Isabel Sartorius - Planeta · o aspecto mais social, potenciado pela minha exposição pública...

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Transcript of Isabel Sartorius - Planeta · o aspecto mais social, potenciado pela minha exposição pública...

Isabel Sartorius

Por Ti Faria Mil Vezes

Ana Maria Pinto da SilvaTradução

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Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito

1200 ‑242 Lisboa • Portugal

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor

© 2012, Isabel Sartorius© 2012, Planeta Manuscrito

Imagens do extratexto: Arquivo pessoal da autora

Título original: Por ti lo haría mil veces

Revisão: Fernanda Fonseca

Paginação: Segundo Capítulo

1.ª edição: Junho de 2012

Depósito legal n.º 346 023/12

Impressão e acabamento: Guide – Artes Gráficas

ISbn: 978 ‑989 ‑657 ‑296 ‑9

www.planeta.pt

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Nota ao leitor

Muitos leitores perguntar ‑se ‑ão porquê este livro e porquê agora. Para responder a estas duas perguntas, gostaria de começar por dizer que na minha vida sempre houve duas facetas bem definidas. Por um lado, o aspecto mais social, potenciado pela minha exposição pública devido à relação com o príncipe Felipe. Por outro, o aspecto mais íntimo, o que decorre fora dos holofotes e longe das manchetes dos jornais. E é aí que se encontrava a minha mãe.

A minha mãe foi o eixo da minha vida e condicionou ‑a de uma maneira determinante. Éramos muito unidas, eu amava ‑a e preocupava‑‑me tanto que me liguei a ela de forma inseparável. Esta união tão intensa não tardou a enredar ‑nos por completo e deixou em mim a semente de uma perturbação que marcaria o meu futuro.

Com o passar do tempo, descobri que aquilo que estava a passar ‑se comigo tinha um nome: co ‑dependência, e que os hábitos que adqui‑rira quase sem me aperceber faziam parte de uma perturbação de que padecem milhões de pessoas no mundo. Este livro fala da minha expe‑riência. E se é publicado agora, é porque foi apenas a partir do momento em que a minha mãe morreu que fui capaz de reunir as forças necessá‑rias para escrevê ‑lo.

O objectivo era bastante claro na minha mente: procurar explicar essa vinculação insana e inexplicável com os outros, que nos transforma em pessoas controladoras e hipervigilantes e nos faz perder a nossa identi‑dade, o leme e o controlo da nossa vida. Um «vírus» que se propaga até

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conseguir transformar o amor em sofrimento. E escrever também sobre como voltar a reencontrar ‑nos para não permitir que as situações que nos afectaram profundamente em algum momento do passado conti‑nuem a afectar ‑nos para sempre.

Queria escrever sobre essa luta que tanta gente no mundo, incluindo eu, trava dia a dia para se recuperar e assumir o controlo da própria vida.

Pensava que para chegar ao máximo de pessoas possível teria de falar do leque completo abrangido pela doença, mas este é tão vasto que ten‑tar fazê ‑lo seria demasiado ousado da minha parte, porque não sou nem terapeuta nem pretendo sê ‑lo. Pedi alguns conselhos a um psicólogo que está à frente de um dos Centros de 12 Passos que conheço e ele deu ‑me a sua opinião:

– Uma vez que tu não és uma especialista no assunto, o melhor que poderás fazer será contar a tua própria experiência. E nada mais.

E é isso mesmo que vou fazer; desejo apenas que o caminho que per‑corri como co ‑dependente possa servir de apoio a outras pessoas. Abrir uma pequena janela para a compreensão da co ‑dependência, e que sejam depois os especialistas que ajudem a aprofundar o assunto.

Esta é a história da minha mãe e também a minha. Uma história de amor e de sofrimento. De morte, mas também de vida. Uma história na qual muita gente poderá ver ‑se espelhada e identificar ‑se.

Isabel Sartorius Zorraquín

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Quando tudo era mais fácil

– Isa, a mamã morreu.Eram sete e meia da manhã do dia 22 de Abril de 2009 quando o

telefone tocou. Atendi e reconheci de imediato a voz da minha irmã Cecilia, que tentava falar comigo desde buenos Aires. Chorava sem parar e não era capaz de pronunciar uma palavra até que, por fim, me deu a notícia:

– Isa, a mamã morreu.Aquela era a primeira vez que ouvia a minha irmã chorar daquela

maneira, porque sempre foi muito reservada.– Descansou por fim, Ceci – disse ‑lhe. – não pensemos em nós agora,

pensemos nela.A minha irmã estava de tal maneira desesperada que insistia, uma

e outra vez.– Mas será que não percebes? Ela está aqui, ao meu lado, morta!– Sim, Cecilia, claro que entendo. Vou apanhar o primeiro avião e

dentro de algumas horas estarei junto de ti, não te preocupes.E, logo em seguida, desliguei.Tudo o que era capaz de sentir nesse momento era uma imensa paz,

porque sabia que a minha mãe, a minha melhor amiga, a pessoa que mais amei a par da minha filha, havia deixado, por fim, de sofrer.

A caminho do avião que me levaria à capital da Argentina, sentia que ela estava comigo; livre, feliz, a rir ‑se como sempre e a dar ‑me a mão com mais força do que nunca. Eu e a minha mãe continuávamos a estar juntas,

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não tinha dúvida nenhuma de que assim era. E, uma vez mais, sobrevoei o Atlântico para me abraçar a ela.

Fui encontrar a minha irmã mais tranquila do que aquando da nossa última conversa. A seu lado, o marido, Freddy, assumia o papel do homem forte da família e tentava consolá ‑la. Abraçámo ‑nos com força uma à outra. Sabíamos que mais cedo ou mais tarde aquele momento iria chegar, mas nunca imaginámos quando seria. Ergui os olhos e vi ‑a. Estava ali, ao fundo, no quarto, deitada em cima da sua cama, como a havia dei‑xado nos últimos anos.

Pedi a Cecilia e a Freddy que me deixassem a sós com ela e entrei no quarto, nesse mesmo quarto onde havíamos partilhado tantas horas jun‑tas. Fechei a porta, deitei ‑me ao lado da minha mãe e abracei ‑a. Cheirava a ela, maravilhosa, a essa mistura de colónia Nenuco e Marlboro.

– Amo ‑te, mamã. Que nem te passe pela cabeça deixar ‑me sozinha, hã? Aí sim é que eu não te perdoaria…

Tinha os lábios secos, por isso apliquei ‑lhe um pouco de vaselina.Sabia que durante o resto da minha vida ela continuaria ali como con‑

tinuam de dia as estrelas, que sempre estão ali mesmo que não as veja‑mos. Quase podia ouvi ‑la, dentro da minha cabeça: Escreve ‑o, Isa . Escreve esse livro com que andas às voltas há tanto tempo .

Eu sentia que não podia, que sem ela já não era a mesma coisa.– Vou sentir tantas saudades tuas… – sussurrei ‑lhe. – Assim que

puderes, envia ‑me algum sinal para que eu saiba que estás bem.Posto isto, abraçada a ela e agarrando com força a sua mão, adormeci.Enterrámo ‑la algumas horas mais tarde.O meu cunhado organizou um enterro de sonho: mesmo no meio

de um vasto campo verde, solitário, rodeado de flores brancas, e de ami‑gos e de familiares. Era o último adeus que a minha mãe merecia; uma mulher excepcional, carinhosa, sensível e romântica, que nasceu no século errado.

O amor foi tudo para ela, mas o amor atraiçoou ‑a e destruiu ‑a para sempre. E ela encontrou o seu refúgio no inferno.

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A minha mãe, Isabel Zorraquín, chegara a Espanha muito jovem vinda da Argentina. Era uma mulher lindíssima, educada na classe alta buenairense da época e com imenso sentido de humor. Filha única e bas‑tante mimada, muito embora a minha avó fosse uma mulher bastante rígida na sua maneira de ver o mundo, apenas lhe era exigido o mesmo que se exigia às jovens da sua época: boas maneiras, saber falar várias línguas e fazer um bom casamento.

O que acontece é que nem toda a gente tem entre as suas prioridades unir ‑se a alguém para sempre e constituir uma família e, quando a duas pessoas apaixonadas se deparam duas formas tão distintas de entender o futuro, é impossível evitar a ruptura. Foi isso que aconteceu com o seu primeiro namorado. Ele estava apaixonado, mas não acreditava no casa‑mento. Quando se separaram, e tal como contava a minha avó, a minha mãe sofreu muito. Chorava tanto por ele que decidiram enviá ‑la para Espanha para casa de uma tia materna, que estava casada com um espa‑nhol. Foi indiferente, todos aqueles quilómetros de permeio entre eles não serviram de nada: a mamã continuou a chorar, inconsolável, sem parar.

Para ela, o amor era o centro de tudo. Estava apaixonada pelo amor e por isso cada desilusão amorosa implicava para ela um tremendo golpe. Eu sempre lhe dizia que ela deveria ter nascido em pleno Romantismo, e que Goethe se teria, de certeza, inspirado nela para escrever a versão feminina do jovem Werther.

– Mas como é possível sofrer ‑se tanto por amor? – costumava per‑gun tar ‑lhe. – Mamã, por amor de Deus!

– Isabel, tu és Capricórnio, nunca hás ‑de entender ‑me.Era assim que ela resolvia tudo, com os horóscopos. Passava o dia

inteiro a torturar ‑me com os signos e com os astros. E digo «me», porque chegou mesmo a convencer os meus irmãos de que os astros e as estrelas controlavam quase todos os assuntos humanos. A sua fama com as car‑tas do tarô transpunha a ombreira das portas lá de casa. As minhas ami‑gas não paravam de me telefonar:

– Isa, será que podes dizer à tua mãe que conheci um rapaz de Carneiro e perguntar ‑lhe se ele tem futuro comigo, que sou de Touro?

Todas as minhas amigas a adoravam. E a verdade é que a minha mãe era genial: era dotada de um sentido de humor olímpico, era sagaz,

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expedita, intuitiva e boa. Além de que era uma criança. nunca quis ou nunca pôde crescer, porque crescer teria implicado relegar o grande altar da sua vida, o Amor, para o seu devido sítio, e não estava disposta a pas‑sar por isso. De resto, não passou.

O meu pai, Vicente Sartorius Cabeza de Vaca, além de marquês de Mariño, era um homem excepcional; muito engraçado e generoso, com uma vitalidade e um entusiasmo pela vida extraordinários. E nesse entusiasmo pela vida incluía ‑se tudo: desportos, mulheres, comida, viagens…

Aos oito anos havia perdido a mãe na guerra civil. Depois disso, o meu avô, um militar, mandou os filhos para um colégio interno em Inglaterra, e nem o meu pai nem o seu irmão Antonio voltaram a Madrid antes de terem completado os dezoito anos. Dispunham de algum dinheiro, que tinham herdado da minha avó e que lhes permitia não ter a urgência nem a necessidade de trabalhar de imediato, mas na estrutura militar do meu avô não possuir um emprego era impensável e indigno, por conseguinte os dois irmãos optaram por emancipar ‑se e mudaram ‑se para um apar‑tamento na Calle Espalter, muito perto do Retiro. O meu pai estudou e terminou o curso de Direito, se bem que nunca tenha exercido: o seu carácter empurrava ‑o mais na direcção da aventura do que rumo a uma vida de gabinete, sentado a uma secretária.

O meu tio Antonio e o meu pai eram atraentes, simpáticos, muito aventureiros e os dois tinham uma vitalidade transbordante e conta‑giante, a tal ponto que, pese embora as contínuas brigas e descompos‑turas do meu avô, ambos decidiram embarcar a bordo de um veleiro e, juntos, cruzaram o Atlântico. Viveram durante alguns meses em Cuba e percorreram grande parte da América Central. no regresso dessa viagem, o seu primo ‑irmão e amigo íntimo dos dois, Alfonso de Portago, marquês de Portago – Fon, para a família – seduziu ‑os, arrastando ‑os para a aven‑tura do bobsleigh, esse desporto que consiste em descer num trenó a toda a velocidade por um tubo de gelo. Aquela modalidade parecia ter sido feita à medida para eles e o meu pai chegou a competir nos Jogos Olím‑picos de Inverno de 1956, em Cortina d’Ampezzo; os primeiros a serem transmitidos pela televisão. Pouco faltou, apenas catorze décimas, para que os dois voltassem para casa com uma medalha de bronze ao pescoço.

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– E o bronze seria nosso se não tivéssemos tido de andar a esquivar‑‑nos aos buracos que a equipa do Liechtenstein abriu pelo caminho – dizia ele muitos anos mais tarde à mulher, a princesa nora, e desatava à gargalhada.

Isso sim era algo muito característico do meu pai: tinha sempre uma piada na ponta da língua.

– Papá, tenho pressa, vai direito ao ponto.– A qual deles? Ao ponto em branco ou ao ponto de cruz?E era assim o dia todo…Infelizmente, apenas quinze meses depois daqueles jogos, Alfonso

morria num acidente de Fórmula 1 ao volante do seu Ferrari, e aquilo, além de ser um golpe duríssimo para todos, pressupôs e ditou o ponto final da aventura olímpica.

Sem dúvida que no caso dos meus pais deve ter sido amor à primeira vista, porque, assim que se conheceram, apaixonaram ‑se. Foi dito e feito: apresentaram ‑nos e o meu pai tratou de pôr em acção todo o seu enge‑nho e por fim conseguiu que a minha mãe parasse de chorar pelos amo‑res perdidos. Fê ‑la rir ‑se dessa vez e nunca mais pararam de se rir os dois.

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não demoraram a casar ‑se, nem tão ‑pouco a ter filhos. O casamento celebrou ‑se em buenos Aires, em 1964, e eu cheguei passados nove meses. nasci num dia 20 de Janeiro na clínica madrilena de nuestra Señora de Loreto, na Avenida Reina Victoria. Segundo contam quantos ali esti‑veram, foram dias de muito frio e o meu pai e todos os seus amigos receberam ‑me com garrafas de champanhe; era necessário comemo‑rar a chegada da primogénita. Um ano e meio mais tarde nasceu Ceci. Um ano depois, Luis fechou a conta.

De toda a maneira, para ser sincera, tenho recordações muito esfu‑madas dessa época; os meus pais já não viviam juntos. no entanto, uma coisa é certa, sempre os vi demonstrando carinho um pelo outro. não como um casal, quiçá, mas sim como os dois grandes amigos que sem‑pre foram. E isso é algo que sempre lhes agradecerei para o resto da vida.

O problema é que eles se amavam muito, mas não tinham nada em comum. O meu pai gostava de desporto e da vida ao ar livre, e era um

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furacão que precisava apenas de quatro horas de sono. Contudo, a minha mãe era mais preguiçosa. Do que ela gostava mesmo era de jogar ténis ou às cartas com as suas amigas no Clube Puerta de Hierro, ou então de ler. Sempre leu imenso, a bem da verdade. Era mais tranquila, e mais caseira também. A grande qualidade que os unia era o sentido de humor; ambos o possuíam num grau bastante desenvolvido e era difícil conver‑sar com qualquer um durante dez minutos seguidos sem que dissessem uma piada.

A diferença entre ambos era uma questão de energias. O meu pai era capaz de nos tirar a todos da cama às oito da manhã e largar ‑nos equi‑pados à entrada do Clube Puerta de Hierro. Éramos o alvo de todas as chacotas. As portas das instalações nem sequer tinham aberto ainda e o meu pai já nos havia despejado ali, em frente da porta…

– É preciso apanhar ar! – dizia.Essa era a sua frase favorita. Ainda hoje me rio quando às vezes me

ouço a mim mesma dizê ‑la à minha filha.E quanto à minha mãe, que era uma noctívaga e que ficava a pé até às

duas horas da madrugada a fazer palavras cruzadas, pois a bem da ver‑dade, o facto de a acordarem a um sábado às oito da manhã era coisa que lhe caía bastante mal.

Quanto a isso eles eram, em definitivo, incompatíveis. Se o meu pai era uma locomotiva que andava sempre a inventar actividades como por exemplo ir esquiar num pinhal em Gredos, a minha mãe era mais do género de jogar a sua partida de gin rummy. Ainda assim, os dois eram seres muito afectuosos, cada um à sua maneira. Ambos boas pessoas e centrados em desfrutar da vida sem grandes ambições nem sonhos inal‑cançáveis.

Como é evidente, eu amava ‑os aos dois, se bem que desde os primei‑ros meses de vida demonstrei uma devoção especial pela minha mãe. Segundo ela mesma me contava, desde o princípio eu só queria estar a seu lado. O meu apego chegava a tal ponto que quando a minha irmã Cecilia nasceu, desenvolvi uma espécie de eczema em todas as articula‑ções, por causa dos ciúmes. A mamã garantia que era tal a minha sensi‑bilidade e a minha paixão por ela que se alguém vinha visitar ‑nos e lhe fazia algum comentário positivo acerca dos meus irmãos, ela apressava ‑se

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de imediato a fazer ‑lhes um sinal para que mudassem de assunto ou para que falassem mais baixo, para que eu não ouvisse nem desconfiasse de nada.

Reconheço que sempre fui muito dramática. Mesmo quando tinha apenas seis anos já adorava ler a necrologia do jornal Abc e perguntava‑‑me sobre o porquê de cada morte… Poder ‑se ‑ia dizer que, de alguma maneira, a tragédia sempre me fascinou desde criança, muito embora fosse ao mesmo tempo extrovertida, muito curiosa e muito passional, e ainda hoje continuo a sê ‑lo.

De toda a maneira, dizem que há quem puxe mais para o pai e quem puxe mais para a mãe, e eu era a menina da mamã. Ainda hoje, quando conheço alguém, não se passam três dias sem que me saia com um «ouve cá, e a tua mãe como é ela? Que tal se dão vocês? O que…?». Os meus amigos sorriem cada vez que lhes pergunto alguma coisa do género, mesmo que não venha muito a propósito:

– Será que não queres que te traga para aqui um divã, que é melhor para a psicanálise? Caramba, vocês acabam de ser apresentados!

Julgo que conhecer esse vínculo que se cria entre mãe e filho serve‑‑me… não digo para catalogar ninguém, mas para entender de onde essa pessoa vem, como se forma o seu mapa sentimental.

Sempre fui muito apegada à minha mãe, reconheço isso. Suponho que também terá tido influência o facto de ser argentina e de não ter a sua família em Madrid, porque desde o primeiro momento ela mesma aceitou e fomentou esse cordão umbilical tão forte que nos unia… e eu adorava isso. não sei se se tratava de uma necessidade de carinho da parte dela ou o facto de eu ter sido sempre muito protectora; a mamã tinha consciência dessa intensidade que existia dentro de mim e, de certo modo, alimentava ‑a, porque para além de me amar muito, gos‑tava que a amassem e eu vivia para ela, e por conseguinte formávamos a equipa perfeita.

Ela levava ‑me para toda a parte, e se o não fazia, eu esperava com impaciência a sua volta. Por exemplo, se a minha mãe ia jogar a sua par‑tidinha de cartas ao clube e dizia que estaria de volta pelas oito horas, às oito menos cinco já eu estava plantada diante da porta. Era adoração. Já o disse.

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Éramos inseparáveis desde que eu era bem pequena e assim foi ‑se estabelecendo entre nós as duas uma ligação inquebrantável que iria durar a vida toda. Por outras palavras: para além de uma filha, eu era a sua grande amiga e o seu principal apoio. Os meus irmãos, Cecilia e Luis, também, se bem que de outra maneira. Eles eram mais calados e sosse‑gados e, embora de vez em quando protestassem em relação às diferen‑ças de tratamento que a minha mãe tinha para comigo, não tardaram a habituar ‑se à ideia e acabaram por aceitar esse facto.

Os meus irmãos são maravilhosos e eu amo ‑os muitíssimo. Cecilia é uma mulher incrível com um temperamento doce e sossegado, mais dócil, porém com opiniões muito vincadas e, ao mesmo tempo, sempre foi muito observadora e intuitiva. Era uma criança bastante tranquila e lembro ‑me dela a brincar com um cãozinho que tivemos em El Viso, Tofi, ou com uma boneca ao colo. Ainda hoje possui o dom de pensar e agir sempre pelo caminho certo.

Por seu lado, Luis era e sempre será o benjamim da casa. Cecilia e eu corríamos a toda a pressa da escola até casa para enchê ‑lo de beijos assim que transpúnhamos a ombreira da porta. Era um menino lindís‑simo, muito tímido e que não tinha qualquer problema em entreter ‑se sozinho sem mais nenhuma companhia além de uma bola ou de um canto do seu quarto, brincando com as suas caricas, os seus soldadinhos e os seus berlindes. nós os três passávamos o dia juntos e, felizmente, essa união, essa cumplicidade que só se tem com os irmãos, continua a ser uma constante na minha vida.

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naquela época vivíamos os cinco num dúplex no bairro de El Viso, numa casa muito bonita. Luis foi matriculado no colégio do seu santo padroeiro, São Luís dos Franceses, e eu e Cecilia fomos matriculadas em Saint ‑Chaumond, uma escola muito pequena para raparigas gerida por umas freiras francesas, em pleno centro de Madrid. Acho que mandar‑‑nos para lá foi uma decisão acertada dos meus pais: sentíamo ‑nos muito bem no colégio; em especial protegidas. Todas as manhãs tínhamos um momento de oração e de canto e essa profunda formação cristã – tão cheia de valores – manteve ‑se sempre presente no meu coração e na

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minha maneira de entender o mundo, apesar de, mais adiante na minha vida, ter querido aprofundar mais os conhecimentos sobre Deus e ter acabado, para minha desgraça, por duvidar da Sua existência.

Recordo a vida em Madrid daqueles primeiros anos muito tranquila, privilegiada – algo de que, claro está, eu não tinha consciência então. Tudo decorria entre a nossa casa da Calle Pisuerga no bairro de El Viso, o colégio e o Clube de Campo de Puerta de Hierro aos fins ‑de ‑semana. Era uma vida descontraída com uns pais ainda muito jovens, que saíam para se divertir, que viviam a dolce vita e que passavam uns momentos incríveis.

Costumavam deixar ‑nos aos cuidados de Ana, uma das raparigas que trabalhavam na casa e por quem sinto um enorme carinho. Ana gostava imenso dos três, cuidava de nós e lembro ‑me muito bem dos trajectos no seu carro até ao colégio, ela ao volante e nós os três com os nossos uni‑formes preparados para um novo dia.

Conta Ana que eu desempenhava o meu papel de irmã mais velha levando ‑o muito a sério e que aproveitava para denunciar de imediato tudo o que os meus irmãos faziam de mal. não sei se ela exagera, se bem que não há muito tempo me lembrei de um episódio muito engraçado. Foi num Verão na Suíça. Tinham ‑nos mandado, os três irmãos, para um colégio interno em Crans ‑sur ‑Sierre e eu, longe de casa, reivindiquei para mim o papel de irmã pedante. E é verdade, admito, escrevi uma carta à minha mãe:

«Mamã, lamento imenso pelo desgosto que vou causar, mas a Cecilia e o Luis não lavam os dentes.»

não sei o que pensaria de mim a minha pobre mãe…As nossas vidas decorriam com tanta naturalidade que quando os

meus pais se separaram – tinha eu sete anos – eu e os meus irmãos tomámos consciência desse facto sobretudo durante os fins ‑de ‑semana, quando íamos sem a mamã para a casa que o meu pai havia alugado em La Granja, em Segóvia, para passar bons momentos no campo na nossa companhia.

De La Granja guardo recordações bastante nítidas. Tínhamos um grupo de amigos enorme, com quem Cecilia e eu fazíamos imensos planos durante os invernos. Eram planos inocentes, com um monte de gente.

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brincávamos ao jogo da garrafa, aos polícias e ladrões, à apanhada… com que nos divertimos em determinada idade. Foi ali que gostei pela primeira vez de um rapaz e onde ficámos a saber que as cegonhas não se ocupam a trazer os bebés de Paris. Ainda me lembro do choque que Ceci e eu apanhámos face àquela ideia.

La Granja traz ‑me recordações maravilhosas da infância, como quando o meu pai, irritadíssimo, saía de carro à nossa procura pelas ruas, porque já eram dez horas da noite e nós ainda não havíamos che‑gado a casa, de tal maneira estávamos enredadas em mil e uma brinca‑deiras. Ou os desmaios de Cecilia todos os domingos, na missa, porque saíamos sempre de casa a correr e ela nunca tomava o pequeno ‑almoço. Ou o papá a chamar ‑nos:

– Colaborem, colaborem! – dizia, para que nós ajudássemos a pôr a mesa porque eu e a minha irmã, nisso, éramos as rainhas da cabulice.

nos verões, por outro lado, íamos sempre para Marbelha. Talvez por isso o Sul de Espanha me atraia tanto. Eram os anos de 1970, a Costa do Sol ainda não se havia massificado e nós chegávamos a Málaga dispos‑tos a desfrutar o máximo possível daqueles três meses de bicicletas, de pesca ao cair da tarde e de centenas de passeios por Puerto banús. Ficá‑vamos sempre hospedados no Hotel Guadalmina, numa urbanização próxima de San Pedro de Alcántara. E isso não só no Verão mas também na Semana Santa, quando nos escondiam os ovos de Páscoa por todo o hotel e nós íamos procurá ‑los com os suecos, uns amigos que vinham do seu país ano após ano.

O Hotel Guadalmina é um desses lugares que me trazem as melho‑res imagens dos meus pais. É quando a saudade me bate com mais força. Ainda lá vou todos os verões, nem que seja apenas por três dias para tra‑zer depois comigo os perfumes das gardénias misturadas com o ar e o aroma a salitre tão especial desse mar.

Já nessa altura havia muito turismo da Alemanha em Marbelha. nós tínhamos uns vizinhos de lá e eu adorava ouvi ‑los falar. Ouvia ‑os a con‑versar entre si e depois imitava ‑os. Quase cheguei a convencer ‑me de que era alemã: falava em «alemão» a toda a hora. A minha irmã Cecilia tinha vontade de me matar, sentia tanta vergonha que acelerava o passo quando eu me punha a balbuciar a língua a seu lado pela rua. Aos sete

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anos cheguei até a mudar a minha nacionalidade no livro da família que tirei de uma gaveta da minha mãe. Onde se lia «Madrid», apaguei e escrevi «Düsseldorf».

Acontecia a mesma coisa quando a mamã nos enviava com uma dama de companhia para esquiar na Sierra nevada e Ceci e eu subíamos num desses teleféricos enormes. Às vezes conhecíamos um ou outro rapaz e eu jamais me apresentava com a minha verdadeira identidade: essa já estava muito batida, queria experimentar outras. Talvez lhe contasse que éramos oito irmãos, que vivíamos em Londres e que os nossos pais estavam agora na Tailândia, ou coisa que o valha. Qualquer coisa que me ocorresse na altura. não havia maldade por detrás disso, apenas a curiosidade em ver como se sentia uma pessoa nesse outro papel, tão distante do nosso. E a meu lado Ceci, que não sabia onde enfiar ‑se. Acho que já nessa altura ela me havia dado como um caso perdido. não dizia nada, mas quase podia vê ‑la pelo canto do olho abanando a cabeça de um lado para o outro.

Dizia Heraclito que o carácter do homem é o seu destino e nesta altura da minha vida não posso estar mais de acordo com ele. O meu carácter era fantasioso até à medula, muitíssimo intenso e emotivo: um cocktail perigoso. Todos nós que vivemos com um mundo interior transbordante e excessivo temos tendência a ceder as rédeas das nossas vidas às nossas emoções e, no meu caso, ao crescer tão ligada à minha mãe, as minhas acabaram por esfumar ‑se e misturar ‑se entre as suas. Quem já de si nasce com essa herança – que o contexto afiança –, de uma maneira ou de outra acaba por se transformar numa espécie de amplificador emocional. Por isso, ainda que seja verdade que me tocou viver algumas experiências complicadas, também é verdade que estas assumiram grandes propor‑ções devido ao meu carácter.

nesse sentido, sublinho com especial ênfase a minha hipersensibili‑dade: admito que cederia de bom grado metade dela, a que vai de sensí‑vel a hipersensível. Foi o que mais me fez sofrer, o que faz que um duro golpe me derrube durante dez dias em vez de um.

Por outro lado, isso não acontece com os meus irmãos, pois são duas pessoas muito sãs nas suas relações. Também não é estranho: é quase habitual que numa mesma família dois irmãos sejam como o

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dia e a noite. Ambos vivem as mesmas experiências familiares, parti‑lham o quarto, o colégio e as amizades. O que faz então de um deles uma pessoa racional e de outro uma pessoa fantasiosa? Cabe ‑me a vez de dar razão a Heraclito.

Foi num desses verões em Marbelha que o meu pai conheceu Manuel, na Discoteca Mau Mau.

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Corria o ano de 1972, o último que os meus pais passariam juntos. Manuel Ulloa Elías era um político peruano exilado em Espanha, mas que ainda detinha muito poder no seio do seu partido. Quatro anos antes, o golpe de Estado militar de Juan Velasco Alvarado havia arrebatado a Presidência a Fernando belaúnde e deixou Manuel sem pasta ministe‑rial de Economia e Finanças e, de passagem, também sem casa. Primeiro foi para a Argentina, depois aportou em Espanha. É curioso como um golpe de Estado do outro lado do mundo deu origem a um golpe seme‑lhante no destino da minha família.

Manuel era de facto alto, medindo quase dois metros. A nós, que éra‑mos uns miúdos, ele parecia um gigante com vincados traços indígenas e aspecto de pessoa influente; um homem com muito carisma. Muito inteligente, se bem que, para dizer a verdade, com pouco jeito para as crianças; não deviam agradar ‑lhe muito. Era introvertido, observador e para nos demonstrar o seu carinho trazia ‑nos presentes caríssimos. notava ‑se que estava rodeado de poder e que tinha muito dinheiro e, sem dúvida, que o aguardava uma prometedora carreira política.

A minha mãe apaixonou ‑se de imediato por ele e entrou depressa no seu mundo. Começaram a viajar juntos com frequência. Eram via‑gens ao estrangeiro, viagens longas, e eu sentia que de alguma maneira a minha mãe já não estava sempre em casa connosco como sempre fizera até então. Segundo ela, dediquei ‑me a fazer da sua vida um inferno: era indiferente o local onde estivesse, pois eu telefonava ‑lhe para qualquer hotel, com uma desculpa qualquer, sem parar para pensar nem meio segundo na diferença horária.

– Mamã, volta para casa, pois bateram no Luis – dizia ‑lhe se por acaso alguma das empregadas que cuidavam de nós lhe tivesse dado uma

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bofetada, porque o meu irmão era lentíssimo a comer. Era capaz de ficar em frente do prato durante horas.

Durante uma das suas viagens, Ceci e eu subimos até ao seu quarto para nos mascararmos com um dos seus vestidos e acabei por pegar numa tesoura e cortá ‑los para que não arrastassem pelo chão. Em resumo, tudo isto para cinco minutos de passeio por El Viso, ir e voltar. Acho que essa foi uma das pouquíssimas vezes em toda a nossa vida que vimos a mamã zangada a sério. não podia acreditar que tivéssemos estragado os vestidos Dior que Manuel lhe havia oferecido. A minha irmã diz que foi uma vingança, que me lembrei de fazer aquilo por‑que estava indignadíssima com as suas viagens. não sei, eu acho que só estávamos a brincar, mas é bem verdade que não me agradavam nada as suas ausências.

Pouco depois, começaram a levar ‑nos também, a mim e a Cecilia. O Luis não ia connosco, deixavam ‑no sempre em Madrid com o meu pai. Costumávamos ir muito a Londres, a Paris… Se até àquele momento mal havíamos transposto as fronteiras de Espanha, com ele percorremos grande parte da Europa. Se antes tínhamos tido uma vida sem excessos – confortável, embora bastante normal, para dizer a verdade –, com ele começámos a conhecer o luxo.

não sei a que se devia o meu repúdio em relação a Manuel Ulloa. Com os meus irmãos não foi assim logo desde o início: Ceci guarda algumas fotografias suas dessa época em que Manuel a carrega às cavalitas do alto dos seus dois metros de altura e ela mostra ‑se encantada. De resto, quando ele e a mamã falaram connosco sobre os planos do casamento, a maior preocupação da minha irmã era saber se poderia usar o vestido da primeira comunhão na cerimónia. Comigo não foi assim, comigo nunca existiu esse tratamento.

Reconheço que não gostei dele assim que o conheci. não era por causa de ter de «partilhar» a minha mãe. Também nunca o culpei pelo facto de os meus pais se terem separado por fim, porque isso já vinha de trás. nessa época, o papá estava feliz com uma namorada italiana. O facto de eles se separarem foi algo lógico tendo em conta a maneira de ser de cada um deles. não sei, o problema com Manuel é porque eu e ele não nos encaixámos muito bem em nenhum momento. A sua

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entrada nas nossas vidas trouxe uma certa desordem à casa; esse senhor, que tinha imenso dinheiro, veio mudar os nossos ritmos, pondo ‑os de pernas para o ar.

As regras eram as mesmas, mas ela já não estava presente e isso notava ‑se. Até então havíamos vivido num mundo organizado e muito protegido, um ambiente reduzido e caracterizado pela ordem que, com a chegada de Manuel, parecia que começava a ruir.

A minha mãe jamais foi uma dessas mães que esperam com os braços abertos que voltemos da escola ou que nos obriga a fazer os deveres de casa, que estipula normas rígidas… De forma nenhuma. Em relação aos horários, a ordem corria por conta das empregadas. O papel da mamã era outro: a nossa mãe era a mãe mais carinhosa do mundo, além de muito divertida. Tinha nascido para se divertir, adorava conversar connosco, que a fizéssemos rir com as nossas histórias. Costumávamos sentar ‑nos com ela e falávamos sem parar… Ela sempre com a sua Coca ‑Cola e um Marlboro aceso e a sorrir. Esses instantes eram muito especiais. Sabía‑mos que ela estava ali para o que precisássemos. E de repente deixou de estar. Como pode haver ordem numa casa sem pais?

Dava a impressão de que tudo estava a ponto de mudar e eu, quem sabe se por ser a irmã mais velha, assumi desde o primeiro momento o papel de responsável. Os meus irmãos notaram menos, viveram ‑no de outra forma, mas eu passei a ser, por exemplo, aquela que com apenas dez anos tinha de receber o médico quando este ia lá a casa, porque o Luis tinha anginas. De uma maneira ou de outra fui obrigada a tornar‑‑me adulta de súbito e à força.

Lembro ‑me que num Verão eu e os meus irmãos chegámos mais cedo ao Hotel Guadalmina, acompanhados pelas preceptoras. Estando ali, enquanto esperávamos a chegada da minha mãe, fiquei a saber que ela não viria porque ia viajar para o estrangeiro com Manuel. Era uma espécie de viagem de núpcias à Jugoslávia; mais ou menos como uma lua ‑de ‑mel sem casamento prévio, uma escapadela de barco que duraria três semanas. nunca mais me esquecerei disso.

O mês inteiro com ele na Jugoslávia e nem um dia sequer em Guadal‑mina comigo, pensei. Recebi a notícia como uma bofetada. Afectou ‑me de tal maneira que me tranquei num quarto do hotel com a intenção de

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nunca mais de lá sair. E não o teria feito se não fosse porque uma das empregadas que cuidavam de nós, que estava preocupadíssima, decidiu telefonar à minha mãe em plena viagem e por fim ela também se preo‑cupou tanto que me meteu num avião e obrigou ‑me a ir com eles.

Aquela foi a primeira vez que viajei sozinha de avião e passei todo o voo até à Jugoslávia muito quieta no meu lugar. Se Manuel recebeu ou não como uma bomba o facto de ter «convidados» no seu ameaço de lua ‑de ‑mel, isso já não sei, se bem que sejamos justos e demos a César o que é de César e devo reconhecer que nessa altura também ele me rece‑beu com alguma amabilidade.

Depois pensei mais de uma vez que se a minha mãe se tivesse mos‑trado mais firme comigo nalguns momentos, como aquele por exemplo, mas também é verdade que ela não sabia como lidar com a minha hiper‑sensibilidade e a única coisa que queria era que eu me sentisse bem, por isso já em criança me superprotegia e era tão carinhosa… Pela minha parte, eu só queria estar com a minha mãe.

Passámos as três semanas juntos, no barco, se bem que acho que não fui um grande incómodo para eles; ou pelo menos não propriamente para eles, mas pode ser que os marinheiros não fossem da mesma opinião.

Talvez nesse Verão tenha começado a perfilar ‑se o que estava por vir, porque com essa viagem a mamã e Manuel selavam, de alguma forma, um compromisso sem papéis de permeio. E visto que, como era óbvio para a minha mãe, não devia ser tarefa fácil contar a três crianças o que esse compromisso implicava – ou seja, que mais cedo ou mais tarde par‑tiriam do seu país, que iriam deixar o colégio, os seus amigos, que iriam abandonar tudo –, ocorreu ‑lhe procurar uma solução alternativa. Por isso não nos contou assim sem mais que estava a pensar levar ‑nos para viver no Peru. Em vez disso foi ‑nos preparando durante um ano inteiro, falando ‑nos de como o mundo era grande e maravilhoso.

Eu já tinha completado os onze anos. Era um dia de fins de Agosto, creio eu, pouco depois de voltar de Guadalmina. Estávamos os três irmãos sentados na sala de jantar da casa de Pisuerga, em Madrid, supo‑nho que a brincar, e a minha mãe aproximou ‑se de nós:

– Meninos, vamos pegar num mapa ‑múndi para que vocês possam ver como o mundo é grande e que me digam onde gostariam de viver.

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Em termos de fantasia nunca ninguém me ganhou, já o disse, e para mim aquela possibilidade de viver noutros lugares apaixonava ‑me. Imaginávamo ‑nos a protagonizar as nossas aventuras, descobrindo novas paisagens, novos países. Quando se é criança tudo é mágico. O meu irmão Luis dizia que queria ir viver para a Grécia e a mim tudo me parecia muito divertido. Enfiava ‑me na cama e começava a sonhar: com países, com outras amigas, em ter mais irmãos – porque embora ainda não tivesse podido voltar a engravidar, a ideia da minha mãe era casar ‑se outra vez e ter mais filhos. Estávamos muito longe de saber que, na realidade, nem todas as aventuras são cor ‑de ‑rosa. Limitávamo ‑nos a brincar, a fanta‑siar, mas antes do que imaginávamos o futuro caiu em cima de nós e as nossas vidas começaram de novo muito longe.

Em Lima.

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