J. Alisson, Justificacao Em Rm e Gl

13
NOTAS E COMENTÁRIOS Persp. Teol. 22 (1990) 221-233 O TEMA DA J U S T I F I C A Ç Ã O NAS CARTAS AOS ROMANOS E AOS GÂLATAS Para uma nova hermenêutica dos textos paulinos* James N. F. Alisson O.P. Introdução Uma das dificuldades para entender a doutrina de Paulo sobre a justificação é o fato de esse tema constar em escritos que retomam a exposição anteriormente apresentada em forma oral à comunidade cristã da Galácia e de Roma. Ele escreve aos destinatários com a finali- dade de esclarecer assunto anteriormente explicado. É o que se vê nas referências ao querigma que recordam o primeiro anúncio da salvação em Cristo, comunicado aos destinatários em outra ocasião. O uso freqüente da fórmula "acaso não sabeis?" é indício do conhecimento que os destinatários têm sobre o assunto. Quando Paulo adverte os gaia- tas (cf. Gl 1,9; 3,1-5) do desvio ou da interpretação errônea da doutrina cristã, o ponto em questão é uma das verdades fundamentais contidas no querigma que ele lhes tinha transmitido. A propósito da comunica- ção do querigma é bem conhecida a passagem de 1 Co 11,23-26, na qual Paulo repete parte da temática central do querigma, que havia ensi- do aos cristãos de Corinto no início de sua pregação nessa cidade. A abordagem exegética é complexa, pois se trata de interpretação teológica posterior de uma mensagem querigmática que tivera grande impacto sobre os ouvintes, e fora acompanhada comumente de sinais milagrosos. Cabe ao intérprete suprir as lacunas indutivamente. Trata- se claramente de uma mensagem de salvação baseada no Cristo crucifi- cado (1 Co 2,2). Dela resultava a vida eclesial, cuja vitalidade se mani- festava por sinais milagrosos. A incidência dessa mensagem na vida da * Sob o título "Surrogate Victim and Interdividual Psychological Anthropology", este trabalho está sendo publicado simultaneamente por New Blackfriars, Oxford (Inglaterra). 221

description

James

Transcript of J. Alisson, Justificacao Em Rm e Gl

  • NOTAS E COMENTRIOS Persp. Teol. 22 (1990) 221-233

    O TEMA DA J U S T I F I C A O NAS CARTAS AOS ROMANOS E AOS G L A T A S

    Para uma nova hermenutica dos textos paulinos*

    James N. F. Alisson O.P.

    Introduo

    Uma das dificuldades para entender a doutrina de Paulo sobre a justificao o fato de esse tema constar em escritos que retomam a exposio anteriormente apresentada em forma oral comunidade crist da Galcia e de Roma. Ele escreve aos destinatrios com a finali-dade de esclarecer assunto anteriormente explicado. o que se v nas referncias ao querigma que recordam o primeiro anncio da salvao em Cristo, j comunicado aos destinatrios em outra ocasio. O uso freqente da frmula "acaso no sabeis?" indcio do conhecimento que os destinatrios tm sobre o assunto. Quando Paulo adverte os gaia-tas (cf. Gl 1,9; 3,1-5) do desvio ou da interpretao errnea da doutrina crist, o ponto em questo uma das verdades fundamentais contidas no querigma que ele lhes tinha transmitido. A propsito da comunica-o do querigma bem conhecida a passagem de 1 Co 11,23-26, na qual Paulo repete parte da temtica central do querigma, que havia ensi-do aos cristos de Corinto no incio de sua pregao nessa cidade.

    A abordagem exegtica complexa, pois se trata de interpretao teolgica posterior de uma mensagem querigmtica que tivera grande impacto sobre os ouvintes, e fora acompanhada comumente de sinais milagrosos. Cabe ao intrprete suprir as lacunas indutivamente. Trata-se claramente de uma mensagem de salvao baseada no Cristo crucifi-cado (1 Co 2,2). Dela resultava a vida eclesial, cuja vitalidade se mani-festava por sinais milagrosos. A incidncia dessa mensagem na vida da

    * Sob o ttulo "Surrogate Victim and Interdividual Psychological Anthropology", este trabalho est sendo publicado simultaneamente por New Blackfriars, Oxford (Inglaterra).

    221

  • Igreja deu origem tambm a interpretaes errneas que levaram Paulo a formular a doutrina da justificao.

    Uma das dificuldades na interpretao da doutrina paulina da justificao a confuso provocada pelos comentaristas, por suporem que o Apstolo no a presumia conhecida pelos gaiatas e romanos. Contrariamente a esses comentaristas, defendemos a tese de que Paulo supe conhecido o assunto, enunciado em hinos e doloxias cantados nas celebraes litrgicas. S luz desse conhecimento anterior se en-tende a abordagem explicativa da doutrina da justificao.

    Em vista disso, impe-se, antes de tudo, a tarefa de recuperar o querigma, o que implica muito mais do que simplesmente recuperar determinada frmula, como, p. ex., "o querigma consiste na proclama-o da morte e ressurreio de Cristo". Tal frmula, embora verdadeira, no toda a verdade. Pois, para que o querigma chegasse a exercer a influncia profunda e eficaz que obviamente exerceu, certamente deve ter causado uma experincia de salvao ou aberto o caminho para compreender a realidade pessoal e social dos que o ouviram, pelo fato de "seus olhos se abrirem" (Lc 24,31) ou de "se sentirem tocados no ntimo do corao" (At 2,37), como expresso em duas passagens lucanas que ilustram o efeito da pregao ps-pascal.

    Perguntamos, pois, pelas condies de possibilidade de a mensa-gem sobre Jesus Cristo morto e ressuscitado para a salvao da humani-dade (cf. Rm 4,24-25) produzir os efeitos que de fato produziu, e dar origem a textos que a explicam, tais como as explanaes de Paulo sobre a justificao. Eis a questo que abordamos a seguir.

    1. A hermenutica de Girard aplicada ao querigma

    Girard^ procura explicar a existncia da ordem social e da cul-tura bem como a psicognese dos membros de determinada sociedade em termos de um desejo mimtico que leva ao mecanismo da vtima substitutiva (ou bode expiatrio).

    Em breves palavras e numa quase demasiado sucinta exposio, estas so suas hipteses^: A imitao (mmes/s), no tempo e no espao.

    Cf. R. GIRARD: Des choses caches depuis Ia fondation du monde. Paris: Grasset, 1978.

    Cf. o estudo aprofundado feito por J. M. OUGHOURLIAN: Un mime nomm dsir. Paris: Grasset, 1982, que desenvolve este assunto independemente de R. Girard.

    222

  • constitui (na criana) a memria e a linguagem e assim forma a cons-cincia. O "eu", em seu desenvolvimento, se constitui pela limitao dos desejos dos outros, que lhe so, portanto, anteriores e exteriores. O "eu" uma realidade altamente mutvel, radicalmente dependente dos desejos dos outros. No entanto, cada "eu" comumente no o reconhece a no ser em grau muito limitado. Alis, cada "eu" est firmemente convencido de que seus desejos se originam dele mesmo e lhe so pr-prios. A negativa a reconhecer a origem do "eu" na alteridade (mcon-naissance) est presente em quase todas as tradies filosficas do Oci-dente, com seus mitos do "eu" transcendente ou at preexistente, radi-calmente independente da alteridade.

    Os vrios "eus", formados ou formando-se mimeticamente, po-dem conviver sem problemas, enquanto tratam os outros como mode-los e no como rivais. Entretanto, no o que acontece na prtica. Muito prontamente criam rivalidade com os outros e o desejo se torna competitivo, ao mesmo tempo que todo objeto de rivalidade muito depressa perde sua relevncia (o que no seria o caso, se o desejo fosse linear, baseado no objeto e no no mimetismo provocado pelo desejo do outro), resultando facilmente em violncia. Esta, ao assumir propor-es incontrolveis a ponto de levar ao assassmio e matana, torna a vida social extremamente frgil ou at impossvel. Assim, a comuni-dade mergulha numa crise violenta que pe em risco seu tecido social, enquanto o grupo humano no entrar espontaneamente em acordo na escolha de uma vtima substitutiva, que no represente ameaa a nin-gum por ser incapaz de represlia. A vtima eliminada - expulsa, linchada ou sacrificada no importa a maneira de elimin-la, o meca-nismo subjacente o mesmo. J que o grupo espontnea eunanimemen-te entrou em acordo sobre a vtima, inculpando-a (e acreditando seria-mente ser ela culpada) pelas desgraas e conflitos (muitas vezes repre-sentadas miticamente como pragas), a expulso da vida produz um instante de pacfica unanimidade fundamento de nova ordem social. Sendo a expulso da vtima o expediente que gera nova ordem de paz, a vtima expulsa se sacraliza e se lhe atribui, depois da expulso, o papel benfico e divino de produzir a paz.

    Esta , em forma sucinta, a tese com que R. Girard procura mos-trar que a ordem social humana se baseia na violncia sacralizada. importante notar que a teoria fornece uma explicao de como a for-mao de cada "eu" corresponde ao mesmo mecanismo que produz ou participa da produo de uma violncia social, mais ou menos disfar-ada, da qual os indivduos, nas diferentes sociedades, se consideram inocentes. Assim se rejeita a distino, tpica da cincia ocidental, en-

    2 2 3

  • tre psicologia e sociologia e se mostra como falsa a distino caracters-tica da cultura e tica ocidentais, entre moralidade pessoal e social.

    A importncia desta tese para o nosso estudo est em que ela moatra um elo de ligao entre a constituio do ''eu'' de cada um de ns e a morte sacrificai de uma vtima produzida pela violncia do gru-po humano. Esperamos poder mostrar que isto est base da exposio paulina da doutrina da justificao, e que essa ligao, quer na forma descrita por Girard ou Oughourlian, quer com alguma diferena de deta-lhes, a condio de possibilidade de essa doutrina ter sentido.

    Entretanto, antes de entrar na aplicao da tese doutrina pauli-na, necessrio analisar como em cada "eu" est engastada constituti-vamente uma referncia ao "outro" do grupo humano, referncia pela qual a ordem social se mantm e a conscincia tem condies de emer-gir. Isto quer dizer que cada "eu", sem exceo, est relacionado a uma expulso e ordem que resulta da expulso. Pois no processo de constituio do "eu" se aprende a imitar o funcionamento do desejo que expulsa o "outro", embora este seja consubstanciai conscincia do meu "eu". Todos ns somos protagonistas de expulso ou de vitima-o, e comumente agravamos este pape! por admitirmos o mito do "eu" independente, onde se organizariam os desejos e por acreditarmos na "inocncia original". Assim nos recusamos a carregar a culpa pelos males da sociedade e, ao invs, inculpamos os outros, o que represen-ta uma expulso ainda mais profunda, porque significa expulsar do "eu" toda alteridade.

    J. M. Oughourlian faz um denso relato da constituio do "eu" pelo "outro"^. Para ele, o ponto decisivo do processo de hominizao, pelo qual um antropide se torna humano, a passagem da comunica-o por imitao espacial (isto , por gestos) imitao da aparncia do outro e, depois, imitao do que o outro tem.

    Esta passagem acarreta a ameaa de violncia, pelo fato de os antropoides procurarem imitar um ao outro pela apropriao de objetos e qualidades alheias. A violncia (a crise mimtica, resultante da imita-o que leva rivalidade) s pode ser solucionada pelo mecanismo da vitimao, quando a desordem no grupo se volta unanimemente para a ordem do todos-contra-um, concentrando-se na vt ima.

    "Do furor coletivo bruscamente apaziguado pela nrwrte da vtima, vai nascer em cada um dos assassinos, no clima da calma restabelecida, esta qualidade muito particular da ateno, que o primeiro vislumbre da conscincia".

    ^ J. M. OUGHOURLIAN:o/?, c/f., 58.

    224

  • Isto significa que a conscincia , desde o incio, a ateno foca-lizada no outro, enn especial, no Outro que foi vt ima. Quer dizer que o ato de vitimao constitutivo da conscincia. Por isso, Oughourlian julga poder afirmar que cada ato de conscincia ser, dali em diante, a reconstituio daquele relacionamento privilegiado com o Outro.

    Isso leva Oughourlian a sugerir que a conscincia reflexa por-que

    "O vaivm entre o 'eu' que procura aprofundar-se pelo mecanisnx) da 'tomada de conscincia' e o Outro virtual, gue est j sempre ai".

    E conclui: "O Outro consubstanciai conscincia do 'eu' [...].

    - O tecido ontogentico do humano esta'imbudo de alteridade, isto , repleto da angstia da presena e da culpabilidade pela ausncia do Outro..."

    Resumindo, o "eu" de cada um de ns constitudo pelosociat-nriente "outro" com base na violncia de vitimao. isso justamente que constitui nossa conscincia, nao no sentido de sermos cnscios de algo, mas de sermns um "eu" consciente.

    No podemos deixar de assinalar que este modo de pensar total-mente inaceitvel oara as tradies filosficas do platonismo e cartesia nismo. Por outro lado, convm insistir em que a comnreenso desta tese necessria como condio de possibilidade de as doutrinas crists fundamentais terem sentido.

    Ao aplicarmos este tese doutrina crist, esperamos ooder escla-recer n querigma original e fornecer uma interpretao da doutrina paulina da justificao.

    O ponto central do querigma cristo consiste na afirmao d^ que um homem, ungido por Deus como o Cristo, ao mesmo tempo Deus e homem, sofreu uma morte violenta, infligida pelos homens, e ressucitou. Na formulao paulina:

    "Transmiti-vos em primeiro lugar, aguilo que eu mesmo recebi: Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, res-suscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Em seguida, apareceu a Cefas, e depois aos Doze" (1 Co 15,3-5).

    Segundo os oarmetros estruturalistas, trata-se de um dos antigos mitos violentos da humanidade. De acordo com essa hermenutica, um grupo de pessoas teria expulso uma determinada vtima, derivando deste ato uma nova unidade social, e teria feito uma tpica reavaliao post-mortem ou uma sacralizao da vt ima, afirmando ter ela ressusci-tado. Esta interpretao, ao procurar mostrar oue o cristianismo no

    225

  • seria nada mais do que uma das religies humanas, exatamente opnsta interpretao crist dos mesmos fatos.

    Esta a seguinte: Cristo era Deus antes de sua vitimao. Ele permitiu ser tomado comn vtima, no para apaziguar a ira de Deus ou com outro objetivo fantasioso, mas para redimir os homens, por ser a nica maneira pela nual Deus po^ia salvar-nos de ns msmns. IMo Cristo crucificado Deus se revela a si mesmo comn a vtima (real) de nossa violncia expulsora e assim n s^ Dossib'lita recnnh^^cer quem real-mente aquele a ^uem expulsamos e vitimamos aquele em quem se baseia nossa conscincia e cada "eu" do qruoo humano. Ao ressuscitar a Cristo dentre os mr^rtos. Deus mostra que o Deus-vtima est revelan-do no apenas nossa " m " conscincia, mas tambm a salvao divina. A ressureio , pois, a interpretao nue Deus d morte de Cristo co-mo perdo de nossos pecados.

    O perdo dos nossos pecados significa, aqui de modo especial, a transformao do "eu", constitudo mimeticamente pela violncia ao socialmente "outro", em novo "eu", o homem novo, formado pela imitao de Cristo (como modelo e no como rival mimtico) e pelo dom do Esprito de filiao, de modo que somos "possudos" pelo "Outro" pacificamente. Esse novo Outro, radicalmente oposto aquele que anteriormente havia em nossa vida, a ordem e o tecido social "deste mundo" , constitui e torna-se consubstanciai ao nosso novo "eu", de sorte que somos transformados em Cristo, segundo a expresso de Paulo: " J no sou eu que vivo: Cristo que vive em mim" (Gl 2,20).

    Portanto, pode-se dizer que a encarnao, morte e ressurreio de Nosso Senhor uma espcie de drama divino, representado no palco do mundo, permitindo a Deus assumir a estrutura bsica de nosso "eu" consciente e assim recri-lo. S tomando a iniciativa de tornar-se volun-tariamente nossa vtima, mostrando que conhecia que nossa reao seria levar seu Enviado morte e demonstrando que ao nosso ato de vitimao se segue a absolvio divina, podia Deus comear a produzir uma alterao radical em nossa conscincia que nos possibilitasse sair do crculo de nossa violncia e converter-nos em nova criao. Esta a nica irrupo de algo totalmente novo na histria humana.

    Se como afirmamos o querigma orginal era uma mensagem totalmente nova, proclamada por mensageiros que convenciam porque transmitiam o impacto de sua prpria transformao, julgamos ter aqui a base a partir da qual se pode reexaminar a doutrina da justificao, apresentada por Paulo".

    * Sobre Paulo vejam-se C. MAHTINI: As confisses de Paulo, So Paulo:

    226

  • 2. Justificao na Carta aos Romanos

    Em Rm 1,17-18 temos dois dados de revelao: A justia de Deus para todo aquele que tem f; a ira de Deus contra os mpios que "apri-sionam a verdade na injustia".

    O Evangelho revela a justia de Deus, isto , sua generosidade em entregar seu Filho como vt ima, pela qual nossos pecados so perdoados e nosso "eu" transformado. Entretanto, a justia de Deus s revela-da na f, isto , compete-nos aceitar a Cristo assim como ele realmente : o dom de Deus oferecido para nossa salvao, reconhecendo o aces-so dele nossa alteridade. Sem reconhecer a Cristo como vtima salv-fica, ficamos imersos como antes na "mconnaissance" (desconheci-mento do Outro como origem de nossa conscincia), que o que enten-demos por ira de Deus e que continua produzindo os frutos que Paulo descreve em Rm 1, 19-32.

    O ponto chave aqui que a f o reconhecimento do poder divi-no capaz de transformar o nosso "eu", poder esse que est presente no Cristo crucificado - , da mesma categoria que o reconhecimento da alteridade e anterioridade dos nossos desejos e a constituio do "eu", na anlise de Oughourlian. O reconhecimento de tal alteridade sempre teraputico; neste caso, a fonte de onde brota nossa transformao divina ou "justia". A recusa do reconhecimento ou seja a "mcon-naissance" na terminologia de Oughourlian no tanto descrena, quanto exacerbao da auto-rejeio perpetuada por ns mesmos, apri-sionando a verdade na injustia (Rm 1,18).

    Em 2,1-11, Paulo enfatiza este ponto. Ele no conclui sua feno-menologia da perdio indicando uma separao entre "bons" e "maus", mas ressaltando que todos ns, sem exceo, estamos entre os que guar-dam a verdade prisioneira da injustia, e que agravamos ainda mais a culpa por nossa recusa em reconhecer a alteridade (movidos pelos mes-mos desejos de cometer tais coisas: 2,3), ao julgarmos os outros pois, para poder julgar o outro, se supe que a pessoa ocupe uma posio privilegiada em termos de anterioridade sobre o outro e de conhecimen-to pessoal da verdade anterior ao outro. Isto , por definio, uma exa-

    Loyola, 1987; G. BARBAGLIO: Le lettere di Pao/o. Commenti Biblici, Roma: Borla 1980, especialmente: Vol. I, 11-77 (introduo geral), 181-549 (1 Co); vol. II. 9-167 (GO; 169-530 (Rm); R. HAMMERTON - KELLY:"A Girardian Interpretation of Paul: Rivairy, Mimesis and Victimage in the Corinthian Correspondence", em Semeia 33 (1985) 65-82; E. GANS: "Cris-tian Morality and the Pauline Revelation", em Semeia 33 (1985) 97-108.

    227

  • cerbao da nossa "mconnaissance" da alteridade de nossa conscincia. Deus a nica instncia que exerce o julgamento. Ele , por definio, Outro para ns e anterior aos nossos desejos e ao nosso "eu".

    A semelhana entre o pensamento de Paulo e a hermenutica de Girard aparece, alm disso, quando Paulo afirma que, segundo seu Evan-gelho, Deus julga, mediante Jesus Cristo, as aes secretas dos homens (2,16). Os que no tm lei encontram em si mesmos o testemunho de sua conscincia, acusando-os ou desculpando-os por suas aes.

    Se, portanto, o Evangelho salvao para os que tm f e conde-nao para os que no tm, ento, de acordo com nossa interpretao, o confronto com a conscincia de cada um de ns, julga as aes secretas, mostrando se o "eu" da conscincia recusa a alteridade ou a reconhece. Eis em que consiste o julgamento: em decidir se nossa conscincia se baseia na nossa vitimao sem reconhecer o que estamos fazendo, ento nossos juzos vo acusar-nos , ou se percebeu nossa conscin-cia que somos impulsionados por outrem e, por isso, somos capazes de apropriar-nos do perdo por nossa vitimao, perdo que est presente no Cristo crucificado, neste caso nossos juzos vo absolver-nos. Para Paulo claro que o "julgamento de Deus", revelado em Jesus Cristo, atinge a constituio da nossa conscincia.

    Em 3,21-26, est o texto paulno mais condensado sobre a justifi-cao. A justia de Deus manifesta-se pela gratuidade em entregar Jesus Cristo como expiao que se realiza no seu sangue, para nossa salvao a ser recebida na f. A lei no tornou justo a ningum; apenas ensinou a todos os que estavam sujeitos a ela que no eram justos, revelando assim negativamente a justia de Deus.

    O que fundamental aqui o fato de termos um nico acesso a este drama divino, no qual Deus assume o papel de ser nossa vt ima; a este acesso Paulo chama de f. Quanto ao mecanismo psicolgico, essa f exatamente a mesma coisa que na hermenutica de Oughourlian-Girard o reconhecimento de que este outro concreto Cristo crucifica-do como oferenda divina dada a ns a chave para nossa conscincia do bem e do mal, que at o presente estava baseada na vitimao ou na oblao de si como vt ima, quando, na realidade, esses dois mtodos ser-viam para ocultar aos prprios olhos a violncia que se praticava contra si mesmo. A Lei, que devia servir para ensinar-nos "que todos pecaram e esto privados da glria de Deus" (v. 23), freqentemente serve de ins-trumento para dividir o mundo entre bons e maus, entre os que obser-vam a Lei e os que no a observam. A pessoa que, base de sua obser-vncia da Lei, est em condies de julgar os outros como maus, isto , que se considera justo em virtude da Lei, revela que a Lei no atinge o

    228

  • corao do homem. Tal pessoa tem sua identidade, seu "eu", constitu-do base da vitimao, da expulso, da separao. Para quem est convencido de ser justa a sua posio, muito mais dif c i l perceber a alteridade da constituio do seu "eu" e ter seu "eu" transformado, livre de depender da perseguio a um bode expiatrio.

    Aqui aparece claramente que o ensino de Paulo sobre a Lei idntico prtica de Jesus em relao aos "fariseus", sua predileo pelos pecadores e as parbolas como a do fariseu e do publicano no Templo (Lc 18,10-14).

    No cap. 4, Paulo traz dois exemplos da justificao alcanada mediante o reconhecimento de que somente um Outro pode transfor-mar o meu "eu": Abrao e Davi. A f de ambos era f numa promessa divina; entretanto, em Cristo crucificado, cumpriu-se a promessa e o dom do Outro se torna acessvel da nica maneira como o Outro pode irromper em nosso "eu".

    Na concluso deste captulo, Paulo explicita novamente o drama divino: Deus nos revela que somos assassinos de Deus (Jesus "entregue pelas nossas faltas", v. 25) e nos mostra que isso no o fim da histria, pelo menos para aqueles que reconhecem a nica coisa que pode afetar nosso "eu" constitudo pela alteridade, e assim tm acesso a ela: foi a Deus que matamos. Para os que reconhecem esse dado. Deus que ressuscitou Jesus, oferece a transformao do nosso "eu", fazendo-nos justos.

    O novo "eu" tem finalmente paz com Deus (5,1) e est em con-dies de chegar a participar da glria de Deus, alegrando-se nas tribu-laes no mais como agente de vitimao nem como vtima. Tendo sido justificados, somos capazes de evitar a ira de Deus a exacerbao do "eu" violento encerrado na "mconnaissance" da sua alteridade. A morte de Cristo nos reconciliou com Deus e podemos agora crescer na participao da vida divina como filhos de Deus.

    Aqui Paulo faz uma transio da justificao santificao. Isto corresponde, na terminologia de Oughourlian, transio do reconhe-cimento e da aceitao daquela alteridade capaz de transformar o nosso "eu", ao processo de nascimento e constituio do novo "eu", no mais constitudo na perseguio ao bode expiatrio. No cap. 6, Paulo exprime com preciso seu pensamento sobre a "heteronomia" funda-mental da condio humana em termos comparveis aos de Oughourlian: ou estamos a servio do pecado ou da justia. O nosso "eu" no est emancipado da alteridade ou heteronomia, pois o Outro de que se agora escravo, Deus, que constitui o novo "eu", ensinando-nos a imi-tar Cristo e a obedecer aos seus mandamentos, etc. O Outro de quem

    229

  • ramos antes escravos (normalmente sem nos darmos conta disso), constitua o nosso velho "eu" base da perseguio (ao bode expiat-rio) e da morte. Nossa tarefa daqui em diante fazer com que o novo "eu" governe nosso comportamento, por ora de tantas maneiras tribu-trio do velho "eu".

    Nos cap. 7 e 8, Paulo explica, em forma descritiva, a formao do novo "eu" em sua luta com o velho "eu", na tentativa de, pela fora do Esprito, dar morte s obras da carne (8,13). O Esprito geme den-tro de ns, porque de alguma forma continuamos prisioneiros do velho "eu" submetidos ao Outro que oposto a Deus: a carne ou o "mun-do". Aguardamos, por isso, a adoo plena como filhos de Deus e a re-deno do nosso corpo em vista da submisso completa ao novo "eu" formado pelo Outro que Deus. Paulo ressalta novamente a prioridade do amor de Deus em relao ao nosso "eu" (8,28-30). Antes de sermos justificados ou seja, antes de termos acesso ao reconhecimento da jus-tia de Deus que nos foi revelada em Cristo ramos conhecidos, pre-destinados e chamados. Falta somente realizar-se a nossa glorificao. em cujo processo estamos envolvidos agora, em meio s perseguies do tempo presente. Entretanto, nenhuma delas pode atingir o ntimo do novo "eu" em fase de transformao, pois somos libertados da con-denao (acusao), em virtude de reconhecermos a Deus, e livramo-nos da nossa parcela de culpa na condenao/rejeio de Deus. ele que faz justo o nosso novo "eu"; Jesus morto e ressucitado intercesso por ns. O novo "eu", ora em formao, est totalmente livre do mundo de perseguio, expulso ou contraperseguio o ciclo de violncia em que a humanidade vive. O Outro, consubstanciai ao "eu" (cf. Oughourlin), no caso do homem justificado, Cristo, de quem, por definio, nosso novo "eu" inseparvel.

    No cap. 10, Paulo retoma o tema da justia, ao abordar o lugar teolgico do povo eleito depois da vinda de Cristo. Tambm aqui encontramos o mesmo enfoque subjacente anlise paulina. Cristo o termo final da Lei (v. 4), isto , ele pe fim Lei, ele a faz redundante e sua plenitude e meta. o que acontece porque, ao contrrio da Lei, Cristo consegue penetrar o que constitui nosso "eu" e assim pode constitu-lo renovado.

    O novo "eu", constitudo na f, no procura dividir a humanida-de em bons e maus, classificando-os em dignos do cu ou do inferno, pois isso seria reduzir Cristo a uma funo dos nossos coraes, como se Encarnao e Ressurreio dependessem de ns e no fossem um dom gratuito de Deus (vv. 5-7).

    No. O acesso nossa salvao est prximo a ns, mas vem de fora, do Outro. Este acesso o reconhecimento pelo qual nossos cora-

    230

  • es avaliam o que significa ter Deus ressucitado Jesus dentre os mortos: e isto o que nos torna justos. Tendo-se iniciado essa transformao, entramos no processo de salvao mediante a profisso pblica de nossa f, enunciada em linguagem que exprime o que reconhecemos. por isso que o nosso reconhecimento no mera transformao interior, mas o comeo de uma mudana em nossa relao com todo o mundo exterior no qual vivemos, e que, at a nossa justificao, tinha consti-tudo o nosso "eu". Nossa "tomada de posio" pblica o comeo de nossa salvao. Vale dizer que estamos envergonhados do mundo e de nossa cumplicidade com ele, mas no somos envergonhados pelo mun-do. O Outro que nos salva, Outro do que o mundo do qual procla-mos ser salvos (vv. 8-13). Este sinttico credo cristolgico. em que Pau-lo especifica o duplo carter de adeso interior e de profisso de f em pblico, idntico ao ensinamento de Jesus referido no Evangelho de Mateus:

    "Todo aquele, portanto, que se declarar por nnim diante dos homens, tambm eu me declararei por ele diante de meu Pai que est nos Cus. Aquele, porm que me renegar diante dos homens, tambm o renegarei diante de meu Pai que est nos Cus" (Mt 10, 32-33).

    Estas observaes sobre a Carta aos Romanos so uma tentativa de mostrar que a compreenso de nossa heteronomia ou a constitui-o heternoma do "eu" e da mudana tornada possvel pela morte e ressurreio de Cristo muito prxima da explicao da constiuio mimtica do "eu" nas obras de Girard e Oughourlian, e que ambas as linhas de interpretao se esclarecem mutuamente.

    3. Justificao na Carta aos Gaiatas

    A mesma compreenso deste tema est presente na carta escritaante-riormente por Paulo aos gaiatas. O contexto, porm, algum tanto diferente. Aqui Paulo tem a ver com o ressurgimento da mentalidade legalista num ambiente onde ele tinha pregado a salvao oriunda de Cristo crucificado. O perfil de Jesus Cristo que lhes fora traado, era o de um crucificado. Eles ouviram com f esta mensagem, reconhecendo no Cristo crucificado o Outro que era capaz de transformar seu "eu", e experienciando em si mesmos a ao do Esprito (3,1-5).

    Os gaiatas aparecem querendo reimplantar a estrutura da Lei e acusam a Paulo de transgresso por t-la abrogado (2,15-18). Paulo, porm, responde enfaticamente que seu "eu", formado pela Lei, j morreu. Foi crucificado com Cristo. Paulo reconheceu no Cristo crucifi-cado a verdade sobre seu velho "eu", de forma que esse velho "eu" j rwo vive e sim seu novo "eu" , consubstanciai ao outro que agora

    231

  • o constitui: " J no sou eu que vivo, Cristo que vive em mim" (2,20). A vida que ele leva em sua existncia histrica ("na carne") decorre do acesso alteridade que ele reconheceu no Cristo crucificado que lhe foi apresentado como um gesto de amor por ele: isto , o novo "eu" domi-na inclusive a existncia histrica ("a carne") que era tributria do ve-lho "eu".

    Paulo responde aos que o acusam de pr de lado a graa de Deus (que tinha sido mediada pela Lei), ressaltando que, aps a morte de Cris-to, a Lei j no graa (2,21).

    Segue uma explicao mais aprofundada sobre a relao entre a Lei e Cristo, explicitada na conhecida metfora do "pedagogo" (3,24). Paulo afirma que originalmente havia uma promessa feita a Abrao que se cumpriu em Cristo. A justia vem do reconhecimento da alteridade ou de quem fez a promessa (no caso de Abrao) ou do cumprimento da promessa (no nosso caso, com a vinda do Prometido). A Lei era uma medida temporria visando a refrear nossa maldade isto , ela faz par-te daquela esfera no-divina, pela qual tentamos controlar nossos ciclos de violncia e expulso, esta a razo por que Paulo estabelece uma separao entre a Lei e Deus e, seguindo a linha adotada por comenta-ristas rabnicos, atribui a Lei aos anjos e a Moiss como intermedirio humano (3,19-20).

    Ns, porm, passamos de pupilos a filhos. Nossa nova vida signi-fica que Deus no nos "exterior", como era o caso quando estvamos sujeitos Lei, mas nos "interior" numa posse mtua - nosso novo "eu" Cristo. Paulo aprofunda a comparao ao explicar mais uma vez nossa heteronomia radical: "estvamos subjugados pelos elementos do mundo" (4,3), mas agora nos tornamos filhos mediante a adoo, reco-nhecendo uma heteronomia diferente, um Outro que difere dos demais. O Apstolo pede aos gaiatas para no se envolverem com o que os faa voltar heteronomia anterior, ao velho "eu", formado por esses "ele-mentos fracos e pobres" (4,9). Qualquer cumplicidade com o modo de buscar a justia por outras mediaes que no so o Cristo crucificado, nega a eficcia da morte de Cristo e separa o "eu", de Cristo (5,4). O novo 'eu' s pode ser formado e constitudo mediante o reconhecimen-to da eficcia transformante do Cristo crucificado como sendo "minha" alteridade. Todo o resto o velho "eu".

    O novo "eu" s pode ser formado em liberdade, vale dizer: no servio ao Outro-Deus e aos nossos irmos, totalmente libertado da con-taminao da rivalidade mimtica que nos leva a morder e devorar uns aos outros (5,15). O novo "eu" supera os padres de comportamento e as atitudes dependentes do velho "eu" - o "eu" formado pela rivalida-

    232

  • de mimtica e pelo mecanismo de expulsar a vtima substitutiva (bode expiatrio).

    Categorias da "psicologia interdividual", sem, no entanto, serem reduzidos a ela. Com efeito, muitas passagens incompreensveis num esquema de inveteradas dicotomias entre o individual e o social, mate-rial e o espiritual, o pisolgico e o religioso, podem finalmente ser entendidas em sentido unificado. Conclumos com a certeza de que a hermenutica de Girard/Oughourlian oferece uma valiosa ajuda com-preenso dos textos paulinos.

    James N. F. Alison O. P. estudou lnguas hispnicas e histria na Universidade de Oxford e filosofia no Studium O.P. em Oxford. Bacharel em teologia pela Faculdade de Teologia do CES (Belo Horizonte, MG). Endereo: Blackfriars - 64 St. Giles - Oxford 0X1 3LY - Inglaterra

    233