tempo. Ela deve-lhe ter perdoado disse Pym. Ele tinha todas aque
las mulheres, lembra-se? Provavelmente, ela não teve coragem de o des
pedir. A voz de Pym soava, aos seus próprios ouvidos, muito bela e
nítida. Era bom falar em voz alta.
Acho que ela devia era voltar para Inglaterra disse miss Dubber. De certeza que tanto calor não lhe há-de fazer bem, ao fim destes anos todos.
Ah, mas aqui teria de ser ela a lavar a roupa, não é verdade, miss
D.? disse Pym. E o seu próprio sorriso aqueceu-o, porque Pym sa
bia que também a aquecia a ela.
O senhor agora está melhor, não está, Mr. Canterbury? Fico
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llllíllíli âíllil*.. L I
muito contente. Fosse lá o que fosse, já lhe passou. Agora pode descansar um
bocadinho.
Descansar de quê? perguntou Pym suavemente, ainda a sor
rir para ela. Do que tem andado a fazer estes anos todos. Pode deixar outra
pessoa governar o país por uns tempos. O tal pobre senhor que morreu
deixou-lhe muito trabalho?
Acho que sim. É sempre difícil quando não há uma transmissão de funções como deve
ser. Mas agora o senhor está bem, não é verdade? Estou a ver que sim.
Fico bem quando a senhora disser que aceita fazer aquelas fé
rias, miss D.
Só se o senhor também vier.
Não posso fazer isso. Já lhe disse! A minha licença está a acabar! Pym subira a voz mais do que desejara. Ela olhou para ele e Pym
viu medo no seu rosto, a mesma expressão que surpreendera no rosto dela desde a
chegada do ficheiro verde, ou quando Pym lhe sorria e a mimava de mais.
Bom, então, eu não vou respondeu ela, com acidez. Não
gosto de deixar Toby na prisão e Toby não gosta de ir para a prisão, e não vamos fazer uma coisa dessas só para lhe agradar a si, não é verda
de, Toby? E muito simpático da sua parte, mas não insista. E ela não
diz mais nada?
O resto é sobre os motins raciais. Ela acha que se preparam no
vos motins. Achei que a senhora não ia gostar. Tem toda a razão, não ia gostar disse miss Dubber com fir
meza, mantendo os olhos cravados em Pym, enquanto ele ia até ao
outro lado da sala, dobrava a carta e a metia no frasco de gengibre.
Pode-me ler essa parte de manhã, que é quando me faz menos impres
são. Porque é que a praça está tão silenciosa? Porque é que não se ouve a televisão de Mrs. Peei aqui ao lado? Ela devia estar a ver aquele apre
sentador por quem anda apaixonada.
Provavelmente, foi-se deitar disse Pym. Mais cacau, miss
D.? perguntou ele, levando as canecas para a copa. As cortinas es
tavam corridas, mas junto à janela havia um ventilador de plástico transparente, que Pym embutira na parede de madeira. Espreitando
por lá, Pym deu uma olhadela rápida à praça, mas não viu sinais de
vida.
Não seja tonto, Mr. Canterbury disse, entretanto, miss Dub-
ber. Bem sabe que eu nunca tomo mais de uma chávena. Venha para aqui ver as
notícias.
Do outro lado da praça, à sombra da igreja, havia uma pequena luz a acender e a apagar.
Hoje, não, miss D., se não se importa disse-lhe ele em voz
alta. Durante a semana toda, já tive política que chegasse.. Abriu a torneira e esperou que o esquentador do tempo da Guerra da Cri-
meia disparasse para enxaguar as canecas. Vou meter-me na cama e
deixar o mundo descansado, miss D.
É melhor atender primeiro o telefone respondeu ela. É
para si. Miss Dubber devia ter atendido imediatamente, porque Pym não ouvira o toque do
telefone sobrepor-se aos soluços do esquentador. Pym nunca recebera ali chamadas
telefónicas. Voltou para a cozinha, onde ela lhe estendia o auscultador, e viu de novo o
medo no seu rosto, acusando-o, enquanto Pym segurava o aparelho com mão firme.
Encostou o auscultador ao ouvido e disse: Canterbury O telefone desligou-se, mas Pym manteve o aus
cultador junto ao ouvido e dirigiu um alegre sorriso de reconhecimen
to para o meio da cozinha de miss Dubber, para um ponto situado
algures entre a imagem do Peregrino prosseguindo a sua ascensão, en
quanto deixa para trás as prostitutas, e a imagem da rapariguinha dei tada na cama, com o cabelo escovado, preparando-se para comer o seu
ovo cozido.
Obrigado disse Pym. Muito, muito obrigado, Bill. É mui
to simpático da sua parte. E da parte do ministro. Apresente-lhe os
meus agradecimentos, sim, Bill? Discutimos isso no almoço da sema na que vem. Convido eu.
Desligou. Tinha o rosto escaldante e já não estava bem certo, agora que olhava para
miss Dubber, de que expressão seria a dela, nem sabia se miss Dubber estaria ou não
ciente das dores que ele sentia no pescoço e no joelho direito, que deslocara, quando
estivera a fazer ski com Tom, em Lech. Aparentemente, o ministro gostou bastante do trabalho que fiz
para ele explicou Pym, tacteando o terreno. Queria que eu sou
besse que os meus esforços não foram vãos. Era o secretário pessoal dele,
Bill. Sir William Wells. Um amigo meu.
Estou a ver disse miss Dubber. Mas não parecia muito entu siasmada.
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O ministro não tem por costume ser muito elogioso, para dizer
a verdade. Não costuma manifestar o que pensa. É um homem difícil de contentar. Que se saiba, praticamente nunca elogiou ninguém na
sua vida. Mas todos lhe somos muito dedicados. Até aos seus defeitos,
pode dizer-se. Sentimo-nos todos inclinados a gostar dele, apesar de
tudo, percebe? Estamos todos dispostos a aceitá-lo como parte da rica
variedade da vida, e não como uma espécie de monstro. Sim, bem, es tou cansado, miss D. Vou metê-la na cama.
Mas ela não se mexeu. Pym falou então com mais ênfase.
É claro que não era o Próprio. Ele tem uma reunião no Parla
mento que vai durar toda a noite. Vai passar o tempo todo a entrar e a
sair. Era o secretário pessoal dele. Já me tinha dito.
«Isto é material para uma medalha, meu caro Pym», disse ele. «O
velho até sorriu.» O velho, é como nós lhe chamamos. Quando está pre
sente, é Sir William, mas quando vira as costas, passa a ser o velho. Era
agradável ter um gongue, não acha, miss D.? Punha-o em cima da la reira. Dava-lhe lustro no Natal e na Páscoa. Seria a nossa medalha pri
vada. Conquistada aqui mesmo. Se alguém a mereceu, foi a senhora.
Pym interrompeu-se durante algum tempo, porque começava a divagar; tinha a boca
seca e estava com o pior problema de ouvidos e garganta de que se lembrava. Devia
mesmo ir a uma dessas clínicas privadas e fazer um exame completo. Por isso, em vez de falar, pôs-se diante dela, com os braços estendidos, preparando-se para a ajudar a
levantar--se e lhe dar o estreito abraço de boas noites que tanto significava para miss
Dubber. Mas miss Dubber não correspondeu ao seu gesto. Não queria que Pym a
abraçasse.
Porque é que usa o nome de Canterbury se o seu verdadeiro nome é Pym? perguntou ela, severamente.
Isso é o meu primeiro nome. Pym. Como Pip. Pym Canterbury.
Miss Dubber ficou a reflectir no caso durante muito tempo. Observou atentamente os
olhos secos dele e os seus músculos do rosto, contraindo-se sem razão aparente. E Pym
percebeu que ela não estava a gostar muito do que via, e que estava disposta a discutir. Mas ao forçar o sorriso para miss Dubber, transmitindo-lhe toda a vida que lhe restava,
foi recompensado por um severo menear de cabeça de concordância.
Bom, já somos os dois demasiado velhos para nomes próprios,
Mr. Canterbury disse ela. E a seguir, acabou por estender os braços
para Pym, e ele segurou-os delicadamente um pouco acima dos coto-
I
velos, tendo de se esforçar para não a puxar com uma energia excessiva, porque estava
cheio de vontade de a sentir junto a si e de correr a meter-se na cama, que era agora o seu lugar.
Fico muito contente com a medalha anunciou ela, enquanto Pym a conduzia pelo
corredor. Sempre admirei as pessoas que recebem medalhas, Mr. Canterbury.
Independentemente do que tenham feito.
A escada pertencia às casas da sua infância; por isso, Pym subiu-as com ligeireza, esquecendo as suas dores e mazelas. O abat-jour, em forma de estrela de Belém, no
patamar, embora desse uma luz péssima, era um velho amigo de The Glades. Pym
sentia que todas as coisas se mostravam acolhedoras. Quando empurrou a porta do seu
quarto, todos os objectos lhe piscaram o olho e sorriram, como numa festa-sur-presa. As
coisas estavam todas como ele as dispusera, mas não fazia mal verificar. Por isso, verificou-as de novo. Envelope para miss Dubber, com muito dinheiro e pedidos de
desculpa. Envelope para Jack, sem dinheiro, e agora que penso nisso, poucas desculpas,
mas boas. Poppy, que estranho teres-te finalmente tornado um som tão longínquo. O
estúpido ficheiro, não sei porque é que me andei a preocupar com ele todos estes anos.
Nem sequer vi o que está lá dentro. A Caixa Destruidora, tanto peso para tão poucos segredos. Para Mary, nada, mas Pym realmente não tinha muito mais para lhe dizer:
«Desculpa ter casado contigo por disfarce. Ainda bem que consegui, de caminho,
arranjar algum amor. Ossos do ofício, minha querida. Também és uma espia, lembras-
te? E trabalhavas bem melhor do que Pym, agora que penso nisso. No final, acaba por
se ver quem é que tem classe». Só o envelope para Tom o incomodou, e Pym abriu-o, pressentindo que era, afinal de contas, necessária uma última palavra de explicações.
«Sabes, Tom? Eu sou a ponte», escreveu ele com uma lentidão exas-perante. «Sou
aquilo por onde tens de passar para chegares de Rick à vida.»
Depois, acrescentou as suas iniciais, como sempre se deve fazer num post-scriptum,
preencheu um novo envelope e deitou o que inutilizara no cesto dos papéis, porque lhe tinham ensinado desde muito cedo que o desleixo era irmão da insegurança.
Depois, tirou a Caixa Destruidora de cima do ficheiro e poisou-a na secretária, e, com as
duas chaves que trazia na corrente, desarmadilhou-a, extraindo de lá, primeiro, os
dossiers demasiado secretos para estarem classificados como tais, cheios de numerosas
informações falsas acerca
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,,IÉI»UM^^BE!
das redes que ele e Poppy tão penosamente haviam organizado. Atirou-os também para
o cesto dos papéis. A seguir, pegou na pistola, carregou-a e engatilhou-a, tudo com
rapidez, e poisou-a na secretária, pensando nas muitas vezes que andara armado sem
disparar. Ouviu ruídos no telhado, e disse para consigo: «Deve ser um gato». Sacudiu a
cabeça como se dissesse: «Malditos gatos, que hoje em dia andam por todo o lado e não dão a menor hipótese aos pássaros». Deu uma olhadela ao seu relógio de ouro, com um
gesto rasgado, e lembrou-se de que fora Rick a oferecer-lho e de que poderia esquecer-
se de o tirar na casa de banho. Por isso, tirou-o naquele mesmo momento, colocou-o em
cima do envelope de Tom e desenhou ao lado do relógio uma alegre cara de lua cheia,
que era a fórmula que ambos haviam inventado para dizer «sorriso». Despiu-se e deixou as roupas bem dobradas junto à cama, depois vestiu o roupão e tirou as suas duas
toalhas do cabide, a maior para o banho, a mais pequena para as mãos e o rosto. Enfiou
a arma no bolso do roupão, sem fechar a patilha de segurança, porque fazia parte da
ética laboriosa dos instrutores o princípio de que uma arma travada é mais perigosa do
que uma arma pronta a disparar. Pym ia apenas atravessar o corredor, mas o mundo de hoje está cheio de violência e o cuidado nunca é de mais. Quando se preparava para
abrir a porta da casa de banho, descobriu com desagrado que a maçaneta de porcelana
emperrara e quase não girava. Raios partam a maçaneta. Olhem para isto. Precisou de
toda a força de ambas as mãos para a fazer rodar, e, pior ainda, algum idiota a deixou
suja de sabão, porque as mãos escorregavam-lhe e Pym teve de se servir de uma toalha para a conseguir agarrar. Deve ter sido a velha Lippsie, pensou com um sorriso: sempre
a pairar no seu mundo interior.
Colocando-se pela última vez diante do espelho da casa de banho, pôs as toalhas na
cabeça e nos ombros, fazendo da mais pequena um turbante e da maior uma capa,
porque, se havia coisa que miss Dubber detestasse acima de tudo, era falta de asseio. Depois, encostou a pistola no lugar correspondente ao seu ouvido direito, esquecendo-
se, como poderia acontecer a qualquer pessoa nas mesmas circunstâncias, se o gatilho
da Browning 38 automática deles tinha duas posições ou apenas uma. E deu-se conta de
que em vez de desviar a cabeça no sentido oposto ao do cano da pistola, estava a
incliná-la na sua direcção, como uma pessoa um pouco surda, que se esforça por captar um som.
Mary não chegou a ouvir o tiro. O superintendente estava de novo inclinado para a
janela do lado de Brotherhood, desta vez para lhe dizer que a presença de Magnus
naquela casa fora definitivamente confirmada por meio de um ardil, e que tinha ordens para concentrar sem demora os não-combatentes no salão paroquial. Brotherhood estava
a discutir essa ordem, e Mary tinha ainda os olhos postos nos quatro homens que
andavam, pé ante pé, por entre as chaminés do outro lado da praça. Durante a última
meia hora tinham andado a passar cordas uns aos outros, adoptando as posições
clássicas das operações especiais, e Mary odiava--os a todos, mais do que teria julgado ser capaz de fazer. Uma sociedade que admira as suas tropas de choque deve interrogar-
se sobre o caminho que está a seguir, costumava dizer Magnus. O superintendente
estava a confirmar que não havia ali outros habitantes do sexo masculino, para além do
referido Canterbury, e pedia a Mary que se preparasse para falar ao telefone com o
marido em tom de conciliação, se isso se tornasse necessário no decurso das operações. E Mary respondia: «É claro que sim», num murmúrio temerário, destinado a quebrar
todo aquele absurdo teatral. De acordo com as suas recordações posteriores, tudo isto
estava a acontecer ou tinha acabado de acontecer quando Brotherhood abriu
violentamente a porta do lado do condutor do automóvel, mandando pelos ares o
superintendente e deixando para sempre na memória de Mary a imagem de uma bota imobilizada na moldura da janela. A seguir, teve a imagem antecipada de Jack
avançando firmemente em direcção à casa, com um passo de jovem, porque tinha um
sonho recorrente em que o via fazer precisamente aquilo, e a casa era sempre Plush, e
Jack vinha sempre para fazer amor com ela. Mas Jack estava, na realidade, imóvel,
rodeado por uma enorme confusão. Acenderam-se luzes, as ambulâncias precipitaram-se aparentemente sem saberem para onde, polícias de uniforme e homens à paisana
tropeçavam uns nos outros, os idiotas do telhado gritavam para os idiotas da praça e a
Inglaterra era salva de algo que não sabia que a ameaçava. Mas Jack Brotherhood estava
em sentido, como um centurião morto no seu posto, e todos dirigiam o olhar para uma
pequena senhora em roupão, com ar digno, que descia os degraus de sua casa.
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NOTAS
1. Canterbury Cantuária. (TV. do T.)
2. Sem lugar fixo à mesa (em francês no
original). (TV do T.)
3. A-level ou Advanced-level exame fi
nal a que são sujeitos os melhores alu nos nas escolas secundárias britânicas.
(N.doT.)
4. Conselheiro (em alemão no original).
(TV. do T.)
5. Coronel (em alemão no original). (N. doT.)
6. Palavra grega que significa «insolência»,
ou «orgulho» por oposição à justa medi
da que deve ser respeitada. (TV. do T.)
7. Dot, para além de ser diminutivo de Do- rothy, significa «ponto», «pequena man
cha», «coisa insignificante». (TV do T.)
8. «As Clareiras». (TV. do T.)
9. Londrino das classes baixas, com um
sotaque característico. (TV. do T.) 10. Designação pejorativa dada aos alemães
durante a guerra. (TV. do T.)
11. Casa das Cheias. (TV do T.)
12. Lábios de Merda. (TV. do X)
13. À letra: «Quatro-por-dois». (TV. do T.) 14. Soldados alemães. (TV do T.)
15. O Aarão era o meu irmão. (TV do T.)
16.0 meu pai era arquitecto. (TV do T.)
17. Corrida de cavalos mais famosa da Grã-
-Bretanha. (TV do T.) 18. Ou seja, a cozinheira. (TV. do T.)
19. Trocadilho intraduzível em torno de
«shave», que quer dizer ao mesmo tem
po «fazer a barba» e «extorquir dinhei
ro». (TV do T.) 20. Morada. (TV. do T.)
21. Punhal curvo usado pelos Gurkas. (TV.
doT.)
22. Fahrenheit (cerca de 30°C). (N. do T.)
23. Castelo (em alemão no original). (TV.
doT.)
24. «Os últimos dias da humanidade» (em
alemão no original). (TV do T.) 25. Licor grego com sabor a anis. (TV. do T.)
26. Fahrenheit. (TV do T.)
27. «Acordamos de manhã cedo e tratamos
de acender uma fogueira...». (TV do T.)
28. Divindade grega que simboliza a justiça divina, o castigo dos deuses. (N.doT.)
29. Poppy = papoila. (TV do T.)
30. Chancelaria do Império (em alemão no
original). (TV. do T.)
31. Há aqui e na frase seguinte um jogo de palavras intraduzível entre scent (perfu
me) e sent (forma do verbo to send, en
viar) , explicando que Mr. Willow tenha
compreendido mal as palavras de Pym.
(N.doT.) 32. Trocadilho intraduzível com o nome
do personagem cunning, «esperta
lhão», e ham, «presunto». (TV do T.)
33. «Agrado-te, querido? Agradas-me mui
to» (em alemão no original). (TV. do T.) 34. Omite-se aqui uma breve passagem in
traduzível, procedendo a um jogo de
palavras. (TV do T.)
35. Ou seja, em inglês, Brotherhood.(N. do
T.) 36. Dia dos Presentes, que se segue ao dia
de Natal propriamente dito. (TV. do T.)
37. Trocadilho com o nome de Brotherhood,
que significa «fraternidade», o que ex
plica o mal entendido de Sefton Boyd. (TV. do T.)
38. Mestre de equitação. (TV. do T.)
39. «Lemon» significa «Limão». (TV. do T.)
40. Encarregado da lavagem de roupa, na
índia. (N. do T.)