Jesus de Nazaré: Prólogo, a infância de...

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1 Jesus de Nazaré: Prólogo, a infância de Jesus Quis o Santo Padre Bento XVI dar como presente de Natal a toda a Igreja e a quantos procuram o rosto de Deus o último volume da sua trilogia sobre Jesus de Nazaré. Trata-se, no dizer do próprio autor, não da conclusão mas do prólogo da mesma, um escrito que nos ajuda a compreender os outros dois, e a perceber a própria pessoa daquele que é o nosso Salvador, o "autor e consumador da nossa fé", como afirma a Carta aos Hebreus (Heb 12,2). Depois de recordarmos brevemente os objetivos do Papa ao lançar-se nesta singular tarefa, percorramos alguns dos pontos mais constantes deste pequeno livro, de leitura acessível a todos, e que se nos propõe em diversos níveis, consoante a nossa diferente cultura exegético-teológica. Como é importante na leitura de todos os livros, tomemos a atitude de quem dialoga com o respetivo autor, deixando que ele nos conduza pelo caminho que connosco procura percorrer, colocando de lado eventuais preconceitos, seja a respeito daquele que lemos, seja a propósito do próprio Jesus, cujas narrações da infância, características dos evangelistas Mateus e Lucas, são aqui apresentadas, não numa mera leitura transversal e concordista, mas mostrando a razoabilidade dos escritos, na sua especificidade.

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Jesus de Nazaré: Prólogo, a infância de Jesus

Quis o Santo Padre Bento XVI dar como presente de Natal a toda a Igreja e

a quantos procuram o rosto de Deus o último volume da sua trilogia sobre

Jesus de Nazaré. Trata-se, no dizer do próprio autor, não da conclusão

mas do prólogo da mesma, um escrito que nos ajuda a compreender os

outros dois, e a perceber a própria pessoa daquele que é o nosso

Salvador, o "autor e consumador da nossa fé", como afirma a Carta aos

Hebreus (Heb 12,2).

Depois de recordarmos brevemente os objetivos do Papa ao lançar-se

nesta singular tarefa, percorramos alguns dos pontos mais constantes

deste pequeno livro, de leitura acessível a todos, e que se nos propõe em

diversos níveis, consoante a nossa diferente cultura exegético-teológica.

Como é importante na leitura de todos os livros, tomemos a atitude de

quem dialoga com o respetivo autor, deixando que ele nos conduza pelo

caminho que connosco procura percorrer, colocando de lado eventuais

preconceitos, seja a respeito daquele que lemos, seja a propósito do

próprio Jesus, cujas narrações da infância, características dos evangelistas

Mateus e Lucas, são aqui apresentadas, não numa mera leitura transversal

e concordista, mas mostrando a razoabilidade dos escritos, na sua

especificidade.

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1. Os objetivos do Papa

Recordemos então, ainda que rapidamente, os objetivos iniciais que

Joseph Ratzinger tinha em mente quando iniciou esta empresa admirável,

tendo sobretudo em conta as inúmeras tarefas que, enquanto Supremo

Pastor da Igreja, lhe estão confiadas.

Em primeiro lugar, não esqueçamos que estes três volumes são fruto de

uma longa investigação, iniciada bem antes da sua eleição para a Cátedra

de Pedro, em 19 de Abril de 2005, e que têm a preocupação em mostrar,

que a figura de Jesus, tal como nos é apresentada pelos quatro

evangelhos, se lidos no seio da Tradição da Igreja, e usando alguns dos

mais recentes e sérios trabalhos exegéticos, é mais coerente e credível

que aquela outra, apresentada por alguns leitores do Novo Testamento,

que, a par da sua erudição em exegese, procuram, mais que tornar Jesus

acessível ao homem contemporâneo, afirmar o seu ponto de vista muito

particular, bem longe do sentir eclesial, senão mesmo abertamente contra

ele, justificando desse modo as opções existenciais e/ou teológicas que

tomaram por conta própria ou por força de circunstâncias da sua vida.

Nos três volumes de Jesus de Nazaré, o Jesus dos evangelhos surge, ao

contrário, com toda a sua razoabilidade e grandeza, ao mesmo tempo que

não se deixa encarcerar por opiniões, métodos de leitura, técnicas

artificiais, conducentes não tanto a torná-lo fonte de vida, quanto,

sobretudo, a mostrar a originalidade e a pretensa genialidade do perito,

mesmo que pagando o preço de tornar Jesus num entre muitos.

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Aliás, não é por acaso que, após o que se convencionou chamar a "terceira

investigação sobre o Jesus histórico" (aquela que, aceitando embora a

possibilidade de encontrar a pessoa histórica de Jesus de Nazaré nos

escritos evangélicos, O procura diluir no seio dos usos e costumes

judaicos, fazendo dele um homem entre muitos, e recusando por isso

todo o seu significado salutar, quer dizer, toda e qualquer relação salvífica

da pessoa de Jesus com os seres humanos doutros tempos e lugares e,

consequentemente, todo o caminho dogmático e doutrinal que, de um

modo espontâneo e a partir da pessoa histórica do Nazareno foi sendo

empreendido pela Igreja) – não é pois por acaso, dizíamos, que estas

obras de Joseph Ratzinger deram já início, na investigação exegética, a

uma chamada "quarta investigação sobre o Jesus histórico"1, que parte do

princípio de que “o verdadeiro conhecimento de Jesus nos é dado pela

recordação da Igreja à luz do Espírito”2, e que, deste modo, os escritos

evangélicos apenas fazem verdadeiro sentido no seio dessa recordação

eclesial.

Uma outra característica destas obras do atual Papa – que, como ele teve

o cuidado de recordar no final da introdução ao primeiro volume, não

constituem "Magistério", mas tão-somente o fruto da sua procura pessoal

e eclesial do rosto de Jesus3 – é dada pelo facto de o ponto de partida para

a leitura dos escritos evangélicos ser aquele mesmo que é também central

para o próprio ato de fé, ou seja: Deus não se encontra proibido de atuar

1 Cf. H. GALVÃO, Bento XVI. Um pensamento para o nosso tempo, Lisboa, Pedra Angular, 136.

2 Ib.

3 Cf. J. RATZINGER, Jesus de Nazaré I, Lisboa, Esfera dos Livros, 2007, 25.

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no seio da história e da criação, que são obras das suas mãos, ao contrário

do que pretende a investigação racionalista.

Para Joseph Ratzinger, é pois importante abandonar o preconceito de que

a verdade consiste apenas naquilo que a nossa razão é capaz de descobrir

por si, de conhecer absolutamente e de justificar, qual juiz da verdade. Ao

contrário, a verdade ultrapassa-nos, ainda que nos atraia e se nos mostre

como "razoável", ou seja, passível de ser compreendida pela nossa

inteligência. E nós somos seus peregrinos, que guiados pela vida de muitos

outros que nos precederam, empreendemos igualmente esse caminho

fascinante da fé.

Podemos ainda apontar um último grande objetivo para esta ousadia dum

Papa teólogo, que oferece ao mundo inteiro – crente ou não – o

testemunho pessoal da sua fé de batizado, da sua procura do rosto de

Jesus. Trata-se, precisamente, da própria ousadia desse testemunho

pessoal a favor de Jesus, no seio dum mundo (particularmente o

ocidental) cujos valores, opções, atitudes de vida se foram

progressivamente afastando de Cristo. Voltar a falar de Cristo: esse é o

desafio lançado por Bento XVI a crentes e não-crentes. E para tal, o Papa

não hesita em expor-se, ousando publicar obras sobre Jesus, sem lhes

conferir a autoridade magisterial (“cada um tem a liberdade de me

contradizer”)4 e, por isso, sujeitando-se às críticas não só dos não-crentes,

como igualmente de exegetas e teólogos, mas também de filósofos,

4 J. RATZINGER, Jesus de Nazaré I, 25.

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historiadores e todos os demais que aceitem a empresa de o ler – tudo

isso o Papa aceita, na condição que se fale de Jesus.

Aos crentes, Bento XVI é o primeiro, não só a convidar como a dar o

exemplo, para que deixem de lado o medo de se afirmarem como cristãos.

Ser de Jesus, segui-Lo, entregar-Lhe a vida, conferir ao mundo que

habitamos a forma cristã, longe de ser motivo de vergonha, é fonte de

felicidade e alegria, mesmo que no meio de sacrifícios; e oferecer ao

mundo a forma cristã consiste, afinal, não numa imposição exterior mas

antes na resposta que o próprio mundo procura, não raras vezes,

paradoxalmente, recusando-a. É que o rosto de Cristo aparece, com

frequência, de tal modo distorcido, que aos não-crentes chega não a

pessoa do Salvador mas antes a de um outro qualquer ente, mais fruto da

imaginação humana e, não raro, do pecado dos cristãos.

Aos não-crentes se destinam, igualmente, estes três livros. Em primeiro

lugar, porque também eles têm o direito de conhecer Jesus. Não com a

máscara que os preconceitos, a superficialidade da comunicação social, a

correta pseudo-cultura romancista o apresenta, mas como, com toda a

simplicidade e também ousadia, a Igreja tem por missão de mostrar.

Depois, porque, diante deste rosto de Jesus, surpreendente e razoável,

verdadeiramente humano sem deixar de ser divino, também eles são

convidados a dar a sua resposta existencial. Queremos, nós os crentes,

compreender as razões do seu não-acreditar; queremos, nós os crentes,

escutar as suas razões, e com eles procurar a Verdade. É nesta simples e

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franca atitude que o Papa se coloca, aqui como no primeiro e no segundo

volume de Jesus de Nazaré.

Este III volume constitui, como confessa Bento XVI, um "pequeno pórtico".

Nele, o Papa aponta duas etapas essenciais para quem se proponha ler os

evangelhos:

É minha convicção que uma interpretação correta [dos evangelhos] requer duas etapas. Por um lado, é preciso interrogar-se sobre o que pretendiam dizer com o texto os respetivos autores, na sua época histórica: é a componente histórica da exegese. Mas não basta deixar o texto no passado, arquivando-o, assim, entre as coisas outrora sucedidas; o verdadeiro exegeta deve, justamente, pôr-se a segunda questão: o que foi dito é verdade? Tem a ver comigo? Se sim, de que modo me diz respeito? (7)5.

Mas o Papa confessa ainda mais: "estou bem ciente de que este diálogo,

na ligação entre passado, presente e futuro, não poderá jamais dar-se por

completo, e de que toda a interpretação fica aquém da grandeza do texto

bíblico" (8).

2. A questão de Jesus de Nazaré

Olhemos agora, de um modo particular, o I capítulo da obra. Ele como que

nos oferece em resumo, todo o conteúdo do volume. O seu título é,

significativamente, retirado de Jo 19,9 quando, no meio do interrogatório

final de Jesus, Pilatos lhe coloca inesperadamente a questão: “donde és

Tu?”.

5 Passaremos a citar no corpo do texto, entre parêntesis, os números das páginas da edição portuguesa,

de Jesus de Nazaré. A infância de Jesus, Cascais, Principia, 2012.

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Digo “significativamente”, porque em Jo 19,9 não nos encontramos no

seio de qualquer relato acerca da infância de Jesus, mas antes no final da

Sua vida, e no IV evangelho, em vez de alguma parte dos primeiros

capítulos de Mateus ou de Lucas, que Jesus de Nazaré III se propõe

abordar.

É que a noção de “Pórtico”, atribuída pelo Santo Padre ao presente livro,

coloca a questão sobre a identidade de Jesus não apenas em relação aos

evangelhos da infância (tomados como “Pórtico da vida de Jesus”) como

sobre todos os evangelhos (tomada agora a noção de “Pórtico” como

entrada para o Novo Testamento) e como pergunta onde, afinal, se

resolve toda a vida cristã (tomado aqui “Pórtico” como “Porta para fé” ou

“Porta que é a fé”): é a questão acerca da pessoa de Jesus, das suas

origens e do seu ser, tomadas não como curiosidades a serem conhecidas

para o preenchimento de um qualquer cartão de identidade, mas como

profissão de fé a ser proclamada. Reconhece-o, aliás, o próprio Papa: “o

objetivo dos quatro Evangelhos é responder a estas perguntas; eles foram

escritos precisamente para lhes dar resposta” (11).

Quem é, pois, este Jesus? O simples filho do carpinteiro de Nazaré ou

Aquele outro, em que “missão” e “ser” se identificam, o Verbo por quem e

para quem tudo foi criado?

Os cultores da chamada “terceira investigação sobre o Jesus histórico” não

têm dúvidas na resposta: é o simples filho do carpinteiro, que deixou a sua

casa e provocou um movimento popular, igual a muitos outros da época,

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mas à volta de quem se elaboraram depois escritos que hoje

reconhecemos como “evangelhos”, e que se encontram na origem do que

hoje conhecemos como “cristianismo”.

Muitos outros, de um modo igualmente superficial, optam antes, de um

modo exclusivo, pelo Verbo, alfa e ómega, princípio e fim de tudo.

Não é qualquer destas a resposta dos evangelhos nem a resposta da fé – e

os três volumes de Jesus de Nazaré foram escritos com a finalidade de o

mostrar: Jesus é o homem de Nazaré no qual resplandece não apenas o

surpreendente cumprimento das promessas e palavras do Antigo

Testamento (mesmo daquelas mais obscuras e que até então pareciam

indecifráveis)6 como, sobretudo, o próprio Deus que, em primeira pessoa,

vive o drama da humanidade, o nosso drama, aquele da vida concreta de

cada um de nós.

Mas nunca o poderia fazer se fosse apenas o habitante da longínqua

Nazaré, tal como também não seria capaz disso, se não fosse o único Deus

verdadeiro. A noção de “Pórtico” deste III volume de Jesus de Nazaré

quase se identifica, pois, com a célebre “proporção trinitária” da profissão

de fé do Concílio de Calcedónia (“verdadeiro Deus e verdadeiro

homem”)7, autêntica “pedra de toque” para aferir sobre a verdade de

toda e qualquer cristologia, bem como de toda e qualquer aproximação,

mesmo espiritual, à pessoa de Jesus.

6 Cf. por exemplo JN III,43-46.

7 Cf. JN III, 48.

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Desenvolvendo esta mesma noção, encontramos a recusa de uma

distinção e divisão entre o Jesus da história e o Cristo da fé, em favor da

afirmação duma mesma e única pessoa. Ou, dito ainda de um outro modo,

encontramos o “escândalo” cristão, não de um homem que se faz Deus

quanto, sobretudo, de um Deus que é homem.

Esta “unidade” da vida de Jesus mostra igualmente como é impossível

separar nele idades, afirmações, pensamentos: é um e o mesmo Jesus

Aquele que nasce no presépio e que, de braços abertos, morre na cruz; é

um e mesmo Jesus o protagonista dos dois grandes acontecimentos

“escandalosos” para a modernidade: o parto virginal e a ressurreição (51;

61).

Mostra Bento XVI como, à questão das origens de Jesus acabam por

responder do mesmo modo, apesar das suas diferenças, as duas

genealogias evangélicas, de pouco importando a diversidade de fontes de

que se serviram os respetivos autores (Mateus e Lucas) (15): mais

importante que os nomes é a afirmação simultânea de três realidades: a)

o cumprimento em Jesus das promessas do Antigo Testamento; b) o início

em Jesus e o nascimento de uma nova humanidade; c) a universalidade de

que se reveste este mundo novo.

Com efeito, a questão de Jesus está longe de ser a interrogação acerca de

um qualquer super-homem, com mais ou menos poderes especiais: de

pouco ela interessaria, a não ser a alguém mais curioso. A questão sobre a

origem e o ser de Jesus vai muito mais longe: chega até cada um de nós,

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implica-nos. Como diz o Papa: “quem acredita em Jesus entra por meio da

fé na origem pessoal e nova de Jesus, recebe esta origem como própria”

(17-18).

Por isso mesmo, a questão se deslocou de uma pergunta acerca de um

terceiro (a pergunta sobre um certo Jesus) para ser a questão sobre a

minha própria existência, como crente e como ser humano. E isso Bento

XVI não deixa nunca de o recordar, em cada passo do livro – talvez mais

neste III volume, que nos anteriores: que tem esta narração de Jesus e da

sua infância a ver com a existência concreta de cada um, crente ou não?

Assim, a interrogação acerca da genealogia de Jesus é a questão sobre a

nossa própria genealogia: “é a fé em Jesus que nos dá uma nova

proveniência, nos faz nascer de Deus” (18), afirma o Papa.

Mas isso faz dirigir a nossa atenção para a questão central de todo o

cristianismo: aquela que afirma que Jesus é o meu Salvador. E diz a este

propósito Bento XVI:

O homem é um ser relacional; se fica transtornada a primeira relação fundamental do homem – a relação com Deus – então nada mais pode estar verdadeiramente em ordem. É desta prioridade que se trata na mensagem e na atividade de Jesus: Ele quer, em primeiro lugar, chamar a atenção do homem para o cerne do seu mal, fazendo-lhe ver: se não estiveres curado nisto, então, apesar de todas as coisas boas que possas encontrar, verdadeiramente não estás curado. Assim, na explicação do nome de Jesus dada a José no sonho, já está presente um esclarecimento fundamental sobre o modo como se há-de conceber a salvação do homem e, consequentemente, sobre qual é a tarefa essencial do portador da salvação (42).

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3. O constante diálogo entre acontecimento e palavra

Podemos agora sobrevoar o III volume de Jesus de Nazaré. Comecemos

pelo modo como Bento XVI define os chamados “evangelhos da infância”:

Mateus e Lucas – cada um à sua maneira – queriam não tanto narrar “histórias”, mas escrever história: história real, sucedida, embora certamente interpretada e compreendida com base na Palavra de Deus. Isto significa também que não havia intenção de narrar de modo completo, mas de escrever aquilo que, à luz da Palavra e para a comunidade nascente da fé, se revelava importante. As narrativas da infância são história interpretada e, a partir da interpretação, escrita e condensada (21).

Este constante diálogo entre Palavra e acontecimento está presente em

toda a obra. É uma verdadeira exemplificação daquilo que afirma o

Concílio, segundo o qual a Revelação “realiza-se por meio de ações e

palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras,

realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a

doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua

vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido” (Dei

Verbum 2). E o Santo Padre, fazendo-se eco desta afirmação conciliar,

recorda: “Entre a palavra de Deus e a história interpretadora há uma

relação recíproca: a Palavra de Deus ensina que os eventos contêm

história da salvação, que diz respeito a todos. Mas os próprios eventos

desvendam, por sua vez, a Palavra de Deus e levam a reconhecer a

realidade concreta que se esconde nos diversos textos” (21).

Para Jesus se dirigem as diferentes promessas e personagens do Antigo

Testamento. Com efeito, um dos modos como o Antigo Testamento surge

nos evangelhos é o de personagens particulares que mostram a unidade

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entre as duas Alianças (a do Sinai e aquela que se realiza na Cruz): é o caso

de Zacarias, sacerdote do Templo de Jerusalém, e sua esposa Isabel; é o

caso de João Batista; Simeão e Ana (72.75) é, de certo modo, o caso do

próprio S. José, homem justo, feliz, abençoado, confiante (38), mas

igualmente com uma particular perceção do divino e capacidade de

discernimento (39).

Mas não apenas os personagens. Também os acontecimentos evangélicos

são o cumprimento excessivo da Promessa, o cumprimento do Antigo

Testamento. De um modo particular, isso é claro em S. Mateus: ele

“mostra que as palavras antigas se tornam realidade na história de Jesus;

e, simultaneamente, mostra que a história de Jesus é verdadeira, isto é,

provém da Palavra de Deus, é sustentada e permeada por ela” (42).

O diálogo entre acontecimento e palavra atinge, no entanto, o seu cume

na conceição e nascimento virginal de Jesus, como reconhece Bento XVI:

Em Mateus e Lucas, nada encontramos duma viragem cósmica, nada de contatos físicos entre Deus e os homens: é-nos narrada uma história muito humilde e, todavia, por isso mesmo, de uma grandeza enorme. É a obediência de Maria que abre a porta a Deus. A Palavra de Deus, o seu Espírito, cria nela o Menino; cria-O através da porta da sua obediência. Assim, Jesus é o novo Adão, novo começo ab integro, ou seja, da Virgem que está plenamente à disposição da vontade de Deus. Acontece, assim, uma nova criação, que todavia está ligada ao “sim” livre da pessoa humana de Maria. Talvez se possa dizer que os sonhos secretos e confusos da humanidade a propósito de um novo início se realizaram neste acontecimento: numa realidade como só Deus podia criar (51).

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4. O início duma nova humanidade

O início duma nova humanidade tem lugar no nascimento de Jesus. Não

contudo, como se constituísse um corte com a Antiga Aliança ou não

tivesse qualquer relação com a história da humanidade no seu todo.

Bento XVI recorda, aliás, que o nascimento de Jesus em Belém se situa “no

quadro da grande história universal” (53), em particular no seio daquilo a

que hoje chamaríamos uma “primeira globalização”, “uma grande área

que vive em paz, onde os bens de todos podem ser registados e postos ao

serviço da comunidade”, quase condição para que no mundo entre “uma

mensagem universal de salvação” (54). É no seio desta “paz romana”,

governada por um imperador que queria ser considerado como “salvador”

e garante da paz universal, que tem lugar o nascimento de Jesus.

Este não surge “naquele indefinido ‘uma vez’ típico do mito; mas pertence

a um tempo que se pode datar com precisão, e a um ambiente geográfico

exatamente definido” (58) de tal modo que, em Jesus, se tocam o

concreto e o universal: “o Logos eterno fez-se homem” (58). Assim, no

nascimento de Jesus entrelaçam-se história universal e história da

salvação. Mas é para o verdadeiro Salvador que não há lugar na cidade

dos homens: “Desde o seu nascimento – diz o Papa – Jesus não pertence

àquele ambiente que, aos olhos do mundo, é importante e poderoso; e

contudo é precisamente este homem irrelevante e sem poder que se

revela como o verdadeiramente Poderoso, como Aquele de quem, no fim

de contas, tudo depende” (60).

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Sem se encontrar necessariamente em contraste com a pax Augusti, a pax

Christi supera-a. Se é verdade, como afirma Bento XVI, que “à política é

absolutamente deixado o espaço que lhe é próprio e a sua própria

responsabilidade” (68), isso não significa que ela se possa divinizar e

reivindicar para si qualidades divinas (68). Ela é antes sempre relativizada

pelo Reino de Deus, que é “de caráter diferente”, como afirma o Papa:

[O Reino de Deus] não diz respeito à bacia do Mediterrâneo, nem apenas a um tempo determinado; mas tem a ver com o homem na profundidade do seu ser; abre-o para o verdadeiro Deus. A paz de Jesus é uma paz que o mundo não pode dar (cf. Jo 14,27). […] Uma coisa é óbvia: Augusto pertence ao passado, enquanto Jesus é o presente e o futuro (69).

Mas não é apenas a realidade política que se confronta com Cristo recém-

nascido. Também a sabedoria dos homens e a sua procura da verdade

através das religiões vêm à procura de sentido:

Podemos, com razão, afirmar que eles [os magos] representam o caminho das religiões para Cristo, bem como a auto-superação da ciência rumo a Ele. De certo modo, eles encontram-se na esteira de Abraão que, ao chamamento de Deus, partiu; por outro lado, encontram-se na esteira de Sócrates e do seu questionamento, para além da religião oficial, sobre a verdade maior. Neste sentido, aqueles homens são antecessores, percursores, indagadores que desafiam todos os tempos (82).

Os magos como que “representam o encaminhamento da humanidade

para Cristo, inauguram uma procissão que percorre a história inteira” (83).

E, com eles, a própria criação, simbolizada na estrela, reconhece o próprio

Criador: “não é a estrela que determina o destino do Menino, mas o

Menino que guia a estrela” (87).

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Contraditoriamente, se os estrangeiros, os afastados, O procuram, para os

“seus” Jesus parece ser apenas Alguém que perturba o quotidiano:

recusam dar-lhe lugar para nascer, ficam perturbados quando escutam a

notícia do Seu nascimento (88). Ao invés, se os homens O recusam, os

animais (que a tradição colocou no presépio como representação da

humanidade “desprovida de compreensão”, o boi e o jumento)8, ensinam-

nos a ver e a contemplar. É por isso que, afirma o Papa, “nenhuma

representação do presépio prescindirá do boi e do jumento” (62).

Mas não apenas os “desprovidos de compreensão”. Também os pastores,

os pobres, as almas simples, são os destinatários privilegiados do amor

divino, são capazes de “ser sensíveis ao chamamento de Deus através dos

sinais da Sua presença” (64), e de lhe corresponder, numa mútua

compenetração de graça e liberdade (67)9, de curiosidade e alegria (69).

5. A arca da Nova Aliança

Não podíamos terminar a apresentação deste III volume de Jesus de

Nazaré sem uma particular referência à Virgem Maria que, de uma forma

ou de outra, percorre todo o livro, num eco fiel ao modo como a própria

Virgem está presente nas narrações de infância e, sobretudo, na própria

vida da Igreja.

8 Conexão de Is 1,3 e de Hab 3,2; Ex 25,18-20.

9 Cf. JN III, 67: “A verdade é que não poderíamos amar se não fôssemos primeiro amados por Deus; a

graça de Deus sempre nos precede, abraça e sustenta. Mas é verdade também que o homem é chamado a tomar parte neste amor; ele não é um simples instrumento, sem vontade própria, da omnipotência de Deus”.

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Sendo, como o Santo Padre coloca a hipótese, uma das fontes principais

das tradições passadas a escrito nestes primeiros capítulos dos evangelhos

de Mateus e de Lucas, Maria aparece, no entanto, sem qualquer

referência sobre a sua origem (24). É uma jovem desconhecida, que habita

numa pequena povoação desconhecida, numa casa particular

desconhecida (24).

E, no entanto, é à Virgem que é enviado o Anjo; é Ela que é convidada a

alegra-se com a ação do Espírito Santo, porque nela se vão cumprir as

promessas feitas a Sião: “Maria aparece como a filha de Sião em pessoa.

As promessas que dizem respeito a Sião cumprem-se de modo inesperado

nela. Maria torna-se a arca da Aliança, o lugar duma verdadeira habitação

do Senhor”, afirma o Papa (30).

Se, num primeiro momento, perante a saudação do anjo, a Virgem se

perturba, depois reflete intimamente, deixa-se confrontar com a palavra.

Diz Bento XVI:

Maria aparece como mulher corajosa que conserva o auto-controlo mesmo diante do inaudito. Ao mesmo tempo, é apresentada como mulher de grande interioridade, que conjuga o coração e a mente e procura entender o contexto, o conjunto da mensagem de Deus. Assim, torna-se imagem da Igreja, que reflete sobre a palavra de Deus, procura compreendê-la na sua totalidade e guarda o dom da mesma na sua memória (34).

Enquanto “imagem da Igreja”, a Virgem Maria é igualmente Aquela em

quem se realiza, de um modo singular o caminho do crente, que tendo

encontrado o Verbo, deixa que Ele transforme cada dia da sua existência

num caminho de fé.

Page 17: Jesus de Nazaré: Prólogo, a infância de Jesusmediaserver2.rr.pt/NEWRR/jesus-de-nazarac560627bd.pdfAos crentes, Bento XVI é o primeiro, não só a convidar como a dar o exemplo,

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Di-lo o próprio Papa, por exemplo, ao referir-se à reação de Maria e José

após o reencontro com Jesus no Templo, quando este lhes responde:

“Não sabíeis que devo estar nas coisas do Pai?”:

São Lucas descreve a reação de Maria e José às palavras de Jesus com duas afirmações: “Mas eles não compreenderam as palavras que lhes disse” e, ainda, “sua Mãe guardava todas estas coisas no seu coração” (Lc 2,50.51). A palavra de Jesus é grande demais para essa altura; a própria fé de Maria é uma fé “a caminho”, uma fé que repetidas vezes se encontra na escuridão e, atravessando a escuridão, deve amadurecer. Maria não compreende as palavras de Jesus, mas guarda-as no seu coração, onde as faz chegar lentamente à maturação. As palavras de Jesus nunca cessam de ser maiores que a nossa razão; superam, sempre de novo, a nossa inteligência. A tentação de as reduzir e manipular, para fazê-las entrar na nossa medida, é compreensível; de uma reta exegese faz parte, precisamente, a humildade de respeitar esta grandeza, que muitas vezes nos supera com as suas exigências, e não reduzir as palavras de Jesus com a pergunta sobre aquilo de que podemos crê-Lo capaz. Ele considera-nos capazes de grandes coisas. Crer significa submeter-se a esta grandeza e crescer pouco-a-pouco rumo a ela. Nisto, Maria é deliberadamente apresentada por Lucas como aquela que crê de modo exemplar: “Feliz de Ti que acreditaste”, dissera-lhe Isabel (Lc 1,45). Com a observação, repetida duas vezes na narrativa da infância, de que Maria guardava as palavras no seu coração (Lc 2,19.51), Lucas remete – como se disse – para a fonte, onde bebe a sua narração. Ao mesmo tempo, Maria aparece não só como a grande crente, mas também como a imagem da Igreja, que guarda a Palavra no seu coração e a transmite (104-105).

Terminada esta trilogia sobre Jesus, é possível que o próprio Santo Padre

entenda que não fará mais sentido publicar outros livros de reflexão

bíblico-teológica e deixar que o seu pensamento se expresse apenas na

sua dimensão magisterial.

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Esperemos que tal não suceda, e que o Papa Bento XVI continue a

encontrar energias físicas suficientes para, de tempos-a-tempos, oferecer

à Igreja e ao mundo, mais alguns volumes onde o pensar teológico se

apresenta como desafio ao aprofundamento da fé ou ao simples pensar

humano.

+ Nuno, Bispo Auxiliar de Lisboa

3 de Dezembro de 2012