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Organização Criminosa: as facetas do artigo 23 da Lei 12.850/2013 para a investigação policial A prevalência do interesse público sobre o privado se constitui como princípio basilar do sistema penal universal. Contudo, tal diretriz não é absoluta e deve se adequar 1 aos ordenamentos, material e instrumental, vigentes em cada nação, de maneira a preservar os direitos e garantias fundamentais do ser humano. Nesse diapasão, o direito de acesso aos autos por defensores de investigados, há tempos, está previsto no ordenamento pátrio, sendo exemplo mais patente de tal garantia, a previsão contida no artigo 7º, XIV, da Lei nº 8.906/1994, que segue in verbis: Art. 7º São direitos do advogado: ... XIV - examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos; A Súmula Vinculante nº 14 do Colendo Supremo Tribunal Federal (abaixo transcrita), corroborou tal garantia, que, embora, aparentemente, conflite com o sigilo da investigação criminal, na realidade, mostra-se como conditio sine qua non ao exercício da ampla defesa. É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.Alguns, então, afirmariam que o inquérito policial é um procedimento administrativo inquisitorial, sigiloso e unilateral e, por conseguinte, desprovido 1 Sempre com observância do princípio supra legal da razoabilidade

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Organização Criminosa: as facetas do artigo 23 da Lei 12.850/2013 para a

investigação policial

A prevalência do interesse público sobre o privado se constitui como

princípio basilar do sistema penal universal. Contudo, tal diretriz não é absoluta

e deve se adequar1 aos ordenamentos, material e instrumental, vigentes em

cada nação, de maneira a preservar os direitos e garantias fundamentais do

ser humano.

Nesse diapasão, o direito de acesso aos autos por defensores de

investigados, há tempos, está previsto no ordenamento pátrio, sendo exemplo

mais patente de tal garantia, a previsão contida no artigo 7º, XIV, da Lei nº

8.906/1994, que segue in verbis:

Art. 7º São direitos do advogado:

...

XIV - examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem

procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento,

ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar

apontamentos;

A Súmula Vinculante nº 14 do Colendo Supremo Tribunal Federal

(abaixo transcrita), corroborou tal garantia, que, embora, aparentemente,

conflite com o sigilo da investigação criminal, na realidade, mostra-se como

conditio sine qua non ao exercício da ampla defesa.

“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo

aos elementos de prova que, já documentados em procedimento

investigatório realizado por órgão com competência de polícia

judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”

Alguns, então, afirmariam que o inquérito policial é um procedimento

administrativo inquisitorial, sigiloso e unilateral e, por conseguinte, desprovido

1 Sempre com observância do princípio supra legal da razoabilidade

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de contraditório e de ampla defesa, o que não estaria de todo incorreto (apesar

de uma assertiva simplista).

A controvérsia sempre é mais profunda do que aparenta!

Elaborando-se o contraponto, não se poderia olvidar que, apesar do

procedimento investigativo, realmente, possuir as citadas características de

sigilo e unilateralidade, estas não teriam o condão de suplantar direitos e

garantias constitucionalmente asseguradas a qualquer cidadão, como aduzido

por Mougenoti, que, citando julgado do C.STF, assim dispôs2:

“...A unilateralidade das investigações preparatórias da ação penal não

autoriza a Polícia Judiciária a desrespeitar as garantias jurídicas que

assistem ao indiciado, que não mais pode ser considerado mero objeto

das investigações. O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de

garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes

do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade

penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas

ilicitamente obtidas no curso da investigação policial (STF: HC 73.271-

2/SP, Rel. Celso de Melo, 4.10.1996)...”.

E o entendimento da Corte Suprema não foi alterado:

E M E N T A: “HABEAS CORPUS” - DENEGAÇÃO DE MEDIDA

LIMINAR - SÚMULA 691/STF - SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS QUE

AFASTAM A RESTRIÇÃO SUMULAR - PERSECUÇÃO PENAL

INSTAURADA EM JUÍZO OU FORA DELE - REGIME DE SIGILO -

INOPONIBILIDADE AO ADVOGADO CONSTITUÍDO PELO

INDICIADO OU PELO RÉU - DIREITO DE DEFESA -

COMPREENSÃO GLOBAL DA FUNÇÃO DEFENSIVA - GARANTIA

CONSTITUCIONAL - PRERROGATIVA PROFISSIONAL DO

ADVOGADO (LEI Nº 8.906/94, ART. 7º, INCISOS XIII E XIV) - OS

2 Mougenot, 2009, p.29

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ESTATUTOS DO PODER NÃO PODEM PRIVILEGIAR O MISTÉRIO

NEM COMPROMETER, PELA UTILIZAÇÃO DO REGIME DE SIGILO,

O EXERCÍCIO DE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS POR

PARTE DAQUELE QUE SOFRE INVESTIGAÇÃO PENAL OU

ACUSAÇÃO CRIMINAL EM JUÍZO - CONSEQÜENTE ACESSO AOS

ELEMENTOS PROBATÓRIOS JÁ DOCUMENTADOS, PRODUZIDOS

E FORMALMENTE INCORPORADOS AOS AUTOS DA

PERSECUÇÃO PENAL (INQUÉRITO POLICIAL OU PROCESSO

JUDICIAL) - POSTULADO DA COMUNHÃO OU DA AQUISIÇÃO DA

PROVA - PRECEDENTES (STF) - DOUTRINA - “HABEAS CORPUS”

CONCEDIDO DE OFÍCIO, COM EXTENSÃO, TAMBÉM DE OFÍCIO,

DOS SEUS EFEITOS AOS CO-RÉUS. DENEGAÇÃO DE MEDIDA

LIMINAR - SÚMULA 691/STF - SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS QUE

AFASTAM A RESTRIÇÃO SUMULAR. - A jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal, sempre em caráter extraordinário, tem admitido o

afastamento, “hic et nunc”, da Súmula 691/STF, em hipóteses nas

quais a decisão questionada divirja da jurisprudência predominante

nesta Corte ou, então, veicule situações configuradoras de abuso de

poder ou de manifesta ilegalidade. Precedentes. Hipótese ocorrente na

espécie. PERSECUÇÃO PENAL - DIREITO DE DEFESA - GARANTIA

CONSTITUCIONAL - REGIME DE SIGILO - INOPONIBILIDADE A

ADVOGADO CONSTITUÍDO PELO INDICIADO OU PELO RÉU -

ACESSO AOS AUTOS - PRERROGATIVA DO PROFISSIONAL DA

ADVOCACIA - CONSEQÜENTE POSSIBILIDADE DE

CONHECIMENTO DOS ELEMENTOS PROBATÓRIOS JÁ

DOCUMENTADOS, PRODUZIDOS E FORMALMENTE

INCORPORADOS AOS AUTOS DA PERSECUÇÃO PENAL,

EXCETUADOS AQUELES EM CURSO DE EXECUÇÃO. - A pessoa

que sofre persecução penal, em juízo ou fora dele, é sujeito de direitos

e dispõe de garantias plenamente oponíveis ao poder do Estado (RTJ

168/896-897). A unilateralidade da investigação penal não autoriza que

se desrespeitem as garantias básicas de que se acha investido,

mesmo na fase pré-processual, aquele que sofre, por parte do Estado,

atos de persecução criminal. - O sistema normativo brasileiro assegura

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ao Advogado regularmente constituído pelo indiciado (ou por aquele

submetido a atos de persecução estatal) o direito de pleno acesso aos

autos de persecução penal, mesmo que sujeita, em juízo ou fora dele,

a regime de sigilo (necessariamente excepcional), limitando-se, no

entanto, tal prerrogativa jurídica, às provas já produzidas e formalmente

incorporadas ao procedimento investigatório, excluídas,

conseqüentemente, as informações e providências investigatórias

ainda em curso de execução e, por isso mesmo, não documentadas no

próprio inquérito ou processo judicial. Precedentes. Doutrina.

(HC 93767, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma,

julgado em 21/09/2010, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-064 DIVULG

31-03-2014 PUBLIC 01-04-2014)

Aliás, a própria Súmula Vinculante antes mencionada, confirma tal linha

de raciocínio garantista, ao fazer valer o direito do investigado de acesso aos

autos, em “detrimento relativo”3 do sigilo das investigações (art. 20 do CPP),

que, em síntese, lastreia-se no interesse público de busca da verdade real ou

possível.

E é, notadamente, neste particular – apesar, data maxima venia, das

infundadas críticas - que o procedimento investigativo policial vem recebendo

aperfeiçoamentos significativos nos últimos anos.

Melhor elucidando, ressalte-se que o inquérito policial deixou de se

destinar, apenas, à apuração de indícios de materialidade e autoria, o que

culminou no abandono, por completo, da pecha de mera peça informativa,

conforme veremos adiante.

Com efeito, ao longo dos derradeiros tempos, em virtude da evolução

da sociedade e, consequentemente, da legislação, a ampla defesa tem sido

introduzida, paulatinamente, na seara policial.

3 Diz-se “detrimento relativo”, por ter sido inserida, na Súmula Vinculante nº 14 do C. STF, uma

ressalva, no sentido de se resguardar as diligências em andamento, do acesso por parte de defensores de investigados.

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Por corolário, a sociedade e os Operadores do Direito envolvidos no

âmbito processual penal têm exigido, cada vez mais, das autoridades policiais4,

que o procedimento investigativo policial não se limite à busca de indícios

acerca da materialidade e da autoria dos delitos, mas sim, que vise a obtenção

de provas lícitas e consonantes com os direitos e garantias fundamentais, bem

como que estas sejam robustas e hábeis à continuidade da persecução penal.

É consabido que, hodiernamente, muitas provas produzidas em

inquéritos policiais não são passíveis de repetição na seara processual, por

absoluta impossibilidade técnica ou material. Por essa razão, no intuito de

evitar nulidades posteriores, a adequação do procedimento inquisitorial às

garantias legais e constitucionais vem sendo objeto de inúmeras modificações

legislativas, visando, de certa forma, uma aproximação maior ao disposto no

art. 5º, LV, da Carta Magna.

O artigo 155 do Código de Processo Penal esposa, de forma latente,

tal assertiva, pois, com a redação introduzida em 20085, facultou ao Poder

Judiciário, até mesmo, a prolação de decreto condenatório, com fulcro,

exclusivamente, em provas colhidas na fase investigativa. Se não, veja-se:

Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova

produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua

decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na

investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e

antecipadas.

(sublinhados do autor)

De se ver, pois, que a segunda parte do dispositivo atesta que é

possível a condenação, exclusivamente, com lastro em prova colhida no curso

do inquérito policial, desde que estas sejam: a) cautelares; b) não repetíveis,

ou; c) antecipadas.

4 Leia-se Delegados de Polícia, nos termos do art. 2º, § 1º, da Lei nº 12.830/2013.

55 Vide Lei 11.690/2008

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E vale rememorar que se constituem como espécies de provas

cautelares, as resultantes de interceptações telefônicas ou telemáticas, de

afastamento de sigilos fiscal e bancário, do cumprimento de ordem de busca e

apreensão, dentre outras. Já dentre as provas não repetíveis, tem-se a perícia

de local de crime. No mais, exemplo de prova antecipada, é a coleta de

depoimento de enfermo ou qualquer outra que se enquadre nas hipóteses

referidas no artigo 156, I, do CPP.

Cumpre atentar que a prova cautelar, não repetível ou antecipada será,

sempre, submetida ao denominado contraditório diferido ou postergado, isto é,

por serem colhidas na fase investigativa, o exercício do contraditório (por ora)

não será contemporâneo à sua produção, mas sim, em momento posterior,

durante o processo penal decorrente.

Destarte, mandatários de investigados/acusados, no curso do

processo, terão acesso às provas produzidas na fase pré-processual e

poderão, livremente, suscitar eventuais ilicitudes, que, caso reconhecidas em

juízo, darão ensejo à aplicação do disposto no artigo 157, do novel instrumental

criminal, com, o consequente desentranhamento e a inutilização dos elementos

viciados.

Com efeito, outras modificações legislativas (que serão objeto de

minuciosa análise adiante) dão indicativos de que os legisladores,

representantes por mandato eletivo do povo, esperam que as provas, de uma

maneira geral (e não só as cautelares, antecipadas ou irrepetíveis), produzidas

na seara policial, não tenham que ser repetidas/ratificadas durante a fase

processual da persecução penal, o que reduziria sobremaneira o lapso de

tramitação dos processos no Poder Judiciário e diminuiria a sensação de

impunidade atualmente reinante no país.

E nesse liame de raciocínio, vale destacar que as denominadas

Operações de Polícia Judiciária, hoje amplamente divulgadas pela mídia e

ovacionadas pela sociedade, nada mais são do que inquéritos policiais

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umbilicalmente relacionados com o poder legítimo de representação das

autoridades policiais6, diretamente, em juízo.

As investigações policiais consubstanciadas nas ditas Operações, em

sua esmagadora maioria, utilizam-se de medidas constritivas (iniciadas por

representações das autoridades policiais) que são sujeitadas a um duplo

controle de legalidade. Primeiro, por parte do Ministério Público, que na

qualidade de fiscal da lei7, opina sobre as medidas postuladas e, segundo, por

parte do Poder Judiciário, que aprecia as referidas medidas, deferindo-as ou

não.

Como se não bastasse, no curso das investigações policiais, ainda são

observadas várias normas legais e constitucionais que, em última análise,

facultam, aos investigados, o exercício da defesa e do contraditório.

Dentro desse espectro, não é demais trazer à baila o artigo 14 do

ordenamento instrumental penal, conforme segue:

“Art. 14. O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão

requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da

autoridade.”

Não obstante, poder-se-ia, ainda, rememorar a não recepção do artigo

21, do mesmo normativo, pela Constituição Federal de 1988, em virtude das

garantias constitucionais elencadas nos incisos LXIII (assistência da família e

de advogado) e LXII (comunicação de prisão ao juiz e à família ou outra pessoa

indicada), do artigo 5º, que são rigidamente observadas na seara da polícia

judiciária.

6 Vide, exemplificativamente, artigos 13, IV, 127, 149,§1º, 282, §2º, 311 e 378, II do Código de Processo

Penal, artigos 4º, §2º, 10, §1º e 11, da Lei nº 12.850/2013, bem como artigos 60 e 72 da Lei nº 11.343/2006, dentre outros. 7 Conforme Lei Complementar nº 75/1993

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Mas não é só, pois, também na fase investigativa, são informados e

assegurados outros direitos, dentre os quais o de permanecer em silêncio (art.

5º, LXIII, da CF/88), que não deixa de ser uma das formas de defesa.

Em suma, no curso de um inquérito policial, o Delegado de Polícia,

configura-se como o primeiro garantidor dos direitos fundamentais do cidadão,

pois dele depende toda a validação das provas obtidas nesta fase pré-

processual penal, sendo certo que, por não ser parte no processo penal,

cinge-se na busca da verdade real: a) seja para imputar certo delito a

determinado cidadão, colhendo os elementos probatórios necessários e

apontando os fundamentos jurídicos para tanto8; b) seja para isentar o cidadão

de uma acusação improcedente, pela não ocorrência do crime ou pela

ausência de materialidade e/ou autoria.

E vale dizer, por oportuno, que a polícia judiciária, por não ser parte da

tríade de eventual processo penal futuro, goza da imparcialidade necessária à

apuração escorreita dos fatos, o que tende a evitar abusos ou o direcionamento

de investigações em prol de interesses pessoais, sociais ou corporativos.

Nesse sentido (Gandra Martins, Ives, 2015ii):

“...Tem, portanto, a polícia judiciária, dirigida por delegados de carreira,

a neutralidade própria do Poder Judiciário, perante o qual as partes

(Ministério Público e Advocacia), atuam na busca de provas para a

acusação e defesa.

À evidência, é relevante o papel do Ministério Público, na proteção da

sociedade contra o crime, e da Advocacia, na defesa do acusado

contra a injustiça de acusações indevidas, ilegais ou forjadas, mas

tanto o MP quanto a Advocacia são partes.

8 Conforme art. 2º, §6º, da Lei 12.830/2013:”... O indiciamento, privativo do delegado de polícia,

dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias....”

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É, pois, pertinente que, na investigação policial, um poder neutro, como

é o Delegado de carreira, presida o Inquérito para que provas não

sejam suprimidas ou manipuladas por uma parte ou outra (MP e

Advocacia).

Esta é a razão por que o constituinte houve por bem outorgar aos

delegados de polícia, que formam essencial carreira jurídica para a

atuação posterior do Judiciário, a função relevante de investigar e

presidir o inquérito policial.

Não vejo como possam, membros do Ministério Público, ser parte e juiz

ao mesmo tempo, acusar e presidir o inquérito policial. De início,

porque o MP é parte e não é poder imparcial. Na dúvida, deve acusar,

sob risco de ser acusado de omissão. Depois, porque seus membros

não são preparados para investigar. Não consigo imaginá-los armados

de revolver, enfrentando facínoras ou fazendo diligências

investigatórias contra eventuais criminosos...”

E na mesma linha (AFONSO DA SILVA, JOSÉ. 1994, p. 658iii):

“...É aí que entra a polícia judiciária, que tem por objetivo precisamente

aquelas atividades de investigação, de apuração das infrações penais

e de indicação de sua autoria, afim de fornecer os elementos

necessários ao Ministério Público em sua função repressiva das

condutas criminosas, por via de ação penal pública...”

Feitas essas breves elucidações preliminares e já adentrando no objeto

principal deste artigo, sobreleva notar que, como dito outrora, as inúmeras e

recentes alterações legislativas dos últimos anos, s.m.j., caminham indefectível

e inexoravelmente para a introdução da ampla defesa e do contraditório na

fase da persecução penal pré-processual, sendo que, também como já

salientado, aparentemente, tais modificações objetivam a não repetição das

provas produzidas em juízo, o que seria um grande avanço na persecução

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criminal, ensejando, pois, uma extrema e útil contribuição para a validade de

atos juridicamente perfeitos.

Algumas das mais recentes e inovadoras modificações nesse sentido,

foram introduzidas pelo artigo 23, caput e parágrafo único, da Lei nº

12.850/20139, conforme segue:

Art. 23. O sigilo da investigação poderá ser decretado pela autoridade

judicial competente, para garantia da celeridade e da eficácia das

diligências investigatórias, assegurando-se ao defensor, no interesse

do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam

respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de

autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em

andamento.

Parágrafo único. Determinado o depoimento do investigado, seu

defensor terá assegurada a prévia vista dos autos, ainda que

classificados como sigilosos, no prazo mínimo de 3 (três) dias que

antecedem ao ato, podendo ser ampliado, a critério da autoridade

responsável pela investigação.

Analisando o caput do dispositivo, inicialmente, uma crítica quanto à

técnica legislativa no que diz respeito ao termo “sigilo” se faz pertinente, pois o

“sigilo”, no inquérito policial, já decorre de lei, consoante art. 20 do CPP, o que,

provavelmente, dará ensejo a discussões futuras.

A par de tal fato, que não é escopo deste trabalho, vale destacar que o

caput do citado dispositivo elevou, expressamente, à categoria de norma legal,

uma orientação que, antes, constava implicitamente da Súmula Vinculante nº

14 do Colendo STF, qual seja, de que o direito de acesso dos autos por

defensores é limitado ao que constar dos autos, não alcançando as

“...diligências em andamento...”.

9 Que “...Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de

obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal...”

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Por outro lado, da análise do parágrafo único, inferem-se outras

inovações, quais sejam:

a) A garantia de que advogados de investigados por organização

criminosa tenham acesso (vista prévia) aos autos da investigação,

no prazo mínimo de 3 (três) dias que antecedem a data designada

para oitiva;

b) A possibilidade de elastecimento do referido prazo, “...a critério da

autoridade responsável pela investigação...”.

Como é cristalino, ao efetivar essas modificações através de norma

especial, o legislador aprofundou e regulamentou, de forma mínima, o direito

de acesso aos autos de inquéritos e processos (aqui, entenda-se as cautelares

decorrentes de representações10), por advogados de cidadãos que estejam

sendo investigados por envolvimento e particapação com o crime organizado.

E justamente neste ponto, encontram-se as facetas, os dois lados da

moeda, que motivaram a intitulação da presente missiva!

Por uma análise perfunctória, preliminarmente, poder-se-ia chegar à

conclusão de que essa garantia temporal mínima, somente para investigados

por envolvimento em organização criminosa, teria o condão de dificultar as

investigações e processos, bem como viabilizar uma melhor defesa para

organizações criminosas, culminando, por conseguinte, com o aumento ou

proliferação da impunidade.

Tal hipótese, todavia, não se mostra como a melhor interpretação do

citado dispositivo, o que será objeto de análise logo a seguir.

Não obstante, efetivamente, num primeiro momento, não há como

negar que a inovação mencionada, realmente, dificultará os procedimentos

que, até então, vem sendo adotados pela Polícia Judiciária em

10

Buscas, prisões, seqüestros, etc.

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inquéritos/operações policiais, eis que, não mais viabilizará a oitiva de pessoas

– frise-se, bem - investigadas por organização criminosa:

a) por intermédio de mandados de condução coercitiva, expedidos por

autoridade judiciária ou policial, e;

b) no momento em que forem presas, preventiva ou temporariamente,

mas, apenas e tão somente, após a concessão de vista dos autos

pelo prazo legal.

Em verdade, caso não observada a garantia prevista no art. 23,

parágrafo único, da Lei nº 12.850/2013, certamente, argüições de nulidades

ocorrerão e, permissa venia, com grandes chances de acolhimento por parte

do Poder Judiciário.

Pior, ainda, será, se outros elementos probatórios forem coligidos em

decorrência do depoimento realizado sem a observância da multicitada

garantia legal, pois, então, estar-se-á em risco, até mesmo, a integralidade de

determinada investigação, em virtude da já conhecida teoria oriunda do sistema

norte-americano “fruits of the poisonous tree”, também prevista no nosso

ordenamento instrumental penal, nos parágrafos do art. 157.

E não se deve cogitar alhures que tal dispositivo (i) não se aplicaria às

investigações policiais, mas sim, apenas, aos processos judiciais, ou (ii) não

seria aplicável por conflitar com a intentio legis da prisão temporária.

Com efeito, caso o legislador objetivasse que tal garantia ficasse

adstrita aos processos judiciais, não teria se utilizado da expressão “...a

critério da autoridade responsável pela investigação ...” no parágrafo único

do artigo 23.

Prova disso é que, quando o legislador quis restringir algum

ordenamento à esfera judicial, o fez no caput do mesmo dispositivo ao,

expressamente, mencionar “...autoridade judicial competente...”.

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Em síntese, como a lei não contém palavras inúteis (verba cum effectu

sunt accipienda), resta claro que ao se utilizar da expressão “...a critério da

autoridade responsável pela investigação ...”, no parágrafo único, o

legislador visou que a garantia de acesso prévio aos autos, também fosse

aplicada pelos Delegados de Polícia, nos inquéritos policiais.

Do mesmo modo, vale destacar que, nem de longe, a garantia

introduzida, mostra-se incompatível com o instituto da prisão temporária, como

defendem alguns.

Tanto é, que durante o período da prisão temporária, de 5 (cinco) ou 30

(trinta) dias (conforme o caso11) ou de eventuais prorrogações, pode-se,

perfeitamente, observar e facultar o gozo da garantia trazida pela nova

legislação afeta ao crime organizado.

Em suma, como primeiros garantidores dos direitos do cidadão, os

Delegados de Polícia têm o dever de zelar pelo cumprimento das normas

vigentes, assegurando o exercício de direitos e garantias estabelecidos nas

normas legais e constitucionais, sob pena de nulidade das provas obtidas com

a inobservância dos preceitos normativos.

Sob o aspecto prático, também não pode deixar de comentar que num

passado recente, várias operações policiais foram, integral ou parcialmente,

anuladas por Tribunais Superiores, em virtude das mais variadas

interpretações/construções jurisprudenciais sobre dispositivos muito menos

garantidores do que o citado art. 23, da Lei de Crime Organizado. Ora, ante tal

fato, não é difícil prever o que ocorreria, caso as autoridades policiais não

observassem rigorosamente a garantia prevista em tal norma.

Posto isto, vale salientar que, por uma intelecção mais aprofundada do

parágrafo único do comando legal supra, os benefícios da inovação são

maiores do que os supostos malefícios.

11

Art. 2º da Lei nº 7.960/89 e art. 2º, §4º, da Lei nº 8.072/1990.

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Na realidade, pelo texto inserto, consciente ou inconscientemente, o

legislador brasileiro compeliu a polícia judiciária, ou seja, as autoridades

policiais e seus agentes12, a robustecerem, ainda mais, o arcabouço probatório,

antes de proceder a oitiva de envolvidos em organizações criminosas, sob

pena de tornar a própria oitiva e a investigação inócuas ou contraproducentes.

Isto porque, como elucidado, antes da oitiva, o investigado terá acesso

aos autos e caso já não existam elementos suficientes, certamente, a defesa

de eventuais investigados por crime organizado em nada contribuirá para as

apurações.

Além de tal fato, pode-se dizer, como aventado anteriormente, que a

introdução dessa inovação na esfera pré-processual, constitui-se como mais

um passo na implementação da ampla defesa e do contraditório na esfera pré-

processual.

E de maneira a corroborar o alegado, bem como afastar qualquer

possível contraposição ao que foi defendido, não é demais transcrever a trecho

da fundamentação do Relatório do Exmo. Deputado Federal Vieira da Cunha13,

datado de 19 de setembro de 2012, inerente ao Projeto de Lei nº 6.578/2009,

que foi convertido na Lei nº 12.850/2013:

“... Outrossim, o Substitutivo que ora apresento acolhe importante

reivindicação feita ao longo dos debates com os operadores do Direito,

no sentido do respeito ao direito de defesa técnica do acusado,

em prestígio ao princípio da paridade das armas e à plenitude do

direito ao contraditório. Suprimiu-se, assim, a previsão que impedia

ao acusado conhecer a identidade de vítima e testemunhas. Observe-

se, ainda, que em todos os casos foi preservada a participação de

12

Terminologia do Código Processual Penal (arts.245, 250 e 301) 13

http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1027084&filename=PRL+1+CCJC+%3D%3E+PL+6578/2009

Page 15: investigação policial · 2015-06-08 · de contraditório e de ampla defesa, o que não estaria de todo incorreto (apesar de uma assertiva simplista). A controvérsia sempre é

Defensor no acesso às informações, com prévia autorização judicial,

em respeito ao direito de defesa...”

(sublinhados e negritos do autor)

Essa alteração na sistemática da persecução penal, como já

salientado, poderia ser a grande mola propulsora da modificação tão

pretendida ultimamente, visando o alcance de um sistema mais célere, justo e

eficaz, atendendo as pretensões de toda a sociedade brasileira.

Concomitantemente, ainda facultaria a desnecessidade de repetição de

provas em juízo, reduzindo, drasticamente, o tempo de tramitação dos

processos judiciais.

*Márcio Magno Carvalho Xavier, Delegado de Polícia Federal

i MOUGENOT BONFIM, Edilson. Código de Processo Penal Anotado.2ª Edição. Ed. Saraiva. 2009

ii GANDRA MARTINS, Ives. Artigo: “Delegados de Carreira e o Ministério Público”. 2015.

http://www.adpf.org.br/adpf/admin/painelcontrole/materia/materia_portal.wsp?tmp.edt.materia_codigo=7434&tit=Delegados-de-carreira-e-o-Ministerio-Publico#.VUJdydJViko iii

AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª Edição. Malheiros. 1994.