Joaquim Correia - Sá de Miranda, poeta à maneira antiga

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JOAQUIM CORREIA I SA DE MIRANDA-POETA A MANEIRA ANTIGA A imagem que temos de 56 de Miranda 6 a de um dos vultos com mais relevAncia entre as personalidades que mer€ceram um lugar na hist6ria da litaratura Dortucuesa. E esta ideia, tanto nos 6 transmitida ror qualouer-manlal da nossa hist6ria literdria, como ainda p<ir uni apieoiSvel nfrnero de textos que s abordam em virioi aspectds da sua obra e da sua figura humana. No entanto, taliez ndo tenha havido ortro poeta que, no que conc€rne propriamente i sua arte literdria, tenha sido obiecto de apreciac6es mais lieeiras c contradit6rias. Normalniente, os iriizos de valor emitidos em relagSo I sua obra sio marcados- mais pela impressio sum6- ria e globalizante do que pela sersnidade crltica apoiada no estudo detalhado e coirpn6vado das compocic6es que a inte- gram. Donde o que resulta 6 que, se para alguns d6s seus es- tudiosos ou simples comentadores de circunstAncia Sd de Miranda conserya ainda, na linha duma trad,igdo do seu mais rasgado enaltecimento, a imagem do bom Sd, do grdo Sd de Miranda, do grave e docto Sd, daquele granile poeta portu- gu4s, do insigne, do famoso, do ercelente e discrito pCta, do Horilcio, do SCneca, do Virgllio, do Plauto, do Ter4ncio, e do Pla-tdo lusitano (1), isto ndo evita que, para outros, numa linha alids de tradigio oposta, 56 iie tttiranda seja'apenas <poeta atd ao embigo, os bakos prosa,, ort, pior do que isso, sem poesia, <nem no umbigo nem em parte nenhumat (2). . Uliversidade de Coimbra. (') CAROLINA MICIIASLIS DE VASCONCELOS. pocs;as de Frslrtisao de Sd de Mircnda (Ilalle, 188b) XXXII-XXXIV. () CAMILO CASTELO BRANCO, 'A vida Dicar€sca'. Ccuar em rulnas (Lisboa, t9?6) 102; '56 de Miranda'. A Corja- Sentinenta- lismo e hist6io. (Lisboa, s.d.) f96-7. 143

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JOAQUIM CORREIA I

SA DE MIRANDA-POETA A MANEIRA ANTIGA

A imagem que temos de 56 de Miranda 6 a de um dosvultos com mais relevAncia entre as personalidades quemer€ceram um lugar na hist6ria da litaratura Dortucuesa.E esta ideia, tanto nos 6 transmitida ror qualouer-manlal danossa hist6ria literdria, como ainda p<ir uni apieoiSvel nfrnerode textos que s abordam em virioi aspectds da sua obra eda sua figura humana. No entanto, taliez ndo tenha havidoortro poeta que, no que conc€rne propriamente i sua arteliterdria, tenha sido obiecto de apreciac6es mais lieeiras ccontradit6rias. Normalniente, os iriizos de valor emitidos emrelagSo I sua obra sio marcados- mais pela impressio sum6-ria e globalizante do que pela sersnidade crltica apoiada noestudo detalhado e coirpn6vado das compocic6es que a inte-gram. Donde o que resulta 6 que, se para alguns d6s seus es-tudiosos ou simples comentadores de circunstAncia Sd deMiranda conserya ainda, na linha duma trad,igdo do seu maisrasgado enaltecimento, a imagem do bom Sd, do grdo Sd deMiranda, do grave e docto Sd, daquele granile poeta portu-gu4s, do insigne, do famoso, do ercelente e discrito pCta, doHorilcio, do SCneca, do Virgllio, do Plauto, do Ter4ncio, e doPla-tdo lusitano (1), isto ndo evita que, para outros, numalinha alids de tradigio oposta, 56 iie tttiranda seja'apenas<poeta atd ao embigo, os bakos prosa,, ort, pior do que isso,sem poesia, <nem no umbigo nem em parte nenhumat (2).

. Uliversidade de Coimbra.(') CAROLINA MICIIASLIS DE VASCONCELOS. pocs;as deFrslrtisao de Sd de Mircnda (Ilalle, 188b) XXXII-XXXIV.() CAMILO CASTELO BRANCO, 'A vida Dicar€sca'. Ccuarem rulnas (Lisboa, t9?6) 102; '56 de Miranda'. A Corja- Sentinenta-lismo e hist6io. (Lisboa, s.d.) f96-7.

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A necessidade de 56 de Miranda ser abordado prima-cialmente como poeta foi defendida com expressiva eartoageopela primeira vez por Fidelino de Figueiredo, Ao comentar aadmiraeao, escassa e ilegitimamente abonada, de CarolinaMichadlis Delo autor d,a Carta a D. Jodo 111. assente em <me-recimentoi tais como a ncbreza da linguagem e a ironia agudado .moralista (...), o patriotistno e a fidalguia ile oardcter,,Fidelino afirmou que tais mdritos, <nAo sAo miritos por quese eouilatem palores literdrios) e, ao referir-se ao entusiasmo,algo'delirante, de muitos penegiristas mirandinos, nio se im-pediu tamb6m de dizer: <Tais criticcs confundem a beleza eavalia artistica com o sentimento de jibilo, que se experi-menla, quando ap6s longa travessia por uruz lloresta de ver-sos abstrusos e aborriilos. se nos deparam clareiras. em que onos deparam clareiras, em que osentido 6 facilmente inteligfuel pelo exprimir uma formn cot-tentia, (t). Apesar de tudo, a aniilise que o autor da Histdriatentia, (t). Apesar de tudo, a aniilise que o autor da Histdriaila Literatura Cldssica nos deixou ndo se oode ccynsideraroode ccvnsiderarcompletamente isenta de alguns defeitos de que padece amai6r parte da biblioglafia -critica mirandina.' Doide, comtoda a razAo, poder mais tarde, no riltimo ano das celebra-g6es centen6rias da morte de Sd de Miranda, acusar-se aaus6ncia de estudos .interessados na dilucidacio verdad€ira-rnente satisfat6ria do problema estdtico da sua obra. Jorgede Sena exprimiu nestes termos essa cardncia: "A reaccdo dede Sena exprimiu nestes termos essa cardncia: "A reacAdoalguns cr|iicos modernos, pondo em relevo o cidaildo quemodernos, pondo em relevo o cidaildo que ele

oor compl.etc a importdncin da sua poesia etnfoi, nio repde por completc a importdncin da sua poesia etns, mesma> ('). E Jos6 R6gio - defendendo o estudo ainda n6oiniciado oda obra para a personaliilade ilo a tor>, e n5,o aocontrerio, como vinha acontecendo - reconhecia que a obrade Sd de Miranda continua a oferecer (eld. mesma interessan-tlssimos Wgblemas de ordem estdtic,a, porventura ainila malestudadoi" (').

A excepgio de um estudo revelado recentemente pelaUniversidade de Oxford - ?ft eme and Image in the Poetr! ofSd de Miranlla - da autoria de T. F. Earle (u), que, como otitulo logo deixa concluir, investiga a dimensao temetica eimagin6ria da realidade estetica mirandina - verdadeiramenteainda n6o se @meeou a caminhar em direcgso ao poeta, no

(r) llistririo d.a Literatura Cldssic@ -

1.. Epoco: 1502-1580(Lisboa, '1922).(') Estrod,a Largo 3 (Porto, s.d.) 45.

(') 'Esbogo dum juizo sobre 56 de Miranda'. Didlogo, Supl€-mento de cultura, letras e artes do Di{rio llustrad,o, n,o 4, 2.. serie,de U/7/1958.(') Oxfod, 1980.

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sentido preconizado por Sena e por R6gio e com o olharnrinucioso e atento que a sua obra continua a exigir. O pre-sente trabalho visa portanto ser um contributo, embora hu-milde, para a apreciagio deste lado, que nio nos parece sermenos i.mnortante d.} oue os outros, da sua Dersonalloade.milde, para a apreciagio deste lado, que nio nos parece sermenos finportante do que os outros' da sua personalloade.

De facto, se 56 de Miranda foi moralista, humanista ouinovador da arte liter6ria, tudo isto foi como Poeta, nao se

lhe conhecendo obras que nao tenham tido como objecto -Pri-mordial a criag6o artistica. Nio 6 possivel, no entanto, abor-dar sob este alpecto uma obra t6o densa, diferenciada e decerta extensao, iomo a de Sd de Miranda, em poucas linhas,sob pena de incorrermos em todos os prejuizos anteriormenteassinalados. Pondo de parte o seu teatro, comeEaremos porfrisar que, a despeito da

-impossibilidade de, com rigor, dis-

Dormos :ls suas composlcues ao longo dum fio diacr6nico de-finido, a obra de S:l ie Miranda par6ce-nos pronunciadamentedistribuipse por tr6s dreas principais de inspiraEao est6tica.A primeira d a que no-lo aprcsenta como poeta manilesta'm&rte integrado iros padroei de criaqdo lirica que .sc prati-cavam nos ser6es do-pago. A segunda d a que nolo revelaemDenhado na priitica de modelos diferentes dos tradicionais,claiamente inflirenciados pela lirica italiana, mas, tal como aprimeira. de tem6tica essencialmente amorosa... A t€rceira e aque no-lo mostra utilizando aquisiq6es formais comuns )sinteriormente apontadas, adaptando a redondilha e estrutu-ras estr6ficas da poitica tradicional a alguns g6neros repre-sentativos do Renascimento literiirio, tais como a carta e aicloga, mas distinguindo-se ainda delas pela temdtica de pen-dor -eisencialmentE n6o amoroso, ou seJa, pela preocupaEiode, directamente (atrav6s das cartas) ou efabuladamente (atra-vds das 6clogas) intervir, com reflexOcs e criticas, na crisesocial, moral e politica do Portugal do seu tempo. A 6reaque vai exigir a nossa atenqao d a que Primeiramente enun-ci6mos, istd 6, a que integrb as coniposig6es liricas elabora-das ao gosto palaciano.

Comegando por intentar uma aproximagao desta parteda obra de 56 de Miranda, teremos de nos p€rguntar Porque 6 que uma parcela tao representativa, em extensao eq-ualidade, do seu esp6lio artisiico, tern sido t6o ignorada,&ra nio dizer desprezada? N6o ter6 sido essa exactamenteirma das resultantei de se idcntificar excessivamente 56 deMiranda com o promotor da revolucdo estdtica renascentista ede, por essa razao, se colocar essa parte da sua poesia noconjunto dos alvos visados pela aca6o pol6mica do renova-

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dor e dos seus sequazes? A verdade 6 que, I q9ta, dg-.se ver;;G ;;;*lGt dii cntos, se afirmou i6 que 36 de Miranda;; ;;;; poeia ltti"o (t), o que representa uma mutila-

"ai .i"a. miis redutora do potta, pois que, se nao.€ a#;d"-U;;;t ai preside l'produgSo do discurso, € elaoue dominantemente se afirma oa maior parte do-s seus s&;€tos, nas suas can96es, em quase todas as suas €clogas e nao---un"a"o maiorii dis suai trouas d maneira antiga' Po;;:;;6;;a; 6 que Miranda nr:nca desprezou a obraiii?tir"=- r.i iao raia" regrcsso de ltdlia,-nem 19 podeair"" q* tenha hostilizado a poetica trailicioaal'

-Bastar6atentarmos Destes versos da sua elegia a AntOmo 't'err€rra;;-;;;t q* ele nao reduz o problema aos termos dico-io-i""J a"

-p6oia tradicional tersus poesia nova, mas sim

aos termos ile poetas tradicionalistas ters,J poetas intercs-sados em ver o discurso lirrico portuguOs alargado a outroshorizontes e descobertas:

Vem un itrando d cabega, e entra ufeno:Cousas do seu bom ternpot Ardentlo effi chafl'asoolas aue faz, toilo al lhe i claro engono'Anilani-se ds raz6es lrias polas ramas,um dlancete branilo, ou seia um chbte,letras ds iweng1es, motes ds ilatnas.tla pregu.nta esc1trt, esparsa trbte,tudo bom, quem o nega? mQs Potque,se algudm ilescobre mab, se lhe resbte? (").

Bastaria no entanto que pnest6ssemos mais ateng5.o iscomposig6es em que por-r'eirturb mais se mostra empenhado

""-'" "Ea" huminlstica para vermos que 6 a redondilha

quJa" ;tiun"sia. E bern -certo que, tanto no passo citado

oomo na dclogi Alexo, Miranda exprime a opiniSo de -que aoogtica tradicional se'movia aprisionada num colete de for-i"" moito apertado, aquela telgla estrecha que tao repelidasvezes se aponta para provar a sua totura com os modelosnalaianos. No entanto, torna-se necess6rio acentuar que oSnatt pastor que exterioriza nessa &loga as- lirnitag6es dessarcpla estrechd 6 o fltesmo que nio r€gateia louvores aos can'toi dr t,r"fuio e Anton, oi quais condicionam ain-da a suavoz i humilde zampofia tradicional' O qu9 q9

- ve4,f!ca, mais

urna vsz, d que nib 6 na altemativa €*clusivista de poesia

() ALFREDO MARGARIDO, 'Da necessidsde 'le

rever o pro-cesso de 56 de Miranda'. Didlogo' D.o c. -.**-

i)- sA Df-uneNoi, b6raz completas 2 (Lisbog, 1976) 20-21'

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nova/poesia velha que se coloca a questao, mas sim na deisnorancia resultante da falta de curiosidade e de vontadep-ara conhecer e ensaiat as formas novas:

Quantos buenos naturaleshay por aqui, si aprendiesen!Mas,.delicados Tagales,en plazeres se enternecen;a trabajos cucrpo t icrttose detnuaa:en ,erano, tluando suda,quandc tiembla en el invierno.A risa, ya que no digo al,tto sri conto tlefendenneque se quiere haTer igualeI que duerme al que no duerme (').

De resto, se assim ndo fora, como se compreendia que<io homem dum sd rosto e d'fia lt tenha partido justamenteum dos mais belos elogios dos ser6es po6ticos do paqo, con-substanciado nestes tao conhecidos versos da sua carta aD. Fernando dc Mencses ?

Os rnotnc.ts,'-ts seriros de Portugal,fto lalados no tnundo, onde sdo idcsc as gracds lemperadas do seu sal?Dos motes o primor e altos sentidos,os ditos dclicaclos cortesdos,qi d deles? Quem thes dd scmente ouridos? ('").

Alim disso, convdm termos ainda prcsente o que o poetr,apesar de toda a sua atracsio pela lirica e pelo teatro cl6s-sicos, diz nesta mesma carta a propdsito do amor e do seuaproveitamento como tema entre os antigos € os provenEais,estes os !:randes insoiradores de Petrarca:

Quem o crerd? Que l1islo a gente antiga,que tanto viu, t iu pottco, do costumecega, e destu baixa humana liga.Despois co'a melhor lei, entrou mais lume,suspirotrsa melhor, teo Jutro gente,de que Pettarca fez tam rico ordume.

ID., o. c., l, 125.ID., o. c., 2, 104-5.

()(')

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Eu digo os Proengais, ile que ao presenteinda rimas ouvimos, que entooramas Musas delbadas altamente (r\).

O oue h6 d tamb6m um certo preconceito, alimentadoao longo'de v6rios anos pela nossa historiografia e pela nossacrlticiliter6rias, contra a poesia palaciana, o qual sem dri-vida tem ajudado os estudiosos de Miranda, neste aspectocomo em outros, a serem mais mirandistas do que ele. Pre-conceito que, curiosamente,6 posto de parte, quando o poetacriticado iem a enversadura de um Cam6es. Neste caso diz-seque o poeta, apesar -de toda a sua ligaglo bs. formas e aostbmas ienascenlistas, soube revelar uma grande independ0n-cia e oualidade de sosto, n6o desprezando os modelos tradi'cionais-. Mas o mesrio se poderia dizer em relaQdo a Mirandaque, por tudo quanto acab:imos de aPontar e at6 pela aus6n-iia dL datagao das suas composiE6es, nao nos permite -con-cluir oue tenha. como o seu discipulo Ferreira, nos ardoresda sua campanha inovadora, para iempre deixado a Espanhaao Potto,

A noesia cortesanesca ficou, para alguns criticos, irreme-diavelrnente limitada A designagib que

-ihe deu Resende de

cousas de lolear e g.entilezai --rrrerds

passatempos de fidal-gos que se'viiam, s-ob as circunstAncias, coagidos a adoPtaripenis novos cAnones de galantaria. Mas, se como hoje sabe-nios i6, depois dos estudos efectuados sobre o CancioneiroGera[ ('"'), ial iuizo 6 excessivamente injusto para com bomntmero de poetas e de composig6es que figuram na colectA-nea de Reselde, muito mais iniusto se torna se o aplicarmos a36 de Miranda. Ser6 simples jogo cortesanesco aquela obses-siva tristeza que se desprende das cerca de noventa compo-siq6es liricas

-de que se comp6e a quase totalidade dessastrovas? E depois - ainda que demos legitimamente as nossasprefer€lcias ) poesia que mais acorda em n6s a nossa ess8n'irir homana e 'nos ligi, com tudo o que de mais complexoexiste em n6s, ao mundo e ao seu destino - podcr6 mesmo

(") ID., o. c.,2, L0L-2.(") Merec€m especial destaque os seguintes estudos: JOLLE

RUDGIERI. Il canzoniere d.i Resende (Genave, 1931); RODRIGUESLAPA, 'O cancioneiro de Resende'. Lic'es de Literoturo PortutttzsL -tpoca Med,ieoal (Coimbra, 19?0) 409-438; AIDA FERNANDA DIAS,o Cancioneiro Geral e a Poesia Peninsular ile Quaiocentos (Contactose Sobreohtincia), (Coimbr8, 19?8); JACINTO DO PRADO COELHO,'Vida e poesia em fins da ldade M6dia'. Ptoblerruitica da Literatura(Lisboa, 1961) 63-8; ANDRfE CRABBE ROCIIA, O Cancioneiro deResende (Lisboa, 1980).

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e com exclusao feita ao

esta poesia, que legitimamentedevernos preferir, ser s6 valo.

itimamente preferimos, que legitimamenteser s6 valorizada pela qualidade temeticapela qualidade temetica

inerenteatodaaarte?e com exclusio feita ao jogo que 6 inerente a toda a arte?Jogo cortesan€sco ou nao, ele, se existe-e cremos que exis-te]-em 56 de Miranda, nao constitui o fnico valor nem tal-vez mesmo o valor principal desta parte da sua obra, salien'tandcse nao apenas como um c6digo ideol6gico, mas tam-b6m como um c6digo estdtico em que o poeta sabe vazar comgrande dignidade a sua atitude lirica em relagao ao amor e,i partir dlle, em relacdo ao mundo.' Um Doeta. distaniiado no tempo como 56 de Miranda,nio foge ios riscos de ser apreciado apenas por aquilo que asua obra p6de manter de mais actual ou mais directament€ligado aos-problemas e aspectos do homem de hoje. Por certooue a atitude lirica face ao amor e ao mundo, do mesmoirodo que a filosofia de vida a ela subjacente, se mo/stramdemasiido presas a uma 6rbita de valores que nem sequerera a do homem comum do seu tempo, e, je nessa altura. seapresentava um tanto ultrapassada, resultando dai a dificul-dide em nos colocarmos er[ situagao de compreender e sentirtodo o alcance da original mensagem podtica em que se tra-duz cada composiqeo. JA nesse tempo havia, na verdade, quemachasse ridiculo o exagero trdgico desta poesia, bastando-noslembrar as explorag6es c6micas que ela proporcionou a umobservador vivaz e itento como Mestre Gil. O'ridiculo, por6m,dos apaixonados vicentinos nao este na dignidade com queassumem os seus sentimealtos, mas no vazio que eles repre-sentam em relagSo h sublimidade lirica que as formas utili-zadas pressup6em. Como demonstrou Paul Teyssier, se GilVicente recusa o grotesco dos fingidores de amor e dos fin-gidores da fidalguia, n5o recusa a ampla e fecunda herangade formas e de artificios ret6ricos em oue era modelada apoesia cortesanesca. E que, jd por essa ait,rra, com todos osatrasos do Renascim€nto e da completa dilrrlgagio dos textosgregos e latinos entre n6s, se tinha, a respeito da arte liter6-ria e particularmente a respeito da poesia, uma nog6o dedignidade que nlo ser6 despropositado lembrar. Sabemos,com efeito, a importAncia que teve para n6s o Cancionero d,e

Baena, no qual, depois de se salientar qve "la poetrya e gayasciencia es una escritura d compcsici6n muy sotil C bien gra-ciosa(...) alcanzada por gracia infusa de! Sefior Di6s" seadverte ao mesmo tempo que ela C um dom s6 enviado ecapaz de produzir resultados qen aquel 6 aquellos que -bien C

sabya 6 sotyl 6 derechatnenteo o saibam praticar: <ordenar icompor i linur 6 escandir d. medir pet sus pies i pausas,

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i por sus coflsonantes C syllabas C acentos, d. por artes sotilese de muy diverss singul.ares nombranzas, ('3). Considerar apoesia um dom divino atestado pela linguagem dos primeiroslivros biblicos e dar d gaya sciencia o lugar da mais subli.mede todas as artes provando-o com a Patristica e com exem-plos tirados da Aitiguidade e da lt6lia de Dante e de Pe-ttarca, e o que fazem poetas-t€orizadores como o referidoBaena, o Marqu6s de Santillana na sua cdlebre carta ao Con-destdvel de Portugal e Juan Del Encina na sua tio impor-tante Arte de I'a Poesia Castellana. E para este, depois daperfeigio que atingira a poesia, n6o se podia confundir estacom um vulgar trabalho de trovadores, pois estes se distinguiam dos fretas como os pedreiros doi ge6metras: os tro-vadores nzo se les da mas oor echar una sillaba t dos demo-siad,os sue de menos: ni ie curan aue sea bueit consoanteque malb", enquanto "el poeta conten;pla en los generos de losrercos: y de quantcs consta cada verso: y el pii de quantassillabas: y aun no se contenta con esto: sin examinar Ia ownn-tidail tleflas, ("). Por isso a dinidail de Ia poesia estavd n6os6 ligada i qualidade da inspiragSo como tlmbdm i ci6nciado trabalho oo6tico-

Sd de Miranda n6o desconheceu esta noceo de poesianem se alheou das suas exisdncias estdticas e n6o se oodeconfundilo com os pontososll de rostos carregad.os, e di unsrisos I mrd6niocs, ou mab claro, maliciosos que decididamentetinham optado por andar-se its raz6es lrias pelas raffias, tantonos'vilancetes brandos como em tudo.

"O amoL entre n6s, 6 uma siplica apakonadamente tfis-te. E ndo hd nad,a que exprima tdo bim esse cardcter deprece d.o que a tautologia, a. repefigAo necessdria dc apelopara alcanp.r um dom, que ndo chega mais. Por isso o nbssolirismo C por vezes um documentdrio precioso de poesia pura:toda se exala num suspiro, numa quiixa, numa elusdo Zxcla-matittao. Estas palavras, que Rodrigues Lapa escreveu nas suasLig6es de Literatura Portuguesa (16) ajustam-se particular-mente e colecgdo das Trovas d maneira antiga do poeta 56de Miranda, ao mesmo tem'po que exprimem a nogSo maisactualizada de lirismo. Taml#m itaul Valdrv 'dizia oue o liris-mo tende para a interjeig6o, emotividad6 que 6, centradasobre a sujectividade do poeta, o que p6de ser confirmado

(']) Cf. MARCELINO MEN6NDEZ Y PELAYO. Historio delos id,ea.s e$eficas efl Espafr,a 2 (Madrid, 1928) 250-1.(") ID., o. c., 339-360 (Apendice V: 'Arte d€ poesia castellana',de Juan del Encina)-(") o. c., 732.

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por Jean Cohen, ao defender, apoiado no contributo da lin-guistica, que d no sentido pat6tico (ou afectivo) que est6 aess€ncia da poesia, determinando s6 por si a exist0ncia deduas leis congenitais ao poema: por um lado, ele d redundAn-cia, assente na reduplicagao expressiva da emotividade e, .poroutro, 6 contengao, j6 que "i/ faut ailrnettre la probabilitdd'un maxintum intensif, c'est d dire d'un taux de satura-tion" ('o). Atentemos ncsta cantiga de 56 de Miranda:

J'a morte hei de morrer:que fa7 mais assi, que assi?lsto ndo oosso sofrer:haverem-ie de oeideros olhos ccm q'ue vos vi.

Os olhos por que passavmos yossos a0 coraQAo,

-onae parl sempre eslao,s6s estes aue me f icaram.fora a miiha salvagdo.Mas se inda os hei-de oerderafora quanto perdi,acabarei de morrer.acabarei de saberpara quanto mal naci (").

Podemos dizer que nela o Doeta ndo excede a atitudeconhecida do trovad6r medieval, dando fundamentalmenrecxpressdo it cuita amorosa e, al6m disso, servindo-se dummotivo central jA um tanto gasto como 6 o dos olhos. Note-mos, pordm, que n6o i s6 isso, nem a repetigao de palavrasi6 um tanto exauridas pelo consumo como morrer, sofrer,perder, saltegd.o, mal, o que exclusivamente devc merecer anossa atencAo. Com efeito. se tais factos nAo concorrem Daraque Sd de Miranda se nos imponha pela originalidade, o poe-ma no seu todo 6 uma real'izaqio perfeita, cheia de equili-brio e de densidade lirica. A respeito das trovas de Camdes,escrcveu Ant6nio Jos6 Saraiva q.ue <o mesmo autor que nascartas e prosas dos Aulos consegue sugestionar-nos com oimpreristo e novidade das imagens, com o senso visual,tdctil e sugestil.,o tl'as formas oferecidas pela natureza e pelotrabalho humano, aparece-nos agora como virtuosc das artesdiali.cticas, prelerindo d imagem sensorial a pura linha geo-

c)(")

'Po6sie et redondance'. Poehque 28 (Paris, l9?0) 413 ss.SA DE MIRANDA, o. c., 1, 23.

l5l

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nlttrica dos arabescos, (13). E ncste jogo de arabescos, detrago fino e delicado e n6o de imagens po.-licromas e variadas,quc estd a graga do poema. Numa- atitude de grande comedi-mento, -o poeta chora a sua morte, jd que a amada nio cor.responde aos seus sentimcntos de amor. Mas aDresentando-senesta situagao extrema, o pocta encontra assim mesmo razaopara encarccer a amada, tentando, por este encarecimentodela, ao mesmo tempo comovLi-la. Pof um lado, se ele morrc,pcrdera os olhos com -quc a viu-.- Mas, por outro lado, e e ornais imporianrc, perderd os olhos pCr que passaram / osI delal ao coraL'Ao.

Nio dcixi cste processo dc scr uma forma de hiperbo-lizar o amor como sintimento e de, consequentementc: mos-trar que, sem cle, a vida dcixa dc tcr seniido. A hiperboli-zagdo do amor c ) declaracio do sentido triieico da vida semcle, corrcspondc, por isso, a insist€ncia nimorte. Trata-sede um outro nU,ileo temdtico que o pocla coloca em oposiqaoao do amor. Assim se comprelndc melhor a redunddircia-dains:rigio da morte no poema, n6o s6 pela reprodugio do le-xema nrJrrcr, como atravis dc orrtros de signi.ficado couiva-lentc (solrer, pcrder), ou pelo recurso a sintigmas mais-com-plexos como aquele cm que alude h sua impossibilidade desalvaqdo ou ao icconhccimento mais uma vei confirmado doparu quanto mal rnsci. Expressio duma dor obsessiva, atdporque resulta duma visao- cxclusivista do mundo imDosrapclo amor, niro d de admirar tamb6m a inusitada utiliiagdodc processos particularmente aptos para a acentuar: a repc-ligao no mcsmo verso dc assi... assl,. a anifora: acabarei...acabarei; e esta espdcie de leixa-pren com que 6 feita a liga-gio do rnotc ir glos-a: os olhos co'm que vos ti l/ Os olhos porque passafam.

Mas, sendo a atitude lirica aqui €xpressa essencialmentetreigica, ndo sc prc,stard a escolha da.cantiga, pelo que a nota-biliza como modclo de mcnsagem lirica, a atestar esse sen-tido pessimista do mundo? Ant6nio Coimbra Martins afir-ma, no Diciot'rtirio de Liteqtura de Jacinto Prado Coelho,que este tipo de composigao designa (certos poemas lificos,quase sempre de cardcter leve", mas certamente, mais pelotal jogo de arabescos do que por outras raz6es. Com efeito, aviolincia apontada por T. F. Earlc ('") como uma das t6nicasmais salientes nesta parte da obra mirandina. contracena coma graqa da adorag6o amorosa jii apontada. Para al6m disso,

('") Ltis cle Comies (Lisboa, l9?2) .11-2.('") 'Iheme and, Image in the Poetru oJ Sri d,e Miranda (Oxtord,

l9B0) 1l? c passirn.

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pordm, a cantiga, al6m dc ser particularmente redundantedesde a sua concepqao, i notavelmente circular. Composta

fine logo como uma forma redundante.de duas partes essenciais, o mote e a glosa, porfine loso lomo uma forma redundante. Mas a iedr

r, por aqur se de-a redund6.ncia e a

circulaiidade ainda se acentuam por outros aspectos. Assim,a. glosa, divid'indo.se em duas partes, d, na parte mais pr6-xima do mote, umaxima do mote, uma variagSo deste, e na parte final, um re-gresso ao mote. Na verdade, sendo regra da arquitectura dagresso ao mote. Na verdade, sendo regra da arquitectura dacantiga que a riltima parte da glosa rime com os versos domote, temos assim que a cantiga 6 uma estrutura constituidapor tr6s elementos, sendo a variagSo do mote o seu centro esendo o seu fim equivalente ao seu principio. A cantica j,verdadeiramente, um corpo fechado sobre si mesmo. -

Miranda aproveita, iom irrepreensivel mestria, cste cs-quema formal para traduzir o seu pr6prio encerramento numsofrimento de amor e morte. Comegando, no mote, por enun-ciar a sua condigdo de ser mortal, sublinha depois o dolorosoparticularismo da sua situaqio:

Ua morte hei-de morrer:que laz mais assi, clue assi?Islo ndo posso solrer:haverenrse de oerderos olhcs com que vos t,i-

No inicio da glosa que d o centro do poema, concentra--se ainda mais em si, mas para se elevar ati A amada, j6 qucsio os olhos dela quc ele tem dentro de si c sobretudo con-templa:

Os olhos por que passarantos l,ossos ao coragio,onde para sempre estAo,s6s esles que me ficararn,[oru u mhthu stlvagio-

O final da composiqio 6, por isso, um acorde muitomais tnigico, em que se acentua o particularismo da situa-gao com que o poeta se apresenta no inicio do poema:

Mas se inda os hei-dc perd.etafora quanto perdi,acabarei de morrer,aoabatei de saberpara quanto mal naci.

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Page 12: Joaquim Correia - Sá de Miranda, poeta à maneira antiga

Aldm de algumas dezenas de cantigas, a obra -mirandinade inspiracSo co-rtesanesca inclui v6riai dezenas de vilance'tes, es'parsas, glosas, uma sextina, e outras trovas de formapouco'ddinidi. o {ue desde logo de-vemos afirmar d queiodas estas formas si caracteriza.ir, tal como a cantiga, pelaredundAnoia e pela circularidade. O vilancete 6 a forma quemais se aproxirira da cantiga, tendo sobre ela esta particularimDortancia: Dartindo tamb€m dum mote, este nao pode con-tef mais de ti€s versos, e a glosa, constituida por cabega ecauda, n6o deve ultrapa.ssar os sete versos, apresentando,- porisso, uma estnrtura mais concentrada. O exemplo s€guinte,doniinado Delo tema da tristeza, comprova a Extrema ade-quagdo do poeta n forma escolhida:

Que pos farei, mau cuidado?onde vos trarei netiilo,que ndo seiais entendido?

Descobrir heis-me cad'hora;cuidei que etu d minha mingua;mas em quanto veil'c a lingua,sais pelos olhos fora,E ndo cuidais que me fora,sem meu mal entendiilo,melhor nunca ter nacido? (2o).

Poder.se-6 dizer que a esparsa foge, pela sua estruturac Delo que a sua designagio sugere, i circularidade' Estetipb de Composicio €, de facto, um lamento breve, um desa-bifo de trisGza, normalmente contido numa estrofe de sete adez versos. E todavia um desabafo imposto por uma dorsentimental obsessiva e n6o deixa de se definir pela sua con-centrageo. Na verdade, 6 num nrimero excepcionalmente re'duzido de versos que o poeta tem de dar voz b, sua cuitaamorosa ou i sua tristezi. O exemplo que damos a seguir,n6o deixa tambdm de ser bern esclarecedor quanto ao vir'tuosismo de Miranda. Al6m disso, o sentido tnigico que odomina i particularmente vislvel:

Quando nos meus erros cuido,no meu claro e longo engano,Ielemente passo o dano,a oar de tqnto descuiilo.Pdssando, d lorQa de braeos,

(") ID., o. c., 1, 38.

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wr uns, por outros empegos,q.uam mal que nesles espaQosdizem os f ins c'os ccmegos (21).

Nio vamos dar, da glosa mirandina, nenhum exemplo,nem transcr€ver a sua sextina, por se tratar de composic6esdema_siado longas. Mas nio deixarcmos de dizer que a'gloja d,por definigio, redundAncia. E a sua circularidaie na6 deixatambd-m de se afirmar pela repetida subordinagio de cadauma das estrofes ao eixo que 6cada um dos veisos retoma-dos ao. poerna ou fragmento que lhe serve de ponto de par-trda. Glosar e o comportamcnto mais caracteristico do Doetapeninsular dos fins da Idade Mddia, e esta atjtude tairto dcomum ar glosa propriamente dita, como ao vilancete, como ircantiga, como a sextina que, embora seia considerada umaforma lirica do italianismo. foi iniciada.

-como sabemos. neloit"t i;;i;#;l"i'i; t;r"d;'.;;. ."b;;;;, ;;i;provengal Arnault Daniel. A sextina glosa-se a si mesma, disde

3.s palavras finais da primeira €stiofe a todas as palavras

bora em posig6esfinais das estrofes segl:tintcs em que aquelas se repetim, em-bora em posig6es diferentes, at3 ao ierceto finil em' ouetes, atd ao terceto final em que

comum a. glosa propriamente di

todas se concentram.

(") ID., o. c., 1, 26.(") La langue de cil Vicente (paris, 1959) 435 e ss.

Na aniilise que Paul Teyssier faz da .lingua de Gil Vi-cente> mostra-se como €sta redundincia i resuliante, nio apc-nas dos gineros da lirica que sc haviam formalizado. comoa.inda.da pr6pria atitude do homem medieval perante o mun-do ("'). Apesar de todo o processo dc abertura entdo con-dllido pelo Renascimento europeu e, entre os povos ibdricos,pela aca6o descobridora destes, colocando a Europa em .e-Iaqio com povos

-de- cuia exist€ncia nem sequer ie suspei-tava-no plano ideol6gico e cultural os horizontes medievaismantiveram-se por muito mais tem,po fechados, conservandovalorcs e atitudes como realidades- imutdveis. N6o se pode.por consegu.inte,_ exigir dg _Sai de Miranda um discurso ifricomo,dado sobrc tormas diterentes, nem uma vis6o diferenredo amor. Enquanto tema podtico, o amor 6 ainda uma he-ranga essencialmentc provengal, elevado i categoria de rea-lidade transcendental, implicando comportamen--tos esoeciaiscntre trovador e dona. Trata-se duma verdadeira relieieo emque_a mulher espiritualizada estd no centro de todas-as aspi_rac6es do poet-a, devendo este, para merec6-la, sofrer, comotodo o descendente de Addo paia alcangar a pdtria celeste.Por isso cada rroema d uma. pequena Cosmogonia fechada,recheada de entidadcs ales6ncas.

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Tal como acontece com outros poetas, S.i de Mirandando foge i regra de recorrer a um certo nfmero dc palavras'-chave, as quais parece fazerem partc de uma receita obri-gat6ria: morte, dor, mal, cuidado, sofrimento, cuita, desejo,vontade, amor, saudade, esperanga, olhos, alma, coragio. En-quanto isto acontece, o imaginiirio i reduzido, a abertura inatureza 6 muito limitada, c a amada, ati pelas rcgras dlrcortesania, nunca merece uma descriqdo por mais cstilizadaque seja. E um ser incorpdreo, reduzido a um simbolo nainterioridadc do poeta. A presenga da mulhcr, no cspago tex-tual, fica toda contida cm dcsignaEdes tao pobres como sc-nhoru e vds, c sente-se mais pelos rcflcxos quc provo':a, doque como realidade em si. No entanto, nio sc podc dizerqlrc o poeta, retomando sucessivamcnte a mesma tcmiiticacentrada na dicotomia amor / mortc, nao consiga evitar amonotonia, c isso precisamentc devido ao scn notzivel l-von-tade no mancjo das formas tradicionais c h sua plena idcn-tificagdo com o espirito dclas. E no devassamento dos rc-flexos da incorrespond0ncia amorosa que o poeta mais secompraz. Essa interioridadc torna-se entAo um palco animado,ondc o ccrragio delc c o da amada, os olhos dcle e os dcla, a

alma e os sentimentos, o amor c o destino, o dcscjo c a razeo,sc tornam vcrdadeiras personagcns, que podfamos, de acordocom os papiis assumidos por elas, distribuir por um csquemaactancial do tipo greimasiano. O amor i sempre um ordena-dor dc sofrinrento do poeta:

Quanlo tttal ttrc era c.trdcnatlo:Ias cosas con que naci,algurns nte lrun desechadoalcaflcd otras conlra mi.

Dc lu nti ulttn rto s[qua cs tlella, t trti cortzdrt:t Ia ftterzu no hay ruz.rjrt,cad'uno tras ros sc lut.Vida, nrcntoria y cuidadr,sentidos que u tos ergui,estos nut'tcu tne lntt dexadopor seretn mds contra mi (=").

(!) SA DE MIRANDA, o. c., !, 6-7.

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O Amor c a Fortuna sio de facto, como o poeta diz, )rofragmento que se lhe conhece da sua trag6dia:

dous deuses que os antigosantbos os pintaram tegos.

Por isso o amor-ou a fortuna amorosa-6 semprcuma tempestade n ri, um destinador de sofrimento, uma forgairresistivel sempre pronta a submeter o poeta aos seus ca-prichos e a dividi-lo num sem-nimero de forgas atiradascontra si. Os desejos, a vontade, os olhos, o coragao, as espc-rangas alegorizam-se em oponentes ir sua felicidade.

Os desejos:

Cego deste meu dese j.c,mal dos males, mor dos rnores (2').

A vontadc:

razAo e rcmpo seriade per sua !'sidadeaquela cega vontade,que lam cegamente lia ('t).

Os olhos:

Consellns pdos, ( ... )yris ttdo podeis estes olhosalqar unt pouoc it razdo? (2e).

O coragSo:

Eln quanlas partes n|e parlopor este coraQao cego,nunca d.e seus tnales farto! (21).

(') ID., o. c., l, 19.("') ID., o. c., l, 13.(') ID., o. c., 1, 51.(') ID., o. c., 1, 4?.

t57

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A esperanga:

Aquela esperanga minha,assi lalsa e td como era ('3).

A alma:

Mientra el mal arde y d.estruye,busco con que el tiempo engafie;a desora el alma fuye,que no si quasi quien tafie (2').

O pr6prio poeta se torna assim um inimigo de si mes-mo, erigido em labirinto cm que o cu ao eu se guerreia:

Comigo me desavim,scu posto em todo perigo;nao posso viver comigonem posso fugir de mim (3').

A amada, se constitui - na fase do engano amoroso eatd mesmo depois disso - sempre o rinico bem a alcangar,torna-se ela pr6pria um oponente, pela sua inacessibilidade,pela distAncia a que se coloca em relagio ao poeta ou pelacrueldade com que faz por ignorar o mal a que ele se con-denou s6 oor am6-la:

Seftora, oiil la mi suertey de puestra crueldad:'por

mo pediros piedadantes Ia pido a la ,muerte.

El mi corazon caidoen tant@ cuila y desmayo,pues que nunca os ha movido,ante la muerle lo trayc;mas no sd como conciertetan gran ilesigualdail,que me haTeis pedir piedailcontro Ia muerte d. la muerte (s1\.

(") ID., o. c., 1, 21.(") ID., o. c., l, 50.({) ID., o. c., 1, 9.(") ID., o. c., l, 6.

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Assim, se vdrios adjuvantes podem acorrer em auxiliodo poeta, o principal 6 a morte, como atesta a- composigSooug acabiimos de transcrever. No entanto, os olhos, se assu-irern o papel de oponente, n6o deixam de ser, pelo sofri'nrento a que tamHm se condenam, os mais ternos compa-nheiros da dor do poeta:

Todo se me va en ^ntoios,en esta prisi6n escura:

cuitailos de los mis oiosque pagan tanta lopura! (tz).

E f6cil de ver como todo este processo de dramatizagdoInica de sentimentos, de 6rg6os particulares do corpo hu-mano e de abstrac96es 6 um processo que, muito emboradocunentando a sua matriz medieval, n5o deixa de concor'rer llara que o poema, na sua forma fechada, se encha detensio e dinamiimo, comperrsando com isso a aus6ncia deelementos captados na realidade viva. Esta capacidade t6ocaracteristicamente mirandina, como 6 a de encerrar, nurnagrande tensao, forgas dinAmicas e opostas, resulta, rrio s6

ilo s6bio aproveitamento dos modelos Iirricos da po€tica medieval cortesanesca, como tambdm do h6bil manejo dos re-cursos da sua r€t6rica. A hiperbolizageo do sentimento amo-roso pode lev6-lo a exploragoes semAnticas teo bem suc€di-das como esta:

O tempo a que. sou .chegado!-que posso doer as dores,e dar cuiilado ac cuidailo! ("\.

A quiasmos particularmente expressivos:

Que meo espero ou que fimdo vdo trabalho que sigo'pois que trago a. mitn comigo,tamanho imigo de mim? (').

(!') ID., o. c., 1, 42.(') ID., o. c., l, 9.(a) ID., o. c., I, 10.

Page 18: Joaquim Correia - Sá de Miranda, poeta à maneira antiga

As repetig6es constantes que p6e ao servigo do ritmo,da melodia e da plurissignificagdo:

Do passatlo arrependido,seguro d.cutro erro tal,seja o perdido, perilido,e do mal, o menos mal (3t).

A utilizagSo da mesma palavra com sentidos opostos:

Qui me hari, cuitado, yo,con que la vida delendahasta que me vida tenga (36).

A aliteragEo, de que aproveita as sugest6€s mel6dicas,para as combinar com outms recursos de construgio ritmica edensidade conceptual:

As yoltas co'as suspeitascontas liz, contas desfiz;estos, d.espois que as fiz,foram pera sempre f eitas (').

Ao oximoro e e antitese, que tao expressivam€nte do-cumentam a trdgica perplexidade fntima do poeta e a suavis6o, tio amiudadamente r€petida, de descorrcerto do mun-do, como n€ste .poema, que bem merece ser reproduzido naintegra:

Ledo em meus males sem cura,e nos descansos cansado,querendo e sendc forgado,ora ctidar tne assegura,ora tne mata cuiilado.

Assi me tem reprtiiloeutremos, que nio enlendo;ile toila parte corido,ile toilas ilesrcotido,de nenhfra me defendo.

(") ID., o. c., 1, 14.(:') ID., o. c., 1, 15.(") ID., o. c., 1, 25.

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A vida estd mal segura,eu tenho o tro cuidado:aue mal tam bem estimado.iue nesta desaventutlaine laz bem artenturado! (3a).

O trocadilho, a antitese, a ambiguidade, a oposieao e ar€petigao, a v6rios niveis, sdo pois figuras que alimentam estatensao constante entre o amor como s€ntimento e o amorcomo pensamento, je que d do amor que o po€ta parte para aapreciagSo do valor do mundo e da vida. Por isso, comoRdgio afirmou, em alguns aspectos Miranda antecipa, por€sta sua tend€ncia para um lirismo de raiz conceptista, anossa mais moderna poesia, podendo mesmo apontar-se comoum longinquo precursor de Pessoa e de Sd Carneiro. De facto,pela fragmentagSo d,a personalidade em personagens que seop6em na 6rbita cerrada do seu palco intimo, respira-se qual-quer coisa que 6 uma esp6cie de prenincio de urn drama emgente. Mas para al6m disto, sempre o que em Miranda senteestd. pensand,o.

Este pensando e por isso ele n6o desdenha o contributodo lirico palpitar colectivo, sempre que este se ajuste a suapr6pria experi€ncia pessoal e ) sua pessimista visdo do mundo.Reflecte esta atitude o frequente aproveitamento de composig6es e de fragmentos de composig6es alheias que, seguindouma prdtica corrente, ele glosa, fazendo dos seus textos me-tatextos em relag6o aos textos originais, Mas, se algumas vezes,com as suas glosas, em pouco ultrapassa o comenterio a essesmotes, o mais frequente 6 surpreender-nos no seu respirarperfeitamente sincronizado com o suspirar mais aut€ntico dalira popular, principalmente quando tais motes pertencem acantares an6nimos e serranos. Como neste vilancete de v6riasvoltas:

Sautlade minhaquando vos veria?

Por terra jd assi,tudo em tal mudanqa,que la7 inda aquinehfra esperanga?A minka lembranqa,a minha perfia,que mais apetia?

(") ID., o. c., 1,28-29.

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Que laz um deseiotam desenganailo?Que laz o sobeiodeste meu cuidado,comigo aPartadoouantlo anoitecia,-quando

amanhecb?

Saudatle e suspeitasatortoeadireito,ndo sereis desfeitas'quanila eu for desfeito?Iniln o frio Peito,inda a lingua lriapor vds br'adarin (o).

Deste modo, pelo menos como t6picos j6 codificados do

universo lirico peninsular, tambim os montes, os vales, os

borqr.r, e os rios, enquanto espago de eleig6o para a fuga.domundo hostil, assinalam a sua presenqa na poesla de rnsplra'g5o palaciana de 56 de Miranda:

Nestes potoad.ostudo sdo requestas;tleixai-me os cuidados,que eu los ileixo as festas;daquelas florestasterei longe o mar;p6r-rn'ei a cuiilar.

Sombras e riguas frias,quanilo o sol mais arde,despois, sobre a tvrile,por cd bradarias (ao).

Tambdm o vento como sinal de mudanga irremedi6velde tudo e de falta de autenticidade nas relag6es humanas ium simbolo particularmente acarinhado pelo poeta: Tornou--se-me tudo

-em uento, diz ele numa das suas mais sentidas

esparsas. Noutra composigeo, o poeta alia'o h sugestiva ima-

ID., o. c., 1, 35-36.ID., o. c., 1,31,

(")(')

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#-H, castelos p.ria significa'r os sonhos e as esperangas

' 6 meus castelos ile 'ventoque em tal cuitw ,mc pusestes,como tne vos desfizestes!

Caistes-me tdo asinln,cairatn as esperangas;isb nao foram mudangas,mas loram a morte minha.

Csstelos sem funilamento,quanto qr@ me prometestes,quanto que me falecestes! (,r).

aspectos queMas a atengSo ao mundo exterior, sobretudotos que mais negativos se aDresentariam arl €

> ao mundo exterior, sobretudo naquelesnegativos se apresentariam ao exilado dasso haveriam de centrar. a Dartir de certaT-apada e que por isso haveriam de centrar,lapada e que por isso haveriam de centrar, a Dartir de cena

altura, a temdtica da sua actividade po6tica, jli aqui se ma-nif€sta, nesta curta mas incisiva espa-rsa:

Ndo-tejo o rosto a ninguCm;cuidais que sdo, e ndc sdo;homens que ndo vdo nem ltern,pa.rece que avante vdo;arrtteoaloenteeosAomente cad.'hora a espia;na meta do meo diaqnilais entre lob6 e cdo (a2).

E um lugar comum dizer.se qu€ somos fundamental-mente um Iirico e que a princlpal caracteristica dessemen[e um povo lrnco e que a prlDclpal caracteristica desseIirismo estd na incid6ncia com que d6 expressio ao sofri-nento. Desde os cancioneiros trovadorescos-que essa coordena& se mantdm, reproduzindo.se muito emBora nas mode-nada se mantCm, reproduzindo.se muito em6ora uas mode-Ia96es forrnais mais diversas. NEo 6 diflcil depararmos ainda,na poesia dos nossos dias, com as ldgrimas, bs suspiros e aqueixa amorosa,, tudo elemeDtos duma sinaldctica lirica que,neo obstante o largo consumo que deles se fez, sobrevivern

(') ID., o. c., 1, 18-19.(*) ID., o. c., 1, 20.

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oresos ao humus das nossas vivdncias culturais mais profirn-

fi:-dtdt Mdt;;di, apesar de todo o vigor da sua interven-

Ji"'tu""l. i"ulidadei externas do mundo hist6rico em que

il";;p;;-;; toda a ousadia com que P6de transP6r as

t"onil"ti". que o separavam daquelas tierras onde os pasto-

"..- -"i. bein ensinidos en cantar versos ritmados mais o;i#il't"1;'i.:-- oao t"gi" a regra de, com boa.parte da

fi;';il"i;i;u. "it-" tto""." vertEnte lirica' Quando andava

poi U, pbtor gtandes campos.de Roma, " 9^9"t911-9:t..p^1t:in iros itotttacios com a poesia nova e-ra entao.decerto mars

riii."l"-iia" pode esqulcer o pas-sado - tem6tica. e formal-

mente vivido, dentro dos c6digos da linca pahcraoa'

Por estes camPos sem fim,onde a Pista assi se estende'que terei, triste de mim,

-

|ois ver-ios se me ilefentle?

Todos estes camPs cheossdo ile saudade e Pesar'oue lem pera ,ne matarLebaixo de cCus alheos.Em terra estranha e et' ar,mal sem meo e mal sem fim,dor aue ninguCm ndo entende,atd auam linge se estenile'o ...olsso Potlei em mim! ('").

Quem assim p6de exprimir a saudade, nio podia' 'por-"i" iip""tt"a" {ue estiriesse em revolucionar a arte lite-

r?"1i, "oft"i ut iuis relagoes com os velhos metros'

'Por isso 6 que - apesar de todo o interesse que teve a

.""ao J" Sa -d" lii"."a.'na transfomaqeo do nosso discurso

iit"i"o . up.tut de toda a admiragio que possa suscitar em

ii3i,'" *" F.nt -o.a -"a" p"d"nios esquecer a-quela parte da

t"i -.ir-'.. q". deu os irrimeiros - plssos de poeta' Por

"i,iitit - t-0".,= ela est6 uitrapassadd.- o que n-6o .deixa

ali6s de acontecer com a sua obra de inovador' Mas, talvezseia essa parte ainda a que mais se nos imp6e pela ulu-dalde est6tica e Dela autenaicidade lirica'** il;ii;ilcil;p; q;; 5a de Miranda nunca abandonoo d" todo eisa po€tica iradicional e certamente que niol" i"f"ti. ip"ns i redond,ilha, que retoma na maior parte

(') lD., o. c., l, 22.

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das suas cartas e nas 6clogas Basto e Montano. Talvez nioseia excessivo dizer-se que, apcsar das prefcr€ncias temiti-cai pela rellcxio politica e mora] que evidenciam cstas suasobras, a atitude d6 poeta face ao mundo nao se altcrou muitoem relagao is trovas de inspiraqao quase cxclusivamentcamorosa. O acento dramiitico quc poc na alusao aos perigosdo mundo que o rodciam, a tcindcrncia para valorizar a soli-dio como um abrigo, nas trovas ao modo palaciano, sdo as-pectos comuns irquCla sua poesia em que coloca a aurea,tne'diocritas. o rcf iiti na nai.ttcza e t.,, scu ahrigudo aldcaocomo a altcrneti-va mais salutar para as intrigas, as ambi-g6es e os desregrados costumcs em que a corte se corrompe.De resto, a valorizagdo mitica do passado s6 porquc o pas-sado se tornou j:i inaccssivcl, a tentaqeo do absoluto, estejaelc inscrito nas estrclas do ciu distantc ou num viver casto e

rude representado pclo simbolo da casa antiga num temPoem quc sr.i quasc como idealizagao sc podia pensar-naoser:i iudo isso a erDressio duma saudade que tanto conduz hbusca impossivel dum amor transccndcntal, como a umacomum filosofia do desengano?

Ji houvc quem dissesse que Sd dc Miranda foi o homcmmais integra)mente c mais complexamentc progressista do seutemDo. E natural que sim, pois a beleza dos ideais mais pro-fundamcnte humanos d sempre a mais progressista. Sd deMiranda, com todo o seu passadismo, como lapidarmente (")acentuou 6scar Lopes, nio deixa de scr um construtor' a suamaneira, dum idcal de iusriqa, de harmonia, dc felicidade. Asua obra de poeta palaciano, como quer quc seja,6 um dadoa considerar. Atd que ponto 6 que n5o i ela o texto primeirosobrc que assentam todos os textos posteriores, culturais e

)

'l

I

{ Iitcririos, cm quc transformou a sua artc e, com ela, verda-dciramcnte a mensagem da lirica portuguesa?

(") 'Sri de lUiranda -Depois (Porto, 1970) 113-121.Permanencia da sua critica'. Ler e

l6ir