JÁ NINGUÉM CHORA POR MIM SERGIO...

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PRÉMIO CERVANTES 2017

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JÁ NINGUÉM CHORA POR MIMSERGIO RAMÍREZ

Há muito reformado da Polícia Nacional, o inspe-tor Dolores Morales trabalha agora como dete-tive privado, investigando adultérios para uma

clientela de poucos recursos, a partir da sua agência situada num shopping center depauperado, em Manágua. Mas um acontecimento imprevisto vai arrancá-lo da rotina: desapareceu a enteada de um dos homens mais poderosos do país e Morales recebe a incumbência de encontrá-la.

Rapidamente, o desaparecimento da jovem revelará a ponta de um icebergue que esconde as cloacas do sistema político e social do país. É nesse momento que Morales compreende que não é só o paradeiro da rapariga que tem de descobrir, mas as verdadeiras razões pelas quais ela desapareceu.

Carregado de humor e ironia, e com a mestria narrativa que caracteriza toda a sua obra, Sergio Ramírez regressa ao policial com uma das suas personagens mais memoráveis, traçando um implacável retrato social da realidade nicara-guana, seguindo a mais pura tradição do género negro.

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Sergio Ramírez nasceu em Masatepe, Nicará-gua, em 1942. Faz parte da geração de escritores latino-americanos que surgiu depois do boom, e, após um longo exílio voluntário na Costa Rica e na Alemanha, abandonou por algum tempo a sua carreira literária para se integrar na revolu-ção sandinista que fez cair a ditadura do último Somoza. Em 1984 foi eleito vice-presidente da Nicarágua, apoiando a candidatura de Daniel Ortega, de quem mais tarde se distanciaria politicamente a ponto de se tornar um dos mais acérrimos críticos do atual presidente. Em 1996 colocou um ponto final na sua vida política e passou a dedicar-se apenas à escrita.Com o romance Castigo divino (1988) obteve o Prémio Dashiell Hammett em Espanha, e, com o seguinte, Un baile de máscaras, ganhou o Prémio Laure Bataillon para o melhor romance estrangeiro traduzido em França. Em 1998 ven-ceu o Prémio Alfaguara com Margarita, está lindo o mar. Em 2011 recebeu, no Chile, o Pré-mio Ibero-Americano de Letras José Donoso pelo conjunto da sua obra literária e, em 2014, o Prémio Carlos Fuentes. Em 2017 foi-lhe atri-buído o Prémio Cervantes.

«Um romance viciante. Escrito com o talento que só os bons escritores têm.»Luisge Martín

«Uma denúncia explícita à corrupção que sustenta o regime [nicaraguano].»El País

«Com o seu mais recente romance, Ramírez recria aspetos da Nicarágua atual, tais como os abusos de poder, a censura e a deterioração dos direitos humanos.»Vanguardia

PRÉMIO CERVANTES 2017ISBN 978-972-0-03158-7

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SERGIO RAMÍREZ

JÁ NINGUÉM CHORA POR MIM

Tradução de Helena Pitta

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1. Huevos rancheros a la diabla

O vetusto Lada passou de azul-celeste a azul da Prússia ao sair da oficina onde lhe fizeram milagres na carroçaria, esburacada pelas balas do atentado de há tantos anos, no qual Lorde Dixon perdeu a vida. Felizmente o motor não sofrera os impactos e, naquela sexta--feira de agosto, o valente carrinho dirigia-se, airoso, para sul, pela estrada Masaya, com o inspetor Dolores Morales ao volante.

As estruturas metálicas das árvores da vida, mandadas semear pela primeira-dama, povoavam o passeio central e as barreiras divi-sórias da estrada, formando um bosque imenso e estranho, com os arabescos das suas folhagens amarelo-canário, azul-cobalto, fúchsia, verde-esmeralda, violeta-genciana, rosa-mexicano e rosado-persa er-guendo-se entre o emaranhado dos letreiros comerciais.

Seguindo as indicações do mapa que levava no banco do lado, dirigiu-se para oeste pela autoestrada Jean Paul Genie na rotunda das Galerias Santo Domingo e, depois, por alturas do Clube Terraza, virou outra vez para sul pelo antigo caminho de Las Viudas, deixando para trás o hotel Barceló e o colégio Centroamérica dos jesuítas.

O caminho, agora pavimentado mas em más condições, serpen-teava até aos primeiros contrafortes da serra de Manágua. Pouco antes de chegar à urbanização Intermezzo del Bosque, abria-se uma vereda destinada a tornar-se, dentro em pouco, uma estrada em con-dições, marcada no mapa com uma grossa linha vermelha: uns cinco quilómetros de percurso entre árvores antigas, derrubadas pelas motosserras para cima dos despojos dos velhos cafezais, também arrasados de raiz, cedros, árvores-da-chuva, albízias e mognos, que

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mostravam os seus cotos avermelhados. As escavadoras nivelavam socalcos onde iriam erguer-se mansões muralhadas e não era difícil prever que os galinheiros, mercearias e casinhotos que ainda se viam na vereda estavam destinados a desaparecer diante do avanço triun-fante das lagartas dos tratores.

Um X assinalava o destino no mapa. Ao lado do portão de acesso havia uma guarita com vidros à prova de bala e, junto da guarita, um Jeep Wrangler com dois homens, um deles ao volante e o outro no lugar do pendura, segurando uma metralhadora Uzi como quem em-bala uma boneca; mais um dentro da guarita e dois diante do portão.

Não conseguiam disfarçar a sua catadura de rapazes de bairros pobres, apesar dos fatos cinzentos cor de rato e das gravatas de po-liéster, bem apertadas nos colarinhos tesos de goma, que deviam fazer-lhes comichão. Calçavam também sapatos iguais, tão pesados que passavam por ortopédicos.

Aquele que parecia o chefe saiu do jipe e, com um movimento giratório da mão, indicou-lhe que baixasse o vidro da janela. O maní-pulo não funcionava, de modo que o inspetor Morales abriu a porta. Nessa altura, ouviu o ruído dos corta-relva, decididos a barbear os campos extensos do outro lado do muro e, a par do ruído, o cheiro a seiva dos caules, lançados como chuva miúda.

O homem usava óculos escuros de uma cor impenetrável. Tinha o cabelo rapado à máquina zero e, atrás da orelha, a serpentina do auricular. Sob a aba do casaco entrevia-se-lhe a pistola automática metida num coldre de plástico. O agente Smith do Matrix em pessoa.

Pediu-lhe a identificação com uma cortesia seca, fotografou-a usando o telemóvel e, depois de a devolver, ele próprio lhe colou no peitilho da camisa, do lado do coração, um autocolante com uns círculos concêntricos. Era a senha do dia para os visitantes, mas mais parecia um alvo para guiar a pontaria.

O da guarita recebeu a ordem para ativar o portão elétrico, que correu sem ruído, e o Wrangler pôs-se em movimento diante do Lada. Tudo se parecia com os torneios de golfe da televisão por cabo em que Tiger Woods jogava: colinas suaves que desapareciam na distância, a relva como um pano de bilhar, salpicada de árvores

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transplantadas por gruas, e, sob o sol daquela manhã de agosto, uma lagoa artificial que brilhava ao longe.

O asfalto do caminho era suave como seda e os pneus do Lada quase não faziam barulho ao deslizar à velocidade imposta pelo Wrangler, enquanto os aspersores espalhavam sobre os prados finas cortinas de água irisada. Até o céu lustroso e sereno, com as suas nuvens longínquas e inofensivas de bilhete-postal, parecia perten-cer a um país estrangeiro.

O Wrangler parou ao lado de um letreiro que assinalava o es-tacionamento para visitantes, e o agente Smith indicou-lhe o lugar onde devia deixar o veículo, embora o parque asfaltado estivesse deserto. O inspetor Morales saiu, apoiando primeiro a ponteira da bengala. Tinha engordado e usava-a para o ajudar a aliviar as dores crescentes na anca do lado da prótese.

Com a mesma cortesia seca, o agente Smith pediu-lhe que abrisse a mala e depois fê-lo estender os braços e afastar as pernas para o revistar, a bengala no ar na mão esquerda, a mala na direita. Aca-bou por descobrir o revólver .38 de cano curto que o inspetor conti-nuava a usar no coldre de cabedal, preso com um velcro ao tornozelo artificial.

O agente Smith entregou o revólver, com coldre e tudo, a um dos subalternos, que o meteu num saco transparente, entregando-lhe um talão. Nessa altura, apareceu um carrinho de golfe enfeitado com uma bandeirola no cabo da flexível antena de rádio.

O inspetor Morales instalou-se ao lado do condutor, tão silen-cioso como os outros. Até agora, só o agente Smith, sentado atrás, lhe tinha dirigido algumas palavras, as imprescindíveis. As únicas vozes que se ouviam, exigentes e alvoroçadas, ressoavam do apare-lho de rádio instalado debaixo do volante.

A  mansão de grandes vidraças, protegidas por toldos às riscas verdes e brancas, que se erguia numa elevação entre palmeiras reais, abria-se em duas alas e parecia um hotel de férias, só que sem hós-pedes. De um lado, dentro de um círculo marcado sobre uma plata-forma de betão, repousava um helicóptero Bell, azul e branco. O vento que chegava do denso arvoredo atrás da mansão fazia estremecer as pás sem conseguir movê-las.

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Um mordomo, vestido como o padrinho de um casamento, con-duziu-o através de uma galeria, de onde se podia ver um jardim com um caminho de lajes que se abria entre os maciços de plantas. Chegados a uma sala discretamente iluminada, deixou-o sozinho. Os sofás, que de longe já cheiravam a cabedal, rodeavam uma im-ponente mesa de vidro cheia de livros de arte. O  inspetor Mora-les refastelou-se num dos sofás, tão fofo que teve vontade de nunca mais se levantar dali.

Nas quatro paredes pendiam quadros enormes. Eram olhos. Sós ou aos pares. Uns muito abertos, como se revelassem assombro, ou-tros alerta, como se perscrutassem o visitante e fossem capazes de lhe seguir os passos, e, naquele que tinha à sua frente, um dos dois olhos fechava-se numa piscadela pícara. Todos a preto sobre fundo branco, trabalhados com tanto pormenor que pareciam fotografias. Mas havia um que vertia uma lágrima vermelha, a única nota de cor em todo o conjunto.

Atrás de uma porta de correr de vidro, um empregado de casaco vermelho, laço e luvas brancas punha a mesa para o pequeno-almoço de duas pessoas. Os seus passos não se ouviam, nem as peças de loiça ou os talheres faziam qualquer ruído ao serem pousados.

O  reino dos ricos é o silêncio, pensou, as mãos apoiadas no punho da bengala. Gostou. Eram reflexões que devia anotar no seu caderno escolar, mas quando tentava fazê-lo já as tinha esquecido. Além disso, para que lhe serviriam?

Lorde Dixon dir-lhe-ia que fazia muito mal em descurá-las. Um filósofo da vida deve deitar sempre mão à caneta, porque não tem o direito de desperdiçar os seus pensamentos. Caso contrário, transforma-se num pensador inofensivo, num leão que perdeu os caninos, e não há coisa pior do que um leão obrigado a um regime vegetariano.

Por onde andaria Lorde Dixon? Os seus aparecimentos eram imprevisíveis.

Já caía numa espécie de sonho quando a pancada distante de uma porta, e depois de outra, e mais outra, agora atrás de si, o fez endirei-tar-se, lutando contra o estorvo da prótese e o empecilho da barriga; mas para isso tinha a bengala.

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Miguel Soto Colmenares apareceu à sua frente, descalço e num fato de treino de algodão grosseiro. Com uma toalha, limpava ener-gicamente o rosto banhado em suor e, quando lhe estendeu a mão, uma mão grande, húmida e quente, sentiu o cheiro a fermentação e a toxinas libertadas pelo corpo dele. Ao que parece, exercitava-se todas as manhãs antes do pequeno-almoço. Corrida em passadeira, spinning, remo, se calhar pesos, como os seus guardas robustos.

– Gosta dos quadros? – perguntou-lhe, apontando para as pare-des com um gesto displicente. – São do Abularach, um guatemalteco genial. Comprei-lhe um lote importante em Nova Iorque. Pinta tam-bém corridas de touros, mas é dos olhos que eu gosto.

Só tinha visto Soto nos jornais e na televisão. E as imagens que lhe vinham à memória não eram as mais recentes, mas as do tempo em que o seu primeiro banco, o Agribank, declarara falência, uns quinze anos antes. Nessa altura, toda a gente pensara que a sua sorte tinha mudado.

A voz dele era grossa e clara, e os seus modos simples e cordiais. Eles, pensou, além de donos do silêncio, podem ser donos da humil-dade, que não é mais do que arrogância encoberta. Não lhes custa serem afáveis, porque não prescindem de nada, como acontece com os cheques doados às instituições de beneficência, que descontam dos impostos. Esta reflexão também não iria para o seu caderno.

Sentaram-se, e o anfitrião, esquecendo-se dos olhos que conti-nuavam a observá-los de todos os lados, perguntou-lhe, com um in-teresse adulador, pela mãe, que tinha morrido há anos e anos, e pela mulher, que não tinha, como se fossem velhas conhecidas. O inspetor Morales respondeu que estavam muito bem de saúde. Se lhe tivesse dito a verdade, o mais provável é que o outro não se alterasse.

Esbelto e saudável nos seus quase setenta anos, com a pele bron-zeada e o cabelo branco sedoso, não deixava de ter qualquer coisa de tosco e de inseguro. Embora casado com uma mulher de apelido aristocrático, viera de baixo, um camponês dos vales remotos entre as montanhas de Jinotega, no Norte da Nicarágua, onde os colo-nos europeus empobrecidos tinham formado famílias endogâmicas sem nunca se misturarem com indígenas ou mestiços.

Recordava-lhe Gianni Agnelli, o defunto magnata da Fiat. Onde já

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vira Agnelli para poder fazer comparações? Num programa do canal História. Atirava-se, nu, da borda do seu iate Agneta para as águas do Adriático, a pele mais branca nas nádegas e em volta das virilhas do que no resto do corpo; e, antes do mergulho, nos instantes que durava a filmagem, o mais visível era o tamanho do órgão viril, como teria dito a sua avó Catalina, que falava sempre com circunlóquios.

– Envergonhe-se desses pensamentos lascivos, que põem em dú-vida a sua virilidade – ouviu Lorde Dixon dizer, no momento em que se levantava, porque chegara a hora de passarem para a mesa.

– Onde te tinhas metido? – perguntou-lhe.– Acabo de circundar a Terra e de andar por ela – respondeu Lorde

Dixon.O mordomo abriu a porta de correr e deixou-os entrar. Afastou

com grande parcimónia a cadeira de Agnelli e, depois de sentar o inspetor Morales, tirou-lhe a bengala. Teria sido capaz de o despo-jar também da mala, não fosse ele protegê-la com um movimento instintivo. Entrou então o empregado que pusera a mesa e que lhes entregou o menu.

– Como nos restaurantes – disse Lorde Dixon.Um menu numa grossa cartolina de linho, do tamanho de uma

folha, impresso em letra de carta, com a data desse dia em pé de pá-gina. Agnelli consultava-o, sem deixar de dar toques com a toalha no pescoço e na testa.

– Pergunte-lhe se quando toma o pequeno-almoço sozinho tam-bém lhe imprimem um menu – disse Lorde Dixon.

O  empregado trouxe-lhes, de imediato, sumo de laranjas aca-badas de espremer. O inspetor Morales escolheu o prato de frutas tropicais e Agnelli a meia toranja rosada. Depois vinha a lista dos ovos:

Œufs pochésOmelette aux fines herbes

Ham and eggs American styleHuevos rancheros a la diabla

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O  café também vinha descrito no menu: Maragojipe, colheita 2010, seleção orgânica, fazenda La Cumbancha, Jinotega.

Agnelli pediu ovos pochés e devolveu a cartolina com displi-cência. Era óbvio que pedia sempre o mesmo. O inspetor Morales, distanciando-se das complicações com os idiomas e com a fome já alvoroçada, pediu os huevos rancheros a la diabla, o que se revelou um fracasso. Num grande prato, quente ao tato, trouxeram-lhe dois ovos fritos enfeitados com um raminho de salsa e uma pequena taça de molho, sem rasto de picante. Mais nada, além de umas fa-tias de pão escuro. E o de Agnelli era tão-só uns ovos fervidos em água sobre uma cama de espargos.

– O dinheiro não lhes serve para matarem os desejos de qualquer cristão – disse Lorde Dixon. – Suam no ginásio e só comem migalhas, julgando assim adiar a morte. Cortesia da minha parte para o seu caderno de anotações filosóficas, inspetor.

Agnelli ia saltando com loquacidade de um assunto desportivo para outro. Dava como garantido que Román Chocolatito González ganharia por knockout o quarto título de campeão supermosca na luta já marcada contra o mexicano Carlos Cuadras e que Cheslor Cuthbert, o ilhéu de Corn Island, ficaria como terceira base titular dos Royal de Kansas City, destronando Mike Moustakas.

Entretanto, o inspetor Morales perguntava-se, sorrindo às vezes por delicadeza e servindo-se do guardanapo engomado porque a gema dos ovos, demasiado líquida, tendia a escorrer-lhe pelo queixo: qual a razão do convite para aquele pequeno-almoço? Que quereria Soto? Porque não se descosia?

– Estou a par daquela sua atuação no caso do rendez-vous dos narcos na fazenda do Mombacho, nos seus tempos de agente anti-droga – disse Agnelli de súbito, pousando sobre a toalha as mãos grosseiras, embora de unhas bem arranjadas, como se pretendesse que o seu hóspede as examinasse.

– Rendez-vous quer dizer um encontro, uma reunião – sussurrou--lhe Lorde Dixon.

Os jornais batizaram o que aconteceu depois da captura dos chefes narcotraficantes como «o massacre de Herodes», porque os respon-sáveis pela operação foram decapitados como inocentes crianças de

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peito. Condecoraram-nos numa cerimónia pública, mas ao terceiro dia o comissário Canda, naquela altura chefe da Polícia, ordenou que cessassem funções por agirem sem ordens superiores, acatando ins-truções do ministro, que, por sua vez, as recebera do presidente.

– Já ninguém se lembra disso agora – disse o inspetor Morales.– Mas eu tenho boa memória – respondeu Agnelli. – Foi aí que

o seu colega do litoral perdeu a vida. Como se chamava?– Excelente memória, estou a ver – disse Lorde Dixon.– Bert Dixon – respondeu o inspetor Morales. – Subinspetor Bert

Dixon.– Nem se dê ao trabalho de lhe esclarecer que já me tinham ma-

tado quando se deu essa operação do Mombacho – disse Lorde Dixon.– Afro-caribenho, como se diz agora – comentou Agnelli.– Bela hipocrisia – disse Lorde Dixon. – Negro de carapinha, para

quê andar por veredas…– Bom, agora vamos ao meu assunto – disse Agnelli. – Tenho um

caso e você é o homem de que necessito.– Aí vem a proposta, olho! – disse Lorde Dixon.– Não tenho uma clientela assim tão distinta – respondeu o ins-

petor Morales.O prato untado de amarelo desagradava-lhe e o empregado veio

levantá-lo como se o tivesse invocado.– A humildade é virtude dos cagões – disse Lorde Dixon, franca-

mente desgostoso.– Mas agora vou entrar eu na sua lista – sorriu Agnelli.– Não precisará de mim para que investigue o desaparecimento de

talheres de prata ou de algum cão de raça – disse o inspetor Morales.– Não, nada disso, nesta casa não há possibilidade de se perder

nada – disse Agnelli, voltando a sorrir.– O cliente não lhe explicou para que precisa de si porque você

não o deixa – disse Lorde Dixon.– Seja para o que for, pode pagar a melhor equipa de investiga-

dores, até trazê-los dos Estados Unidos – disse o inspetor Morales.– Que nem lhe passe pela cabeça dizer-lhe que também pode

telefonar ao próprio ministro da Governação para lhe pedir ajuda – disse Lorde Dixon.

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– O  ministro da Governação ficaria encantado por ajudá-lo  – disse o inspetor Morales.

– Tomou pequeno-almoço comigo anteontem, nesta mesa, aí mesmo onde você está sentado – disse Agnelli. – Mas a nossa con-versa foi sobre outros assuntos. Não quero, de maneira alguma, meter a Polícia neste caso.

– Julgo que comete um erro – disse o inspetor Morales. – Deixe--o nas mãos do ministro e esta mesma noite entregam-lhe preso o vigarista, ou o que quer que seja.

– Necessito de discrição absoluta – disse Agnelli, e os seus dedos de unhas nacaradas tamborilaram, impacientes, na mesa. – Por isso escolhemos a sua agência, porque é pouco visível.

– Uma agência que não vale a ponta de um corno, é o que ele quer dizer com isso de pouco visível – disse Lorde Dixon. – Mas passemos por cima desta alusão desprestigiante.

– Caramba! – murmurou o inspetor Morales, dando uma palmada na orelha, como se afugentasse um mosquito.

– Desculpe? – disse Agnelli, levantando as sobrancelhas.– Não, nada, estou a ouvi-lo – disse o inspetor Morales, que, de

má vontade, tirou da mala o seu caderno escolar e o pousou na mesa, juntamente com a esferográfica Bic.

Agnelli deve ter carregado nalguma campainha oculta, porque nesse momento se ouviu alguém entrar com um ruído decidido de ta-cões. Era Mónica Maritano, a assistente de relações públicas, que fora procurá-lo ao escritório no dia anterior, convidando-o para tomar ali o pequeno-almoço.

Cumprimentou-o com uma ligeira inclinação da cabeça, pousou na mesa diante de Agnelli uma pasta castanha, fechada com cordões elásticos, e tornou a sair, bamboleando-se nos saltos e deixando um rasto intenso do perfume que ele já conhecia.

– Uma pessoa da minha família desapareceu e quero que a encon-tre – disse Agnelli, entregando-lhe a pasta.

– Um sequestro? – perguntou o inspetor Morales, enquanto abria o caderno e alisava a folha em que ia escrever.

– Inicialmente pensei nisso – disse Agnelli. – Mas, ao fim de quase uma semana, ninguém entrou em contacto comigo para pedir resgate.

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– Às vezes demoram – insistiu o inspetor Morales.– Descartámos a ideia de sequestro – disse Agnelli. – E não tem

necessidade de anotar nada, está tudo na pasta.– Não é altura de lhe perguntar de quem se trata? – sugeriu Lorde

Dixon.– Trata-se da Marcela, filha da minha mulher – disse Agnelli.

– Precisamos de saber o seu paradeiro.– Se não a sequestraram, é porque fugiu de casa – disse Lorde

Dixon.– A rapariga teve alguma desavença com a mãe? – perguntou o

inspetor Morales.– Não se preocupe com as causas – disse Agnelli, examinando

as unhas polidas de cada uma das mãos. – O seu trabalho é só o de encontrá-la.

– Não pensou num namorado? – perguntou o inspetor Morales.– Não lhe conhecemos nenhum namorado – respondeu Agnelli.– Namorado? Essa miúda fugiu com um amante que não agrada

à família – disse Lorde Dixon. – Porque é casado, porque não tem apelido sonante ou porque é agarrado.

– Quando é que desapareceu? – perguntou o inspetor Morales.– Há uma semana, nas Galerias Santo Domingo  – respondeu

Agnelli. – Nessa noite foi ao cinema com umas amigas, levantou-se a meio da sessão e não voltou.

– A  pasta tem os dados das amigas?  – perguntou o inspetor Morales.

Agnelli fez que não.– Voltaram todas para os Estados Unidos, onde estudam – disse.

– E nenhuma delas sabe de nada, já lhes perguntámos.– Andava com guarda-costas? – perguntou o inspetor Morales.– Os rapazes ficaram à espera fora do cinema – respondeu Agnelli.

– Ela mantém-nos sempre à distância porque não gosta que a vigiem.– Ela conduzia carro próprio? – perguntou o inspetor Morales.– Ficou no estacionamento – disse Agnelli.– Que tipo de carro? – perguntou o inspetor Morales.– Um BMW Cabrio – respondeu Agnelli. – Que tem isso de re-

levante?

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– Um carrinho de cem mil dólares, tão humilde como o seu Lada, inspetor – murmurou Lorde Dixon. – É essa a relevância.

– Como é ela? Solitária? Pouco sociável? – perguntou o inspetor Morales.

– Cinja-se ao que consta na pasta – disse Agnelli, e fez tenção de olhar para o relógio, embora não tivesse nenhum no pulso.

– Nesse caso far-se-á o que for possível – disse o inspetor Mo-rales fechando o caderno, no qual, obedientemente, não escrevera uma única linha.

– Na pasta vai encontrar um adiantamento de metade dos seus honorários e também um montante para os gastos correntes – disse Agnelli, levantando-se. – Quando a Marcela for localizada, pagar--lhe-ei o complemento dos gastos, se excederem a quantia que lhe dei, e a outra metade dos honorários.

– Resolvido o caso, volto aqui? – perguntou o inspetor Morales, levantando-se também.

– Você tem o número da Mónica, a minha assistente – respon-deu Agnelli. – Telefona-lhe, e ela enviará um motorista para reco-lher a informação, a qual, peço-lhe, deverá colocar num sobrescrito fechado. O mesmo motorista entregar-lhe-á o restante dinheiro.

– E se precisar de aprofundar algum dado? – perguntou o inspe-tor Morales.

– Não há nenhum dado a aprofundar – respondeu Agnelli. – Se em três dias não descobrir nada, damos por concluído o acordo e você fica com o adiantamento.

– Se nesse prazo que está a fixar não conseguir descobrir nada, devolvo-lhe o adiantamento – disse o inspetor Morales. – Limito--me a descontar os gastos necessários, se eventualmente houver algum.

– Ó meu animal! – disse Lorde Dixon. – Por acaso nasceste filho de milionário? Tiveste Cirineu na tua via-sacra?

– Tenho a certeza de que vai resolver o caso  – disse Agnelli. – E encare-o como um favor muito pessoal que me faz. Eu sei agra-decer favores.

– Vou cumprir o que me pede o melhor que puder – disse o ins-petor Morales.

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– E agora vou tomar banho, tenho de estar na Guatemala às onze, numa reunião de negócios – disse Agnelli, estendendo-lhe a mão.

O mordomo, sempre à frente, e o inspetor Morales, novamente na posse da bengala, voltaram a atravessar a galeria. Nessa altura, o inspetor Morales viu uma mulher de cabelo louro lambido apro-ximar-se pelo caminho de lajes do jardim. Vestia um hábito pardo com uma corda amarrada à cintura, tinha os pés descalços e, na mão, trazia uma faca curva de jardinagem. Agachou-se diante de um maciço de helicónias de cristas vermelhas com rebordos amare-los e cortou uma braçada.

O inspetor Morales parou e, de repente, a mulher ergueu-se para o ver, com uma perturbação em que era percetível algum susto.

Sem palavras de despedida, o agente Smith devolveu-lhe o re-vólver. O portão automático abriu-se e o Lada tomou o caminho de regresso a Manágua. Dois quilómetros depois, o inspetor parou o veículo na saliência de um barranco de onde se avistava a cidade, em baixo, os escassos edifícios erigidos entre o arvoredo que escondia ruas e casas, mais longe o cone azulado do vulcão Momotombo e a península de Chiltepe a entrar lentamente no lago como um velho pé enrugado.

Abriu a mala, tirou a pasta e afastou os elásticos. Havia um enve-lope de papel pardo e dois sobrescritos com dinheiro. Um deles, com a inscrição Adiantamento de honorários, dizia conter cinco mil dólares. O outro, o dos gastos, outros cinco mil.

– Dez mil verdes por um caso tão insignificante, sem contar com os gastos, que se podem inflacionar à discrição – disse Lorde Dixon.

Voltou a meter os sobrescritos na pasta, onde estava também o envelope de papel pardo, que, de momento, não se preocupou em abrir. Com aqueles dez mil dólares, se os ganhasse, já conseguia ir de férias. Se calhar ia conhecer a Disneyworld e tirar uma fotogra-fia com o Pluto, como o primeiro-comissário Canda, agora refor-mado, que se dedicava a administrar as suas três discotecas, onde os traficantes circulavam sem impedimentos nem estorvos.

– Se a jovem Marcela fugiu com o amante, como com toda a razão desconfio, o Agnelli vai comer ao pequeno-almoço os ovos do dito – disse Lorde Dixon. – Œufs pochés.

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– Não me venhas com merdices em francês. Desde quando falas francês? – disse o inspetor Morales, ligando novamente o Lada.

– Agora sobra-me tempo para estudar línguas – respondeu Lorde Dixon.

Ouviram-se ao longe as pás do helicóptero que levava Agnelli para o aeroporto, onde o esperava o seu Falcon de oito lugares, e, ao passarem, alvoroçaram as copas das árvores que ainda sobreviviam aos dentes afiados das motosserras.

O  aparelho, concentrando os reflexos do sol, desapareceu na distância.

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