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8/19/2019 “Isso é água http://slidepdf.com/reader/full/isso-e-agua 1/7 15/02/2015 “Isso é água.” – O discurso de David Foster Wallace na Kenyon College | Life on a plate https ://l i gy a.w or dpr es s.c om /2011/10/12/i ss o- e- agua- o- di sc ur so- de- dav id- fos ter - wal l ac e- na- keny on- col lege/ 1/9 “Isso é água.” – O discurso de David Foster Wallace na Kenyon College 12 outubro, 2011 David Foster Wallace foi um escritor americano que sofria de depressão crônica, mais conhecido pelo seu livro Infinite Jest. Wallace fez o discurso de abertura da colação de grau da turma de 2005 da Kenyon College, discurso este que causou tanto impacto que foi lançado como livro em 2009, um ano após ele ter cometido suicídio. A parte chata, neste caso, é que o discurso foi alterado à revelia dos editores, cortando partes importantes e interessantes do discurso. Mas, graças à internet, o discurso está disponível em áudio no Youtube (http://www.youtube.com/watch?v=M5THXa_H_N8)  , e num transcrito que ficou online tempo suficiente para ser arquivado (http://web.archive.org/web/20080213082423/http://www.marginalia.org/dfw_kenyon_commen Abaixo, está a minha tradução para esse transcrito, pois não achei nenhuma tradução da versão original do discurso. Estes dois jovens peixes estão nadando por aí, e por acaso encontram um peixe mais velho nadando na direção contrária, que acena para eles e diz “Bom dia, meninos, como está a água?” E os dois jovens peixes continuam nadando por um tempo, até que eventualmente um deles olha para o outro e fala: “O que diabos é água?” Esse é um requerimento padrão dos discursos de colação de grau norte‑americanos, o emprego de pequenas histórias meio enigmáticas. O conto acaba sendo um dos melhores, menos encheção de linguiça do gênero, mas se você está preocupado que eu planejo me apresentar aqui como o velho peixe sábio explicando o que é água para vocês jovens peixes, por favor, não fique. Eu não sou o velho peixe sábio. O objetivo da história dos peixes é que as mais óbvias e importantes realidades são muitas vezes as mais difíceis de serem vistas e discutidas. Exposto como uma sentença em inglês, é claro que isso é somente uma  platitude banal, mas o fato é que nas trincheiras do dia‑a‑dia da existência adulta, platitudes banais podem ter uma importância de vida ou morte, ou é isso que eu desejo sugerir nessa manhã linda e seca. É claro que o principal requerimento de discursos como esse é que eu devo falar sobre o significado da sua educação em artes liberais, devo tentar explicar por que o diploma que vocês estão prestes a receber tem um valor humano real ao invés de somente retorno material. Então vamos falar sobre o cliché mais difundido nos discursos de colação de grau, que diz que uma educação em artes liberais não se trata apenas de te encher de conhecimento mas sim serve para te “ensinar a pensar”. Se você é como eu era quando estudante, você nunca gostou de escutar isso, e você tende a se sentir um pouco insultado pela afirmação de que você precisou que alguém te ensinasse a pensar, já que o fato de você ter entrado numa faculdade tão boa como essa parece uma prova de que você já sabe como pensar. Mas eu vou mostrar para você que o cliché das artes liberais acaba não sendo

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“Isso é água.” – O discurso de David Foster Wallace

na Kenyon College

12 outubro, 2011

David Foster Wallace foi um escritor americano que sofria de depressão crônica, maisconhecido pelo seu livro Infinite Jest. Wallace fez o discurso de abertura da colação de grau daturma de 2005 da Kenyon College, discurso este que causou tanto impacto que foi lançadocomo livro em 2009, um ano após ele ter cometido suicídio. A parte chata, neste caso, é que odiscurso foi alterado à revelia dos editores, cortando partes importantes e interessantes do

discurso. Mas, graças à internet, o discurso está disponível em áudio no Youtube(http://www.youtube.com/watch?v=M5THXa_H_N8) , e num transcrito que ficou online temposuficiente para ser arquivado(http://web.archive.org/web/20080213082423/http://www.marginalia.org/dfw_kenyon_commenAbaixo, está a minha tradução para esse transcrito, pois não achei nenhuma tradução da versãooriginal do discurso.

Estes dois jovens peixes estão nadando por aí, e por acaso encontram um peixe mais velhonadando na direção contrária, que acena para eles e diz “Bom dia, meninos, como está aágua?” E os dois jovens peixes continuam nadando por um tempo, até que eventualmente

um deles olha para o outro e fala: “O que diabos é água?”

Esse é um requerimento padrão dos discursos de colação de grau norte‑americanos, oemprego de pequenas histórias meio enigmáticas. O conto acaba sendo um dos melhores,menos encheção de linguiça do gênero, mas se você está preocupado que eu planejo meapresentar aqui como o velho peixe sábio explicando o que é água para vocês jovens peixes,por favor, não fique. Eu não sou o velho peixe sábio. O objetivo da história dos peixes é queas mais óbvias e importantes realidades são muitas vezes as mais difíceis de serem vistas ediscutidas. Exposto como uma sentença em inglês, é claro que isso é somente uma

 platitude banal, mas o fato é que nas trincheiras do dia‑a‑dia da existência adulta,platitudes banais podem ter uma importância de vida ou morte, ou é isso que eu desejosugerir nessa manhã linda e seca.

É claro que o principal requerimento de discursos como esse é que eu devo falar sobre osignificado da sua educação em artes liberais, devo tentar explicar por que o diploma quevocês estão prestes a receber tem um valor humano real ao invés de somente retornomaterial. Então vamos falar sobre o cliché mais difundido nos discursos de colação de grau,que diz que uma educação em artes liberais não se trata apenas de te encher deconhecimento mas sim serve para te “ensinar a pensar”. Se você é como eu era quandoestudante, você nunca gostou de escutar isso, e você tende a se sentir um pouco insultadopela afirmação de que você precisou que alguém te ensinasse a pensar, já que o fato de vocêter entrado numa faculdade tão boa como essa parece uma prova de que você já sabe comopensar. Mas eu vou mostrar para você que o cliché das artes liberais acaba não sendo

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ofensivo, porque a parte significante da educação em pensar que nós devemos receber numlugar como esse, não diz respeito à capacidade de pensar, mas sim à escolha sobre o quepensar. Se seu total livre arbítrio sobre o que pensar parece muito óbvio para perder tempodiscutindo, peço que pense sobre peixes e água, e que deixe de lado por apenas algunsminutos seu ceticismo sobre o valor do totalmente óbvio.

Aqui vai uma outra historinha didática. Lá estão dois caras sentados num bar numa parte

remota do Alaska. Um dos caras é religioso, e o outro ateísta, e os dois estão discutindo aexistencia de Deus com aquela intensidade especial que aparece mais ou menos depois daquarta cerveja. E o ateu diz: “Olha, não é como se eu não tivesse razões para não acreditarem Deus. Não é como se eu nunca tivesse experiência com essas coisas Deus e rezar. Mêspassado mesmo eu saí do acampamento naquela terrível nevasca, e eu estava totalmenteperdido e eu não conseguia ver nada, e estava 10° abaixo de zero, e então eu tentei: eu meajoelhei na neve e gritei ‘Oh, Deus, se existe um Deus, eu estou perdido nessa nevasca, e euvou morrer se você não me ajudar.” E agora, no bar, o religioso olha para o ateu, confuso.“Bem, então você deve acreditar agora,” ele diz, “afinal de contas, você está aqui, vivo.” O

ateu apenas vira os olhos. “Não, cara, tudo que aconteceu foi que uns Eskimos estavampassando e me mostraram o caminho de volta para o acampamento.”

É facil passar essa história por um tipo de análise padrão das artes liberais: a mesmaexperiência pode significar duas coisas totalmente diferentes para duas pessoas diferentes,dadas as duas diferentes crenças e duas diferentes maneiras de construir significados apartir de experiências destas pessoas. Porque nós valorizamos a tolerância e a diversidadede crença, em nenhum momento da nossa análise das artes liberais nós queremos alegarque a interpretação de um cara é verdadeira e a do outro é falsa ou ruim. O que é não temproblema, exceto que nós também acabamos nunca falando de onde esses padrões e crenças

individuais vem. O que significa: de onde elas vem de dentro dos dois caras. Como se amais básica das orientações de uma pessoa em relação ao mundo, e o significado daexperiência dela foram de alguma maneira embutidas , como a altura ou o número dossapatos; ou automaticamente absorvida da cultura, como a linguagem. Como se a maneiraque construímos significado não fosse resultado de uma escolha pessoal, intencional. Alémdo mais, tem todo o problema da arrogância. O não‑religioso está tão certo em dispensar apossibilidade que os Eskimos tinham algo a ver com sua prece por ajuda. Verdade, há ummonte de pessoas religiosas que parecem arrogantes e certas sobres suas interpretações,também. Eles provavelmente são ainda mais repulsivos que os ateístas, ao menos para a

maioria de nós. Mas o problema dos dogmatistas religiosos é exatamente o mesmo doincrédulo da história: certeza cega. Uma mentalidade fechada que acaba numaprisionamento tão total que o prisioneiro nem sabe que está trancafiado.

A questão aqui é o que eu acho que essa parte de me ensinar como pensar realmentesignifica: ser um pouco menos arrogante. Ter uma consciência crítica sobre mim mesmo esobre minhas certezas. Porque uma imensa porcentagem das coisas que eu costumoautomaticamente ter certeza está, como acontece, totalmente errada e enganada. Eu aprendiisso da maneira difícil, assim como eu prevejo que vocês também.

Eis um exemplo do quão absolutamente errado é uma coisa que eu tenho a tendência deestar automaticamente certo sobre: tudo em minha experiência imediata apóia minhacrença profunda que eu sou o centro absoluto do universo; a mais real, intensa e importantepessoa na existência. Nós raramente pensamos sobre esse egoísmo meio natural e básico,

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porque ele é tão repulsivo socialmente, mas é praticamente o mesmo para todos nós. É anossa configuração padrão, impressa em nossos circuitos no nascimento. Pense nisso: nãohá nenhuma experiência que você teve em que você não fosse o centro absoluto. O mundocomo você o conhece está logo ali na sua frente, ou atrás de você  , à sua esquerda ou direita,na sua TV, ou no seu monitor, e assim por diante. Os pensamentos e sentimentos de outraspessoas devem ser comunicados a você de alguma maneira, mas os seus são tão imediatos,urgentes, reais.

Por favor, não se preocupe em pensar que eu estou pronto para te dar um sermão sobrecompaixão ou altruísmo ou as chamadas “virtudes”. Não se trata de virtude. É uma questãoda minha escolha em fazer o esforço para de alguma maneira alterar ou me livrar da minhaconfiguração natural, impressa em meus circuitos, que é ser profunda e literalmenteegoísta, e ver e interpretar tudo pelas lentes do meu ser. Pessoas que podem ajustar suaconfiguração natural desta maneira são muitas vezes descritas como “bem ajustadas”, o quesugiro para vocês, não é um termo acidental.

Dado o ambiente de triunfo acadêmico aqui, uma pergunta óbvia é o quanto deste esforçode ajustar nossa configuração natural envolve conhecimento ou intelecto real. Essa questãoé capciosa. Provavelmente o maior perigo da educação acadêmica, ao menos no meu caso, éque ela reforça minha tendência de super‑intelectualizar as coisas, de me perder emargumentos abstratos dentro da minha cabeça ao invés de simplesmente prestar atenção a oque está acontecendo bem na minha frente. Prestar atenção a o que está acontecendo dentrode mim.

Como vocês já devem saber, é extremamente difícil ficar alerta e atento, ao invés de ficarhipnotizado pelo monólogo constante dentro da sua cabeça (talvez isso esteja acontecendo

agora). Vinte anos após minha própria formatura, eu gradualmente compreendi que oclichê das artes liberais sobre “ensinar você a pensar” é na verdade a abreviação de umaideia muito mais profunda, mais séria: aprender a pensar na verdade significa aprender aexercer algum controle sobre como e o que você pensa. Significa estar consciente e atento osuficiente para escolher ao que você presta atenção e para escolher como você constróisignificado a partir da experiência. Porque se você não consegue exercer esse tipo dedecisão na vida adulta, você estará em apuros.

Lembre‑se do velho clichê “a mente é um excelente servo, mas um mestre terrível”. Este,como tantos outros clichés, tão chato e sem graça na superfície, na verdade expressa umagrande e terrível verdade. Não é nenhuma coincidência que adultos que cometem suicídiocom armas de fogo quase sempre atiram na própria cabeça. Eles atiram no mestre terrível. Ea verdade é que a maioria desses suicidas já está morta muito antes de puxar o gatilho. E eusugiro que é este o valor real, sem perda de tempo, que a sua educação de artes liberaissupostamente oferece: como deixar de passar a sua confortável, próspera e respeitável vidaadulta morto, inconsciente, escravo da própria cabeça e da sua configuração natural de serunicamente, completamente e imperialmente sozinho, todos os dias.

Isto pode soar como uma hipérbole, ou nonsense abstrato. Vamos tornar isso palpável. O

fato é que vocês graduandos não tem ainda nenhuma ideia do que “dia‑a‑dia” realmentesignifica. Acontece que existem partes, grandes partes da vida adulta americana queninguém fala em discursos de colação de grau. Uma dessas partes envolve chatice, rotina efrustrações triviais. Os pais e outras pessoas mais velhas aqui saberão muito bem do que euestou falando.

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Para exemplificar, vamos dizer que é um dia adulto habitual, e você levanta pela manhã,vai para o seu trabalho desafiador, engomado, diplomado, e você trabalha duro por oito oudez horas, e no fim do dia você está cansado e um tanto estressado, e tudo que você quer éir pra casa e comer um bom jantar e talvez relaxar durante uma hora e então cair na camacedo porque, é claro, você precisa acordar no dia seguinte e fazer tudo de novo. Mas aí vocêlembra que não tem comida em casa. Você não teve tempo de fazer compras essa semanapor causa do seu trabalho desafiador, e então agora depois do trabalho, você tem que entrar

no seu carro e dirigir até o supermercado. É o fim de um dia útil, e o transito está apto aestar muito ruim. Então chegar à loja demora muito mais do que deveria, e quando vocêfinalmente chega lá o supermercado está muito cheio, porque é claro que é aquela hora dodia em que todas as outras pessoas com empregos também tentam encaixar a tarefa de fazermercado. E o mercado está iluminado, e infundido com música de elevador ou pop e comcerteza é o último lugar que você quer estar mas você não consegue entrar e sair rápido,você tem que andar por todos os enormes, super‑iluminados e confusos corredores da lojapara conseguir as coisas que você quer e você tem que manobrar o bagulho do seu carrinhopor todas aquelas outras pessoas cansadas e com pressa com carrinhos (etc, etc, etc, estou

cortando algumas coisas porque essa é uma cerimônia longa) e eventualmente você pegatodos os itens do seu jantar, só que agora não tem caixas abertos o suficiente, apesar de ser acorreria do final do dia. Então a fila é incrivelmente longa, o que é estúpido e enfurecedor.Mas você não pode descontar sua raiva na frenética senhora trabalhando no caixa, que éescravizada num trabalho cujo o tédio e a falta de sentido diários ultrapassam a imaginaçãode qualquer um de nós aqui numa prestigiosa faculdade.

Mas de qualquer maneira, você finalmente chega na frente da fila, e paga pela sua comida, ete mandam “ter um bom dia” numa voz que é a voz total da morte. Então você pega suashorríveis e frágeis sacolas de plástico com suas compras que estão dentro do seu carrinho,com uma roda torta que puxa irritantemente para a esquerda, todo o caminho através doestacionamento abarrotado, irregular e sujo, e então você tem que dirigir todo o caminho devolta pra casa por um transito da hora do rush, devagar, demorado, cheio de SUVs, etc, etc.

Todo mundo aqui já fez isso, é claro. Mas não tem sido parte da rotina de verdade de vocêsgraduandos, dia após semana após mês após ano. Mas será. E muito outras rotinasfatigantes, maçantes e sem sentido além dessa também serão. Mas essa não é a questão. Aquestão é que porcarias triviais e frustrantes como essa são exatamente onde o trabalho deescolher irá entrar. Já que os congestionamentos e corredores entupidos e longas filas de

caixa me dão tempo para pensar, e se eu não tomar uma decisão consciente sobre comopensar e a o que prestar atenção, eu irei ficar brabo e arrasado toda a vez que eu tiver de iràs compras. Porque minha configuração natural é a certeza que situações como essa setratam somente de mim. Sobre a minha fome e o meu cansaço e o meu desejo de apenaschegar em casa, e irá parecer por tudo que existe que todas as outras pessoas só estão nomeu caminho. E quem são todas essas pessoas no meu caminho? E veja o quão repulsivas amaioria delas são, e o quão estúpidas e parecidas com vacas e inexpressivas e não‑humanaselas parecem na fila do caixa, ou o quão inoportunas e rudes são as pessoas falando alto nocelular no meio da fila. E veja o quão profundamente e pessoalmente injusto é isso.

Ou, é claro, se eu estiver numa versão mais socialmente consciente das artes liberais daminha configuração padrão, eu posso passar o tempo no trânsito do fim do dia com nojo detodas as enormes, estúpidas SUVs e Hummers e pick‑ups V‑12, queimando todo oconteúdo do seus tanques egoístas e esbanjadores de 40 galões de gasolina, e eu posso me

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estender no fato de que os adesivos patriotas ou religiosos sempre parecem estar nosmaiores, mais repugnantemente egoístas dos carros, dirigidos pelos mais feios, mais semconsideração e mais agressivos dos motoristas. E eu posso pensar como os filhos dos nossosfilhos vão nos desprezar por gastar todo o combustível do futuro, e provavelmente porfoder com o clima, e o quão mimados e estúpidos e egoístas e repugnantes todos nóssomos, e como a sociedade de consumo moderna fede , e assim por diante. Você entendeu aideia.

Se eu escolho pensar desta maneira na loja e na rua, tudo bem. Muitos de nós o fazemos.Exceto que pensar desta maneira tende a ser tão fácil e tão automático que não precisa seruma escolha. É a minha configuração natural. É a maneira automática em que eu percebo aspartes enfadonhas, frustrantes e cheias da vida adulta quando eu estou operando na crençaautomática e inconsciente de que eu sou o centro do mundo, e que minhas necessidades esentimentos imediatos são o que deveria determinar as prioridades do mundo.

Acontece que, é claro, existem maneiras totalmente diferentes de se pensar sobre esses tiposde situações. Nesse trânsito, de todos esses veículos parados ou andando em marcha lentana minha frente, não é impossível que algumas pessoas nessas SUVs tenham estado emacidentes de carro horríveis no passado, e agora tem tanto medo de dirigir que seuterapeuta mandou eles fazerem de tudo, inclusive comprar uma enorme e pesada SUV paraque eles se sintam seguros o suficiente para dirigir. Ou que o Hummer que cortou minhafrente talvez esteja sendo guiado por um pai cujo filho pequeno está machucado ou doenteno assento ao lado dele, e ele está tentando chegar ao hospital, e ele está com uma pressa

 bem maior e mais legítima que a minha: na verdade sou eu quem está no caminho dele.

Ou eu posso escolher me forçar a considerar a possibilidade que todas as outras pessoas na

fila do caixa do supermercado estão tão entediadas e frustradas quanto eu, e que algumasdestas pessoas tem vidas mais difíceis, tediosas e sofridas que a minha.

De novo, por favor não pense que eu estou dando recomendações morais, ou que eu estoudizendo que você deve pensar dessa maneira, ou que alguém espera que vocêautomaticamente o faça. Poque é difícil. É preciso força de vontade e esforço, e se você éigual a mim, alguns dias você não conseguirá fazê‑lo, ou pura e simplesmente não vaiquerer fazê‑lo.

Mas na maioria dos dias, se você está consciente o suficiente para dar uma opção a você

mesmo, você pode escolher olhar de maneira diferente para essa senhora gorda,inexpressiva e cheia de maquiagem que acabou de gritar com o filho na fila do caixa. Talvezela não seja sempre assim. Talvez ela passou as últimas três noites em claro segurando amão do marido que está morrendo de câncer nos ossos. Ou talvez essa mesma senhora é aatendente do DETRAN que recebe um salário mínimo e ontem mesmo ajudou sua esposa aresolver um terrível, enfurecedor e burocrático problema através de um simples ato degentileza burocrática. É claro, nada disso é provável, mas também não é impossível. Apenasdepende do que você quer considerar. Se você está automaticamente certo de que sabe oque é a realidade, e se você está operando dentro da sua configuração padrão, então você,

assim como eu, provavelmente não vai considerar as possibilidades que não sãoinoportunas e deprimentes. Mas se você aprender a realmente prestar atenção, então vocêvai perceber que existem outras opções. Estará realmente em seu poder experimentar uma

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situação do tipo inferno do consumidor lotada, quente e lerda não somente de maneirasignificante, mas sagrada, queimando com a mesma força que criou as estrelas: amor,companheirismo, a identidade mística lá no fundo de todas as coisas.

Não que a parte mística seja necessariamente verdade. A única Verdade com V maíusculo éque você pode decidir como você vai tentar vê‑lo. Isso é, eu sugiro, a liberdade de umaeducação real, de aprender a ser “bem ajustado”. Você pode conscientemente decidir o que

tem significado e o que não tem. Você pode decidir o que cultuar.Pois aqui vai outra coisa que é estranha, porém verdadeira: nas trincheiras do dia‑a‑dia davida adulta, na realidade não existe algo tal qual o ateísmo. Não existe algo tal qual a não‑adoração. Todo mundo cultua. A única escolha que temos é o que cultuar. E a razão quetalvez nos força a escolher algum tipo de deus ou espiritualidade – seja JC ou Allah, seja oYHWH ou a Deusa Mãe Wicca, ou as Quatro Nobres Verdades, ou algum conjunto deprincípios éticos invioláveis – é que todo o resto que você adorar vai te comer vivo. Se vocêcultua dinheiro e posses, se eles são o que te faz atingir o verdadeiro sentido da vida, entãovocê nunca terá o suficiente, nunca sentirá que tem o suficiente. É a verdade. Cultue seucorpo e beleza e sensualidade e você sempre se sentirá feio. E quando o tempo e a idadecomeçarem a aparecer, você morrerá um milhão de vezes antes deles finalmente sentirempesar por você. Em algum nível, todos nós já sabemos disso. Já foi codificado como mitos,provérbios, clichés, ditados, parábolas; o esqueleto de todas as boas histórias. O truque édeixar a verdade na primeira fila da consciência diária.

Cultue poder, você vai acabar se sentindo fraco e com medo, e você sempre precisará demais poder sobre os outros para anular seu próprio medo. Cultue seu intelecto, sendo vistocomo inteligente, você acabará se sentindo idiota, uma fraude, sempre à beira de ser

descoberto. Mas a parte traiçoeira destas formas de adoração não é que elas sejam ruins oupecaminosas, mas é que elas são inconscientes. Elas são configurações padrão.

Elas são o tipo de adoração em que você gradualmente cai, dia após dia, ficando cada vezmais e mais seletivo sobre o que você vê e como você mede valor sem nem mesmo se darconta de que é isso que você está fazendo. E o chamado “mundo real” não irá tedesencorajar de operar nas suas configurações padrão, porque o chamado “mundo real” dehomens e dinheiro e poder cantarola alegremente numa poça de medo e raiva e frustração edesejo e adoração de si proprio. Nossa própria cultura atual colheu essas forças de maneirasque renderam riquezas e conforto e liberdade pessoal. A liberdade para sermos os senhoresdos nossos pequenos reinos do tamanho de um crânio, sozinhos no centro de toda a criação.Esse tipo de liberdade tem muitas vantagens. Mas é claro que existem muitos tiposdiferentes de liberdade, e o tipo que é mais precioso não é muito comentado no grandemundo exterior de precisar e alcançar e exibir. O tipo de liberdade realmente importanteenvolve atenção e consciência e disciplina, e estar apto a se importar autenticamente comoutras pessoas, e a se sacrificar por elas repetidamente numa miríade de maneirasinsignificantes e sem glamour todos os dias.

Isso é liberdade de verdade. Isso é ser educado, e compreender como pensar. A alternativa é

a falta de consciência, a configuração padrão, a “corrida de ratos”, a constante sensação deter tido e ter perdido alguma coisa infinita.

 

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Eu sei que isso não parece divertido e alegre ou grandiosamente inspirador da maneira queum discurso de colação deve ser. O que é, da maneira que eu vejo, é a Verdade com Vmaíusculo despida de todas as gentilezas retóricas. Você é, é claro, livre para interpretarisso da maneira que quiser. Mas, por favor, não dispense isso tal qual um sermão da Dra.Laura*. Nada disso aqui é sobre moralidade ou religião ou dogma ou grandes e elaboradasquestões sobre vida após a morte. A Verdade com V maiúsculo se trata da vida antes damorte.

É sobre o valor de real de uma educação real , que não tem quase nada a ver comconhecimento, e tudo a ver com simples consciência; consciência do que é tão real eessencial, tão oculto à vista de todos nós, o tempo todo, que nós temos que ficar lembrandoa nós mesmos, de novo e de novo:

“Isso é água. Isso é água.”

É inimaginavelmente difícil fazer isso, ficar consciente e vivo no mundo adulto, um diaapós o outro. O que significa que outro grande cliché também é verdade: a sua educação

realmente é o trabalho de uma vida toda. E começa agora.

Eu desejo a vocês muito mais que sorte.

* Celebridade que tem um programa sobre relacionamentos nos EUA.

Posted by ligyaFiled in Sem‑categoria ∙Tags: david foster wallace , textos, vida

12 Comments »

12 Respostas to ““Isso é água.” – O discurso de David Foster 

Wallace na Kenyon College”

1.  Andre said15 julho, 2012 at 1:20 pmObrigado pela traducao, Lygia. Lendo esse texto fica dificil entender como alguem taoiluminado como DFW acabou se perdendo no caminho…

Resposta2. Daniel said

7 dezembro, 2012 at 7:52 pmomitiram o final do antepenúltimo parágrafo:“A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aostrinta, ou quem sabe aos cinquenta, sem querer dar um tiro na cabeça”.

Resposta

ligya said10 dezembro, 2012 at 9:16 pmOi Daniel,queria deixar claro aqui que eu não “reprimi” essa parte do discurso intencionalmente(como é o que dá a entender o Denis, do Bola Presa – estou assumindo que você chegou