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A EXPERIENCIA ETNOGRAFICA: antropologia e literatura no seculo XX Clifford considera como seus nativos, assim como seus informantes (...), .05antrop610gos (...) Estamos sendo observados e inscritos. Paul Rablnow, Representations are social facts. 1a reimpressao Editora UFRJ 2002 o frontispfcio de 1724 do livro Moeurs des sauvages america ins, do Padre Lafitau, retrata 0 etn6grafo como umajovem mulher sentada numa escrivaninha em meio a objetos do Novo Mundo, da Grecia C1<lssicae do Egito. Ela esta acornpanhada por dois querubins - que ajudam na tarefa de compara9ao - e pel a barbuda personagem do Tempo, que aponta para uma cena que representa a fonte primordial da verdade brotando da pen a do eseritor. A irnagern para a qual a j overn rnulher dirige seu olhar e a de urn conjunto de nuvens onde esmo Adiio, Eva e a serpente. Acirna deles estao 0 homem e a mulher redimidos do Apocalipse, de cada lade de urn triangulo que irradia luz e ostenta a inscri9ao Yahweh, em alfabeto hebraico. Jei em Os argonautas do Pacifico Ocidentalo frontispfcio e uma fotografia com 0 tftulo "Urn ate cerimonial do kula". Urn eolar de conchas esta sendo oferecido a urn chefe trobriandes, que esta de pe na porta de sua casa. Atnis do homem que presenteia o colar, esta uma fileira de seis jovens, curvados em reverencia, urn dos quais sopra uma concha. Todas as personagens esHio de organiza~ao e revisao tecnica de JOSE REGINALDO SANTOS GON<;:ALVES

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A EXPERIENCIA ETNOGRAFICA:antropologia e literatura no seculo XX

Clifford considera como seus nativos, assim como seus informantes(...), .05antrop610gos (...) Estamos sendo observados e inscritos.

Paul Rablnow, Representations are social facts.

1a reimpressaoEditora UFRJ

2002

o frontispfcio de 1724 do livro Moeurs des sauvagesamerica ins, do Padre Lafitau, retrata 0 etn6grafo como umajovemmulher sentada numa escrivaninha em meio a objetos do NovoMundo, da Grecia C1<lssicae do Egito. Ela esta acornpanhada pordois querubins - que ajudam na tarefa de compara9ao - e pel abarbuda personagem do Tempo, que aponta para uma cena querepresenta a fonte primordial da verdade brotando da pen a doeseritor. A irnagern para a qual a jovern rnulher dirige seu olhar e ade urn conjunto de nuvens onde esmo Adiio, Eva e a serpente. Acirnadeles estao 0 homem e a mulher redimidos do Apocalipse, de cadalade de urn triangulo que irradia luz e ostenta a inscri9ao Yahweh,em alfabeto hebraico.

Jei em Os argonautas do Pacifico Ocidentalo frontispfcioe uma fotografia com 0 tftulo "Urn ate cerimonial do kula". Urneolar de conchas esta sendo oferecido a urn chefe trobriandes,que esta de pe na porta de sua casa. Atnis do homem que presenteiao colar, esta uma fileira de seis jovens, curvados em reverencia,urn dos quais sopra uma concha. Todas as personagens esHio de

organiza~ao erevisao tecnica

deJOSE REGINALDO SANTOS GON<;:ALVES

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perfil, com a atenc;:aoaparentemente COl1cc..mtrauano rito da troea,urn evento importante na vida melanesia. Mas a lun olhar maisatento parece que urn dos trobriandeses que lie curvam csta olhandopara a camera.

A alegoria de Lafitau e menos familiar: seu uutor transereve,nae cria. Diferentemente da foto de Malinowski, a gravura nao faznenhuma referencia a experieneia emografica - apesar dos cincoanos de pesquisa de Lafitau entre as mohawks, uma pesquisa quelhe granjeou urn lugar de homa entre os pesquisadores de campode qualquer gerac;:ao.Seu relata e apresentado nao como urn produtode observac;:aode primeira mao, mas como urn produto da escritaem urn gabinete repleto de objetos. 0 frontispfcio de Os argonautas,como toda fotografia, afirma uma presenc;:a- a da cena diante daslentes; e sugere tambem outra presenc;:a- a do em6grafo elaborandoativamente esse fragmento da realidade trobriandesa. 0 sistema detroca kula, tema do livro de Malinowski, foi transformado em algoperfeitamente visfvel, centrado numa estrutura depercepc;:ao,enquanto 0 olhar de urn dos participantes redireciona nossa atenc;:aoPIIJ'll 0 ponto de vista do observador que, como leitores, partilhamosn1ll1 0 ctn6gmfo e sua camera. 0 modo predominante e modemodc 1I111oridudc no trabalho de campo e assim expresso: "Voce est:iILL. porque eu estava hi".

Este estudo trac;:a'aformac;:aoe a desintegrac;:aoda autoridadeetnografica na antropologia social do seculo XX. Nao e umaexplicac;:ao completa, nem est:i baseada numa teoria plenamentedesenvolvida da interpretac;:ao e da textualidade etnogriifica.! Oscontomos de tal teoria sao problematicos, uma vez que a pr:iticade representac;:ao intercultural est:i hoje mais do que nunca emcheque. 0 dilema atual esta associado a desintegrac;:ao e aredistribuic;:ao do pedeI' colonial nas decadas posteriores a 1950, eas repercussoes das teorias culturais radicais dos anos 60 e 70.Ap6s a reversao do olhar europeu em decorrencia do movimentoda "negritude", ap6s a crise de conscience da antropologia emrelac;:aoa seu status liberal no contexto da ordem imperialista, eagora que 0 Ocidente nao podemais se apresentar como 0 unico

provedor de conhecimento antropol6gico sobre 0 outro, tomou-senecessario imaginar urn mundo de etnografia generalizada. Com aexpansao da comunicac;:aoe da influencia intercultural, as pessoasinterpretam os outros, e a si mesmas, numa desnorteante diversidadede idiomas - uma condic;:aoglobal que Mikhail Bakhtin (1953)chamou de "heteroglossia'',2 Este mundo ambfguo, multi vocal,tom a cada vez mais diffcil concebera diversidade humana comoculturas independentes, delimitadas e inscritas. A diferenc;:ae uinefeito de sincretismo inventivo. Recentemente, trabalhos como Q

de Edward Said -Orientalismo (1978) - eo de Paulin Hountondji- Sur la "philosophie" africaine (1977) - levantaram duvidas.radicais sobre os procedimentos pelos quais grupos humanosestrangeiros podem ser representados, sem propor, de modo definidoe sistematico, novas metodos au epistemologias. Tais estudossugerem que, se a escrita emogrlifica nao pode escapar inteiramentedo usa reducionista de dicotomias e essencias, ela pode ao menoslutar conscientemente para evitar representar "outros" abstratos ea-hist6ricos. E mais do que nunca crucial para os diferentes povosformar imagens complexas e concretas uns dos outros, assim comodas relac;:oesde poder e de conhecimento que os conectam; masnenhum metoda cientffico soberano ou instancia etica pode garantira verdade de tais imagens. Elas sac elaboradas - a crftica dosmodos de representac;:aocolonial pelo menos demonstrou bem isso- a partir de relac;:oeshist6ricas especfficas de dominac;:aoe dialogo.

As experiencias de escrita etnografica analisadas neste textonao seguem nenhuma direc;:aoclaramente reformista ou evoluc;:ao.Elas sac invenc;:oesadhoc, e nao podem ser encaradas em termosde uma analise sistematica da representac;:aopas-colonial. Elas sactalvez melhor compreendidas como componentes daquela "caixade ferramentas" da teoria engajada sugerida pOl'Gilles Deleuze eMichel Foucault:

A noc;:aode teoria como uma especie de caixa de ferra-mentas significa: (i) que a teoria a ser construfda nao eurn sistema, mas sim urn instrumento, uma 16gica da

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especificidade das relas:oesde poder e das lutas em tomedelas; (ii) - que esta investiga9ao s6 pode se desenvolverpasso a passe na baseda refIexao(quesera necessariamentehist6rica em alguns de seus aspectos) sobre determinadassituas:oes.(Foucault, 1980:145; ver tambem 1977:208)

Podemos contribuir para uma reflexao pnitica sobre a represen-ta<;aointercultural fazendo urn inventano das melhores, ainda queimperfeitas, abordagens disponiveis. Destas, 0 trabalho de campoetnografico permanece como urn metoda notavelmente sensivel.A observa<;ao participante obriga seus praticantes a experimentar,tanto em termos ffsicos quanta intelectuais, as vicissitudes datradu<;ao. Ela requer urn arduo aprendizado lingtifstfco,. algumgrau de envolvimento direto e conversa<;ao, e freqtientementeurn "desarranjo" das expectativas pessoais e culturais. E claroque M urn mito do trabalho de campo. A experiencia real, cer-cada como e pelas contingencias, raramente sobrevive a esseideal; mas como meio de produzir conhecimento a partir de urnintenso envolvimento intersubjetivo, a pratica da etnografia111111116111um ccrlo status exemplar. Alem disso, se 0 trabalho deCIIIIlPO Coi durante algum tempo identificado com uma discipli-1111 singulnrmentc ocidentul e uma ciencia totalizante, a "Antro-[Jologia", tuis associa<;oes nao sac necessariamente perma-I1Cl1tcs.Os atuais estilos de descri<;ao cultural sac historicamentelimitados e estao vivendo importantes metamorfoses.

o desenvolvimento da ciencia etnografica nao pode, emultima analise, ser compreendido em separado de urn debatepolftico-epistemologico mais geral sobre a escrita e a representa<;aoda alteridade. Nesta discussao, porem, mantive 0 foco na antro-pologia profissional, e especificamente na etnografia a partir da .decada de 50.3 A atual crise - ou melhor, dispersao - da autoridadeetnognifica torn a possivel marcar em linhas gerais urn perfodo,limitado pelos anos de 1900 e 1960, durante 0 qual uma novaconcep<;ao de pesquisa de campo se estabeleceu como a normapara a antropologia americana e europeia. 0 trabalho de campo

intensive, realizado por especialistas treinados na universidade,emergiu como uma fonte privilegiada elegitimada de dados sobrepovos ex6ticos. Nao se trata aqui da,dominancia de urn tinicometoda de pesquisa. (Compare-se Griaule, 1957, com Malinowski,1922: cap. 1). AMm disso, a hegemonia do trabalho de campo foiestabelecida nos Estados Unidos e na Inglaterra antes e de formamais difusa do que na Fran<;a. Os exemplos pioneiros de FranzBoas e da expedi<;ao ao estreito de Torres foram seguidos apenasbem mais tarde pela funda<;ao do Institut d'Ethnologie em 1925 epela famosa Missao Dakar- Djibouti de 1932 (Karady, 1982; Jamin,1982a; Stocking, 1983). Apesar disso, em meados da decada de30 ja se pode falar de urn consenso interna~ional em desenvol-vimento: as abstra<;oes antropologicas, para serem validas, deviamestar baseadas, sempre que possfvel, em descri<;oes culturaisintensivas feitas por academic os qualificados. Neste momento, °novo estilo havia se tornado popular, sendo institucionalizado ematerializado em pniticas textuais especfficas.

Recentemente, tornou-se possivel identificar e assumir umacerta distancia em rela<;ao a essas conven<;oes.4 Se a etnografiaproduz interpreta<;oes culturais atraves de intensas experienciasde pesquisa, como uma experiencia incontrolavel se transformanum relato escrito e legftimo? Como, exatamente, urn encontrointerculturalloquaz e sobredeterminado, atravessado por rela<;oesde poder e propositos pessoais, pode ser circunscrito a uma versaoadequada de urn "outro mundo" mais ou menos diferenciado,composta por urn autor individual?

Analisando esta complexa transforma<;ao, deve-se ter emmente 0 fato de que a etnografia esta, do come<;o ao fim, imersana escrita. Esta escrita inclui, no mfnimo, uma tradu<;ao daexperiencia para a forma textual. 0 processo e complicado pelaa<;aode mtiltiplas subjetividades e constrangimentos polfticos queestao acima do controle do escritor. Em resposta a estas for<;as, aescrita etnografica encena uma estrategia especffica de autoridade.Essa estrategia tern classicamente envolvido uma afirma<;ao, naoquestionada, no sentido de aparecer como a provedora da verdade

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lembrar nesse sentido seus ataques a competencia de seus com~petidores no campo. POl' exemplo, 0 magistrado colonial AlexRentoul, que teve a temeridade de contradizer as descobertas daciencia sobre as concepyoes trobriandesas de paternidade, foiexcomungado nas paginas da revista Man, por sua perspectivanao~ profissional, judiciaria (police court perspectiv~) (vel'Rentoul, 1931a,b; Malinowski, 1932). 0 ataque ao amadorismono campo foi levado ainda mais longe pOl'A. R. Radcliffe-Brown,que, como Ian Langham mostrou, pas sou a tipificar 0 profissionalda ciencia, descobrindo rigorosas leis sociais (Langham, 1981:cap. 7). 0 que emergiu durante a primeira metade do seculo XXcom 0 sucesso do pesquisador de campo profissional foi uma novafusao de teoria geral com pesquisa empirica, de analise culturalcom descriyao etnografica.

o te6rico-pesquisador de campo substituiu uma divisao maisantiga entre 0 "man on the spot" (nas palavras de James Frazer) eo soci6logo ou antrop610go na metr6pole. Esta divisao de trabalhovariava em diferentes tradiyoes nacionais. Nos Estados Unidos,por exemplo, Morgan tinha conhecimento pessoal de ao menosalgumas das culturas que serviram como material para suas sfntesessociol6gicas; e Boas foi pioneiro em fazer 0 trabalho de campo in-tensivo condiyao sine qua non de urn discurso antropol6gico serio.Em termos gerais, no entanto, antes de Malinowski, Radcliffe-Brown e Mead terem estabelecido com sucesso a norma do scholar,treinado na universidade, testando e fazendo teoria a partir depesquisa de primeira mao, prevalecia uma economia bem diferentedo conhecimento etnografico. POl' exemplo, The melanesians(1891), de R. H. Codrington, e uma detalhada compilayao defolclore e costumes, elaborada a partir de urn perfodo relativamentelongo de pesquisa como missiomlrio e baseada em coiabora9aOintensiva de tradutores e informantes nativos. 0 livro nao estaorganizado em torno de uma "experiencia" de trabalho de campo,nem propoe uma hip6tese interpretativa unificada, funcional,hist6rica ou quaisquer outras. Ele se limita a generaliza<;5es depequeno alcance e a compila<;ao de urn ecletico conjunto de

no texto. Vma complexa experiencia cultural 6 cl1t1l1ciadapor urnindivfduo: We the Tkopia, de Raymond Firth; Nous avons mangefa foret, de Georges Condominas; Coming of age in Samoa, deMargaret Mead; Os nuer,de E. E. Evans-Pritchard.

A discussao que se segue localiza, em primeiro lugar, estaautoridade historicamente, dentro do desenvolvimento de umaciencia da observayao participante no seculo XX. A seguir, elaelabora uma erftica das suposi90es subjacentes a esta autoridade euma resenha de praticas textuais emergentes. Estrategias altern a-tivas de autoridade etnografica podem ser visualizadas em recentesexperiencias feitas por etn6grafos que conscientemente rejeitamcenas de representa9ao cultural ao estilo do frontispfcio do livrode Malinowski. Diferentes versoes seculares daquela repleta ofi-cina de eserita de Lafitau estao surgindo. Nos novos paradigm asde autoridade 0 escritor nao esta mais fascinado por personagenstranscendentes - uma deidade hebraico-crista, ou seus substitutos110seculo XX, 0 Homem e a CuItura. Nada permaneceu daquele'tundro celestial, a nao ser a imagem desbotada do antrop610go1111111cspelho. 0 silencio da oficina etnografica foi quebrada -pOl' il1sistentes vozes heteroglotas e pelo rufdo da escrita deoUlI'nli penus:'

Ao rim do seculo XIX, nada garantia, a priori, 0 status doctl16gmfo como 0 melhor interprete da vida nativa - em oposi9aOao viajante, e especialmente ao missionario e ao administrador,alguns dos quais haviam estado no campo pOl'muito mais tempo epossuiam melhores contatos e mais habilidade na lfngua nati va. 0desenvolvimento da imagem do pesquisador de campo na America,de Frank Hamilton Cushing (urn excentrico) a Margaret Mead (umafigura nacional), e significativo. Durante este perfodo, uma formaparticular de autoridade era criada - uma autoridade cientificamentevalidada, ao mesmo tempo que baseada numa singular experienciapessoal. Durante a decada de 20, Malinowski desempenhou urnpapel central na legitima91io do pesquisador de campo, e devemos

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informac;oes. Codrington esta agudamcntc conscicnte daincompletude de seu conhecimento, acreditando que a verdadeiracompreensao da vida nativa come9a apenas depois de uma decada,ou algo assim, de experiencia e estudo (p. vi-vii). Esta compreensaoda dificuldade de se captar 0 mundo de outros povos - os muitosanos de aprendizado e desaprendizado necessarios, os problemaspara se adquirir uma competencia lingiHstica suficientemente boa- tendia a dominar os trabalhos da gerac;ao de Codrington. Taissuposic;oes seriam em breve desafiadas pelo confiante relativismocultural do modelo malinowskiano. Os novos pesquisadores decampo se distinguiam nitidamente dos anteriores "men on the spot"- 0 missiomlrio, 0 administrador, 0 comerciante e 0 viajante - cujoconhecimento dos povos indfgenas, argumentavam, nao estavainformado pelas melhores hip6teses cientfficas oU'poruma suficienteneutralidade.

Antes do surgimento da etnografia profissional, escritoresG0ll10 J. F. McLennan, John LubbockeE. B.1)rlorhaviam tentadocontrolar a C}ualidadedos relatos sohre os quais estavam baseadassuns sfntescs nntropol6gicas. Eles 0 fizeram por meio do roteiro doNot",\, and quuies, e, no caso de 1)rlor, atraves do cultivo de rela90esdt1ll'llbnlho prolongadas com pesquisadores sofisticadosno campo,111111 \,lll1110 0 missionario Lorimer Fison. Ap6s 1883, como recem-fllllllt\lIdo pl'Ol~ssorconferencista de Antropologia em Oxford, 1)rlor~1I1il11ulouII coleta sistematica de dados etnogrMicos por profissio-nllis quulificados. 0 United States Bureau ofEthnology,ja devota-do n essu tarefu, fomeceu urn modele. 1)rlor participou ativamenteda funda9uo de um comite sobre as tribos do noroeste do Canada.o primeiro agente do comite na area foi E. F. Wilson, 0 veteranomissiomirio, com 19 anos de experiencia entre os ojibwa. Ele foilogo substitufdo por Boas, urn ffsico em processo de mudan9apara a etnografia profissional. George Stocking argumentou, deforma convincente, que a substitui9ao de Wilson por Boas

cientistas naturais treinados na academia, definindo-sea si mesmos como antrop6logos, e envolvidos tambemna fonnula<;:uoe na avalia<;:uoda teona antropol6gica.(1983:74)

marca 0 iniciode uma importantefase no desenvolvimentodo metoda etnognifico britanico: a coleta de dados por

Com 0 pioneiro survey de Boas e a emergencia, na decadade 1890, de outros pesquisadores de campo que eram cientistasnaturais, como A. C. Haddon e Baldwin Spencer, 0 movimento emdi~e9ao a etnografia profissional estava a caminho. A expedic;aode 1899 ao estreito de Torres pode ser encarada como a culminanciado trahalho desta "gerac;ao intermediaria", como Stocking achamou. 0 novo estilo de pesquisa era c1aramente diferente daqueledos missioI1<irios e outros amadores no campo, e parte de umatendencia geral que vinha desde Tylor, de "elaborar de modo maisarticulado os componentes empfricos e te6ricos da pesquisaantropol6gica" (1983:72).

No entanto, 0 estabelecimento da observac;ao participanteintensiva como uma norma profissional teria de esperar as hostesmalinowskianas. A "gerac;ao intermediaria" de etn6grafos nao viviatipicamente num s6local por urn ana ou mais, dominando a linguanativa e sofrendo uma experiencia de aprendizado pessoalcomparavel a uma iniciac;:ao.Bies nao falavam como se fizessemparte daquela cultura, mas mantinham a atitude documentaria,observadora, de urn cientista natural. A principal excec;ao antesda terceira decada do seculo XX, Frank Hamilton Cushing,permaneceu urn exemplo isolado. Como Curtis Hinsley sugeriu,a longa pesquisa de primeira mao sobre os zunis, realizada porCushing, sua quase absorc;ao pelo modo de vida dos nativos,"despertou problemas de verificac;:ao e explicac;:ao... Uma comu-nidade de antropologia cientffica nos mol des das outras cienciasrequeria 0 uso de uma linguagem comum de discurso, canais decomunicac;ao regular, e pelo menos urn consenso mfnimo parajulgar urn metodo" (1983:66). 0 conhecimento intuitivo e exces-sivamente pessoal de Cushing, a respeito dos zuni, nao podiaoferecer autoridade cientffica.

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Em termos esquematicos, antes do final do seculo XIX, aetn6grafo e 0 antrop6logo, aquele que descrevia e traduzia oscostumes e aquele que era 0 construtor de teorias gerais sabre ahumanidade, eram personagens distintos. (Vma perceP9ao clarada tensao entre etnografia e antropologia e importante para que seperceba corretamente a uniao recente\ e talvez temporaria, dos daisprojetos). Malinowski nos da a imagem do novo "antrop610go":acocorando-se junto a fogueira; olhando, ouvindo e perguntando;registrando e interpretando a vida trobriandesa. 0 estatuto Hterariodesta nova autoridade esta no primeiro capitulo de Os argonautas,com suas fotografias, ostensivamente dispostas, da. tenda doetn6grafo, armada entre as casas da aldeia de Kiriwina. A maisagudajustifica9ao metodol6gica para o·novo model a e encontradano Andaman islanders de Radcliffe-Brown (1922). Os dois livrosforam publicados com a diferen9a de pm ano de urn para outro. Eembora seus autores desenvolvam estilos de trabalho de campo evisoes sobre a ciencia cultural bem diferentes, ambos os textosfornecem argumentos explfcitos para a autoridade especial doan trop6l og a-ctno grafo.

Malinowski, como mostram suas notas para a crucialIntroduyno de Os argonautas, estava muito preocupado com 0

problemll ret6rico de convencer seus leitores de que as fatos quec,slnvn colocando diante deles eram objetivamente adquiridos, naocl'inc;ocs subjetivas (Stocking, 1983:105). Alem disso, ele estavatotalmente ciente de que "na etnografia, e freqiientemente imensaa distancia entre a apresentaqao final dos resultados da pesquisa eo material bruto das informaqoes coletadas pelo pesquisadoratraves de suas pr6prias observa90es, das asser90es dos nativos,do caleidosc6pio da vida tribal" (Malinowski, 1922:3-4). Stockinganalisou de forma elegante as varios artiffcios literarios de Osargonautas (suas constru90es narrativas· envolventes, a usa davoz ativa no "presente etnografico", as dramatiza90es encenadasda participa9ao do autor em cenas da vida trobriandesa), tecnieasque Malinowski usou para que "sua pr6pria experiencia quanta a

experiencia dos nativos [pudesse] se tomar tambem a experienciado leitor" (Stocking, 1983:106; ver tambem Payne, 1981). Osproblemas de verifica9ao e explica9ao que haviam relegadoCushing a margem da vida profissional rondavam as preocupa90esde Malinowski. Esta ansiedade se reflete na massa de dados contidaem Os argonautas, suas 66 ilustra90es fotograficas, e a agoracuriosa "Usta cronol6gica dos eventos kula testemunhados peloautor", a con stante altemancia entre a descri9aO impessoal docomportamento tfpieo e decIara90es do genero "eu testemunhei..,"e "Nosso grupo, navegando a partir do norte ...".

Os argonautas sac uma complexa narrativa, simul-taneamente sobre a vida trobriandesa e sobre 0 trabalho de campoetnognlfico. Ela e arquetipiea do conjunto de etnografias que comsucesso estabeleceu a validade cientifica da observa9ao par-ticipante. A hist6ria da pesquisa construida em Os argonautas,no popular trabalho de Mead sobre Samoa e ern We the Tikopia,tomou-se uma narrativa implfcita subjacente a todos os relatosprofissionais sobre mundos ex6tieos. Se as etnografias subse-qiientes nao precisavam incluir relatos de campo desenvolvidos,foi porque tais relatos eram supostos, a partir de uma decIara9aoinicial tal como, por exemplo, a simples frase de GodfreyLeenhardt no infcio de Divinity and experience (1961 :vii): "Estelivro e baseado num trabalho de dois anos entre os dinka, noperfodo entre 1947 e 1950".

Na decada de 20, 0 novo te6rico-pesquisador de campodesenvolveu urn novo e poderoso genero cientffico e literario, aetnografia, uma descri9ao cultural sintetica baseada na observa9aoparticipante (Thornton, 1983). 0 novo estilo de representa9aodependia de inova90es institucionais e metodol6gicas que con-tomavam os obstaculos a urn rapido conhecimento sobre outrasculturas que haviam preocupado os melhores representantes dagera9ao de Codrington. Essas inova90es podem ser brevementeresumidas.

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Primeiro, apersona do pesquisador de.cumpo f'oi legitimada,tanto publica quanta profissionahncntc. No dlllu(nio popular,figuras de proa, tais como Malinowski, Mead c Marcel Griaule,transmitiram uma vis8.o da etnografia como cicntificamenterigorosa ao mesmo tempo que her6ica. 0 etn6graCo profissionalera treinado nas mais modemas tecnicas analfticas e modos deexplica98.0 cientffica. Isto the conferia, no campo, uma vantagemsobre os amadores: 0 profissional podia afirmar ter acesso ao cemede uma cultura mais rapidamente, entendendo suas institui95es eestruturas essenciais. Uma atitude prescrita de relativismo culturaldistinguia 0 pesquisador de campo de missiomlrios, adm'inis-tradores e outros, cuja vis8.osobre os nativos era, presumivelm~nte,menos imparcial, e que estavam preocupados com os problt;~maspolftico-administrativos ou com a convers8.o. Alem da sofistica9aocientffica e da simpatia relativista, uma variedade de padroesnormativos para a nova forma de pesquisa surgiu: 0 pesquisadorde campo deveria viver na aldeia nativa, usar a lfngua nativa, ficarurn perfodo de tempo suficiente (mas raramente especificado),investigar certos temas chissicos, e assim pOl'diante.

Segundo, era tacitamente aceito que a etnografo de novoestilo, cuja estadia no campo raramente excedia a dois anos, emais frcqiientemente era bem mais curta, podia eficientemente"usar" as lfnguas nativas mesmo sem domina-Ias. Num signifi-cativo artigo de 1939, Margaret Mead argumentava que 0 etno-grafo, seguin do a prescri9ao de Maiinowski de evitar os interpretese conduzindo a pesquisa na lingua nativa, na verdade nao precisavademonstrar fluencia nessa lingua, mas podia "usa-Ia" apenas parafazer perguntas, manter contato e de forma geral participar daoutra cultura, enquanto obtinha bons resultados de pesquisa emareas particulares de concentra9ao. Isto com efeito justificava apropria pratica de Margaret Mead, que se realizava a partirde estadias relativamente curtas e com urn foco em dominiosespecificos, tais como "inffu1cia" ou "personalidade", focos estesque funcionariam como "tipos" para uma sfntese cultural. A atitude

de Mead em rela98.0 ao "uso" da lfngua era amplamentecaractenstica de uma gera98.0 etnografica que podia, por exemplo,reconhecer como legitimo urn estudo intitulado Os nuer, que erabaseado em apenas onze meses de dificH pesquisa. 0 artigo deMead provocou uma aguda resposta de Robert Lowie (1940), queescrevia a partir da primeira tradi9ao boasiana, mais filo16gicaem sua orienta9ao. Mas sua a93.0era de retaguarda; de forma geral,ja havia consenso quanta ao ponto segundo 0 qual uma pesquisalegitima poderia na pratica ser realizada com base em urn au daisanos de farniliaridade com uma lfngua estrangeira (muito embora,como Lowie sugeria, ninguem daria credito a uma tradu93.0 deProust que fosse baseada num conhecimento equivalente dofrances).

Terceiro, a nova etnografia era marcada por uma acentuadaenfase no poder de obwrVa98.0. A cultura era pensada como urnconjunto de comportamentos, cerimonias e gestos caracterfsticospassiveis de registro e explica98.0pOI'urn observador treinado. Meadfrisou bem este ponto (na verdade, seus pr6prios poderes de analisevisual eram extraordinarios). Como uma tendencia geral, aobservador-participante emergiu como uma norma de pesquisa.Por certo 0 trabalho de campo bem-sucedido mobilizava a maiscompleta variedade de intera90es, mas uma distinta primazia eradada ao visual: a interpreta9ao dependia da descri98.0. Ap6sMalinowski, uma suspeita generalizada em rela98.0 aos "infor-mantes privilegiados" refletia esta preferencia sistematica pelasobserva90es (met6dicas) do etn6grafo em detrimento das inter-pretac;:6es (interessadas) das autoridades nativas.

Quarto, algumas poderosas abstrac;:6es te6ricas prometiamauxiliar os etn6grafos academicos a "chegar ao ceme" de umacultura mais rapidamente do que alguem, por exemplo, queempreendesse urn inventario exaustivo de costumes e crenc;:as.Semlevar anos para conhecer os nativos, seus complexos habitos elfngua, em intimos detalhes, 0 pesquisador podia ir atnis de dadosselecionados que permitiriam a constru9ao de urn arcabou90 central,

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ou "estrutura", do todo cultural. 0 "m6todo gCllcul6gico" deRivers, seguido pelo modele de Radcliffe-Brown buseudo na n09aode "estrutura social", fornecia essa especic de atalho. Era comose alguem pudesse deduzir os termos de parentesco sem umaprofunda compreensao da lingua nativa e 0 necessario conhe-cimento contextual conveniEmtemente limitado.

Quinto, uma vez que a cultura, vista como urn todo com-plexo, estava sempre alem do a1cance numa pesquisa de curtadura9ao, 0 novo etn6grafo pretendia focalizar tematicamentealgumas institUi90es especfficas. 0 objetivo nao era contribuirpara urn completo inventario ou descri9ao de costumes, mas simchegarao todo atraves de Uttlaou mais de suas partes. Ja meneioneio privil6gio que se deu, por urn certo tempo, a estrutura" social.Urn cicIo de vida individual, urn complexo ritual como 0 circuitodo kula ou a cerim6nia do naven poderiam tambem servir, assimcomo categorias de comportamento tais como economia, poHtica,e assim por diante. Na ret6riea da nova etnografia, predominan-temente fundada na sinedoque, as partes eram concebidas comomicrocosmos ou analogias do todo. Na representa9ao de urnuniverso coerente, 0 cemmo composto por institui90es em primeiroplano, situadas contra panos de fundo culturais, adequava-se aconvenc;1'Sesliterarias realistas.

Sex to, os todos assim representados tendiam a ser sin-(,:r~nicos, produtos de uma atividade de pesquisa de curta dura9ao.o posquisador de campo, operando de modo intensivo, poderia,de forma pluus(vel, tra9ar 0 perfil do que se convencionou chamaI'"presente etnognifieo" - 0 cicIo de urn ano, uma serie de rituais,padroes de comportamento tipico. Introduzir uma pesquisahist6rica de longa dura9ao teria complicado e tornado impos-sivel a tarefa do novo estilo de trabalho de campo. Assim, quandoMalinowski e Radcliffe-Brown estabeleceram sua crftica a"hist6ria conjectural" dos difusionistas, foi muito faci! excIuir osprocess as diacronicos como objetos do trabalho de campo, comconseqiiencias que tern sido suficientemente apontadas.

Estas inova90es serviram para validar uma etnografiaeficiente, baseada na observa9ao participante cientifica. Seusefeitos combinados podem ser vistas c1aramente no que pode serconsiderado 0 tour de force da nova etnografia, Os nuer de Evans-Pritchard, publicado em 1940. Baseado em onze meses de pesquisarealizadaem condi90es quase impossfveis, Evans-Pritchard foitodavia capaz de compor urn classico. Ele chegou, como a notavelintrodu9ao do livro nos informa, ao territ6rio nuer logo ap6s umaexpedi9ao militar punitiva, respondendo a uma solicita93.0-urgentedo govemo do Sud3.o anglo-egipcio, e foi 0 objeto de intensa econstante Suspei9ao. Apenas nos poucos meses finais podeconversar efetivamente com os informantes que, conta ele, erammestres em esquivar-se de suas perguntas. Em tais circunstancias,sua monografia e uma especie de milagre.

Ao fazer proposi90es limitadas e sem fazer segredo dasdificuldades de sua pesquisa, Evans-Pritchard conseguiu apresentarseu estudo como uma demonstra93.0 da eficacia da teoria. Elefocaliza a "estrutura" social e polftica dos nuer, analisada comourn conjunto abstrato de rela90es entre segmentos territoriais,linhagens, conjuntos etanos e outros gropos mais fluidos. Esteconjunto analiticamente construfdo e representado contra urn panode fundo "eco16gico" composto por padroes migrat6rios, rela90escom 0 gado, n090es de tempo e espa90. Evans-Pritchard distingueclaramente seu metodo daquilo que ele chama de documenta9ao"fortuita" (malinowskiana). Os nuer nao e urn extenso compendiode observa90es e textos em lingua nativa ao estilo do Os argo-nautas e do Coral gardens de Malinowski. Evans-Pritchardargumenta com rigor que "os fatos s6 podem ser selecionados earticulados a luz da teoria". A singela abstra9ao de uma estruturapolitico-social oferece 0 necessaria enquadramento. Se eu foracusado de descrever fatos como exemplifica90es de minha teoria,ele entao assinala, terei sido compreendido (1969:261).

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Em Os nuer, Evans-Pritchard defende abertamente 0 poderda abstra9ao cientffica para direcionar a pesquisa e articular dadoscomplexos. 0 livro freqiientemente se apresenta mais como urnargumento do que como uma descri9ao, mas nao consistentemente:se~ argumento te6rico e cercado por evoca90es e interpreta90eshabilmente narradas e observadas sobre a vida dos nuer. Estaspassagens funcionam retoricamente como mais do que apenas"exemplifica90es", pois efetivamente envolvem 0 leitor na complexasubjetividade da observa9ao participante. Isto pode ser visualizadonum paragrafo caracterfstico, que se desenvolve atraves de umaserie de posi90es discursivas descontfnuas:

final, apresentada como a descri9ao direta de urn acontecimentotfpico (que 0 leitor agora assimila do ponto de vista do observador-participante), evoca a cena por meio das metaforas nuer sobregado. Nas oito frases do paragrafo, urn argumento sobre tradu9aotransforma-se numa fiC9aO de participa9aO e em seguida numafusao metaf6rica de descri90es culturais estrangeiras e nativas.Realiza-se, assim, a uniilo subjetiva de analise abstrata comexperiencia concreta.

Evans-Pritchard depois se afastaria da posi9ao te6ricaassumida em Os nuer, rejeitando sua defesa da "estrutura social"como urn enquadramento privilegiado. Na verdade, cada urn dos"atalhos" do trabalho de campo que enumerei anteriormente era econtinua sendo contestado. Ainda que, atraves de sua disposi9aoem diferentes combina90es, a autoridade do te6rico-pesquisadorde campo academico tenha sido estabelecida entre os anos de 1920e 1950. Esse amalgama peculiar de experiencia pessoal intensa eanalise cientffica (entendida nesse perfodo tanto como "rito depassagem" quanto como "laborat6rio") emergiu como urn metodo:a observa9ao participante. Ainda que entendido de forroas variadas,e agora questionado em muitos lugares, esse metodo continuarepresentando 0 principal tra90 distintivo da antropologia profis-sional. Sua complexa subjetividade e rotineiramente reproduzidana escrita e na leitura das etnografias.

13dificil encontrar, em ingles, uma palavra que descrevaadequadamente a posiyao social dos diel numa tribo.Chamamo-nos aristocratas, mas nao pretendemos dizerque os nuer as consideram como de grau superior pois,como ressaltamos enfaticamente, a id6ia de algu6mpredominando sobre os demais lhes repugna.No conjunto- explicaremos esta coloca9aOmais adiante - os diel ternmnis prestfgio do que posi9aO,e mais influencia do quepoder. Se voce e urn diet da tribo em que vive, voce emnls do que urn membro da tribo. E urn dos donos daregina, do terreno da aldeia, dos pastos, dos reservat6riosde pesea e dos p090S.Outraspessoas vivem ali em virtudede Cllsnmentosfeitos com membros de seu cIa, da adoyaopela sua linhagem ou algum outro la90 social. Vocee urnIfder da tribo, e a nome-de-1an9ade seu cIa 6 invocadoquando a tribo entra em guerra. Sempre que ha urn dielnuma aldeia, esta se agrupa a seu redor assim como 0

gado se agrupa ao redor de seu touro.6

As primeiras tres frases sac apresentadas como urn argu-mento sobre tradu9ao, mas de passagem elas atribuem aos nuerurn conjunto estavel de atitudes. (Mais adiante cornentarei maisesse estilo de atribuiyao). Em seguida, nas quatro frases quecome9arn por "Se voce e urn die!...", a constru9ao na segundapessoa une 0 leitor eo nativo nurna participa9ao textual. A frase

A observayao participante serve como uma formula parao continuo vaivern entre 0 "interior" e 0 "exterior" dos aconteci-mentos: de urn lade, captando 0 sentido de ocorrencias e gestosespecfficos, atraves da empatia; de outro, da urn passe atras, parasituar esses significados em contextos mais amplos. Aconteci-mentos singulares, assim, adquirem uma significa9ao mais pro-funda au mais geral, regras estruturais, e assim par diante.Entendida de modo literal, a observa9ao-participante e uma f6r-mula paradoxal e enganosa, mas pode ser considerada seriamente

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se refonnulada em termos hennencuticos, como uma dialetica entreexperiencia e interpreta~ao. Assim e como as rnais recentes epersuasivos defensores do metoda 0 reelaborararn,· na tradi~aoque vem de Wihelm Dilthey, passa por Max Weber e chega ate osantrop610gos dos "sfmbolos e dos significados", como CliffordGeertz. Experiencia e interpreta~ao tern recebido, no entanto,enfases diferentes quando apresentadas como estrategias deautoridade. Em anos recentes, tern havido urn notivel desloca-mento de enfase do primeiro para 0 segundo termo. Este e osproximos segmentos do texto VaGexplorar os diferentes usos daexperiencia e da interpreta~ao assim como 0 desdobramento desua inter-rela9aO.

Ocrescente prestfgio do teorico-pesquisador de campocolocou em segundo plano (sem elirnimi-la) uma serle de processose mediadores que haviam figurado de modo rnais destacado nosmetod os anteriores. Virnos como a dorninio da lfngua foi definidocomo urn nlvel de uso adequado para reunir urn conjunto pequenode dados num limitado perfodo de tempo. As tarefas da transcri9aotextual e da tradu9ao, junto com 0 papel dial6gico crucial deintcl'pl'ctcs e "informantes privilegiados", foram relegadas a urn.I'folu.l' sccundul'io, ou mesmo desprezadas. 0 trabalho de campocslllvll ccntrado na experiencia do scholar que observava-pllrtkipava. Uma nftida imagem, ou narrativa, surgiu - a de urncslranho cnlrando em urna cultura, sofrendo urn tipo de inicia9aoque levaria a urn rapport (minimamente aceita9ao e empatia, masusualmente implicando algo proximo a amizade). A partir dessaexperiencia emergia, de modos nao especificados, urn textorepresentacional, escrito pelo observador-participante. Comoveremos, esta versao da produ9ao textual obscurece tanto quantorevela. Mas vale a pen a considerar seriamente 0 seu pressupostoprincipal: 0 de que a experiencia do pesquisador pode servir comouma fonte unificadora da autoridade no campo.

A autoridade experiencial esta baseada numa "sensibi-lidade" para 0 contexto estrangeiro, uma especie de conhecimentotacito acumulado, e urn sentido agudo em rela~ao ao estilo de urn

povo ou de urn lugar. Esse requisito e freqiientemente exp~fcitonos textos dos primeiros observadores-participantes profissionais.A suposi9iio de Margaret Mead de poder captar 0 principio ouethos subjacente a uma cultura atraves de uma sensibilidadeagu~ada a fonna, tom, gesto e estilos de comportamento, e a enfasede Malinowski em sua vida na aldeia e a compreensao derivadados "imponderaveis da vida real" sac exemplos destacados. Muitasetnografias - por exemplo, a de Colin Thrnbull, Forest people(1962) - ainda sao apresentadas no modo experiencial, de-fendendo, anteriormente a qualquer hip6tese de pesquisa oumetodo especfficos, 0 "eu estava lei"do etn6grafo como membrointegrante e participante.

Certamente e diffcil dizer muita coisa a respeito de "expe-riencia". Assim como "intui9ao", ela e algo que alguem tern ounao tern, e sua invoca9ao freqtientemente cheira a mistifica~ao.Todavia, pode-se resistir a tenta9aO de transfonnar toda experienciasignificativa em interpreta9aO. Embora as duas estejam recipro-camente relacionadas, nao sao identicas. Paz sentido mante-lasseparadas, quanto mais nao seja porque apelos a experienciamuitasvezes funcionam como valida~oes para a autoridade etnografica .

o argumento mais serio sobre 0 papel da experiencia nasciencias hist6ricas e culturais esta contido na n09ao geral deVerstehen.7 Na influente visao de Dilthey (1914), 0 ato de com-preender os outros inicialmente deriva do simples fato da coexis-tencia num mundo que e partilhado; mas esse mundo experiencial,urn terreno intersubjetivo para formas objetivas de conhecimento,e precisamente 0 que falta, ou e problematico, para urn etnografoao penetrar uma cultura estrangeira. Assim, durante os primeirosmeses no campo (e na verdade durante toda a pesquisa), 0 queacontece e urn aprendizado da linguagem, em seu sentido maisamplo. A "esfera comum" de Dilthey deve ser estabelecida erestabelecida, a partir da constru9ao de urn mundo de experiSn-cias partilhadas, em relac;ao ao qual todos os "fatos", "textos","eventos" e suas interpreta~oes serao construidos. Esse processode se viver a entrada num universo expressivo estranho e sempre

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subjetivo, por natureza, mas se torna rupidumcnte dependente doque Dilthey chama de "expressoes pcrmunentemente fixadas",fonnas estaveis as quais a compreensao pode sempre retomar. Aexegese dessas fonnas fomece 0 conteudo de todo conhecimentosistematico historico-cultural. Assim, a experiencia estaintimamente ligada a interpreta9llo. (Dilthey esta entre os primeiroste6ricos modern os a comparar a compreensllo de fonnas culturaiscom a leitura de "textos"). Mas esse tipo de leitura ou exegesenao pode ocorrer sem uma intensa participa~ao pessoal, urn ativo"sentir-se em casa" num universo comum.

Seguindo os passos de Dilthey, a "experiencia" etnograficapode ser encarada como a constru9ao de urn mundo comum designificados, a partir de estilos intuitivos de sentimento, perceps:aoe inferencias. Essa atividade faz uso de pistas, tra~os, gestos erestos de sentido antes de desenvolver interpreta90es estaveis. Taisfonnas fragmentanas de experiencia podem ser c1assificadas comoesteticas e/ou divinat6rias. Ha espa~o aqui para apenas algumaspalavras sobre tais estilos de compreensao em sua rela~ao com aetnografia. Uma evoca~ao de urn modo estetico e convenienternentefomecido por A. L. Kroeber, em uma resenha de 1931 do Growingtip in New Guinea de Mead:

fonna, 0 quadro, Hiolonge quanta pode ir, e totalmenteconvincentepara este resenhador,que admira sem reservasa seguran9a dos insights e a eficiencia do tra90 da autorana descric;llo.(p. 248)

Vma formula9llo diferente e fornecida por MauriceLeenhardt em Do Kamo: la personne et Ie my the dans Ie mondemelanesien (1937), urn livro que, em seu por vezes enigmaticomodo de exposi9ao, requer de seus leitores justamente 0 tipo depercep9ao estetica e gestaltica, na qual distinguiam-se. tantoMead quanto Leenhardt. a endosso de Leenhardt a ess~~tlP.Odeabordagem e significativo, uma vez que, dada sua expenencla decampo extremamente longa, e seu profunda cultivo de ~ma ~fng~amelanesia, seu metodo naOpode ser visto como uma raclOnahzas:aopara uma etnografia de curto prazo:

Primcirode tudo,estaclaroque ela possui em grauelevadoas faculdades de apreender rapidamente as principaislendencias que uma cultura impinge aos indivfduos, e dedelinea-Ias em retratos compactos de incrfvel agudeza. 0resultado e uma representac;ao de extraordinariavivacidade e semelhanc;aem relac;aoa vida. Obviamente,algo de urn sensacionalismo intelectualizado, ainda queforte, subjaz a essa capacidade; tambem obviamente, haurn alto grau de intuic;ao, no sentido da habilidade decompor urn quadro convincente a partir de pistas, poispistas sac tudo 0 que alguns de seus dados pOdem ser,com apenas seis meses para aprender uma Ifngua epenetrar no interior de tad a uma cultura, alem daespecializac;aoem comportamento infantiI. De qualquer

Na verdade, nosso contato com 0 outro nao e realizadoatraves da analise. Antes, n6s 0 apreendemos como urntodo. Desde 0 infcio, podemos esboc;arnossa visao dele apartir de urn detalhe simb6Iico, OU de urn p~rfil, quecontem urn todo em si mesmo e evoca a verdadelra fonnade seu modo de ser. Esta ultima e 0 que nos escapa. seabordamos nosso proximo usando apenas as categonasde nosso intelecto.

Outro modo de levar a serio a experiencia como fonte deconhecimento etnografico e fornecido pelos estudos de CarloGinzburg (1990: 143-180) sobre a complexa tradic;ao das praticasde adivinha9ao. Sua pesquisa abrange des de as primeiras. int~r-pretas:oes feitas por cac;adores a partir de rastros dos antmat~,passando pelas fonnas mesopotamicas de predic;ao, pelo_decl-framento de sintomas na medic ina hipocratica, pela atens:ao aosdetalhes na identifica9ao de falsificac;ao no mundo da arte, ateFreud Sherlock Holmes e Proust. Estes estilos de adivinha~ao,que n~o passam pel a experiencia do transe, apreendem relac;oescircunstanciais especfficas de significado e estlio baseadas empalpites, na leitura de indicios aparentemente disparatados e em

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~corren.cias casuais. Ginzburg propoc seu modelo deconheclm~ento_ conjectu~aI" como urn modo disciplinado de

compreensao, nao-generalIzante e abdutivo, que e de imporUlnciacentral ~ara as ciencias culturais, embora isso nao sejareconhecldo. Esse modelo pode se somar a urn estoque de recursosqu~ na ve:d~ade e bem modesto, e que serve para entender commalS pr~cIsao como aIguem se sente ao penetrar numa situa9aoetnogniflca nao-familiar.

. Precisamente porque e diffcil pin9a-Ia, a "experiencia" ternservld~ ~omo uma eficaz garantia de autoridade etnognifica. Ha,sem duvlda, uma reveladora ambigiiidade no termo. A experienciaevoca uma prese~qa participativa, urn contato sensfvel com 0 mundoa ser compreendldo, uma relayao de afinidade emocional com seupovo, u~a concretude de ~ercepyao. A palavra tambem sugere urncOnh~~l11:ento cumulatIvo, que vai se aprofundando ("suaexpenenCIa de dez anos na Nova Guine") Os sentl'd .. . . . os se Juntampara legltllnar 0 sentlmento ou a intuit-ao real . d• • :I' , am a quemexpnmfvcl, do etn6grafo a respeito do "seu" povo. E importantel1~tar, porem, que esse "mundo", quando concebido como umacna9uo ciaexpcriencia, e subjetivo, nao dial6gico ou intersubjetivo.o ctn6g~'afoacumula conhecimento pessoal sobre 0 campo (a formaI:OSscsslva "meu p~vo" foi ate recentemente bastante usada nosdrculos antropoI6g1cos, mas a frase na verdade significa "m' h

'A • In aexpenencla"),

1981). A interpreta9ao, baseada num modele filol6gico de "leitura"textual, surgiu como uma altemativa sofisticada as afirma90es hojeaparentemente ingenuas de autoridade experiencial. A antro-pologia interpretativa desmistifica mui,to do que anteriormentepassara sem questionamento na constru9ao de narrativas, tipos,observa90es e descri90es etnograficas. Ela contribui para umacrescente visibiIidade dos processos criativos (e, num sentidoamplo, poeticos) pelos quais objetos "culturais" sac inventados etratados como significativos.

o que esta suposto no ate de se olhar a cultura como urnconjunto de textos a serem interpretados? Urn estudo classico efomecido por Paul Ricoeur, em seu ensaio The l1wdel of text:meaningful action considered as a text (1971). Clifford Geertz,numa serie de estimulantes e sutis discussoes, adaptou a teoria deRicoeur ao trabalho de campo antropol6gico (l973:cap.l). A"textualizaqao" e entendida como urn pre-requisito para ainterpretaqao, a constitui9ao das "expressoes fixadas" de Dilthey.Trata-se do processo atraves do qual 0 comportamento, a fala, ascrenyas, a tradiyao oral e 0 ritual nao escritos vem a ser marcadoscomo urn corpus, urn conjunto potencialmente significativo,separado de uma situa9aO discursiva ou "performativa" imediata.No momenta da textualizaqao, este corpus significativo assumeuma relaqao mais ou menos estavel com urn contexte; e jaconhecemos 0 resultado final desse processo em muito do que econsiderado como uma descri9ao etnografica densa. Por exemplo,dizemos que uma certa instituiqao ou segmento de comportamentosac tfpicos de, ou urn elemento comunicativo em, uma culturacircundante, como a famosa briga de galos de Geertz (l973:cap.15), que se toma um locus intensamente significativo da culturabalinesa. Sao criadas areas de sinedoques nas quais partes sacrelacionadas a todos, e atraves das quais 0 todo - que usualmentechamamos de cultura - e constitufdo.

Ricoeur na verdade nao privilegia as relayoes entre parte etodo nem as formas especlficas de analogia que constituem as

.E c~mpreensfveI, dado seu can iter vago, que 0 criterioexpenenclal da autoridade - crenqas nao problematizadas" 't d "d nome. 0 0 a o~servayao participante, no poder das rela90es dear:~ldade emoclOnal, da empatia, etc. - tenha side submetido acnticas por antrop6Iogos hermeneuticamente sofisticados. 0segu~do momenta na dialetica entre experiencia e intepreta9ao ternrecebldo aten<;ao~elabora9ao crescentes (ver, porexemplo, Geertz,1973, 1976; Rabmow e Sullivan 1979' Winner 1976' S b' , , , per er,

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representa90es funcionalistas ou realistas. Ele simplesmentepropoe uma reIas:ao necessaria entre 0 texto e 0 "mundo". Urnmundo nao pode ser apreendido diretamente; ele e sempre inferidoa partir de suas partes, e as partes devem ser separadas conceituale perceptualmente do fluxo da experiencia. Desse modo, atextualiza9ao gera sentido atraves de urn movimento circular queisola e depois contextualiza urn fato ou evento em sua realidadeenglobante. Urn modo familiar de autoridade e gerado a partir daafirmas:ao de que se estao representando mundos diferentes esignificativos. A etnografia e a interpretas:ao das culturas.

Urn segundo passe fundamental na analise de Ricoeur eseu estudo do processo pelo qual 0 "discurso" se tom a texto. 0discurso, na ch'issica discussao de Emile Benveniste (1971:217-230), e urn modo de comunicas:ao no qual sac intrfnsecas aspresen9as do sujeito que fala e da situas:ao imediata da comu-nicas:ao. 0 discurso e marcado pelos pronomes (explfcitos ouimplfcitos) eu e voce, e pelos deiticos - este, aquele, agora, etc.-que assinalam 0 momento presente do discurso, ao inves de algoIl(CI1l dele. 0 discurso nao transcende a ocasiao especffica na qualum sujeito sc apropria dos recursos da linguagem para secOl11unicul'dialogicamente. Ricoeul' argumenta que 0 discurso naopodo sel' intcrpl'ctado do modo aberto e potencialmente publicoC0/l10UIll tcxto c "lido". Para entender 0 discurso, "voce tern delei' c.!itado W', l1a presens:a do sujeito. Para 0 discurso se tomartexto, ele deve se transformar em algo "autOnomo", nos termosde Ricoeur, separado de uma Iocus:ao especffica e de uma intens:aoautoral. A interpreta9ao nao e uma interlocus:ao. Ela nao dependede estar na presencra de alguem que fala.

A relevancia desta distin9ao para a etnografia e talvez 6bviademais. Em ultima analise, 0 etn6grafo sempre vai embora, levan docom ele textos para posterior interpretas:ao (e entre estes "textos"que sac levados podemos incluir as mem6rias - eventos padro-nizados, simplificados, retirados do contexto imediato para sereminterpretados numa reconstrus:ao e num retrato posteriores). 0

texto diferentemente do discurso, pode viajar. Se muito da escritaetno~rafica e produzido no campo, a real elab?r~s:ao de umaetnografia e feita em outro lugar. Os dad~s constltuldos em :on-dis:oes discursivas, dial6gicas, sac apropnados apenas atra~es deformas textualizadas. Os eventos e os encontros da pesqU1~a setornam anotas:oes de campo. As experiencias tomam-se narratlvas,ocorrencias significativas ou exemplos.

Esta tradu9aO da experiencia da pesquisa num corpus textualseparado de suas ocasioes discursivas de prod.us:aotern importan~esconsequencias para a autoridade etnognlfl~a. Os dados aSSlmreformulados nao precisam mais ser entendldos como a. c~mu-nicas:ao de pessoas especfficas. Uma ex?lica9aO ou d~scf1s:ao deurn costume pOI'urn informante nao preClsa ser construlda de umaforma que inclua a mensagem "fulano e fu:ano ~is~e~am isso".Urn ritual ou urn evento textualizados nao estao mms mtlmamenteligados a produ9ao daquele evento por atores especfficos. Em vezdisso, estes textos se tomarn evidencias de urn contexto englobante,uma realidade "cultural". AMm disso, como os autores e atoresespecfficos sao separados de suas produ90es, urn "autor" gene-ralizado deve ser inventado, para dar conta do mundo ou con-texto dentro do qual os textos sac ficcionalmente realocados.Este "autor generalizado" aparece sob uma variedade de nomes:o ponto de vista nativo, "os trobriandeses", "os nuer", "os dogo.n",como estas e outras expressoes similares aparecem nas.etnografIas."Os balineses" funcionam como os "autores" da bnga de galostextualizada pOI'Geertz.

o etn6grafo, portanto, usufrui de uma rela9ao especial comuma origem cultural ou urn "sujeito absoluto:' (~ichel~Jone.s,1978: 14). E tentador comparar 0 etn6grafo com 0 mterprete hterar~o(e esta compara9ao e cada vez mais urn lugar-comum) - mas matsespecificamente com 0 critico tradicional, que encara como sua atarefa de organizar os significados nao controlados em urn t~xtonuma unica inten9ao coerente. Ao representar os nuer, os ~robna~-deses ou os balineses como sujeitos totais, fontes de uma mten9ao

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c?eia ~e significados, 0 etn6grafo transforma as ambigiiidades e?lVerSldade~ de significado da situa9uo de pesquisa num retratomtegrado. E importante, porem, assinalar 0 que foi deixado delado. a pro~e~s~ de pesquisa e sepurado dos textos que elegera ed~ mun.do flCtlClO~ue lhes cube evocar. A reulidade das situa90es?ISCUrSlvas e dos mterlocutores individuais e filtrada. Mas os~nforma~,t~s - juntamente com as notas de campo _ sacmt:r:nedlanos cruciais, sao tipicamente excluidos de etnografiaslegltm:a~. as aspectos dial6gicos, situacionais, da interpreta9ao~tn~gn1fIcatendem a ser banidos do texto representativo final. Naomtelramente banidos, claro; existem af topai aprovados para tra9aro retrato do processo de pesquisa.

Estamos cada vez mais familiarizudos com 0 relato dotrabalho de can:~o feito em separado (urn subgenero que aindatende a ser c1asslflcado como subjetivo, "Ieve", ou nao-cientffico),mas mesmo nas etnografias classicas, "fubulas do contata" maisau menos estereotfpicas narram a realiza9€l0 do pleno status deobservador-participante. Essas fabulas podem ser contadas defonna elaborada ou resumidamente, ingenua ou ironicamente. Elasnorma~l1lentc retratam a inicial ignorancia do etn6grafo, os mal-cntcndldos. a falta de contatos - freqiientemente, urn tipo destatusscmclhllntc ,no da crian9a numa cultura. No Bildungsgeschichtel~actnograflU, estes estados de inocencia ou confusao sao subs-tltufdos por urn conhecimento adulto, confiante e desabusado~~d~mo~ citar novamente a briga de galos de Geertz, em que um~mlctal ahena9ao em rela9ao aos balineses, urn confuso st~tus de"nao-pessoa", e transformada pela atraente fabula da batida policiale sua demonstra9ao de cumplicidade (1978:278-283). A anedotaestabelece urn pressuposto de conexao, que permite ao escritorfuncio~ar em sua analise subseqiiente como urn exegeta e urn porta-voz onlpresente e sabio. Este interprete situa 0 esporte ritual comou.m :~xto num mundo contextual e brilhantemente "Ie" seusslgmflcados cUlturais. a abrupto desaparecimento de Geertz emsua rela9ao - a quase-invisibilidade da observa9ao participante-

e paradigmatico. Aqui ele faz uso de uma conven9ao estabelecidapara encenar a realiza<;:ao da autoridade etnografica. Comoresultado, raramente ficamos cientes do fato de que uma parteessenciaI da constru9ao dabriga de galos como texto e dial6gica- a conversa do autor cara a cara com balineses especificos, e naoa leitura da cultura "por cima de seus ombros" (1973:452).

A antropoIogia interpretativa, ao ver as culturas comoconjuntos de textos, frouxa e, por vezes, contraditoriamente unidos,e ao ressaltar a inventiva poetica em funcionamento em todarepresenta<;:ao coletiva, contribuiu significativamente para 0

estranhamento da autoridade etnografica. Em seus principaisaspectos reaIistas, porem, nao escapa aos limites gerais apontadospor aqueles crfticos da representa9ao "colonial" que, desde 1950,tern rejeitado discursos que retratem as realidades culturais de outrospovos sem colocar sua propria realidade em questao. Nas pioneirascrfticas de Michel Leiris, e nas de Jacques Maquet, Talal Asad emuitos outros, a qualidade de nao-reciprocidade da interpreta9aoetnognifica tern side questionada (Leiris, 1950; Maquet, 1964;Asad, 1973). Conseqiientemente, nem aexperiencia nem a atividadeinterpretativa do pesquisador cientffico podem ser consideradasinocentes. Torna-se necessario conceber a etnografia nao como aexperiencia e a interpreta9ao de uma "outra" realidade circunscrita,mas sim como uma negocia9ao construtiva envolvendo peto menosdois, e muitas vezes mais, sujeitos conscientes e politicamentesignificativos. Paradigmas de experiencia e interpreta<;:ao estaodando lugar a paradigmas discursivos de dialogo e polifonia. Ate 0

final deste artigo, vamos resenhar esses emergentes modos deautoridade.

Urn modelo discursivo de pnitica etnognifica traz para 0

centro da cena a intersubjetividade de toda fala, juntamente comseu contexto performativo imediato. a trabalho de Benveniste sobreo papel constitutivo dos pronomes pessoais e demonstrativos

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ressalta justamente estas dimensoes. Todo usa do pronome eupressupoe urn voce, e cada instancia do discurso e imediatamenteligada a uma situa~ao especifica, comp~lrtilhada; assim, nao hanenhum significado discursivo sem interlocuyao e contexto. Arelevancia desta enfase para a etnografia e evidente. 0 trabalho decampo e significativamente composto de eventos de linguagem;mas a linguagem, nas palavras de Bakhtin, "repousa nas margensentre 0 eu e 0 outro. Metade de uma palavra, na linguagem, pertencea outra pessoa". 0 cntico russo propoe que se repense a linguagemem termos de situayoes discursivas especfficas: "Nao M", escreveele, "nenhuma palavra ou forma 'neutra' - palavras e form as quepodem nao pertencer a 'ninguem'; a linguagem e completamentetomada, atravessada pOl' inten~oes e sotaques". As palavras daescrita etnografica, portanto, nao podem ser pensadas comomono16gicas, como a legitima declarayao sobre, ou a interpretayaode uma realidade abstrafda e textualizada. A linguagem daetnografia e atravessada pOl' outras subjetividades e nuancescontextuais especificas, pois toda linguagem, na visao de Bakhtin,e uma "concreta concepyao heteroglota do mundo" (1953 :293).

As formas da escrita etnografica que se apresentam no modo"discursivo" tendem a estar mais preocupadas com a representay3.odos contextos de pesquisa e situayoes de interlocu9ao. Portanto,1I111 livro como 0 de Paul Rabinow, Reflections on fieldwork inMo!Vcco (1977), se preocupa com a representayao de uma espedficaSitUH9i'iode pesquisa (uma serie de tempos e lugares limitadores) e(de uma forma algo ficcional) de uma sequencia de interlocutoresindividuais. Na verdade todo urn novo subgenera de "relatos sobreo trabalho de campo" (do qual 0 de Rabinow e urn dos maisvigorosos) pode ser situado dentro do paradigma discursivo daescrita etnografica. 0 texto de Jeanne Favret-Saada, Les mots, famort, les sorts (1977), e uma experiencia incisiva e autoconscientede etnografia num modo discursivo.8 Ela afirma que 0 evento dainterlocu93.0 sempre destina ao etn6grafo uma posiyao especfficanuma teia de re1a90es intersubjetivas. Nao ha nenhuma posiyao

neutra no campo de poder dos posicionamentos discursivos, numacambiante matriz de relacionamentos de eus e voces.

Uma serie de recentes trabalhos tern escolhido apresen~~ros processos discursivos da etnografia sob a forma de u~ d~a-logo entre dois individuos. 0 texto de Camille Lacoste-DuJardm,Dialogue des femmes en ethnolo gie (1977), 0 de Jean- Pa~l Dumo~t,The headntan and 1(1978) e 0 de Marjorie Shostak, Nlsa: the hfeand words of a !kung woman (1981), sac exemplos digno~ d~ no:a.o modo dialogico e representado com considenive.l SOflStfca9~Oem dois outros textos. 0 primeiro, as reflexoes te6ncas de ,~evmDwyer sobre a "dialogica da etnologia", ~asc.e.de uma ~e:le deentrevistas com urn informante-chave e Justlflca a deCISa? deDwyer de estruturar sua etnografia na forma de urn reglstrobastante literal desses interca.mbios (1977, 1979, 1982). 0 segund?trabalho mais complexo, e 0 de Vicent Crapanzano, TUh~ml:

ortrait ~f a Moroccan, outro relato de uma serie de entrevistas~ue rejeita qualquer separa<;ao nftida entre urn eu que interpreta eurn outro textualizado (1980; ver tamMm 1977). Tanto J?;vyerquanta Crapanzano colocam a etnografia num processo de dla~o~oem que os inter'rocutores negociam ativamente uma vl:aocompartilhada da realidade. Crapanzano argumenta que :s~a mutuaconstru<;ao esta presente em qualquer encontro etnograflco, masque os participantes tendem a supor que .eles simplesme~teaquiesceram em rela9ao a realidade do outro lllterlocutor. Asslm,por exemplo, 0 etnografo da~ Ilhas Trobriand ~ao elaboraabertamente uma versao da reahdade em cola~ora<;ao c?m s:~,sinformantes, mas sim interpreta a "ponto de VIsta trobnandes .Crapanzano e Dwyer ofere cern tentativas sofisticadas de rompercom esta conven9ao literario-hermeneutica. Nesse processo, aautoridade do etnografo como narrador e interprete e alterada.Dwyer propoe uma hermeneutica da "vu~ner~b~li~ade", frisandoas lacunas do trabalho de campo, a posi<;ao dlvldlda e 0 c?ntroleimperfeito pOl' parte do etn6grafo. Tanto Cra~anzano quantoDwyer buscam representar a experiencia da pesqUlsa de uma forma

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que ~xpoe a tessituratextualizada do outro, e assim tambem do euque mterpreta.9 (Aqui as etimologias sao evocativas: a palavratext~ .esta relacionada, como se sabe, com tecelagem, e vulne-:ab~'d~de, com entrega ou com fcrimento, significando, nestamstancla, a abertura de uma autoridade ate entao fechada).

o m~delo .do dialogo ressalta precisamente aquelesel~mentos dlscurslvos - circunstanciais e intersubjetivos _ queRicoeur teve de excluir de seu modelo de texto. Mas se a autoridadeinterpretativa esta baseada na exclusao do dialogo, 0 reversetam~e~. e verdadeiro: uma autoridade puramente dialogicarepnmma 0 fato inescapavel da textualiza¥ao. Enquanto asetnografias articuladas como encontros entre dois indivfduospodem com sucesso dramatizar 0 dar-e-receber intersubjetivo dotrabalho de campo e introduzem urn contraponto de vozes autorais,elas permanecem representafoes do dialbgo. Como textos, elaspodem nao ser dialogicas em sua estrutura, pois, como StevenTyl~r. (1981) assinala, embora S6crates apare9a como urnpartlclpante descentrado em seus encontros, Platao retem 0 plenocontr~le do dialogo ..Este deslocamento, mas nao elimina¥ao, daautondade monol6glCa e caracterfstico de qualquer abordagemque retrate 0 etn6grafo como urn personagem distinto na narrativaclo trabalho cle campo. AMm disso, ha uma freqiiente tendenda!las l'ic90es de dialogo, a apresentar 0 interlocutor do etn6graf;como 0 representante, ou a representante, de sua cultura _ urntipa, nil 1ingu~~em do. realismo tradicional - atraves do qual osprocessos SOCIalSgeraIS sao revelados. 10 Tal retrato restabelece aautoridade interpretativa fundada na sinedoque, atraves da qual 0etn6grafo Ie 0 texto em rela¥ao ao contexto, constituindo, dessemodo, urn _"ou~ro:' ~undo significativo. Se e diffcil, pararepresenta¥oes dlaloglCas, escapar de procedimentos tipificantes,elas podem, num grau considenivel, resistir ao impulso derepresentar 0 outrode forma autolegitimadora. Isto depende desua habilidade ficcional em manter a estranheza da outra voz e denao perder de vista as contingencias especfficas do intercambio.

Dizer que uma etnografia e composta de discursos e queseus diferentes componentes estao relacionados dialogicamentenao significa dizer que sua forma textual deva ser a de urn dialogoliteral. Na verdade, como Crapanzano reconhece em Tuhami, urnterceiro participante, real ou imaginado, funciona como mediadorem qualquer encontro entre dois indivfduos (1980:147-151). 0dhllogo ficcional e de fato uma condensa~ao, uma representa~aosimplificada de complexos processos multivocais. Uma maneiraaltemativa de representar essa complexidade discursiva e entendero curso geral da pesquisa como uma negocia9ao em andamento. 0caso de Marcel Griaule e os dogon e bem conhecido e particu-larmente esclarecedor. 0 relato de Griaule sobre seu aprendizadoda sabedoria cosmol6gica dogon, Dieu d'eau (l948a), foi urnpioneiro exercfcio de narra¥ao etnognl.fica dialogica, Para alemdesta situa9ao interlocutoria especffica, porem, urn processo maiscomplexo estava em funcionamento, pois e claro que 0 conteudoe 0 gradual ajustamento da longa pesquisa feita pela equipe deGriaule, que durou decadas, foram monitorados de perto e mo-delados de forma significativa pelas autoridades tribais dogon (verdiscussao aprofundada em "Poder e dialogo na etnografia: ainicia93.0 de Marcel Griaule" neste volume). Isto nao e maisnovidade. Muitos etn6grafos comentaram as formas, ao mesmotempo sutis e not6rias, pelas quais suas pesquisas foram dire-cionadas ou circunscritas por seus informantes. Em sua provo-cativa discussao deste tema, loan Lewis (1973) chegou a chamara antropologia de uma forma de "pJ<l.gio".

o processo de dar-e-receber da etnografia e claramenteretratado em urn estudo de 1980, notavel por sua apresenta9ao,numa unica obra, tanto de uma realidade "outra" interpretadaquanto do proprio processo de pesquisa: Ilongot headhunting, deRenato Rosaldo. Rosaldo chega' as terras altas das Filipinaspretendendo escrever urn estudo sincronico de estrutura social; masrecorrentemente, apesar de suas obje90es, ele e for9ado a escutar

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as narrativas interminaveis dos ilongot sobre a hist6ria local. Porobrigac;ao, sem prestar muita atenc;ao, numa especie de transeentediado, ele transcreve estas hist6rias, enchendo cadernos e maiscadernos com 0 que eIe considera textos dispensaveis. S6 depoisde deixar 0 campo, e ap6s urn longo processo de reinterpretac;ao(processo manifesto na etnografia), ele se da conta de que aquelesobscuros relatos forneciam na verdade seu tema final: 0 sentidoculturalmente distinto de narrativa e hist6ria dos Hongot. A expe-riencia de Rosaldo do que pode ser chamado de "escrita dire-cionada" prop6e incisivamente uma questao fundamental: queme na verdade 0 autor das anotac;5es feitas no campo?

o assunto e sutil e merece urn estudo sistematico. Mas jafoi dito 0 bastante para se poder afirmar que 0 controle nativosobre 0 conhecimento adquirido no campo pode ser consideravel,e mesmo determinante. A escrita etnografica atual esta pracurandonovos meios de representar adequadamente a autoridade dosinfonnantes. Ha poucos modelos em que se basear, mas e imp or-tante reconsiderar as imtigas compilac;5es textuais de Boas,Malinowski, Leenhardt e outros. Nesses trabalhos, 0 genera etno-grafico nao havia ainda se cristalizado na moderna monografiainterpretacional, intimamente identificada com uma experienciade campo pessoaI. Podemos contemplar neles urn modo etno-grMico que nao se legitimou ainda naqueles modos especfficosque estao agora polftica e epistemologicamente sendo ques-tionudos. Essas compiIac;5es mais antigas incluem muito, ou tudo,do que na verdade e escrito pelos informantes. Pode-se pensaraqui no papel de George Hunt na etnografia de Franz Boas, oudos quinzetranscripteurs listados nos Documents neo-catedoniensde Leenhardt (1932).11

Malinowski e urn complexo caso de transiC;ao.Suas etno-grafias refletem uma coalescencia ainda incompl~ta da modern amonografia. Se ele por urn lado foi centralmente responsavel pelafusao de teoria e descriC;aona autoridade do pesquisador de campoprofissional, por outro lado ele inc1uiu material que nao sustentava

diretamente sua nitida perspectiva de interpreta9ao. Nos muitosmitos e nos encantamentos a ele ditados, e que enchem seus livros,publicou muitos dados que ele, assu~idamente, nao havia com-preendido. a resultado foi urn texto aberto sujeito a multiplasreinterpretac;6es. E importante comparar tais velhos compendioscom 0 recente modelo de etnografia, que cita as evidencias parasustentar uma interpreta9ao centrada num foco tematico, mas quenao vai muito alem dissO.12 Na modern a e legitima monografia,nao ha, na verdade, quaisquer vozes fortes presentes, a nao ser ado escritor; mas em Os argonautas (1922) e em Goral gardens(1:935) lemos pagina ap6s pagina sobre encantamentos magicos,nenhum deles, em essencia, expresso pelas palavras do etn6grafo.Estes textos ditados foram em tudo 0 mais, com excec;ao de suainscri9ao fisica, escritos por especfficos e anonimos trobriandeses.Na verdade, qualquerexposi9ao etnografica continua inc1ui roti-neiramente em si mesma uma diversidade de descri95es, transcri-90es e interpreta96es feitas por uma variedade de "autores" indf-genas. Como essas presenc;as autorais devem ser manifestas?

Uma posi9ao util- ainda que extrema - e trazida pela analisede Bakhtin sobre 0 romance "polifonico". Uma condi9ao funda-mental do genero, ele argumenta, .15 que ele representa sujeitosfalantes num campo de multiplos discursos. 0 romance luta com,e encena, a heteroglossia. Para Bakhtin, preocupado com arepresenta9ao de todos nao-homogeneos, nao M nenhum mundocultural ou linguagem integrados. Todas as tentativas de proportais unidades abstratas sac constructos do podermonol6gico. Uma"cultura" e, concretamente, urn dialogo em aberto, criativo, desubculturas, de membros e nao-membros, de diversas fac90es. Vma"lingua" e a intera9ao e a luta de dialetos regionais, jargoesprofissionais, lugares-comuns genericos, a fala de diferentes gruposde idade, indivfduos, etc. Para Bakhtin, 0 romance polifOnico naoe urn tour de force de totalizac;ao cultural ou hist6rica (como

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enticos realistas como Georg Lukacs e Erich Auerbach argu-mentaram) mas sim uma arena camavalesca de diversidade.Bakhtin descobre urn espa~o textual ut6pico no qual a com-plexidade discursiva, a intera~ao dial6gica das vozes, pode seracomodada. Nos romances de Dostoievski ou de Dickens elevalonza precisamente sua resistencia a totalidade; seu romancistaideal e urn ventriloquo - no idioma do seculo XIX, urn "poli-fonista". "Ele representa a polfcia com varias vozes diferentes",exc1ama urn ouvinte admirado, sobre 0 garoto Sloppy, que Ie empublico urn jomal, em Our mutual friend. Mas Dickens, 0 ator,performer oral e polifonista, deve ser comparado a Flaubert, 0

mestre do controle autoral, que se move como urn deus entre ospensamentos e os sentimentos de seus personagens. A etnografia,como 0 romance, debate-se entre essas alternativas. Sera que 0

escritor etnognifico retrata 0 que os nativos pensam a maneira doflaubertiano "estilo indireto livre", urn estilo que suprime a cita9aodirctu em favor de urn discurso controlador que e sempre, mais ournenos, 0 do autor? (Dan Sperber, 1981, tomando Evans-Pritchardcomo cxcmplo, mostrou de forma convincente que 0 estilo indireto6 som duvida 0 modo preferido da interpreta9ao etnografica.) Ouscn1 que 0 retrato de outras subjetividades requer uma versaocstilisticnmente menos homogenea, cheia das "vozes diferentes"de Dickens?

Urn certo uso do estilo indireto e inevitavel, a menos que anovela ou a etnografia seja composta inteiramente de cita~oes, algoque e teoricamente possfvel mas raramente e tentado.13 Na pratica,porem, a etnografia e 0 romance tern recorrido ao estilo indiretoem diferentes nfveis de abstra~ao. Nao precisamos nos perguntarcomo Flaubert sabe 0 que Emma Bovary esta pensando, mas ahabilidade do pesquisador de campo em habitar as mentes nativassuscita sempre duvidas. Certamente isto e urn problema pennanente,nao resolvido, do metodo etnogratico. Os etn6grafos tern geralmenteevitado atribuir cren~as, sentimentos e pensamentos aos indivfduos.Mas nao tern hesitado em atribuir estados subjetivos a culturas. A

analise de Sperber revel a como frases tais como "os nuer pen-sam ... " ou "0 senso nuer de tempo" sac fundamentalmentediferentes de cita90es ou tradu~oes do discurso nativo. Tais dec1a-ra~oes nao tern "nenhum falante especifico" e sao Iiteralmenteequfvocas, combinando de forma contfnua as afirma90es do etno-grafo com as do, ou dos informantes (1981 :78). Sao abundantesnas etnografias frases que nao sac atribufdas a ninguem, tais como:"Os espiritos retomam a aldeia durante a noite", descri~oes decren~as nas quais 0 escritor assume na verdade a voz da cultura.

Neste nivel "cultural", os etnografos aspiram a oniscienciaflaubertiana que se move livremente atraves de urn mundo desujeitos nativos. Sob a superffcie, no entanto, seus textos sao menoscontrolados e mais discordantes. 0 trabalho de Victor Thrnerfornece urn exemplo revelador, que vale a pena investigar mais deperla como urn caso de intera9aO entre a exposi9ao monofOnica e apoIifOnica. As etnografias de Turner ofere cern retratos sober-bamente complexos dos sfmbolos rituais e cren9as ndembu; e eleforneceu tambem alguns vislumbres incomumente explfcitos dosbastidores. Em meio aos ensaios reunidos em Theforest of symbols,seu terceiro livro sobre os ndembu, Turner oferece urn retrato deseu melhor informante, "Muchona the Hornet, interpreter ofreligion" (1967: 131-150). Muchona, urn curandeiro ritual, e Turnerse unem atraves do interesse compartilhado pelos sfmbolostradicionais, as etimologias e os significados esotericos. Ambossac "intelectuais", interpretes apaixonados das nuances e pro-fundezas dos costumes; ambos sac scholars desenraizados par-tilhando "a insaciavel sede de conhecimento objetivo". Turnercompara Muchona a urn professor universitario; seu relata destacolabora~ao inclui mais do que simples insinua90es de que ele eseu "duplo" psicol6gico.

Ha, porem, uma terceira presen9a nesse dialogo, WindsonKashinakaji, urn veterano professor ndembu da escola missionarialocal. Ele reune Muchona e Thmer e compartilha da paixao delespela interpreta9ao da religiao tradicional. Atraves de sua eduCa9aO

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biblica, ele "adquiriu urn f~ro apurado para elucidar quest5esintrincadas". Tendo se tornado cetico a respeito dos dogmas cristaose dos privilegios missionarios, ele olha com simpatia para a religiaopaga. Kashinakaji, conta-nos Turner, "transpos a distancia cUltu~alentre Muchona e eu, transformando 0 jargao tt~cnicodo curandetroe a picante gfria da aldeia numa prosa que eu pudesse entendermelhor". as tres intelectuais logo "estabeleceram uma especie desemimmo diario sobre religiao". as relatos de Turner sobre esseseminario sac estilizados: "oito meses de estimulantes e ageisdiscussoes entre n6s tres, principalmente sobre 0 ritual ndembu".Eles revel am urn extraordimirio "coI6quio" etnognifico; mas signi-ficativamente Turner nao faz dessa colaborayao a tres 0 eixo deseu ensaio. Ao inves disso, ele centra 0 foco em Muchona, trans-formando portanto um "trialogo" num dialogo, e transformandoIIlml reluyll.o pl'Odutiva, complexu e sedutora no "retrato" de urn"inl'onnunlc" (CStLl reduyao foi de alguma forma exigida peloformula do livro no qual 0 ensaio primeiramente apareceu, aImpol'tnllto colelnncn editada em 1960 por Joseph Casagrande,If! 1111 company of men: twenty portraits of anthropologicalIIlf'lll'll1l1l1ls), I~

OS lrnbnlhos publicados de Turner variarn consideravel-monlo 0111 sun estrutura discursiva. Alguns sao em grande partecomposlos por cita90es diretas; em pelo menos urn ensaioMuchona e identificado como a principal fonte de toda a inter-pl'cta9uo; em outra parte ele e invocado anonimamente, parexemplo, como "urn especialista em ritual" (1975:40-42, 87, 154-156,244). Windson Kashinakaji e identificado como assistente etradutor, ao inves de uma fonte de interpreta~5es. De forma geral,as etnografias de Turner sao incomumente polifOnicas, aber-tamente construfdas a partir de citac;oes ("De acordo com urnadepto ..." ou "Urn informante acha ... "). No entanto, ele naorepresenta os ndembu em diferentes vozes, e ouvimos pOlleas vezesa tal "picante gfriada aldeia". Todas as vozes do campo foramsuavizadas na prosa exposit6ria de "informantes" mais ou menos

intercambiaveis. A encena9ao do discurso nativo numa etnografia,o necessario grau de tradu9uo e familiariza~ao sac complicadosproblemas praticos e ret6ricos.15 Mas os trabalhos de Turner, aodarem urn Iugar visfvel as interpreta<;oes nativas dos costumes,expoem concretamente esses temas do dialogismo textual e dapolifonia.

A inclusao da descri9ao de Muchona feita pOl'Turner emThe forest of symbols pode ser vista como sinal dos tempos. Acoletanea de Casagrande na qual ela originalmente apareceu teve 0

efeito de isolar 0 tema crucial das relac;oes entre etn6grafos e seuscolaboradores indfgenas. A discussao desse tema ainda nao tinhaIugar nas etnografias cientfficas, mas a coletanea de Casagrandeabalou 0 tabu profissional p6s-malinowskiano sobre os "infor-mantes privilegiados". Raymond Firth sobre Pa Fenuatara, RobertLowie sobre Jim Carpenter - uma longa Iista de reconhecidosantrop6Iogos descreveram os "etn6grafos" indfgenas com quemeles dividiram, em algum grau, uma visao distanciada, anaIftica emesmo ironica dos costumes. Esses indivfduos se tornaraminformantes valorizados porque entenderam, muitas vezes comgrande sutileza, 0 que implica uma atitude etnografica diante dacultura. Na cita~ao de Lowie de seu interprete crow (e colega"fil6logo"), Jim Carpenter, percebe-se uma atitude comum:"Quando voce escuta os velhos contando suas visoes, voce temde acreditar nelas" (Casagrande, 1960:428). E ha bem mais doque apenas uma piscadela e urn assentimento cumplice na historiarecontada por Firth sobre seu melhor amigo e informante tikopiano:

Em outra ocasiao, a conversa recaiu sobre as redes feitaspara pegar trutas no lago. As redes estavam ficandoescuras, possivelmente com material organico, e tendiama se romper facilmente. Pa Fenuatara entao contou umahist6ria ao pessoal reunido na casa sobre como, quandoestava certa vez no lago com suas redes, sentiu urnespfritoenvolto na rede. e tornando-a mais macia. Quando elepuxou a rede pra fora do lago, ele a achou pegajosa. 0

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espfrito havia trabalhado ali. Perguntei a ele entao se issoera parte do conhecimento tradicional, a id6ia de queespfritos eram responsaveis pela deteriora9ao das redes.Ele respondeu: "Nao, isso 6 uma id6ia minha". Entaoacrescentou, rindo: "Conhecimento tradicional de minhapropria autoria". (Casagrande, 1960:17-18)

Todo 0 impacto metodol6gico da coletanea de Casagrandepermanece latente, especialmente quanta a importancia de seusrelatos para a produ~ao dial6gica dos textos e interpretar;oes ..etnografieos. Esta importancia e obscurecida por uma tendencia atomar 0 livro como urn documento universalizante, humanista, querevel a "uma sala de espelhos (...) numa grande variedade, aintermimivel imagem refletida do ser humano" (Casagrande,1960:xii). A luz da atual crise na autoridade etnognifica, no entanto,estes reveladores retratos se imiseuem nas obras de seus autores,alterando 0 modo como elas podem ser lidas. Se a etnografia 6parte do que Roy Wagner (1980) chama de "a inven~ao da eultura",sua atividade e plural e alem do controle de qualquer indivfduo.

nhuma circunstancia, falas de personagens inventados. Os infor-mantes sac indivfduos especfficos com nomes pr6prios reais -nomes que podem ser citados de forma modificada quando ne-cessario. As inten90es dos informantes sac sobredetenninadas,suas palavras, polftica e metaforicamente complexas. Se aloe adasnum espa90 textual autonomo e transcritas de forma suficien-temente extensas, as declara90es nativas fazem sentido em termosdiferentes daqueles em que 0 etn6grafo as tenha organizado. Aetnografia e invadida pela heteroglossia.

Esta possibilidade sugere uma estrat6gia textual altemativa,uma utopia da autoria plural que atribui aos colaboradores naoapenas 0 status de enunciadores independentes, mas de escritores.Como uma forma de autoridade, ela deve ainda ser consideradaut6pica por duas razoes. Primeiro, os poueos experimentos recentesde trabalhos de multiplos autores parecem requerer, como umafors:a instigadora, 0 interesse de pesquisa de um etn6grafo que nofim assume uma posi9ao exeeutiva, editorial. A estrategia deautoridade de "dar voz" ao outro nao e plenamente transcendida.Segundo, a propria id6ia de autoria plural desafia a profundaidentifica9ao ocidental de qualquer organiza9ao de texto com aintens:ao de urn dnico autor. Ainda que essa identificas:ao fossemenos forte do que quando Lafitau escreveu seu Moeurs dessauvages america ins , e a crftica recente a tenha eolocado emquestao, ela ainda e uma poderosa imposi9ao sobre a escritaetnografica. Todavia, ha sinais de movimento nessa area. asantrop610gos terao cada vez mais de partilhar seus textos, e porvezes as folhas de rosto dos livros, com aqueles colaboradoresnativos para os quais 0 tenno informante nao e mais adequado, see que urn algum dia foi.

o livro de Ralph Bulmer e Ian Majnep, Birds of my Kalamcountry (1977), e um importante prot6tipo. (Tipos de letra diferentesdistinguem as contribui90es justapostas do etnografo e dos nativosda Nova Guine, resultado da colabora9ao de mais de uma decada).Ainda mais significativo e 0 estudo de 1974, coletivamente pro-

Uma maneira cada vez mais comum de realizar a produ9aocolaborativa do conhecimento etnognlfico e citar os informantesextensa e regularmente. (Urn notavel exemplo e We eat the Mines,the Mines eat us [1979J, de June Nash.) Mas esta Hitica apenascome~a a romper a autoridade monofonica. As cita90es sac semprecolocadas pelo citador, e tendem a servir meramente como exemplosou testemunhos confinnadores. Indo-se alem da citas:ao, pode-seimaginar uma polifonia mais radical que "representaria os nativose 0 etn6grafo com vozes diferentes"; mas isso tambem apenasdeslocaria a autoridade etnografiea, confinnando uma vez mais aorquestra9ao final virtuosfstica feita por um s6 autor de todos asdiscursos presentes no texto. Neste sentido, a polifonia de Bakhtin,muito estreitamente identificada com 0 romance, e uma hetero-glossia domesticada. as discursos etnograficos nao sao, em ne-

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duzido, Pifl/l/II Slit/fIIl/III,I'''' /If,t! sfllying sickness (Ka:ciJnMumkidag), qUl' lisflll'llI ,',1111roI1111 de I'OslO,sem distinc;:ao(emboranao, deve-se 1I1)(al. l'lli (lldem ulfab6tica): Donald M. Bahr,antrop6logo; JIIUII (In:v.0rlo. xumll; David 1. Lopez, interprete; eAlbert Alv;\Il·z. editor. Tre,~dcstcs quatro sao indios papago, e 0

livro <5 COlls('il'IlII'IlH~llt~ destinado a "transferlr a umxama, tantoquanto po.~s(v('l. as flln~()eS normalmente associadas a autoria.Estas inc1uclll a LJp<;ao par um determinado estilo explanativo, aobrigayuo de fazer interprctac;:5ese explicac;:5eseo direito de julgaras coisas que suo importantes e as que nao 0 sao" (p. 7). Bahr, 0

iniciador e organizador do projeto, optou por partilhar a autoridadetanto quanta possivel. Gregorio, a xama, aparece como a principalfonte cia "teoria da doenc;:a"que e transcrita e traduzida, em doisniveis separados, por Lopez e Alvarez. Os textos de Gregorio emlfngua nativa incluem explica90es compactadas, muitas vezesenigmaticas, que sac elas mesmas interpretadas e contextualizadaspor um comentario em separado de Bahr. 0 livro e incomum emsua encenac;:ao textual da interpretac;:ao das interpretac;:5es.

Em Piman shamanism, a transic;:ao das enuncia90esindividuais para as generalizac;:oes culturais e sempre visivel naSepara9aOdas vozes de Gregorio e de Bahr. A autoridade de Lopez,menos visivel, e semelhante ade Winds on Kashinakaji no trabalhode Turner. Sua fluencia nas duas lfnguas guia Bahr atraves dassutilezas da linguagem de Gregorio, permitindo assim ao xama"falar extensivamente sobre topicos te6ricos". Nem Lopez nemAlvarez aparecem como uma voz especifica no texto, e suacontribuic;:ao a etnografia permanece em grande parte invisfvel, anao ser para qualificados papagos, capazes de avaliar a exatidaodos textos traduzidos e a nuance vernacular das interpreta90es deBahr. A autoridade de Alvarez reside no fate de que Pimanshamanism e urn livro dirigido a publicos distintos. Para a maioriados leitores interessados nas tradu~oes e expIica90es que os textostrazem em lfngua piman, ele sera de pouco ou nenhum interesse. 0lingiiista Alvarez no entanto corrigiu as transcri95es e tradw;:5es

atentando para seu usa no ensino da lfngua piman, utilizando umaortografia que ele desenvolvera com este prop6sito. Assim, olivrocontribui para a invenc;:ao litenlria dos papago em relac;:aoa suapr6pria cultura, Esta leitura diferente, inserida em Pilnanshamanism, e de importancia mais do que apenas local.

E intrfnseco a ruptura da autoridade monol6gica que asetnografias nao mais se dirijam a urn unico tipo geral de leitor. Amultiplica9ao das leituras possiveis reflete 0 fato de que aconsciencia "etnografica" nao pode mais ser considerada comomonop6lio de certas culturas e classes sociais no Ocidente. Mesmonas etnografias em que faltem os textos em lfngua nativa, os leitoresindfgenas idio decodificar diferentemente as interpreta90es e 0

conhecimento nativo textualizados. Os trabalhos polifOnicos saoespecialmente abertos a leituras nao especificamente intencionais.Os leitores trobriandeses podem achar as interpreta90es deMalinowski cansativas, mas considerar seus exemplos e extensastranscri95es evocativas. Os ndembu nao irao glosartao rapidamentequanta leitores europeus as diferentes vozes que existem nos textosde Turner.

~A recente teoria literaria sugere que a eficacia de urn textoem fazer sentido de uma forma coerente depende menos dasintenc;:5espretendidas do autor do que da atividade criativa de urnleitor. Para citar Roland Barthes, se urn texto e "a tram a de cita95esretiradas de inumenlveis centros de cultura", entao "a unidade deurn texto repousa nao em sua origem mas em seu destino"(1977:146, 148). A escrita da etnografia, uma atividade nao-controlada e multissubjetiva, ganha coerencia atraves de atosespecfficos de leitura. Mas ha sempre uma variedade de leiturasposs{veis (alem das apropria90es meramente individuais), leiturasalem do controle de qualquer autoridade unica. Pade-se abordaruma etnografia classica buscando simplesmente captar ossignificados que 0 pesquisador deduz a partir dos fatos culturaisrepresentados. Ou, como sugeri, pode-se tambem ler a contrapeloda voz dominante no texto, procurando outras semi-ocultas

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autoridadc:., 1"1111"'111'11111I1" All ~cllcl'l~Oes, textos e eita90esreuniclas Iwl, I l'rll 1lit II l'lIl1ll1 rOliOllle llucstionamento dos estilosCOlOlli;Ii,',,Ii' 1I'1'1l'1lt'1I1l\'t'AII, t'!1111 1\ tlKpUIlSnO da alfabetizagao e daCOil:;, 'i"1 II 1'1 d 11'1"'" MIl'll, 1I11\'ilN pwmibilidudes de leitura (e portanto(\,' ,':" III" I dllq dl'1I11II"nllll 1'llIlllnds esl50 surgindo.16

1\ '111l1'IPll/lllinll !oxlllul tin autoridade e urn problemaIf'( '( 1111'lIlfl 1'1111I !11i ClXPI'I'IIIICIlIOS contemporaneos em etnografia.17

11,11 11I11l1t 1 IIml", 1111111/.0, I'clIlislu - representado pelo frontispfciod!1 (J.t ''''N0II/IlIf(/,\' do I'ac(fico Ocidental e baseado na construc;:aod", \1111 tahiti/III vivant culluml destinado a ser visto a partir de urn1\1Ih.:() ponlu de vista, aquele que une 0 escritor e 0 leitor -, podellgOl'lt set' identificado como apenas urn paradigma possIvel deuUloridade. Pressupostos politicos e epistemol6gicos estao em-butidos nestes e em outros estilos, pressupostos que 0 escritoretnografico nao pode mais se permitir ignorar. Os modos deautoridade resenhados aqui - 0 experiencial, 0 interpretativo, 0

dia16gico, 0 polifOnico - estao disponIveis a todos os escritoresde textos etnograficos, ocidentais e nao-ocidentais. Nenhum eobsoleto, nenhum e puro: ha lugar para invengao dentro de cadaurn destes paradigmas. Vimos como novas abordagens tendem aredescobrir pniticas antes descartadas. A autoridade polifOnicaolha com renovada simpatia para compendios de textos em linguanativa - formas expositivas distintas da monografia centralizadanum s6 tema e ligada a observagao participante. Agora que aquelasingenuas afirmag6es da autoridade experiencial foram subme-tidas a suspeigao hermeneutica, podemos antecipar uma atengaorenovada a interagao sutil entre componentes pessoais e discipli-nares na pesquisa etnografica.

Os processos experiencial, interpretativo, dial6gico e poli-fonico sac encontrados, de forma discordante, em eada etnografia,mas a apresentagao eoerente pressupoe urn modo controlador deautoridade. Urn argumento e que esta imposiyao de coerencia aurn processo textual sem controle e agora inevitavelmente umaquestao de escolha estrategica. Tentei distinguir importantes estilos

de autoridade na medida em que se tomaram visfveis nas decadasrecentes. Se a escrita etnognifica esta viva, como acredito que este-ja, ela esta em luta no limite dessas possibilidades, ao mesmotempo que contra elas.

Apenas os exemplos ingleses, americanos e franceses sacdiscutidos. Ainda que os modos de autoridade aqui analisadospossam, muito provavelmente, ser amplamente generalizados,nenhuma tentativa foi feita no sentido de estende-los a outrastradi90es nacionais. E suposto tambem, na tradi9ao antipositivistade Wilhelm Dilthey, que a etnografia e um processo de inter-preta<;8.o, nuo de explica<;uo. Modos de autoridade base.adosem epistemologias das ciencias naturais nao sao aqui discutidos.Em virtu de de sua enfase sobre a observa9ao participante comourn processo intersubjetivo e como tra90 definidor da etnografiado seculo XX, essa discussuo deixa de ladouma serie de fontesalternativas de autoridade: por exemplo, 0 peso do conhecimentoacumulado em "arquivos" sobre determinados grupos; ou a pers-pectiva de comparac;:ao intercultural; ou 0 trabalho de levanta-mento estatistico.A "heteroglossia" supoe que as "]{nguas nao se excluem, massim tem interse\=oes umas com as outras, de muitas formasdiferentes (a lfngua ucraniana, a linguagem do poema epico, doprimeiro simbolismo, do estudante, de uma gerac;:aoespedficade criangas, do intelectual mediano, do nietzschiano, etc.).E possIvel mesmo que a propria palavra 'linguagem' perca todosentido nesse processo - pois aparentemente nao ha nenhumplano tinieo no qual todas estas 'linguagens' possam se justa-por" (291). 0 que se diz das linguagens se aplica igualmente as"culturas" e as "subculturas". Ver tambem Volosinov (Bakhtin?),1953:291, especialmente capitulos 1-3; e Todorov, 1981:88-93.Nao tentei investigar estilos de escrita etnognifica quepossarnestar sendo gerados fora do Ocidente. Como Edward Said, PaulinHountondji e outros rnostrararn, urn consideravel esforgo de "lim-peza" ideologica, um trabalho critico de oposi9ao, e continuo;

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e a ele que os intelectuais nao-ocidentais tern devotado grandeparte de suas energias. Minha discussao se mantem nos limitesde urn ciencia cultural realista elaborada no Ocidente, emboraem suas fronteiras experimentais. Mais ainda: ela nao estaconsiderando aqui como areas de inova9ao os generos "para-etnograficos" da hist6ria oral, do romance nao-ficcional, 0 "novojornalismo",a literatura de viagem e 0 filme documentario.

Na atual crise de autoridade, a etnografia emergiu como temapara 0 escrutinio historico. Para novas abordagens criticas, verHartog, 1971; Asad, 1973; Burridge, 1973:cap. 1; Duchet, 1971;Boon, 1982; De Certeau, 1980; Said, 1978; Stocking, 1983; eRupp-Eisenreich, 1984.

Sobre a supressao do dialogo no frontispfcio do livro de Lafitaue a constituic;:ao de uma "antropologia" textualizada, a-hist6ricae visualmente orientada, ver a detalhada analise de Michel deCerteau (1980).

Os nuer, Sao Paulo, Perspectiva, 1978, p. 223.

o conceito e algumas vezes muito apressadamente associ ado aintuic;:i'ioou empatia, mas como uma descric;:aodo conhecimentoetnografico Verstehen envolve propriamente uma critica daexperiencia empatica. 0 significado exato do term a e assunto dedebate entre as especialistas em Dilthey (Makreel, 1975:6-7).

o livro de Favret-Saada foi traduzido em ingles cOmO Deadlywords (1981); ver especialmente cap. 2. Sua experiencia foireescrita em outro nivel ficional em Favret-Saada e Contreras,1981.

Seria errado passar por cima das diferenc;:as entre as posic;:5este6ricas de Dwyer e de Crapanzano. Dwyer, seguindo GeorgLuckacs, traduz 0 dialogo para a diaIetica marxista-hegeliana,mantendo fora de alcance, portanto, a possibilidade de umarestaurac;:ao do sujeito humano, uma especie de realizac;:ao no eatraves do outro. Crapanzano recusa qualquer ancoragem numateoria englobante, sendo sua unica autoridade a do escritor dodialogo, uma autoridade minada por uma narrativa inconclusivade encontro, ruptura e confusao. (13 importante notar que 0

dhllogo, tal como usado por Bakhtin, nao e redutivel a diaIetica).

Para uma primeira defesa da antropologia dialogica, ver tambemTedlock, 1979.

Sobre os "tipos" realistas, ver Lucka(;s, 1964,passim. A tendenciaa transformar um individuo num enunciador cultural pode serobservada em Dieu d' eau de Marcel Griaule (1948a). Isso ocorreambivalentemente em Nisa de Shostak (1981). Para uma dis-cussao desta ambivalencia e da complexidade discursivaresultante, ver discussao em "Sobre a alegoria etnografica" nestelivro.

Para um estudo deste modo de produc;:ao textual, ver no presentelivro "Trabalho de campo, reciprocidade e elaborac;:ao de textosetnograficos". Ver tambem neste contexto Fontana, 1975, aintrodu9ao a The Pima Indians de Frank Russell, sobre 0 ocultoco-autor do livre, 0 indio papago Jose Lewis; Leiris, 1948, discutea colaborac;:ao como co-autoria, tal como 0 faz Lewis, 1973. Parauma defesa programatica da enfase de Boas nos textos vermkulose sua colaborac;:ao com Hunt, ver Goldman, 1980.

o elaborado Bwiti (1985) de James Fernandez e uma transgressaoconsciente da sintetica forma monognlfica, retornando a escalamalinowskiana e revivendo as func;:oes "arquivisticas" daetnografia.Tal projeto e anunciado por Evans-Pritchard em sua introdugaoa Man and woman among the Azande (1974), urn trabalhoposterior que pode ser visto como uma rea9ao contra a naturezafechada, anaJ{tica de suas proprias etnografias anteriores. Suainspiragao e reconhecidamente Malinowski. (A nogao de urn livrointeiramente composto de citag5es e urn sonho modernistaassociado a Walter Benjamin).

Para uma perspectiva tipo "dinamica de grupo" na etnografia,ver Yannopoulos e Martin, 1978. Para uma etnografia explicita-mente baseada em "seminarios" nativos, ver Jones e Konner,1976.

o uso que faz Favret-Saada do dialeto e do tipo italico em Lesmots, la mort, les sorts (1977) e uma solu~ao entre muitas paraurn problema que vem preocupando por muito tempo os roman-cistas realistas.

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Um 1111111,,111 I"~ II1111 I 1111 11111 ICl .1l1lt'Hlivo do oxposi9UOpolifOnica e[nllW! ·"'11 I','I'I 1'.11\"." 1"11111'.1'11111 plll'll <]uIIII'O volumes, dos textos('I ""}!, 11/ It lI~ 1'_. IIIII/Ii, II/ovm:ndlls (1 Irnnscrilos entre 1896 e 19141"1/ 11""I'~ \Vn'klll /III /{t'scrvn Sioux (!l: Pine Ridge. Tres tftulosIII 111"111" l't.lIl1, (1dlllld(l.~ pOl' Raymond J. DeMaille e ElaineItllllll'l 11/~(lIiI /J(:'/icf<llid ritual (l982a), Lakota society (l982b)I' 11/~,'frl mylh (l9H3). Estcs absorventes volumes na verdadeI('d('~.cllhrcrn a hOl11ogencidade tcxtual da cIassica monogl'afiadtJ Wnlkcr, de 1917, The sun dance, uma suma das declara90esl/ldivitluais publicadas numa tradu9ao. Estas decIara90es feitaspOl' mais de trinta pessoas assim chamadas de "autoridades"complementam e transcendem a sfntese de Walker. Urn longotrecho de Lakota belief and ritual foi escrito pOl'Thomas Tyon,interprete de Walker. 0 quarto volume da cole9ao sera umatradu9ao de escritos de George Sword, urn guerreiro e juiz oglalaencorajado par Walker a registrar e interpretar 0 modo de vidatradicional. Os primeiros dois volumes apresentam os textos naopublicados dos sabios lakota e as pr6prias descri90es de Walkerem formato identico. A etnografia aparece como urn process a deprodu9ao coletiva. E essencial notal' que a decisao da SociedadeHist6rica do Colorado de publicaI' estes textos foi estimuladapelas solicita90es crescentes da comunidade oglala em PineRidge pOl'c6pias do material de Walker para usa-Ias em aulas dahist6ria oglala (sobre Walker, vel' Clifford, 1986a: 15-17).

Para urn survey muito uti! e completo das recentes etnografiasexperimentais, vel' Marcus e Cushman, 1982; vel' tambemWebster, 1982; Fahim, 1982; e Clifford e Marcus, 1986.