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INVENTÁRIO DA ARQUITETURA VERNACULAR DA REGIÃO ATINGIDA PELO RESERVATÓRIO DA USINA HIDRELÉTRICA ITÁ
NO RIO URUGUAI - RS E SC
PEREIRA RÊGO, MARIA ELISABETH DE QUADROS (1); ABREU, LUZIA (2)
1. Arquiteta Autônoma
Rua Visconde de Taunay, 139 - Florianópolis/SC CEP: 88025-520 [email protected]
2. Universidade Federal de São João Del-Rei – Departamento de Arquitetura e Urbanismo e Artes
Aplicadas (DAUAP) Praça Frei Orlando, 170 - São João Del-Rei/MG CEP: 36307-352
RESUMO A construção da Usina Hidrelétrica Itá no Rio Uruguai, no final dos anos 1990 provocou a mudança compulsória da população da área do reservatório e a transformação radical das relações socioeconômicas e da paisagem da região. Respondendo às determinações do EIA e RIMA do empreendimento, foi definido pela equipe do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da ELETROSUL, o Programa de Preservação da Memória e do Patrimônio Cultural da População atingida pela construção da usina (Programa Arca de Noé), constituído por vários projetos, entre eles o Inventário do Patrimônio Arquitetônico da Região. Através deste projeto, foram registrados cerca de duzentos e trinta exemplares da arquitetura vernacular, então existentes nos territórios de quatro municípios do Rio Grande do Sul e seis de Santa Catarina, parcialmente inundados pelo reservatório. Devido à limitação dos recursos disponibilizados pelo empreendedor, naquela ocasião, este material nunca foi publicado, sendo apenas impresso em poucos exemplares, entregues, por partes, aos órgãos de Preservação do Patrimônio Cultural do RS e SC (IPHAN e Secretarias Estaduais de Cultura) e às prefeituras dos dez municípios atingidos, existindo atualmente um único conjunto completo no Centro de Documentação Ambiental da nova cidade de Itá. Este precioso acervo, constituído por fotografias e desenhos de cada uma das edificações pesquisadas, possibilitou dois desdobramentos fundamentais: subsidiar a elaboração dos projetos arquitetônicos das moradias da nova cidade de Itá e dos núcleos rurais relocados em função da sua inundação e transformar, alguns dos exemplares mais expressivos em Casas de Memória. A apresentação do Inventário neste Colóquio, mesmo após mais de vinte anos da sua realização, visa ampliar sua visibilidade, até agora bastante restrita, divulgando a beleza da arquitetura vernacular e da paisagem do entorno da bacia do Rio Uruguai e a sabedoria construtiva dos descendentes de colonos alemães, italianos e poloneses que povoaram a área na década de 1920, bem como mostrar a importância deste acervo na conceituação dos projetos da nova arquitetura proposta para a recomposição espacial e paisagística da região. Palavras-chave: Inventário; Patrimônio Cultural; Paisagem
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Considerações iniciais
A Usina Hidrelétrica Itá foi o primeiro aproveitamento hidroenergético construído na Bacia do
Rio Uruguai, onde mais de vinte outras usinas estavam previstas pelo Setor Elétrico
Brasileiro, desde os anos 1970, para serem implantadas em sequência, ao longo dos anos,
de acordo com as demandas por energia e com os recursos disponíveis no país.
A falta de clareza nas precárias informações sobre o projeto, prestadas pelo governo, em
plena ditadura militar, faziam crer para a população local, que haveria “um grande dilúvio” na
região, com a construção do conjunto de usinas.
Os esclarecimentos sobre a real dimensão e temporalidade dos projetos teve como principal
interlocutor, por parte da população, a CRAB (Comissão Regional de Atingidos por
Barragens). Esta organização, resultante dos movimentos sociais de base, que então se
formaram na região, desempenhou papel fundamental de resistência e capacidade de
negociação com a ELETROSUL, empresa estatal responsável pelos projetos e implantação
dos empreendimentos.
A Região do Alto Uruguai, onde está localizada a Usina Hidrelétrica Itá, tinha na
agropecuária (soja, milho, avicultura e suinocultura) sua principal atividade econômica,
exercida com razoável nível tecnológico, tendo em vista que em sua maioria as
propriedades, com média de 25 ha estavam vinculadas aos grandes frigoríficos
exportadores da região.
O território afetado pela construção da usina estava estruturado através de pequenos
núcleos, contendo escola, venda, igreja, salão paroquial, cemitério, etc., para apoio primário
às populações rurais do entorno.
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Neste contexto, pleno de confrontos entre os representantes do governo e da população, foi
definida, no começo dos anos 1980, a construção da Usina Hidrelétrica Itá e iniciados os
respectivos estudos de engenharia.
Escolhida a localização e altura do eixo da barragem, o detalhamento dos estudos
esclareceu o custo-benefício do empreendimento: a geração de 1.450 MW de energia seria
o benefício a conquistar, tendo como custo a formação de um reservatório com 142 km2
banhando partes dos territórios de quatro municípios no Rio Grande do Sul (Aratiba,
Mariano Moro, Severiano de Almeida e Marcelino Ramos) e seis em Santa Catarina (Itá,
Concórdia, Alto Bela Vista, Piratuba, Peritiba e Ipira), atingindo direta ou indiretamente cerca
de 3.585 famílias, suas relações socioeconômicas e de vizinhança, provocando a inundação
da sede municipal de Itá e de vários pequenos núcleos rurais; inviabilizando parcial ou
totalmente cerca de 3.219 propriedades, com a redução drástica da sua produção agrícola;
cortando a rede de conexões viárias entre diversos pontos do território; modificando as
condições ambientais para a fauna e flora nativas, as condições físicas do leito e taludes
marginais do Rio Uruguai e afluentes e o desaparecimento do Estreito do Rio Uruguai,
cânion com 8.900 m de extensão.
Com tal magnitude e diversidade de problemas, foram iniciados estudos e projetos visando
minimizar os impactos decorrentes da construção da usina e viabilizar as negociações com
os atingidos. Entretanto, foi a partir da exigência da realização de Estudos de Impacto
Ambiental (EIA-RIMA) de grandes obras de engenharia, definida pela nova Constituição de
1988, que estes estudos foram aprofundados e consubstanciados em 23 Programas
Ambientais, consolidando as ações de recomposição do território e do ambiente natural e as
negociações com a população atingida.
Todo o material resultante destes estudos está sob a guarda do CDA: Centro de Divulgação
Ambiental, na cidade de Itá, disponível para novas pesquisas.
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A Cidade de Itá
Para a equipe da Divisão de Arquitetura e Urbanismo da ELETROSUL, cerca de 20
pessoas, entre arquitetos, engenheiros e projetistas, cuja atribuição até então estava
centrada no projeto de acampamentos desmobilizáveis, destinados aos operários que
construíam as usinas, o primeiro grande desafio decorrente da construção da UHE Itá foi a
relocação da cidade de Itá, uma pequena sede municipal, com cerca de 1.200 habitantes.
Uma cidade “aberta” e permanente, com sua história e valores culturais, sem o controle da
empresa, e sim da administração municipal, lideranças e população local.
Para descobrir o conceito adequado para o projeto de relocação da cidade, no começo
da década de 1980, foram desenvolvidas pesquisas sobre a história, as relações
socioeconômicas e de vizinhança da população e uma leitura da paisagem regional, do
espaço urbano da velha cidade de Itá e de núcleos urbanos vizinhos, bem como da
arquitetura vernacular produzida pelos descendentes dos colonos alemães, italianos e
poloneses que povoaram a região no início do século XX.
A partir da análise destes elementos, foram desenvolvidos em paralelo dois planos para a
nova cidade: o Plano de Mudança e o Plano Urbanístico.
O Plano de Mudança, elaborado pelo Grupo Operacional para Relocação de Itá, constituído
por técnicos da ELETROSUL, juntamente com representantes da Prefeitura Municipal, do
Governo do Estado de Santa Catarina, da Superintendência de Desenvolvimento da Região
Sul e de vários segmentos da população, foi o instrumento que definiu os direitos dos
atingidos e as obrigações do empreendedor, estabelecendo as diretrizes que nortearam a
relocação da cidade. Tratava, entre outras questões, das compensações às perdas
irrecuperáveis, da dificuldade da população em gerir sua própria mudança, da importância
da manutenção das atividades econômicas da cidade, dos direitos dos proprietários e
inquilinos e da preservação da memória da população.
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O Desenho Urbano da nova cidade respondeu às características formais e topográficas do
novo sítio escolhido pelos habitantes, à tradição local de lotes individuais de tamanhos
variados e a pontuações estratégicas, pela localização de equipamentos comunitários, com
ênfase no coração da cidade: a avenida comercial e a praça central, rodeada pelas
edificações mais representativas do poder local, da vida social e das atividades cotidianas
da população. (Prefeitura, igreja, salão paroquial, clube, galeria comercial e escola). Uma
proposta de design urbano, definida pela estreita correlação entre o sistema viário e a
arquitetura.
Para as edificações habitacionais, cerca de 200 unidades, foi desenvolvido um sistema
construtivo que buscou compatibilizar racionalidade e contemporaneidade com elementos
de linguagem da cultura local. Os projetos, ainda que respeitando as restrições do sistema
construtivo e as urgências de cronograma, foram elaborados, caso a caso. Para facilitar o
entrosamento com os proprietários, parte da equipe de arquitetos foi residir na velha cidade
e, junto com as famílias, definiam o estudo preliminar das novas casas, escolhiam
esquadrias, acabamentos e adornos, disponíveis em catálogo de alternativas, elaborado a
partir da leitura feita nas edificações da região.
O projeto das edificações comunitárias, em contraponto com a singeleza das moradias, foi
buscar, não só na tradição regional, mas também na história da arquitetura universal,
elementos construtivos, como coberturas de telhas tipo francesas com grande inclinação,
pilares de tijolos maciços aparentes, arcos e arcadas, de modo a constituírem “pequenos
monumentos” marcantes na paisagem regional, dando identidade urbana à nova cidade.
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Da cidade velha, restaram apenas as torres da igreja de São Pedro que hoje emergem das
águas do reservatório. As demais edificações foram totalmente demolidas e os destroços
retirados do local para evitar acidentes nas turbinas da usina. A permanência das torres foi
conquistada a partir de plebiscito com a população, para confirmar seu desejo da
manutenção daquele ícone, que testemunha a transformação traumática e compulsória da
sua paisagem.
O Programa “Arca de Noé”
O Programa de Preservação da Memória e do Patrimônio Cultural da região atingida
pelo reservatório da Usina Hidrelétrica Itá, um dos 23 Programas Ambientais
desenvolvidos, teve como objetivo principal resgatar os elementos histórico-culturais da área
que seria inundada, tomando como referência os bens naturais e construídos, as formas de
apropriação no contexto das relações socioeconômicas, assim como as manifestações que
expressavam o modo de agir e o pensamento dos grupos sociais da região ao longo do
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tempo, visando ainda à criação de espaços voltados para a valorização da história e da
cultura da região.
O Programa foi rebatizado como “Programa Arca de Noé”, buscando, através deste signo
bíblico e da analogia entre o reservatório e o dilúvio, sensibilizar a população e as
administrações municipais quanto à importância do resgate e registro da sua história e da
sua cultura, ameaçados pela formação do reservatório e pela consequente mudança
compulsória das famílias.
A implantação do Programa foi iniciada com a realização do “I Fórum sobre o resgate da
Memória e do Patrimônio Histórico-Cultural da região atingida pelo reservatório da
UHE Itá”, com a participação das administrações municipais, de professores da rede pública
de ensino, das lideranças e membros das comunidades locais, de representantes de
Universidades vizinhas e de diversas instituições regionais, técnicos da ELETROSUL,
consultores do IPHAN, da FCC (Fundação Catarinense de Cultura), do IPHAE (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do RS) e de pessoas interessadas. No evento foi
ressaltada a necessidade da preservação da memória coletiva, sem deixar em mãos de
terceiros a responsabilidade pela decisão sobre o que e como preservar, entendida como
um direito e um dever da própria comunidade.
Para concretização dos objetivos do Programa, foram realizados os seguintes projetos,
através de consultorias ou pela própria equipe da ELETROSUL:
Oficinas de Educação Patrimonial coordenadas pela museóloga Maria de Lourdes Horta e
pela arquiteta Evelina Grunberg, do Museu Imperial de Petrópolis, destinadas aos
professores da rede de ensino público, objetivando a capacitação das comunidades para
descoberta e identificação de seus próprios valores, de sua identidade cultural, de seus
modos de fazer e de viver, de pensar e de agir, a partir de suas experiências e do seu
cotidiano.
Ensaio Fotográfico sobre a Paisagem, realizado pelo fotógrafo Luis Carlos Felizardo que
documentou o espaço do futuro reservatório, em todas as estações do ano e através de
imagens em preto e branco e cor.
Elementos Culturais do Alto Uruguai (ECAU): pesquisa desenvolvida pela Universidade
de Caxias do Sul, coordenada pela professora Cleodes Piazza Ribeiro, visando o registro
sonoro e visual das atividades, técnicas agrícolas, hábitos costumes e manifestações
culturais e artísticas das comunidades atingidas pela construção da usina. Consolidam os
resultados deste projeto: 80 entrevistas com pessoas que detinham informações sobre a
história e a cultura da região; arquivo com 500 fotografias de caráter étnico e antropológico;
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videoteipe com duração de 15 minutos, sobre os elementos histórico-culturais do Alto
Uruguai e texto com 145 páginas onde são analisados os resultados do projeto.
Inventário da arquitetura vernacular da região do Alto Uruguai: cadastro dos bens
construídos, identificando sua inserção na paisagem regional, realizado pela arquiteta Luzia
Abreu.
Casas de Memória e Cultura: relocação ou restauração de edificações, identificadas pelo
Inventário do Patrimônio Construído como notáveis e imperdíveis, adaptadas como
pequenos museus comunitários.
O Inventário da Arquitetura Vernacular
A falta de recursos financeiros do governo federal para iniciar a construção da usina e o
consequente atraso no cronograma das obras, estenderam o tempo disponível para a
realização dos estudos previstos no Relatório de Impacto Ambiental, propiciando no final
dos anos 1990, a realização de um extenso levantamento da arquitetura vernacular na área
do futuro reservatório e seu entorno.
Para a elaboração do trabalho, foi contratada a arquiteta Luzia Abreu, que percorreu os mais
variados recantos da região, através de rodovias e estradas vicinais, registrando com seu
sensível olhar fotográfico e posteriormente com primorosos desenhos e observações
técnicas, o que ainda restava de significativo em termos de patrimônio edificado.
Os levantamentos de campo foram iniciados quando parte das negociações entre a
ELETROSUL e os atingidos já haviam ocorrido e algumas edificações de valor cultural e da
velha cidade de Itá já haviam sido demolidas.
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Com relação à cidade, foi possível recuperar informações através dos arquivos da
ELETROSUL (processos do Departamento do Patrimônio Imobiliário) que viabilizaram a
elaboração das fichas destes imóveis.
Ressalvadas estas questões, acredita-se que o material cadastrado é ainda assim bastante
representativo da arquitetura vernacular produzida na área, seja em extensão (230
edificações), mas principalmente pela abrangência das tipologias e aspectos tratados.
O Inventário foi consolidado em fichas para cada imóvel, contendo sua localização,
implantação nos terrenos, plantas baixas e de cobertura, detalhes relevantes e fotografias.
As administrações dos 10 municípios atingidos, receberam fascículos contendo as fichas
das edificações localizadas no seu território e o conjunto deste material foi organizado em
duas caixas: uma do Rio Grande do Sul e a outra de Santa Catarina.
O patrimônio cultural registrado é quase sempre singelo, mas encanta e surpreende pela
engenhosidade construtiva, pela beleza da volumetria, pela implantação nos terrenos,
detalhes e adornos, domínio plástico na combinação das cores dos elementos
arquitetônicos, vegetação dos jardins, pomares e aconchegantes varandas.
Cabe registrar as importantes contribuições da arquiteta Lilian Mendonça, do IPHAN-SC e
do arquiteto Luis Fernando Rhoden, do IPHAN-RS, no aprofundamento das análises do
material inventariado, sintetizadas respectivamente nas seguintes observações:
Encontramos no Inventário, um conjunto bastante significativo, que, como a grande maioria do patrimônio fruto da imigração européia em nossas terras, caracteriza-se basicamente pela ausência de monumentalidade e diversidade. Acrescente-se ainda o intenso uso de cores como característica local bastante peculiar. A madeira, por razões óbvias, foi o
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material amplamente utilizado, tanto na arquitetura de uso residencial, como comercial e até mesmo religiosa. São centenas de exemplares, muitos deles com ricos detalhes ornamentais, que materializam o empenho em trazer a “casa” que tinham deixado para trás. Traziam consigo muito mais que isso. Traziam seus costumes a sua língua, seus hábitos alimentares, seu saber-fazer, enfim, sua cultura. (ABREU et al, 1998)
O acervo encontrado pelo Inventário demonstra uma semelhança muito significativa entre o que se produziu no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Este fato deve-se, obviamente, aos também semelhantes fatores socioeconômicos e culturais que determinaram historicamente a colonização da região, em ambos os lados do Rio Uruguai.
Neste contexto, na arquitetura produzida nos municípios do lado gaúcho, a par de sua característica eminentemente vernacular, ou seja, de caráter popular, sem influências formais ou conceituais dos padrões arquitetônicos eruditos, o que se nota é a “mistura” de elementos da cultura dos imigrantes italianos e alemães numa mesma área e, muitas vezes convivendo lado a lado. O que se vê, é a força da cultura dos imigrantes e a criatividade popular na sua adaptação ao meio físico. (ABREU et al, 1998)
Com a realização do Inventário, procurou-se registrar o patrimônio construído por várias
gerações que povoaram e colonizaram a região a partir da década de 1920 e com ele
resguardar a memória desta paisagem edificada com tanta sensibilidade e beleza. Este
precioso acervo, além do seu valor intrínseco, como documento, possibilitou dois
desdobramentos fundamentais: subsidiar a elaboração dos projetos arquitetônicos das
moradias da nova cidade de Itá e dos núcleos rurais reconstruídos em função da sua
inundação, bem como selecionar os exemplares mais expressivos, para relocar ou
restaurar, quando não inundados.
Os novos usos destas edificações foram definidos a partir do interesse das administrações
municipais e das lideranças comunitárias, compatibilizado com parecer da equipe técnica,
constituindo-se em “monumentos” referenciais da memória coletiva. Sempre que possível
foram adaptados como “Casas de Memória”, entendidas como locais para guarda e
exposição de fotos e objetos de valor histórico-cultural e para a realização de cursos,
palestras, seminários, apresentações artísticas e encontros entre pessoas da comunidade,
visando à preservação dos seus costumes e manifestações culturais, bem como à
rearticulação de suas referências perdidas em função da construção da usina. Ao todo
foram implantadas dez Casas de Memória.
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Casa Camarolli
Casa Alberton
Casa do Pastor
Capela de Navegantes
Para a nova cidade de Itá, foram trazidas da cidade velha a Casa Camarolli, edificação
típica do trabalho dos artesãos descendentes de colonos italianos, construída sem utilização
de pregos, com as peças de madeira apenas encaixadas e a Casa Alberton que
exemplifica o modo de construir dos descendentes dos imigrantes alemães.
Em Aratiba, o antigo Museu Municipal foi reciclado, ampliando o acervo e ganhando nova
expografia. Foram ainda relocadas duas edificações: a Casa do Pastor (antiga moradia do
pastor evangélico Hans Idrich Krause, que antes da II Grande Guerra imigrou da Alemanha
para a região e durante várias décadas foi orientador espiritual das comunidades rurais),
transformada num pequeno centro de memória e cultura da comunidade de Sarandi, com
espaço para produção e venda de artesanato, realização de eventos e café colonial, e a
Capela de Navegantes, adaptada como centro cultural com um pequeno auditório para
apresentações de teatro, dança, música, palestras e reuniões, na sede municipal.
Para o centro urbano de Alto Bela Vista foi transportado, desde o antigo núcleo rural de
Rancho Grande, o Armazém Schwambach, que na nova função recebeu expografia
remetendo à sua função original.
Em Concórdia, a pequena Capela de Pinheiro Preto, originária da comunidade rural
homônima, foi relocada para a sede municipal e adaptada como espaço para reuniões,
atividades didáticas, palestras e cerimônias religiosas.
Em Marcelino Ramos, o elegante e expressivo prédio de uma antiga agência bancária no
centro da cidade, foi transformado em Casa de Memória e Memorial do Estreito Augusto
Cesar (cânion submerso pelas águas do reservatório).
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Em Severiano de Almeida, uma pequena edificação anteriormente utilizada como
secretaria municipal e em Mariano Moro, uma antiga escola, foram ambas adaptadas como
Casas de Memória.
Considerações finais
Devido à limitação dos recursos disponibilizados pelo empreendedor naquela ocasião, o
Inventário nunca foi publicado, sendo apenas impresso em poucos exemplares, entregues
por partes, ao IPHAN, FCC (Fundação Catarinense de Cultura) e IPHAE (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do RS), e às prefeituras dos municípios, existindo
um único conjunto completo no Centro de Divulgação Ambiental (CDA), na cidade de Itá.
Sua apresentação neste Colóquio, em que pese hajam passado mais de 20 anos da sua
realização, visa ampliar sua visibilidade, até agora bastante restrita, evidenciando sua
importância para a recomposição paisagística da região atingida pelo reservatório da Usina
Hidrelétrica Itá.
Maria Elisabeth Pereira Rêgo
Vivências na realização do Inventário
Aqui vou falar brevemente sobre a minha experiência na realização do Inventário Cultural da
Região que foi inundada pela Usina Hidrelétrica Itá. Resultado de uma luta difícil do grupo
de arquitetos da ELETROSUL, que foi buscar, nas Leis de Proteção Ambiental, uma
possibilidade de registrar a cultura daquela imensa área que seria inundada.
Desde o início, quando fui convidada pelos técnicos do IPHAN/SC e IPHAN/RS, sabia que
este seria um grande desafio. Já tinha feito alguns Inventários no Rio Grande do Sul e
acabado de fazer o CECRE (Mestrado Profissional em Conservação e Restauração de
Monumentos e Núcleos Históricos) na Bahia, mas agora seria diferente. Era um momento
em que se falava muito sobre a preservação do patrimônio em nosso país, muitas Leis e
políticas foram criadas para proteger a nossa cultura, mas ao mesmo tempo, profundas
transformações e destruições eram feitas em nome do progresso.
Os inventários são uma das maiores e mais importantes ferramentas para o trabalho de
preservação no patrimônio. Desde o início, quando começaram as primeiras ideias de
preservação dos monumentos do passado, foram criados métodos e técnicas mais
detalhadas para o registro do patrimônio, com o intuito de conhecer os legados deixados
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pelos nossos antepassados. E, a partir do conhecimento desses bens, poder criar políticas
públicas e projetos culturais, para a sua proteção.
Mas a questão imposta naquele momento era: como registrar aquela cultura, os bens
materiais e as memórias tão caras para aquela gente, pois tudo iria se perder? Tínhamos
que conhecer tudo, fazer registro fotográfico, preencher fichas com desenhos das plantas
baixas e das coberturas, mapas, dados sobre os elementos construtivos, técnicas
construtivas, o nome dos proprietários.
Com estas questões em mente, comecei meu trabalho. O primeiro momento foi uma
pesquisa nos arquivos da ELETROSUL, em Florianópolis, com apoio da equipe de
arquitetos, “uma ilha de dez arquitetos – como falava minha amiga Beth, coordenadora do
projeto – entre um mar de engenheiros”, buscamos saber o que existia de fotos e
documentos já catalogados.
A segunda parte era o trabalho de campo. Assim, comecei minha primeira viagem à noite e,
sob forte neblina, cheguei à cidade de Concórdia. Duas horas depois, quando avistamos os
primeiros raios de sol, foi sendo desvendado o Rio Uruguai encoberto por nuvens, como um
túnel de algodão, entre o verde das montanhas. Neste momento comecei a compreender a
paisagem do lugar. Linda. E me perguntei: “Por que deixar toda esta beleza debaixo d’água?
Por que temos que construir essa Usina?”. Jamais esquecerei aquele momento.
No outro dia começamos os trabalhos. Fui apresentada ao Sr. Nelson Schartzen, motorista
da empresa, que iria me conduzir pelas estradas de barro com muitas curvas, por toda a
região. Com uma máquina fotográfica analógica, uma lente (28 – 210 mm) e muitos rolos de
filmes, prancheta, lapiseira, começamos a viagem. Parando de localidade em localidade,
entramos na paisagem observando a diversidade arquitetônica, a diversidade do meio
ambiente, entre cemitérios e os lindos oratórios chamados de “capitéis”, localizados nas
margens das estradas vicinais.
Em cada casa que parávamos, éramos convidados para tomar um café com pão e schimia,
e conversando, sentados ao lado do fogão a lenha, fomos conhecendo cada história, as
memórias que se escondiam nas construções de madeira, nos lambrequins, em cada jardim,
nos paióis, nas lavouras, nos queijos curados nas janelas, nas paisagens que foram
construídas por esses filhos de imigrantes alemães, italianos e poloneses. Com cada família
uma conversa, as fotos nas paredes e o sentimento de cada morador em relação à
proximidade da inundação do lugar. E com isso, a certeza de não voltar a ver a paisagem
construída pelos seus pais e seus avós que vieram da Europa, e a perda do lugar onde
nasceram.
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Para descansar, as paradas embaixo das laranjeiras a beira da estrada, onde o Sr. Nelson
me convidava para comer umas “fruitas”, como dizia, onde ouvia as suas histórias sobre a
sua infância, seus pais, sua vida. Comecei então a compreender a vida e as memórias do
lugar. Entendi a dimensão e a responsabilidade de registrar da melhor forma, a cultura que
iria se perder. Cada foto tinha a responsabilidade de contar as formas de vida, os saberes,
cada história, o passado, as tristezas e a realidade da perda.
Neste sentido, para compartilhar melhor o trabalho, considero importante relatar as
conversas que tive com dois proprietários, e que permanecem até hoje em minha memória.
Como as histórias contadas pelo seu Zucci. Homem alto, bonito, com grandes olhos verdes,
que foi logo falando que tinha 72 anos e que sempre teria vivido ali. Logo convidou para um
café, para depois irmos conhecer a antiga casa, pois, por causa da inundação da barragem,
ele já havia construído uma nova casa, igual à antiga, a um quilômetro acima do rio.
Enquanto caminhávamos, ele contava as histórias de sua família, das brincadeiras quando
criança ali na mata. E então chegamos à antiga casa. Estava intacta, a madeira ainda
brilhante, lustrosa, feita com pinho, madeira abundante na região. “Está do jeito que minha
mãe deixou, muito conservada”, falou. Mostrou na porta de entrada a antiga roseira com
flores cor-de-rosa plantada por sua mãe e, em frente, o pomar com “as melhores laranjas do
mundo”, plantadas por seu pai. O forno, mais ao fundo, onde “dali podíamos avistar o rio e
ouvir som das suas águas correndo” que era, talvez, o mesmo som que ouviram seus pais.
Mostrou o antigo porão onde era feito o vinho e, então, com os olhos cheios de lágrimas ele
disse, “mas é assim, a gente não pode fazer mais nada, vai tudo embora mesmo”.
A outra história ocorreu em uma localidade muito pequena, no interior do município de
Peritiba. Chegamos em uma casinha e fomos recebidos por uma moça que era professora
da escola. Ela foi contando sua vida, nos serviu um doce feito por ela e quando levantamos,
já emocionada e chorando, me abraçou e fez um pedido: “tu és da ELETROSUL, por favor,
nos ajuda... Não deixa esta Usina destruir o nosso lugar” e me puxando pela mão, me levou
para a rua e apontou: “aqui nesta rua, desde quando eu era pequena, meu pai me levava
para a escola; durante o caminho íamos encontrando com meus colegas, os amigos, os
vizinhos; aqui brincávamos e agora, não tem mais ninguém, todos os amigos estão indo
embora e eu não sei para onde, talvez nunca mais os veja. Estou perdendo tudo, meus
amigos, meu lugar”.
Finalmente, no dia da entrega dos volumes do Inventário para as Prefeituras, vivi uma outra
experiência, muito importante para o meu trabalho, principalmente com paisagem. Quando
chegamos no local para onde uma das casas escolhidas, tinha sido relocada eu não
reconheci a casa do Pastor Krause, é que faltava o espírito do lugar onde a casa existira
anteriormente.
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Compreendi também, que só o “genius loci” do novo sítio, com suas características de
vegetação, topografia, luminosidade, enquadramento da casa na paisagem e por sobre
tudo, a apropriação do espaço pelos novos usuários seria capaz de dar nova vida àquela
edificação. Sim, não era mais a Casa do Pastor, mas um novo espaço que, utilizando a
beleza e significado daquela edificação cheia de história e lembranças, abria perspectivas
de novos usos para a comunidade de Sarandi.
Hoje, vejo no resgate feito por este trabalho dois desdobramentos importantes:
a reflexão sobre quais são os limites eticamente aceitáveis dos impactos de grandes
obras de engenharia sobre os territórios por elas atingidos e a necessidade de justas
compensações para as perdas decorrentes;
a possibilidade de despertar novos olhares sobre os hábitos simples da cultura registrada
pelo Inventário aqui apresentado, bem com sua utilização, enquanto documento, por
novos pesquisadores da arquitetura vernacular da Região do Alto Uruguai e da
arquitetura popular, em sentido amplo.
Para encerrar, deixo a palavra com John B. Jackson:
Por políticos eu entendo os espaços e estruturas desenhados para preservar unidade e ordem na Terra ou manter qualquer plano de larga escala. Sob este título podemos incluir criações modernas como a rodovia interestadual, o aeroporto, a usina hidrelétrica e as linhas de transmissão de energia, quer nos chamem a atenção ou não. Atrás destes símbolos permanentes do poder político estende-se uma paisagem vernacular – ou melhor, milhares de pequenas e empobrecidas paisagens vernaculares organizando e utilizando espaços à sua maneira tradicional, vivendo em comunidades governadas pelo hábito, mantidas em operação pelas relações pessoais. Podemos aprender algo sobre elas investigando os fatores sociais, topográficos e tecnológicos que determinam sua economia e seu modo de vida – suspeito, entretanto, que nenhuma paisagem, vernacular ou não, pode ser compreendida de outra forma que não como tentativa de organização do espaço.
Luzia Abreu
Créditos das ilustrações
1. Luzia Abreu
2. Fotoimagem
3. Arquivos da Divisão de Urbanismo da ELETROSUL
4. Arquivos da Prefeitura Municipal de Itá
5. Design do arquiteto Pedro Ubirajara de Vasconcelos Santos
6. Luzia Abreu
4º COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
7. Luzia Abreu
8. Maria Elisabeth Pereira Rêgo
Diagramação e arte final: Lia Rosa Martins
Referências
ABREU, Luzia et al. Inventário do Patrimônio Cultural: Área atingida pelo reservatório da
UHE ITÁ. Vol. 1 e 2. Florianópolis: Eletrosul, 1998.
MARTINS, Lia Rosa Camargo. Recomposição do Território Afetado pela Usina Hidrelétrica
Itá. Perspectiva, Erechim, Ano 18, n. 63, p.07-20, Set. 1994. Trimestral.
RÊGO, Maria Elisabeth de Quadros Pereira. A educação patrimonial como parte do
"Programa Arca de Noé". Cadernos do CEOM: Centro de Organização da Memória do
Oeste, Chapecó, Ano 14, n. 12, p.201-220, Dez. 2000. Semestral.
SANTOS, Cecília Rodrigues. Uma nova postura para planejamento de cidades: Apenas uma
cidade. Projeto, São Paulo, v. 126, p.86-102, Out. 1989. Mensal.