investigação policial · 2015-06-08 · de contraditório e de ampla defesa, o que não estaria...
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Organização Criminosa: as facetas do artigo 23 da Lei 12.850/2013 para a
investigação policial
A prevalência do interesse público sobre o privado se constitui como
princípio basilar do sistema penal universal. Contudo, tal diretriz não é absoluta
e deve se adequar1 aos ordenamentos, material e instrumental, vigentes em
cada nação, de maneira a preservar os direitos e garantias fundamentais do
ser humano.
Nesse diapasão, o direito de acesso aos autos por defensores de
investigados, há tempos, está previsto no ordenamento pátrio, sendo exemplo
mais patente de tal garantia, a previsão contida no artigo 7º, XIV, da Lei nº
8.906/1994, que segue in verbis:
Art. 7º São direitos do advogado:
...
XIV - examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem
procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento,
ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar
apontamentos;
A Súmula Vinculante nº 14 do Colendo Supremo Tribunal Federal
(abaixo transcrita), corroborou tal garantia, que, embora, aparentemente,
conflite com o sigilo da investigação criminal, na realidade, mostra-se como
conditio sine qua non ao exercício da ampla defesa.
“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo
aos elementos de prova que, já documentados em procedimento
investigatório realizado por órgão com competência de polícia
judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”
Alguns, então, afirmariam que o inquérito policial é um procedimento
administrativo inquisitorial, sigiloso e unilateral e, por conseguinte, desprovido
1 Sempre com observância do princípio supra legal da razoabilidade
de contraditório e de ampla defesa, o que não estaria de todo incorreto (apesar
de uma assertiva simplista).
A controvérsia sempre é mais profunda do que aparenta!
Elaborando-se o contraponto, não se poderia olvidar que, apesar do
procedimento investigativo, realmente, possuir as citadas características de
sigilo e unilateralidade, estas não teriam o condão de suplantar direitos e
garantias constitucionalmente asseguradas a qualquer cidadão, como aduzido
por Mougenoti, que, citando julgado do C.STF, assim dispôs2:
“...A unilateralidade das investigações preparatórias da ação penal não
autoriza a Polícia Judiciária a desrespeitar as garantias jurídicas que
assistem ao indiciado, que não mais pode ser considerado mero objeto
das investigações. O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de
garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes
do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade
penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas
ilicitamente obtidas no curso da investigação policial (STF: HC 73.271-
2/SP, Rel. Celso de Melo, 4.10.1996)...”.
E o entendimento da Corte Suprema não foi alterado:
E M E N T A: “HABEAS CORPUS” - DENEGAÇÃO DE MEDIDA
LIMINAR - SÚMULA 691/STF - SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS QUE
AFASTAM A RESTRIÇÃO SUMULAR - PERSECUÇÃO PENAL
INSTAURADA EM JUÍZO OU FORA DELE - REGIME DE SIGILO -
INOPONIBILIDADE AO ADVOGADO CONSTITUÍDO PELO
INDICIADO OU PELO RÉU - DIREITO DE DEFESA -
COMPREENSÃO GLOBAL DA FUNÇÃO DEFENSIVA - GARANTIA
CONSTITUCIONAL - PRERROGATIVA PROFISSIONAL DO
ADVOGADO (LEI Nº 8.906/94, ART. 7º, INCISOS XIII E XIV) - OS
2 Mougenot, 2009, p.29
ESTATUTOS DO PODER NÃO PODEM PRIVILEGIAR O MISTÉRIO
NEM COMPROMETER, PELA UTILIZAÇÃO DO REGIME DE SIGILO,
O EXERCÍCIO DE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS POR
PARTE DAQUELE QUE SOFRE INVESTIGAÇÃO PENAL OU
ACUSAÇÃO CRIMINAL EM JUÍZO - CONSEQÜENTE ACESSO AOS
ELEMENTOS PROBATÓRIOS JÁ DOCUMENTADOS, PRODUZIDOS
E FORMALMENTE INCORPORADOS AOS AUTOS DA
PERSECUÇÃO PENAL (INQUÉRITO POLICIAL OU PROCESSO
JUDICIAL) - POSTULADO DA COMUNHÃO OU DA AQUISIÇÃO DA
PROVA - PRECEDENTES (STF) - DOUTRINA - “HABEAS CORPUS”
CONCEDIDO DE OFÍCIO, COM EXTENSÃO, TAMBÉM DE OFÍCIO,
DOS SEUS EFEITOS AOS CO-RÉUS. DENEGAÇÃO DE MEDIDA
LIMINAR - SÚMULA 691/STF - SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS QUE
AFASTAM A RESTRIÇÃO SUMULAR. - A jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, sempre em caráter extraordinário, tem admitido o
afastamento, “hic et nunc”, da Súmula 691/STF, em hipóteses nas
quais a decisão questionada divirja da jurisprudência predominante
nesta Corte ou, então, veicule situações configuradoras de abuso de
poder ou de manifesta ilegalidade. Precedentes. Hipótese ocorrente na
espécie. PERSECUÇÃO PENAL - DIREITO DE DEFESA - GARANTIA
CONSTITUCIONAL - REGIME DE SIGILO - INOPONIBILIDADE A
ADVOGADO CONSTITUÍDO PELO INDICIADO OU PELO RÉU -
ACESSO AOS AUTOS - PRERROGATIVA DO PROFISSIONAL DA
ADVOCACIA - CONSEQÜENTE POSSIBILIDADE DE
CONHECIMENTO DOS ELEMENTOS PROBATÓRIOS JÁ
DOCUMENTADOS, PRODUZIDOS E FORMALMENTE
INCORPORADOS AOS AUTOS DA PERSECUÇÃO PENAL,
EXCETUADOS AQUELES EM CURSO DE EXECUÇÃO. - A pessoa
que sofre persecução penal, em juízo ou fora dele, é sujeito de direitos
e dispõe de garantias plenamente oponíveis ao poder do Estado (RTJ
168/896-897). A unilateralidade da investigação penal não autoriza que
se desrespeitem as garantias básicas de que se acha investido,
mesmo na fase pré-processual, aquele que sofre, por parte do Estado,
atos de persecução criminal. - O sistema normativo brasileiro assegura
ao Advogado regularmente constituído pelo indiciado (ou por aquele
submetido a atos de persecução estatal) o direito de pleno acesso aos
autos de persecução penal, mesmo que sujeita, em juízo ou fora dele,
a regime de sigilo (necessariamente excepcional), limitando-se, no
entanto, tal prerrogativa jurídica, às provas já produzidas e formalmente
incorporadas ao procedimento investigatório, excluídas,
conseqüentemente, as informações e providências investigatórias
ainda em curso de execução e, por isso mesmo, não documentadas no
próprio inquérito ou processo judicial. Precedentes. Doutrina.
(HC 93767, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma,
julgado em 21/09/2010, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-064 DIVULG
31-03-2014 PUBLIC 01-04-2014)
Aliás, a própria Súmula Vinculante antes mencionada, confirma tal linha
de raciocínio garantista, ao fazer valer o direito do investigado de acesso aos
autos, em “detrimento relativo”3 do sigilo das investigações (art. 20 do CPP),
que, em síntese, lastreia-se no interesse público de busca da verdade real ou
possível.
E é, notadamente, neste particular – apesar, data maxima venia, das
infundadas críticas - que o procedimento investigativo policial vem recebendo
aperfeiçoamentos significativos nos últimos anos.
Melhor elucidando, ressalte-se que o inquérito policial deixou de se
destinar, apenas, à apuração de indícios de materialidade e autoria, o que
culminou no abandono, por completo, da pecha de mera peça informativa,
conforme veremos adiante.
Com efeito, ao longo dos derradeiros tempos, em virtude da evolução
da sociedade e, consequentemente, da legislação, a ampla defesa tem sido
introduzida, paulatinamente, na seara policial.
3 Diz-se “detrimento relativo”, por ter sido inserida, na Súmula Vinculante nº 14 do C. STF, uma
ressalva, no sentido de se resguardar as diligências em andamento, do acesso por parte de defensores de investigados.
Por corolário, a sociedade e os Operadores do Direito envolvidos no
âmbito processual penal têm exigido, cada vez mais, das autoridades policiais4,
que o procedimento investigativo policial não se limite à busca de indícios
acerca da materialidade e da autoria dos delitos, mas sim, que vise a obtenção
de provas lícitas e consonantes com os direitos e garantias fundamentais, bem
como que estas sejam robustas e hábeis à continuidade da persecução penal.
É consabido que, hodiernamente, muitas provas produzidas em
inquéritos policiais não são passíveis de repetição na seara processual, por
absoluta impossibilidade técnica ou material. Por essa razão, no intuito de
evitar nulidades posteriores, a adequação do procedimento inquisitorial às
garantias legais e constitucionais vem sendo objeto de inúmeras modificações
legislativas, visando, de certa forma, uma aproximação maior ao disposto no
art. 5º, LV, da Carta Magna.
O artigo 155 do Código de Processo Penal esposa, de forma latente,
tal assertiva, pois, com a redação introduzida em 20085, facultou ao Poder
Judiciário, até mesmo, a prolação de decreto condenatório, com fulcro,
exclusivamente, em provas colhidas na fase investigativa. Se não, veja-se:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova
produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua
decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na
investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e
antecipadas.
(sublinhados do autor)
De se ver, pois, que a segunda parte do dispositivo atesta que é
possível a condenação, exclusivamente, com lastro em prova colhida no curso
do inquérito policial, desde que estas sejam: a) cautelares; b) não repetíveis,
ou; c) antecipadas.
4 Leia-se Delegados de Polícia, nos termos do art. 2º, § 1º, da Lei nº 12.830/2013.
55 Vide Lei 11.690/2008
E vale rememorar que se constituem como espécies de provas
cautelares, as resultantes de interceptações telefônicas ou telemáticas, de
afastamento de sigilos fiscal e bancário, do cumprimento de ordem de busca e
apreensão, dentre outras. Já dentre as provas não repetíveis, tem-se a perícia
de local de crime. No mais, exemplo de prova antecipada, é a coleta de
depoimento de enfermo ou qualquer outra que se enquadre nas hipóteses
referidas no artigo 156, I, do CPP.
Cumpre atentar que a prova cautelar, não repetível ou antecipada será,
sempre, submetida ao denominado contraditório diferido ou postergado, isto é,
por serem colhidas na fase investigativa, o exercício do contraditório (por ora)
não será contemporâneo à sua produção, mas sim, em momento posterior,
durante o processo penal decorrente.
Destarte, mandatários de investigados/acusados, no curso do
processo, terão acesso às provas produzidas na fase pré-processual e
poderão, livremente, suscitar eventuais ilicitudes, que, caso reconhecidas em
juízo, darão ensejo à aplicação do disposto no artigo 157, do novel instrumental
criminal, com, o consequente desentranhamento e a inutilização dos elementos
viciados.
Com efeito, outras modificações legislativas (que serão objeto de
minuciosa análise adiante) dão indicativos de que os legisladores,
representantes por mandato eletivo do povo, esperam que as provas, de uma
maneira geral (e não só as cautelares, antecipadas ou irrepetíveis), produzidas
na seara policial, não tenham que ser repetidas/ratificadas durante a fase
processual da persecução penal, o que reduziria sobremaneira o lapso de
tramitação dos processos no Poder Judiciário e diminuiria a sensação de
impunidade atualmente reinante no país.
E nesse liame de raciocínio, vale destacar que as denominadas
Operações de Polícia Judiciária, hoje amplamente divulgadas pela mídia e
ovacionadas pela sociedade, nada mais são do que inquéritos policiais
umbilicalmente relacionados com o poder legítimo de representação das
autoridades policiais6, diretamente, em juízo.
As investigações policiais consubstanciadas nas ditas Operações, em
sua esmagadora maioria, utilizam-se de medidas constritivas (iniciadas por
representações das autoridades policiais) que são sujeitadas a um duplo
controle de legalidade. Primeiro, por parte do Ministério Público, que na
qualidade de fiscal da lei7, opina sobre as medidas postuladas e, segundo, por
parte do Poder Judiciário, que aprecia as referidas medidas, deferindo-as ou
não.
Como se não bastasse, no curso das investigações policiais, ainda são
observadas várias normas legais e constitucionais que, em última análise,
facultam, aos investigados, o exercício da defesa e do contraditório.
Dentro desse espectro, não é demais trazer à baila o artigo 14 do
ordenamento instrumental penal, conforme segue:
“Art. 14. O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão
requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da
autoridade.”
Não obstante, poder-se-ia, ainda, rememorar a não recepção do artigo
21, do mesmo normativo, pela Constituição Federal de 1988, em virtude das
garantias constitucionais elencadas nos incisos LXIII (assistência da família e
de advogado) e LXII (comunicação de prisão ao juiz e à família ou outra pessoa
indicada), do artigo 5º, que são rigidamente observadas na seara da polícia
judiciária.
6 Vide, exemplificativamente, artigos 13, IV, 127, 149,§1º, 282, §2º, 311 e 378, II do Código de Processo
Penal, artigos 4º, §2º, 10, §1º e 11, da Lei nº 12.850/2013, bem como artigos 60 e 72 da Lei nº 11.343/2006, dentre outros. 7 Conforme Lei Complementar nº 75/1993
Mas não é só, pois, também na fase investigativa, são informados e
assegurados outros direitos, dentre os quais o de permanecer em silêncio (art.
5º, LXIII, da CF/88), que não deixa de ser uma das formas de defesa.
Em suma, no curso de um inquérito policial, o Delegado de Polícia,
configura-se como o primeiro garantidor dos direitos fundamentais do cidadão,
pois dele depende toda a validação das provas obtidas nesta fase pré-
processual penal, sendo certo que, por não ser parte no processo penal,
cinge-se na busca da verdade real: a) seja para imputar certo delito a
determinado cidadão, colhendo os elementos probatórios necessários e
apontando os fundamentos jurídicos para tanto8; b) seja para isentar o cidadão
de uma acusação improcedente, pela não ocorrência do crime ou pela
ausência de materialidade e/ou autoria.
E vale dizer, por oportuno, que a polícia judiciária, por não ser parte da
tríade de eventual processo penal futuro, goza da imparcialidade necessária à
apuração escorreita dos fatos, o que tende a evitar abusos ou o direcionamento
de investigações em prol de interesses pessoais, sociais ou corporativos.
Nesse sentido (Gandra Martins, Ives, 2015ii):
“...Tem, portanto, a polícia judiciária, dirigida por delegados de carreira,
a neutralidade própria do Poder Judiciário, perante o qual as partes
(Ministério Público e Advocacia), atuam na busca de provas para a
acusação e defesa.
À evidência, é relevante o papel do Ministério Público, na proteção da
sociedade contra o crime, e da Advocacia, na defesa do acusado
contra a injustiça de acusações indevidas, ilegais ou forjadas, mas
tanto o MP quanto a Advocacia são partes.
8 Conforme art. 2º, §6º, da Lei 12.830/2013:”... O indiciamento, privativo do delegado de polícia,
dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias....”
É, pois, pertinente que, na investigação policial, um poder neutro, como
é o Delegado de carreira, presida o Inquérito para que provas não
sejam suprimidas ou manipuladas por uma parte ou outra (MP e
Advocacia).
Esta é a razão por que o constituinte houve por bem outorgar aos
delegados de polícia, que formam essencial carreira jurídica para a
atuação posterior do Judiciário, a função relevante de investigar e
presidir o inquérito policial.
Não vejo como possam, membros do Ministério Público, ser parte e juiz
ao mesmo tempo, acusar e presidir o inquérito policial. De início,
porque o MP é parte e não é poder imparcial. Na dúvida, deve acusar,
sob risco de ser acusado de omissão. Depois, porque seus membros
não são preparados para investigar. Não consigo imaginá-los armados
de revolver, enfrentando facínoras ou fazendo diligências
investigatórias contra eventuais criminosos...”
E na mesma linha (AFONSO DA SILVA, JOSÉ. 1994, p. 658iii):
“...É aí que entra a polícia judiciária, que tem por objetivo precisamente
aquelas atividades de investigação, de apuração das infrações penais
e de indicação de sua autoria, afim de fornecer os elementos
necessários ao Ministério Público em sua função repressiva das
condutas criminosas, por via de ação penal pública...”
Feitas essas breves elucidações preliminares e já adentrando no objeto
principal deste artigo, sobreleva notar que, como dito outrora, as inúmeras e
recentes alterações legislativas dos últimos anos, s.m.j., caminham indefectível
e inexoravelmente para a introdução da ampla defesa e do contraditório na
fase da persecução penal pré-processual, sendo que, também como já
salientado, aparentemente, tais modificações objetivam a não repetição das
provas produzidas em juízo, o que seria um grande avanço na persecução
criminal, ensejando, pois, uma extrema e útil contribuição para a validade de
atos juridicamente perfeitos.
Algumas das mais recentes e inovadoras modificações nesse sentido,
foram introduzidas pelo artigo 23, caput e parágrafo único, da Lei nº
12.850/20139, conforme segue:
Art. 23. O sigilo da investigação poderá ser decretado pela autoridade
judicial competente, para garantia da celeridade e da eficácia das
diligências investigatórias, assegurando-se ao defensor, no interesse
do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam
respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de
autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em
andamento.
Parágrafo único. Determinado o depoimento do investigado, seu
defensor terá assegurada a prévia vista dos autos, ainda que
classificados como sigilosos, no prazo mínimo de 3 (três) dias que
antecedem ao ato, podendo ser ampliado, a critério da autoridade
responsável pela investigação.
Analisando o caput do dispositivo, inicialmente, uma crítica quanto à
técnica legislativa no que diz respeito ao termo “sigilo” se faz pertinente, pois o
“sigilo”, no inquérito policial, já decorre de lei, consoante art. 20 do CPP, o que,
provavelmente, dará ensejo a discussões futuras.
A par de tal fato, que não é escopo deste trabalho, vale destacar que o
caput do citado dispositivo elevou, expressamente, à categoria de norma legal,
uma orientação que, antes, constava implicitamente da Súmula Vinculante nº
14 do Colendo STF, qual seja, de que o direito de acesso dos autos por
defensores é limitado ao que constar dos autos, não alcançando as
“...diligências em andamento...”.
9 Que “...Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de
obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal...”
Por outro lado, da análise do parágrafo único, inferem-se outras
inovações, quais sejam:
a) A garantia de que advogados de investigados por organização
criminosa tenham acesso (vista prévia) aos autos da investigação,
no prazo mínimo de 3 (três) dias que antecedem a data designada
para oitiva;
b) A possibilidade de elastecimento do referido prazo, “...a critério da
autoridade responsável pela investigação...”.
Como é cristalino, ao efetivar essas modificações através de norma
especial, o legislador aprofundou e regulamentou, de forma mínima, o direito
de acesso aos autos de inquéritos e processos (aqui, entenda-se as cautelares
decorrentes de representações10), por advogados de cidadãos que estejam
sendo investigados por envolvimento e particapação com o crime organizado.
E justamente neste ponto, encontram-se as facetas, os dois lados da
moeda, que motivaram a intitulação da presente missiva!
Por uma análise perfunctória, preliminarmente, poder-se-ia chegar à
conclusão de que essa garantia temporal mínima, somente para investigados
por envolvimento em organização criminosa, teria o condão de dificultar as
investigações e processos, bem como viabilizar uma melhor defesa para
organizações criminosas, culminando, por conseguinte, com o aumento ou
proliferação da impunidade.
Tal hipótese, todavia, não se mostra como a melhor interpretação do
citado dispositivo, o que será objeto de análise logo a seguir.
Não obstante, efetivamente, num primeiro momento, não há como
negar que a inovação mencionada, realmente, dificultará os procedimentos
que, até então, vem sendo adotados pela Polícia Judiciária em
10
Buscas, prisões, seqüestros, etc.
inquéritos/operações policiais, eis que, não mais viabilizará a oitiva de pessoas
– frise-se, bem - investigadas por organização criminosa:
a) por intermédio de mandados de condução coercitiva, expedidos por
autoridade judiciária ou policial, e;
b) no momento em que forem presas, preventiva ou temporariamente,
mas, apenas e tão somente, após a concessão de vista dos autos
pelo prazo legal.
Em verdade, caso não observada a garantia prevista no art. 23,
parágrafo único, da Lei nº 12.850/2013, certamente, argüições de nulidades
ocorrerão e, permissa venia, com grandes chances de acolhimento por parte
do Poder Judiciário.
Pior, ainda, será, se outros elementos probatórios forem coligidos em
decorrência do depoimento realizado sem a observância da multicitada
garantia legal, pois, então, estar-se-á em risco, até mesmo, a integralidade de
determinada investigação, em virtude da já conhecida teoria oriunda do sistema
norte-americano “fruits of the poisonous tree”, também prevista no nosso
ordenamento instrumental penal, nos parágrafos do art. 157.
E não se deve cogitar alhures que tal dispositivo (i) não se aplicaria às
investigações policiais, mas sim, apenas, aos processos judiciais, ou (ii) não
seria aplicável por conflitar com a intentio legis da prisão temporária.
Com efeito, caso o legislador objetivasse que tal garantia ficasse
adstrita aos processos judiciais, não teria se utilizado da expressão “...a
critério da autoridade responsável pela investigação ...” no parágrafo único
do artigo 23.
Prova disso é que, quando o legislador quis restringir algum
ordenamento à esfera judicial, o fez no caput do mesmo dispositivo ao,
expressamente, mencionar “...autoridade judicial competente...”.
Em síntese, como a lei não contém palavras inúteis (verba cum effectu
sunt accipienda), resta claro que ao se utilizar da expressão “...a critério da
autoridade responsável pela investigação ...”, no parágrafo único, o
legislador visou que a garantia de acesso prévio aos autos, também fosse
aplicada pelos Delegados de Polícia, nos inquéritos policiais.
Do mesmo modo, vale destacar que, nem de longe, a garantia
introduzida, mostra-se incompatível com o instituto da prisão temporária, como
defendem alguns.
Tanto é, que durante o período da prisão temporária, de 5 (cinco) ou 30
(trinta) dias (conforme o caso11) ou de eventuais prorrogações, pode-se,
perfeitamente, observar e facultar o gozo da garantia trazida pela nova
legislação afeta ao crime organizado.
Em suma, como primeiros garantidores dos direitos do cidadão, os
Delegados de Polícia têm o dever de zelar pelo cumprimento das normas
vigentes, assegurando o exercício de direitos e garantias estabelecidos nas
normas legais e constitucionais, sob pena de nulidade das provas obtidas com
a inobservância dos preceitos normativos.
Sob o aspecto prático, também não pode deixar de comentar que num
passado recente, várias operações policiais foram, integral ou parcialmente,
anuladas por Tribunais Superiores, em virtude das mais variadas
interpretações/construções jurisprudenciais sobre dispositivos muito menos
garantidores do que o citado art. 23, da Lei de Crime Organizado. Ora, ante tal
fato, não é difícil prever o que ocorreria, caso as autoridades policiais não
observassem rigorosamente a garantia prevista em tal norma.
Posto isto, vale salientar que, por uma intelecção mais aprofundada do
parágrafo único do comando legal supra, os benefícios da inovação são
maiores do que os supostos malefícios.
11
Art. 2º da Lei nº 7.960/89 e art. 2º, §4º, da Lei nº 8.072/1990.
Na realidade, pelo texto inserto, consciente ou inconscientemente, o
legislador brasileiro compeliu a polícia judiciária, ou seja, as autoridades
policiais e seus agentes12, a robustecerem, ainda mais, o arcabouço probatório,
antes de proceder a oitiva de envolvidos em organizações criminosas, sob
pena de tornar a própria oitiva e a investigação inócuas ou contraproducentes.
Isto porque, como elucidado, antes da oitiva, o investigado terá acesso
aos autos e caso já não existam elementos suficientes, certamente, a defesa
de eventuais investigados por crime organizado em nada contribuirá para as
apurações.
Além de tal fato, pode-se dizer, como aventado anteriormente, que a
introdução dessa inovação na esfera pré-processual, constitui-se como mais
um passo na implementação da ampla defesa e do contraditório na esfera pré-
processual.
E de maneira a corroborar o alegado, bem como afastar qualquer
possível contraposição ao que foi defendido, não é demais transcrever a trecho
da fundamentação do Relatório do Exmo. Deputado Federal Vieira da Cunha13,
datado de 19 de setembro de 2012, inerente ao Projeto de Lei nº 6.578/2009,
que foi convertido na Lei nº 12.850/2013:
“... Outrossim, o Substitutivo que ora apresento acolhe importante
reivindicação feita ao longo dos debates com os operadores do Direito,
no sentido do respeito ao direito de defesa técnica do acusado,
em prestígio ao princípio da paridade das armas e à plenitude do
direito ao contraditório. Suprimiu-se, assim, a previsão que impedia
ao acusado conhecer a identidade de vítima e testemunhas. Observe-
se, ainda, que em todos os casos foi preservada a participação de
12
Terminologia do Código Processual Penal (arts.245, 250 e 301) 13
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1027084&filename=PRL+1+CCJC+%3D%3E+PL+6578/2009
Defensor no acesso às informações, com prévia autorização judicial,
em respeito ao direito de defesa...”
(sublinhados e negritos do autor)
Essa alteração na sistemática da persecução penal, como já
salientado, poderia ser a grande mola propulsora da modificação tão
pretendida ultimamente, visando o alcance de um sistema mais célere, justo e
eficaz, atendendo as pretensões de toda a sociedade brasileira.
Concomitantemente, ainda facultaria a desnecessidade de repetição de
provas em juízo, reduzindo, drasticamente, o tempo de tramitação dos
processos judiciais.
*Márcio Magno Carvalho Xavier, Delegado de Polícia Federal
i MOUGENOT BONFIM, Edilson. Código de Processo Penal Anotado.2ª Edição. Ed. Saraiva. 2009
ii GANDRA MARTINS, Ives. Artigo: “Delegados de Carreira e o Ministério Público”. 2015.
http://www.adpf.org.br/adpf/admin/painelcontrole/materia/materia_portal.wsp?tmp.edt.materia_codigo=7434&tit=Delegados-de-carreira-e-o-Ministerio-Publico#.VUJdydJViko iii
AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª Edição. Malheiros. 1994.