INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços...

86
1 ROCHA JUNIOR, Coriolano P. (2000). Propostas pedagógicas em Educação Física: um olhar sobre a cultura corporal . (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro: PPGEF/UGF. Orientador: Dr. Antonio Jorge Gonçalves Soares. INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO. O presente estudo faz parte da linha de pesquisa denominada “Pensamento Pedagógico da Educação Física Brasileira”, que está vinculada à área de concentração de estudos intitulada “Educação Física & Cultura”, desenvolvida no Programa de Pós- Graduação Stricto-Sensu em Educação Física da Universidade Gama Filho. Esta linha de pesquisa tem como um de seus objetivos a análise e a investigação do conteúdo de artigos e livros identificados com o Pensamento Pedagógico Renovador da Educação Física Brasileira (PPREFB). Neste sentido, nosso material de análise é a obra denominada Metodologia do Ensino da Educação Física, elaborada por um do Coletivo de Autores (1992) 1 . Há algum tempo, a Educação Física vem fazendo uma auto-análise sobre a constituição de seu campo de estudos e de seus espaços de intervenção. Neste caminho, diversas correntes que pensam a Educação Física em si e seus espaços de atuação profissional tem, de formas diferentes, se apresentado e tentado criar modelos de intervenção para a área. Estas formas de pensar pautam-se em referenciais diversos e por isso apresentam formas de compreensão e propostas que se mostram diversas, e por vezes divergentes, sobre a educação física e seu papel social. De comum entre elas há o fato de seus formuladores entenderem que o atual estágio da educação física não condiz com o que pensam sobre ela. Assim, vão sendo formuladas construções teóricas que investigam a área, e a partir daí tentam propor ações que tentam modificar a educação física e seus mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das propostas que pensam a educação física escolar a partir de uma perspectiva histórico-crítica. Neste sentido, a proposta deste estudo é analisar um dos livros que vem sendo considerados de maior relevância na área - Metodologia do Ensino da Educação Física - tendo em vista sua circulação e veiculação em nosso meio. Esta obra serve de base para este estudo por que tenta indicar uma proposta 1 COLETIVO DE AUTORES. (1992). Metodologia do ensino da Educação Física . São Paulo: Cortez.

Transcript of INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços...

Page 1: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

1

ROCHA JUNIOR, Coriolano P. (2000). Propostas pedagógicas em Educação Física: um olhar sobre a cultura corporal. (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro: PPGEF/UGF. Orientador: Dr. Antonio Jorge Gonçalves Soares.

INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO.

O presente estudo faz parte da linha de pesquisa denominada “Pensamento

Pedagógico da Educação Física Brasileira”, que está vinculada à área de concentração

de estudos intitulada “Educação Física & Cultura”, desenvolvida no Programa de Pós-

Graduação Stricto-Sensu em Educação Física da Universidade Gama Filho.

Esta linha de pesquisa tem como um de seus objetivos a análise e a

investigação do conteúdo de artigos e livros identificados com o Pensamento

Pedagógico Renovador da Educação Física Brasileira (PPREFB). Neste sentido, nosso

material de análise é a obra denominada Metodologia do Ensino da Educação Física,

elaborada por um do Coletivo de Autores (1992)1.

Há algum tempo, a Educação Física vem fazendo uma auto-análise sobre a

constituição de seu campo de estudos e de seus espaços de intervenção. Neste caminho,

diversas correntes que pensam a Educação Física em si e seus espaços de atuação

profissional tem, de formas diferentes, se apresentado e tentado criar modelos de

intervenção para a área.

Estas formas de pensar pautam-se em referenciais diversos e por isso apresentam

formas de compreensão e propostas que se mostram diversas, e por vezes divergentes,

sobre a educação física e seu papel social. De comum entre elas há o fato de seus

formuladores entenderem que o atual estágio da educação física não condiz com o que

pensam sobre ela. Assim, vão sendo formuladas construções teóricas que investigam a

área, e a partir daí tentam propor ações que tentam modificar a educação física e seus

mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais.

No presente estudo cuidamos especificamente das propostas que pensam a

educação física escolar a partir de uma perspectiva histórico-crítica. Neste sentido, a

proposta deste estudo é analisar um dos livros que vem sendo considerados de maior

relevância na área - Metodologia do Ensino da Educação Física - tendo em vista sua

circulação e veiculação em nosso meio.

Esta obra serve de base para este estudo por que tenta indicar uma proposta

1 COLETIVO DE AUTORES. (1992). Metodologia do ensino da Educação Física. São Paulo: Cortez.

Page 2: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

2

didático-metodológica para a educação física no espaço escolar, por seus autores

acreditarem que é este o espaço principal, o eixo maior deste componente curricular. A

proposta indicada pelo livro é a chamada pedagogia crítico-superadora, que acabou

sendo mais conhecida em nosso meio como cultura corporal.

A opção por trabalhar sobre este livro vem também do fato de entendermos que

é uma das mais significativas no campo da educação física, mais especificamente

entre aquelas que abordam a educação física escolar. Ela tem tido grande circulação

em nossa área, constando tanto nas bibliografias dos cursos de graduação, quanto nas

dos concursos públicos. Não é difícil ver que, desde seu lançamento, é uma das mais

comentadas e discutidas pelos que atuam na educação física.

Um dos principais fatos que contribuíram para sua aceitação é a reconhecida

qualidade de seus seis autores, todos com grande respeitabilidade no nosso meio

profissional. É possível que seja a obra mais comentada no campo pedagógico da

educação física, talvez por representar as ambições e as intenções de todo um

movimento político dentro da educação física, do qual fazem parte seus autores, que

se vincula ao que se chama de “esquerda da educação física”. Este movimento teve na

época do lançamento do livro, um dos seus momentos de maior repercussão.

Com isto, o presente estudo ocupa-se em analisar criticamente o modo de

construção da obra em questão e sua significação no campo pedagógico da educação

física escolar, em seus mecanismos de elaboração teórica a partir de sua estrutura

constituinte. A referência será o modelo proposto por Lovisolo (1990)2, quando analisa as

obras que pensam a educação popular, para buscar entender o campo da educação

física em sua constituição e o significado do Coletivo de Autores (assim passaremos a

tratar o livro em tela, daqui por diante) e sua proposta didático-pedagógica no espaço da

educação física escolar.

Para o desenvolvimento do estudo, na parte que se refere à compreensão da obra,

utilizaremos dois marcos teóricos - o iluminismo e o romantismo - entendendo que o livro

é construído a partir de uma tensão criada entre estes marcos. Talvez esta tensão seja

um elemento positivo, mas que ao mesmo tempo pode apresentar esse aspecto

contraditório em sua argumentação, e talvez disto decorra sua potência. Assim,

aproveitando a mesma estrutura de sua construção é que o analisaremos, tendo esta

tensão e suas decorrências como pano de fundo de nosso estudo.

2 LOVISOLO, Hugo R. (1990). Educação Popular: maioridade e conciliação. Salvador: UFBa. Empresa Gráfica da

Bahia.

Page 3: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

3

A construção da análise extrapola do que falam os autores para o pensamento de

outros autores sobre os fenômenos e relações tratadas na obra, tais como política,

educação, educação física, história. Assim, tentamos entender a obra especificamente a

partir do que a mesma trata, porém a partir de uma leitura crítica e não de uma leitura

ativista.

No artigo seguinte, vamos analisar além da obra em questão, os embates, os

autores e as propostas que tentam entender a área. Assim, buscamos a compreensão de

como a educação física organiza-se como campo profissional instituído e onde os atores

sociais travam suas lutas por busca de prestígio e hegemonia3. Vale a observação que as

lutas travam-se em torno do conceito, da ciência ou da perspectiva teórica que deve

melhor fundamentar o que convencionou-se chamar de educação física.

Neste trabalho utilizaremos o termo educação física como o campo instituído de

lutas onde são pensadas desde as mais variadas formas de intervenção até os debates

acadêmicos sobre a constituição deste campo como uma nova ciência. As lutas em torno

da definição de um conceito ou de uma teoria científica ou pedagógica que dê identidade

à área, ainda que se afirme como necessidade de demarcação dos limites do campo,

acaba por revelar o desejo de afirmação da hegemonia de determinado grupo na

definição dos valores, dos objetivos, da função social e dos gostos do que chamamos

educação física. Esta segunda parte do estudo tem a intenção de fazer uma leitura crítica

dessa dinâmica.

A forma dada a este estudo é a de dois artigos que se completam e formam o

corpo do trabalho. Apesar dos artigos possuírem autonomia, existe um fio condutor que

perpassa a ambos, permitindo continuidade em sua essência. Ressalte-se que o objeto

de análise é o mesmo e há uma preocupação em constituir uma parte introdutória e outra

conclusiva sobre todo o trabalho, que permite uma visão geral do texto.

A motivação para este estudo é o fato de eu ter sempre estado, em minha

trajetória acadêmico-profissional, vinculado ao que se pensa e ao que se produz sobre

educação física escolar, desde os bancos da graduação. De alguma forma venho

tentando intervir neste caminho, por acreditar que o espaço escolar pode permitir ao

profissional de educação física trabalhar na constituição de um novo modelo de educação

física e de sociedade.

Assim, a cultura corporal, enquanto proposta, esteve em meus caminhos e meus

3 Usamos o que diz Pierre Bourdieu sobre campo em “Questões de sociologia” (1983), editora Marco Zero: “Um

campo e também o campo científico, se define entre outras coisas através da definição dos objetos de disputas e dos

interesses específicos que são irredutíveis aos objetos de disputas e aos interesses próprios de outros campos...”.

Page 4: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

4

sonhos, pelo fato da publicação do livro coincidir com a conclusão do meu curso de

graduação e de minha inserção no mercado de trabalho - mais diretamente na área

escolar - além de eu estar colocado no mesmo campo político que a obra tenta

representar. O debate em torno da demarcação, da busca da identidade e da legitimidade

da educação física, seja como área de intervenção, como pedagogia ou como ciência, foi

por mim acompanhado nos diferentes fóruns que participei, onde a dificuldade do debate

e da comunicação parece ter sido a tônica.

Ao fator acadêmico-profissional soma-se minha longa vinculação ao cenário

político, desde o movimento estudantil secundarista até o movimento partidário, tendo

sido a participação política um dos fatores de maior relevância em minha formação

universitária. Nestes espaços circulava, e ainda circulo, por entre ideais e perspectivas de

transformação, fato que sempre me aproximou dos pensamentos dito renovadores no

campo da educação física.

Com o passar dos anos e com minha circulação por espaços sociais vários, como

estudante, professor, coordenador de ensino e militante, criou-se em mim um sentimento

de angústia para tentar entender o significado do movimento político organizado e suas

formas de representação, inclusive na educação física.

Neste sentido, tentar entender com maior distanciamento a obra do Coletivo de

Autores, e tentar entender a dinâmica do debate no campo na educação física, tornou-se

um desafio de ordem intelectual e existencial, já que por vezes o que acreditamos parecer

uma solução mágica e definitiva pode revelar-se como um obstáculo ao debate e aos

acordos.

Assim, procedi a uma revisão do pensamento destes movimentos, e aí da própria

cultura corporal, para que pudesse dar minha contribuição para melhoria e resignificação

deles, sem deixar de lado o sonho e a luta pela melhoria de toda a sociedade.

É assim, com este espírito de tentar compreender o que é parte de minha história

pessoal e parte de uma produção específica em educação física, na busca de contribuir

com uma melhoria daquilo que tento acreditar, que este estudo seguirá.

Com isto, expostas às motivações acadêmicas e pessoais para este estudo, bem

como sua estruturação, passamos ao desenvolvimento do texto onde tentaremos dar

conta, de forma satisfatória, do pretendido.

Page 5: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

5

A ANÁLISE DE UMA OBRA: TENTANDO ENTENDER O COLETIVO DE AUTORES.

1. INICIANDO O ESTUDO.

1.1 - UM BREVE ENTENDIMENTO SOBRE A EDUCAÇÃO FÍSICA.

A educação física, como campo de conhecimento, caracteriza-se por ser uma

área que abarca diversos campos disciplinares, desde fisiologia até a filosofia. Neste

sentido, Lovisolo (1995) afirma que a educação física é uma área de conhecimento

“...claramente mosaico, fragmentária, multidisciplinar e não dominantemente

disciplinar.”(p.19). É a partir desta diversidade de saberes que são pensados diferentes

processos de intervenção em campos como o esporte, o lazer, a saúde e também a

educação física escolar, que embora possam ter objetivos variados e divergentes

agrupam-se sob a denominação genérica de educação física. Contudo, os objetivos e

os meios para a intervenção podem diferenciar-se radicalmente. Com isto, pode-se

criar uma variedade de técnicas e métodos que dêem subsídios para as diferentes

intervenções, muitas vezes a partir da base de disciplinas científicas e/ou experiências.

Sob o nome genérico de educação física podemos pensar em variados tipos de

intervenção: o uso de recursos de alta tecnologia para que se possa alcançar a máxima

performance de atletas; os programas de atividades físicas para a população adulta ou

de terceira idade; as propostas pedagógicas e os modelos didáticos para o ensino de

esportes e atividades corporais para crianças e adolescentes. Entretanto, mesmo não

havendo uma unidade de meios e objetivos, no que tange ao seu conceito teórico - que

tem dado espaço a numerosos debates e tautologias4, podemos observar que os

atores sociais (crianças e o homem comum), dão significado e unidade às diferentes

dimensões da educação física e dos esportes, agrupando em um único eixo as

diferentes atividades corporais que se vinculam ao esporte, ao lazer e à educação

física. Tendo em vista os diferentes campos de intervenção que são entendidos ou

vinculados à educação física, estaremos aqui pensando apenas no espaço da

educação formal, isto é, a educação física escolar.

4 Aqui não estaremos tratando deste tema de forma direta, apenas mencionando sua existência.

Page 6: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

6

1.2 - O OBJETO DE ANÁLISE.

Desde muito se tem tentado na área da educação física a construção de

conhecimentos que possam dar conta de servir de embasamento aos profissionais que

atuam na área escolar. A partir deste interesse pode-se apontar a construção de

diversas obras com as mais diferentes propostas, tendo por base as mais variadas

vertentes do saber e/ou posições ideológicas.

Tais obras buscam de forma efetiva ou não, pensar e construir conhecimentos e

instrumentos que possam subsidiar a intervenção do profissional dentro da escola em

sua rotina de aulas. Muitas vezes esta discussão, e as conseqüentes propostas,

acabam sendo mais gerais que específicas.

No Brasil esta área de estudos teve notável avanço a partir da década de

oitenta, quando se avolumaram as produções e as publicações e a realização de

encontros científicos, o que contribui para que haja uma maior circulação de idéias e

das várias propostas elaboradas.

No campo da pedagogia da educação física, a partir deste período, os discursos

caracterizados como histórico-críticos assumem prevalência sobre os demais, por

terem atingido em nosso meio grande repercussão. Com base neste argumento, o

objeto de análise deste primeiro artigo são as elaborações da educação física escolar

que se fundamentam a partir da perspectiva histórico-crítica da educação. Como seria

impossível dar conta de todas as propostas histórico-críticas de educação física,

selecionamos a que foi difundida pelo Coletivo de Autores, que pode ser considerada

um típico exemplo destas propostas.

A escolha desta obra não é aleatória, e os argumentos que fundamentaram esta

opção foram: a) o fato deste livro constar em quase todos os concursos públicos em

nossa área; b) seu uso freqüente nas bibliografias dos cursos de graduação em

educação física; c) sua utilização como referência básica de estudos e projetos de

caráter científico; d) o fato de ser um dos poucos livros que tentam apresentar uma

proposta explícita para uma intervenção no espaço escolar. Estes dados, vistos em

Page 7: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

7

conjunto, indicam a importância desta obra, o que por si só justifica tomá-la como

referencial para a análise dos discursos e das pedagogias histórico-críticas na

educação física escolar. Mesmo que outras análises já tenham sido feitas sobre o

Coletivo de Autores, vale dizer que neste trabalho estaremos dando nossa

contribuição nesse mesmo sentido.

O Coletivo de Autores tornou-se um texto frutífero pela profusão dos relatos de

experiência sobre a aplicação deste tipo de proposta, pela produção de artigos apenas

reiterativos dos valores e da ideologia veiculados e pelos inúmeros textos e livros que

foram construídos como reforço ou ampliação deste modelo pedagógico5. De fato, esta

obra criou vários exegetas.

As críticas a esta obra são raras ou modestas e geralmente não geram rupturas.

Neste sentido, um outro objetivo deste estudo é descrever e analisar a lógica, os

valores e os modelos gerais que inspiram o livro.

O livro foi elaborado a partir de textos de alguns professores e pesquisadores de

reconhecido prestígio e renome em nossa área: Profa. Carmen Lúcia Soares, Profa.

Celi Nelza Zülke Taffarel, Profa. Elizabeth Varjal, Prof. Lino Castellani Filho, Profa.

Michelli Ortega Escobar e Prof. Valter Bracht.

Logo de início é possível observar na obra algumas singularidades que

merecem ser descritas e analisadas. Dentre elas, a forma como se destaca a autoria

do livro. No campo editorial brasileiro é comum a utilização de algumas estratégias

básicas em obras que possuem diversos autores. Uma delas é destacar como

organizador aquele que tem o papel de fazer o diálogo entre os vários autores e a

editora. Outra seria colocar-se em ordem alfabética os nomes dos autores. Outra,

ainda, seria estar à frente aquele que é o principal autor ou que tenha coordenado a

seleção dos textos. No entanto, neste livro não foi usada nenhuma destas estratégias

habituais, pois o que aparece tanto na capa quanto na catalogação bibliográfica é o

termo Coletivo de Autores.

5 Como exemplo, podemos citar que no Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, realizado em Goiânia, no ano

de 1997, de um total de 314 trabalhos publicados, 54 fazem uso do Coletivo de Autores em suas referências e em 12

grupos de trabalho temático, o livro aparece em 10 como referência, sendo que destes diversos se referiam a

relatórios de experiência com a cultura corporal, assim como também no último Encontro Fluminense de Educação

Física Escolar, realizado em Niterói em 2000, vários relatos a partir da obra foram apresentados.

Page 8: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

8

Assim, cabe indagar porque não colocar estes prestigiados nomes na capa do

livro? Pode-se pensar, a princípio, que tal estratégia estaria vinculada ao chamado

“mercado de citações”, pois caso se optasse pela escolha de um nome principal, os

demais apareceriam como “et al.” e como sabemos isto não traz muito prestígio para

todos. Por certo, esta não foi à razão. Como poderemos ver mais adiante, a estratégia

de usarem a denominação Coletivo de Autores, está vinculada às crenças e ideologias

dos autores. Por agora adentremos um pouco mais no contexto do livro.

1.3 - ENTENDENDO A OBRA.

O livro busca apresentar uma proposta pedagógica denominada pelos próprios

autores de “crítico-superadora”, na tentativa de romper tanto com a visão biologicista,

que até então teria dado suporte às pedagogias tradicionais e tecnicistas, quanto com

as visões existencialista, psicomotricista e cognitivista na educação física. Neste

sentido, cunharam o termo ou conceito cultura corporal, afirmando ser este o objeto de

conhecimento ou o conteúdo a ser tratado pela educação física na escola. Este

conceito acabou por adquirir um grande significado simbólico em nossa área, chegando

a representar a proposta indicada no livro, apesar deste não apresentar precisão e rigor

em sua descrição.

Numa visão internalista, essa proposta didático-metodológica, segundo Resende

(1992), pode ser enquadrada no que se denomina de Pensamento Pedagógico

Renovador da Educação Física Brasileira (PPREFB). Mais exatamente, coloca-se entre

aquelas que fazem uma proposição de fundamentos para uma intervenção didático-

pedagógica, chegando mesmo a exemplificar um modelo de aplicação (MUNIZ, 1996).

Para construir o livro, os autores lançam uma pergunta que vão tentar responder

no transcorrer dos textos: o que é educação física? É na busca da resposta para esta

questão, que os autores pautam suas proposições. Dizem que tal pergunta, “...só faz

sentido, quando a preocupação é compreender essa prática para tentar transformá-

la.”(p.50) e que a busca de respostas para a questão levantada, servirá de base “...para

a construção de uma perspectiva pedagógica superadora...” (p.56). Esta questão é de

difícil resposta, pois sendo de cunho essencialista, ou platônica, tenta buscar uma

essência que se esconde por trás das aparências. A questão seria sociologicamente

Page 9: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

9

mais bem colocada se os autores se perguntassem: “como, em que situações sociais

os chamados professores de educação física operam?” Os autores parecem objetivar

trabalhar com um ideal normativo do que seja para eles a educação física, e nessa

direção acabam por buscar “a essência”, já que as aparências do fenômeno educação

física são múltiplas.

É possível observar que o foco das preocupações dos autores é a escola. Suas

análises pretendem pensar numa totalidade o que denominam de cultura corporal,

como sendo o objeto de conhecimento a ser problematizado e pedagogizado nas aulas

de educação física no ensino formal. Neste sentido, são levados a separar o “joio do

trigo”, isto é, as manifestações maléficas ou alienadas do esporte e das atividades

corporais presentes na dinâmica escolar e também da dinâmica social, assim como a

perspectiva tradicional e alienada da pedagogia da educação física, no sentido de

resignificar tanto a cultura corporal quanto à pedagogia da educação física.

Assim, a pretensão, na perspectiva dos autores, é fundamentar uma proposta

pedagógica que possa superar o que existe e ser “... uma pedagogia emergente, que

busca responder a determinados interesses de classe...”(p.25). De fato, ao longo da

obra os autores consideram a intervenção pedagógica e a intervenção política como

indissociáveis. Trabalham com a idéia de que a totalidade gera obrigatoriamente

reflexibilidade na parte, ou seja, a intervenção em um dos dois campos faz com que o

outro também se modifique. Tal perspectiva, ainda que não seja a intenção, parece

gerar confusões como a de que existem interesses de classe em todos os traços

culturais. De certa forma, esse tipo de perspectiva gera distorções interpretativas no

entendimento da dinâmica social, por considerar qualquer processo de difusão cultural

como algo organizado pela mão invisível do capitalismo para oprimir as classes

populares. Os autores parecem esquecer da boa tradição marxista, de que a opressão

sofrida pelas classes populares é pela via econômica e se dá, na sociedade brasileira,

fundamentalmente pela brutal concentração de renda nas mãos de poucos. Ou seja, o

problema da opressão é de distribuição.

Na intenção de tentar aproximar o leitor da obra analisada, apresento uma

síntese de sua estrutura. O livro é dividido em quatro capítulos, onde, segundo os

autores “os leitores encontrarão elementos básicos para: a) elaboração de uma teoria

Page 10: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

10

pedagógica; b) elaboração de um programa específico para cada um dos graus de

ensino”(p.18). Por isto, é possível observar que os autores colocam-se no duplo papel

de, ao mesmo tempo, produzir uma alternativa teórica e apresentar um modelo

didático, o que demonstra seu bom interesse, mas sua difícil tarefa.

O primeiro capítulo trata do desenvolvimento da educação física no currículo

escolar, apontando formas e concepções do trato pedagógico dessa disciplina na

escola. Analisa o currículo, a questão dos ciclos de escolarização e faz uma

confrontação entre duas propostas pedagógicas: a chamada de aptidão física, que é

considerada hegemônica em nosso campo e a da cultura corporal, apontada como uma

proposta emergente. Segundo os autores, a aptidão física caracteriza-se por possuir

estreito vínculo e mesmo estar a serviço do modelo político-econômico vigente, onde “

os interesses imediatos da classe proprietária, correspondem às suas necessidades de

acumular riquezas, gerar mais renda, ampliar o consumo, o patrimônio etc” (p.24).

Assim, o capitalismo traz em si uma pedagogia que se reproduz em todas as instâncias

sociais, e a educação física

apóia-se nos fundamentos sociológicos, antropológicos, psicológicos e, enfaticamente, nos biológicos para educar o homem forte, ágil, empreendedor, que disputa uma situação social privilegiada na sociedade competitiva de livre concorrência: a capitalista. Procura, através da educação, adaptar o homem à sociedade, alienando-o de sua condição de sujeito histórico, capaz de intervir na transformação da mesma. (p.36)

Para os autores, a conjuntura político-econômica acaba por gerar uma

pedagogia ajustada aos seus valores e objetivos sociais. Assim, o seu papel é de

produzir alienados na medida em que “veicula seus interesses, seus valores, sua ética

e sua moral como universais...”(p.24). Em contrapartida, a pedagogia emergente da

cultura corporal pensa privilegiar os interesses de emancipação da classe trabalhadora:

os interesses imediatos da classe trabalhadora, na qual se incluem as camadas populares, correspondem à sua necessidade de sobrevivência, à luta no cotidiano pelo direito ao emprego, ao salário, á alimentação, ao transporte, à habitação, à saúde, à educação, enfim, às condições dignas de existência.(p.24)

Como contraponto a esta noção de que a luta de classes é o motor histórico do

desenvolvimento da sociedade, podemos buscar como exemplo a construção e a

efetivação de políticas de saúde em períodos que remontam ao início do movimento

higienista na Europa. Este movimento que geralmente é caracterizado como tendo sido

Page 11: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

11

ideológico, representando os valores de uma determinada classe social (análise

marxista), significou uma junção de esforços de vários setores sociais. Pensadores,

industriais, operários e sindicalistas, colaboraram para a construção do ideário

higienista. Parece claro que o que animou o movimento higienista não foi o conflito

direto entre classes, já que todos, de uma forma ou de outra, estavam preocupados em

criar melhores condições de vida e de trabalho.

Por esta época, tanto trabalhadores quanto proprietários se valeram dos

conhecimentos gerados por estudiosos, principalmente os da fisiologia da fadiga, para

poder construir suas ações e assim justificar a redução da jornada de trabalho, pois foi

possível compreender que, assim como as máquinas, também os trabalhadores

deveriam merecer cuidados. Com isso, foi revista a distribuição de horas entre trabalho

e descanso, as condições de higiene gerais da população, dentre outras coisas. Tendo

em vista este cenário, Rabinbach em seu livro The Human Motor (1992)6, trabalha com

o conceito do motor humano, argumentando que o corpo humano como força de

trabalho era o motor do desenvolvimento econômico.

O movimento higienista, de forma geral, serviu como base para construção das

metrópoles. Segundo Góis Junior (2000), apoiado em Rabinbach , “o quadro de

constante crescimento da indústria e da pobreza constituíram um cenário propenso às

reformas de vários setores da sociedade”(p.18-19). Além disso, a construção dos

estados nacionais requeria a “...efetivação da idéia de que a população era a grande

riqueza das nações.”(p.20)

Assim, podemos identificar que a luta entre classes sociais nem sempre é o

agente histórico das ações e das mudanças sociais, ocorrendo também associação

entre estas para construir e consolidar uma dinâmica de relações em que os objetivos

sejam os mesmos.

O Coletivo de Autores aponta que a proposta da cultura corporal vem como uma

tentativa de fazer avançar a área em relação à proposta da aptidão física. Afirmam que

“na perspectiva da reflexão sobre a cultura corporal, a dinâmica curricular, no âmbito da

6 RABINBACH, Anson . (1992). The Human Motor. Los Angeles: University of California Press.

Page 12: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

12

educação física, tem características bem diferenciadas das da tendência anterior.

(p.38)

É lugar comum falar em superação quando se anunciam proposições de

intervenção pedagógica como novas. O novo sempre é apresentado como mais eficaz,

como referência de mudança, progresso e de evolução em relação ao que está

constituído. Produz-se a necessidade de propor uma identificação, uma marca, e para

tal sempre fazem a leitura de que o passado está ligado a uma noção inadequada do

que querem para o futuro. Hobsbawn (1997) diz que os movimentos progressistas

sempre rompem com o passado, estabelecendo contrastes nítidos que possam

demarcar ou justificar as diferenças. Nesse sentido, a história é usada como um

instrumento de eficácia simbólica.

O segundo capítulo do Coletivo de Autores vem exatamente demonstrar isto

quando constrói uma breve análise histórica das tendências da educação física. O

sentido de evolução, ou a construção negativa do passado, fica expressa quando os

autores afirmam que “diferentes respostas tem sido historicamente construídas sem,

contudo, contribuírem substancialmente para a superação da prática conservadora

existente” (p.50). A concepção de história para os autores vem carregada de um alto

caráter utilitário por ser referência para um projeto de intervenção. A idéia de

superação é central, e nessa perspectiva pensam que ela só pode ser alcançada caso

se conheça o passado para melhor intervir no presente e perspectivar o futuro.

“acredita-se que o breve histórico aqui colocado fornece os elementos de base para a

construção de uma perspectiva pedagógica superadora...” (p.56). O conhecimento da

história serve para construir um projeto de futuro, um futuro que vá superar o presente,

mas para isso tem que se conhecer o passado.

A história assume no texto uma perspectiva teleológica e evolucionista, pois a

intervenção no presente se justifica através dela. Como exemplo deste raciocínio,

buscamos uma música muito identificada com as ações do movimento esquerdista no

país - Para não dizer que não falei de flores (ou Caminhando, como ficou popularmente

conhecida) - cantada por Geraldo Vandré, onde num de seus versos é dito “a certeza

na frente à história na mão”. É assim que é pensada a história neste livro, como um

Page 13: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

13

elemento de compreensão do passado que vai respaldar uma ação já determinada

para o futuro.

Fica evidente que a transformação pedagógica que os autores pretendem não

se restringe ao âmbito da educação física, pois a perspectiva de análise histórica que

utilizam é do tipo economicista e totalizante, isto é, o sistema político e econômico se

reproduz em todas as esferas sociais. A implicação lógica é que todo o passado da

educação física na sociedade capitalista teria sido moldado por objetivos e tecnologias,

em sintonia com o contexto de evolução desse modelo econômico. Como os autores

consideram esse modelo político-econômico desumano, alienante e deseducativo,

operam no sentido de romper e combatê-lo. Assim, o silogismo que constróem é o

seguinte: se o todo está na parte, tentar mudar a parte é, em certa medida mudar o

todo. Neste sentido, a opção política e pedagógica pode “determina[r] um alvo onde se

quer chegar, busca[r] uma direção[...] que poderá ser conservadora ou

transformadora...” (p.25)

No capítulo três, os autores se concentram no esforço de demonstrar e

exemplificar como a concepção da educação física da cultura corporal pode ser

desenvolvida nas aulas: “[...] neste capítulo serão abordados alguns aspectos

específicos de um programa de educação física [...] quanto ao conhecimento a ser

tratado, à sua distribuição nas diferentes séries e aos procedimentos para ensiná-lo...”

(p.61)

É aqui que se concentra o maior interesse da obra, que é o de tentar construir

exemplos e modelos sobre como efetivamente lidar com os conteúdos e as diferentes

formas de trabalha-los dentro dos ciclos de escolarização, estabelecendo uma

categorização dos elementos de cada conteúdo para cada ciclo.

O capítulo quatro trata da avaliação na educação física escolar. Para os autores,

[...] o sentido de avaliação do processo ensino-aprendizagem em educação física é o de fazer com que ela sirva de referência para a análise da aproximação ou distanciamento do eixo curricular que norteia o projeto pedagógico da escola... (p.103).

Page 14: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

14

Nesta parte do livro os autores não chegam a fazer uma proposta clara de

avaliação; apenas demonstram acreditar na necessidade de uma aproximação de sua

posição ideológica com uma forma de organizar e pensar a avaliação.

De forma sintética, podemos dizer que o livro pauta-se em fazer uma análise da

educação e da educação física, tendo por base a estrutura político-econômica da

nação, para daí poder apresentar sua proposta pedagógica dentro de uma vertente

ideológica eleita pelos autores numa compreensão de que o que acontece na

sociedade se repete na escola e na educação física. Como visto, em linhas gerais é

assim que se estrutura e se apresenta este livro ao leitor.

Page 15: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

15

2. Mapeando as questões teóricas.

Nesta etapa apontaremos, ainda que de forma simples, as hipóteses que se tem

em conta neste estudo.

2.1 - DO MODELO.

As obras em educação física que tratam de aspectos didático-metodológicos

buscam amparo em estudos da área da educação, e por vezes realizam uma

adaptação, uma reconstrução de proposições pedagógicas de caráter mais geral para

as especificidades da educação física. Numa visualização ampla das obras sobre

educação e educação física, observa-se a presença de um fenômeno em sua

construção teórica, que é um tipo de lógica que se pode denominar de modelo em

cascata7, onde o fenômeno só pode ser explicado a partir de sucessivos processos

dedutivos, do geral ao específico. Assim, para explicar o que se passa na educação

física, a reconstrução é a seguinte: os analistas tomam a sociedade sob a ótica

generalizante da política e da economia no modelo capitalista; em seguida comentam

os reflexos desse modelo de sociedade na esfera da educação, e por fim de que

maneira tais reflexos ideológicos incidem sobre os modelos pedagógicos da educação

física.

E justamente esta compreensão será um dos eixos deste estudo, ou seja, que o

Coletivo de Autores tem como base para sua construção o modelo em cascata. Em

outras palavras, a justificativa teórica do Coletivo de Autores é construída, a priori,

neste modelo macro. Os argumentos (por certo ideologizados) fornecidos pelos autores

apenas confirmam, pela força da missão que estão imbuídos, que a realidade é assim

tal como o modelo geral apresentado:

Catarinense, gaúcha, pernambucana, paulista, chilena e paranaense... oriundos de diferentes regiões, temos a nos unir a mesma vontade política de arriscar, de desencadear esforços conjuntos visando a concretização de nossa utopia, unidos que estamos na consecução de um mesmo projeto histórico.(p.15)

7 Termo sugerido pelo amigo Edivaldo Góis Junior em conversa pessoal.

Page 16: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

16

Aqui observamos que os autores colocam-se numa obrigação de caráter moral,

na qual têm de estar unidos para a consecução de suas metas, mesmo que para isso

as diferenças e divergências devam ser mascaradas ou oprimidas. Esta vontade

demonstra a boa índole com a qual os autores partem para a construção do livro, de

estarem todos unidos numa mesma fé, de assumirem um mesmo papel; mas ao

mesmo tempo esta boa vontade mostra-se de difícil realização, pois como pode um

número tão grande de autores apresentar as mesmas compreensões e sentimentos?

Na defesa de suas posições, por vezes o Coletivo de Autores acaba por usar os

mesmos argumentos e posições que critica quando fala sobre o modelo da aptidão

física. Em todo o livro é feita uma crítica feroz ao modelo da aptidão física, e que este

tem estado a serviço do capitalismo numa relação funcionalista. Assim, este modelo

pedagógico estaria estabelecido para fazer valer os interesses do modelo político-

econômico, crendo que a aptidão física “recorre à filosofia liberal para a formação do

caráter do indivíduo, valorizando a obediência, o respeito às normas e à hierarquia.”

(p.36)

Na tarefa de apresentar um modelo diferente, os autores acabam por também

cair na relação funcionalista que criticam, pois entendem que a educação, e no caso a

educação física, devem estar a serviço da mudança social numa perspectiva

transformadora. Esta mudança pauta-se no cenário da luta de classes, que considera o

socialismo como ideal. O Coletivo de Autores diz que a cultura corporal...

...contribui para o desenvolvimento da identidade de classe dos alunos, [...] essa identidade é condição objetiva para construção de sua consciência de classe e para seu engajamento deliberado na luta organizada pela transformação estrutural da sociedade e pela conquista da hegemonia popular. (p.40)

Sobre esta situação de paradoxo, Lovisolo(1995), nos diz que:

...muitos revolucionários da educação raciocinam como os empresários que apenas querem para os trabalhadores uma educação útil para o processo produtivo. Os revolucionários quase sempre a pretendem útil para o processo organizativo-político. Ambos são funcionalistas e utilitaristas da educação. (p.17)

Page 17: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

17

Assim, dentro da relação funcionalista existente no Coletivo de Autores, abre-se

espaço para a seguinte questão: onde fica espaço para a dialética proposta pelos

autores?

O livro, que apresenta a lógica do modelo em cascata, inicia sua análise ou

justificativa afirmando que a situação político-econômica brasileira, injusta e desigual,

está diretamente relacionada com as questões específicas da educação e da educação

física. A ordem dedutiva é sempre esta, em que pese a interferência que é uma

condicionante da que está logo abaixo. Desta forma, é difícil explicar a mudança e

mesmo a emancipação, tendo em vista que é criado um quadro de dependência mútua,

onde um fator só se altera se os anteriores também se alterarem. E assim colocada,

como último platô desta cascata, a modificação da educação física fica sendo a mais

difícil.

2.2- O TODO NAS PARTES E AS PARTES NO TODO.

O livro do Coletivo de Autores está bastante próximo de outras linhas de estudo

e proposições da educação e da educação física que tem como linha teórica o

marxismo. Ghiraldelli Junior (1996) diz que estas propostas pedagógicas “...se mantêm

mais no plano da prática pedagógica e/ou da prática político-partidária, sendo

obrigados a enveredarem basicamente por discursos marcadamente normativos.”

(p.189). Nesse caso, o plano discursivo destas propostas considera mais o dever ser,

os desejos, do que as demandas específicas dos atendidos pelo ensino formal.

A partir disto, pensadores e suas respectivas propostas baseiam-se na idéia de

que o todo (capitalismo) faz-se presente nas partes (pedagogias) e que quando alguma

mudança é operada na parte, também se opera mudança no todo, caracterizando

estreita vinculação entre todo e partes e partes e todo e, conseqüentemente, entre

política e educação. Isto mostra que o tipo de modelo utilizado constitui-se num

formalismo que considera o real a partir de um ideal normativo.

O Coletivo de Autores apresenta com este tipo de entendimento - do todo nas

partes e das partes no todo - a idéia de dominância, na qual o controle da classe

trabalhadora - a classe dominada - é feito por quem está de fora; ou seja, desloca-se o

Page 18: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

18

eixo para fora do próprio núcleo social. Segundo Lovisolo (1990), “uma espécie de

convencimento generalizado de que o nosso centro está fora, de que o motor da nossa

dinâmica está sempre em outro lugar” (p.16). Aqui se manifesta um paradoxo, pois este

entendimento de que o centro está fora, é aplicado à análise da sociedade. Enquanto

dizem que a classe trabalhadora é controlada, conduzida por uma classe dominante,

ao mesmo tempo o Coletivo de Autores se propõe a defender uma proposta

pedagógica que pode conduzir os alunos a um grau superior de conscientização. Com

isto, quer dizer que o estado em que se encontra a classe trabalhadora e os seus filhos

é de trevas, é de alienação. Assim, o papel dos apóstolos da transformação seria

elevar os alunos à posição de iluminados. Apesar das boas intenções e do discurso

democrático que funciona como mote dos discursos progressistas, não se pode deixar

de apostar que essa é uma posição “...semelhante a do catequizador e a do

colonizador.” (LOVISOLO, 1995: 09).

Assim, como construir um projeto de autonomia, que sem dúvida é o interesse

da obra, com uma idéia geral de condução por quem está de fora? Como ser autônomo

quando é preciso que alguém mostre a realidade? A idéia de autonomia não se efetiva,

pois ela é construída não pelos educandos, mas sim pelos professores que assumem

para si este papel.

2.3 - DOIS MODELOS DE ANÁLISE EM PAUTA.

Em “Educação Popular: maioridade e conciliação” Lovisolo (1990), realizou uma

análise sobre o movimento da Educação Popular na América Latina, com especial

atenção para o Brasil. Nela, entende que o modelo brasileiro vem a significar o anseio

pela construção de uma modernidade nas sociedades periféricas ou subdesenvolvidas,

dizendo que “o objetivo de construção da modernidade me parece haver sido e ser o

contexto de referência maior da atuação da intelectualidade latino-americana...”(p.21).

Também falando sobre estes intelectuais, Ghiraldelli Junior (1996) aponta que “...talvez

seja possível vê-los aglutinados na medida em que esses grupos sempre advogaram

projetos no sentido de integrar o país na modernidade...(p.150).

Em sua análise sobre a educação popular, Lovisolo (1990) aponta que na base

da proposta de intervenção deste movimento educacional está representado o que

Page 19: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

19

chama de conciliação entre duas vertentes que são consideradas teoricamente

inconciliáveis: o romantismo e o iluminismo.

De forma geral, podemos dizer que o romantismo é um movimento de oposição

aos valores do racionalismo iluminista, nas formas de encarar as relações e as

produções humanas, valorizando emoções e sentimentos, a natureza humana em sua

totalidade. As noções de particularidade, de cultura local e de pertencimento, são

fundamentais para entender esse movimento. Pode-se pensar que o romantismo

constitui a base para afirmação de narrativas populistas.

Por outro lado, o iluminismo é um movimento de ordem intelectual que se

caracteriza pela valorização da razão e, de forma diametralmente oposta ao

romantismo, trabalha com as noções de distanciamento, de universalização e de

cosmopolitismo.

Ao apontarmos algumas características, tanto do romantismo quanto do

iluminismo, não o fazemos para identifica-los como positivos ou negativos, mas apenas

com o sentido de situar algumas marcas que perpassam pelo Coletivo de Autores,

como elementos representativos da construção da obra e que contribuem para sua

consolidação em nosso meio, que ao mesmo tempo aparecem como um fator que

dificulta o entendimento da coerência do ponto de vista teórico da obra.

Nessa direção, Lovisolo (1990) procura situar os paradoxos que animam a

Educação Popular, onde as aparentes contradições ou contra-sensos tornaram as

propostas educativas da educação libertadora potentes ideologicamente. Neste mesmo

sentido, pensa-se que a tese geral apresentada por Lovisolo sobre a Educação Popular

pode ser estendida e testada nas pedagogias que se autodenominam críticas na

educação e na educação física e que ao pensar o ensino formal apresentam

continuidade com as teses de Paulo Freire. No caso específico da educação física,

Medina (1983), num livro pioneiro8 do Pensamento Renovador da educação física,

trabalhou diretamente com as categorias de consciência utilizada por Paulo Freire. Da

mesma forma, vários autores do campo da educação trilharam por esse caminho.

8 MEDINA, João Paulo Subirá. (1983). A Educação Física cuida do corpo e “mente”. São Paulo: Papirus.

Page 20: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

20

Com isto formula-se a hipótese de que o Coletivo de Autores se vale também da

conciliação entre romantismo e iluminismo, buscando conciliar valores e ideais que são

inconciliáveis do ponto de vista teórico, mas que aparentam ser potentes do ponto de

vista ideológico. Talvez por este motivo a proposta da cultura corporal tenha produzido

impacto junto aos professores universitários da educação física, insatisfeitos com o

modelo político-econômico e com a educação em nossa sociedade.

O que se apresentou aqui foi a hipótese que norteia este estudo. Poderemos

observar, ao longo do texto, que o Coletivo de Autores trabalha com este tipo de

construção. Talvez, o impacto da proposta da cultura corporal seja explicado a partir

dos paradoxos identificados por Lovisolo. Adentremos um pouco mais na obra.

Page 21: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

21

3. ANÁLISE DA OBRA.

3.1- POLÍTICA E EDUCAÇÃO

Quando o Coletivo de Autores fala do surgimento de uma pedagogia, diz que

esta surge quando existem “... momentos em que se acirra o conflito, o que vem a

provocar uma crise. E é exatamente dessa crise que emergem as pedagogias” (p.24).

Ainda quando fala da proposta do livro, dizem que “o presente texto trata de uma

pedagogia emergente, [...] denominada aqui de crítico-superadora.” (p.25). Pode-se

notar, nos segmentos acima, aquilo que Ghiraldelli Junior (1996) identificou como um

discurso normativo presente nas construções das pedagogias críticas. Assim, o

surgimento de uma nova pedagogia, ou de qualquer coisa, só pode surgir via conflito

ou crise, e esta é uma normatividade que guia o processo social ou a realidade no

discurso do Coletivo de Autores.

Outra idéia bastante forte no Coletivo de Autores é a de crise como o cenário

ideal para a criação, neste caso especificamente, de pedagogias,. Todavia, este tipo de

pensamento é por si só excludente e difícil de demonstrar, justamente por negar outras

formas possíveis de criação que não a crise.

Ao tratar das relações sociais, o Coletivo de Autores afirma que a classe

dominante faz uso da política, da cultura e da economia para garantir sua hegemonia

ideológica, pois “ela detém a direção da sociedade: a direção política, intelectual e

moral” (p.24). O modelo de análise sócio-política utilizado no escopo da obra apresenta

a sociedade como algo estanque, nitidamente cindida entre dominantes e dominados

ou entre burguesia e proletariado, sendo os últimos denominados genericamente de

classe trabalhadora. A obra em estudo parece querer negar a dinâmica social que

coloca o conceito de trabalho em xeque. O Coletivo de Autores parece pensar a

sociedade apenas a partir do conflito entre dominantes e dominados, não levando em

conta as possíveis relações entre as diversas classes sociais, ou mesmo o fato de que

as diferentes classes podem, por vezes, apresentar os mesmos interesses e que a

produção de uma história e de uma cultura, podem acontecer dentro deste quadro de

relações múltiplas. A propósito, Boudon (1990) afirma que as mudanças também

Page 22: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

22

podem acontecer no seio de uma tradição, sem que haja necessidade de grandes

rupturas e conflitos.

Podemos dizer que numa construção como esta há, na verdade, uma autêntica

ideologização ou doutrinação desse tipo de argumento normativo. O curioso é que os

autores, no decorrer da obra, não apresentam dados ou argumentos que de alguma

forma explicitem a idéia de conflito, de luta entre dominantes e dominados, seja na

sociedade, na educação ou na educação física. Por não apresentarem argumentos

plausíveis, os autores acabam por impor aos leitores apenas seus valores normativos

sobre a sociedade e sobre a educação que idealizam. Parecem não prescindir de uma

necessidade de estabelecer seus valores e sentidos como verdades absolutas e

únicas, onde talvez até se ignore “...as alterações na dinâmica da vida efetiva, do

pensamento e dos paradigmas científicos e filosóficos.” (GHIRALDELLI JUNIOR,

1996:158). Na esteira de Ghiraldelli Junior, poderíamos dizer que o Coletivo de Autores

pretende congelar a realidade.

A perspectiva apresentada é a da construção de uma sociedade futura, que seja

socialista. Embora os argumentos sejam ideologizados e doutrinadores, seus autores

fazem sua autodefesa dizendo que “tratar dos grandes problemas sócio-políticos atuais

não significa um ato de doutrinamento” (p.63). De fato, a doutrina é tão forte que os

autores necessitam defender-se da pecha que lhes pode ser imputada.

Arendt (1997), quando trata da relação entre política e educação, diz que o

desejo de criar um novo modelo de sociedade a partir do cenário educativo “...é um

simulacro de educação, enquanto o objetivo real é a coerção sem o uso da força.”

(p.225). Os argumentos do Coletivo de Autores se autodenunciam quando afirmam

“defendemos uma proposta clara [...] que viabilize a leitura da realidade estabelecendo

laços concretos com projetos políticos de mudanças sociais” (p.63). De fato, o

argumento anunciado pelos autores, apesar das boas intenções, pode ser lido como

vanguardista que pressupõe a coerção sem fazer uso da força, tentando para isto fazer

uso do peso de uma argumentação que se apresenta como científica.

Assim, podemos dizer que os autores fazem uma análise da estrutura social a

partir de um único enfoque, não levando em conta outras formas possíveis de

Page 23: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

23

entendimento de sociedade. Para isto, tentam de qualquer forma encaixá-la em um

modelo teórico escolhido como ideal e unicamente correto, ou seja, vêem o que

querem e do ponto de vista que querem e, principalmente, só o que querem e

objetivam. Ghiraldelli Junior (1996), apresenta a concepção daquilo que chama de

esgotamento das energias utópicas, quando diz que as proposições pedagógicas de

caráter marxista devem estar atentas e considerar as alterações no cenário da filosofia

social, a fim de tentar rever suas idéias e suas afirmações. [...] “assim, a pedagogia

marxista não pode mais se dar o direito de proferir frases de efeito.” (p.186), devendo

refazer sua leitura de realidade a partir de um cenário efetivamente instalado e não

mais um cenário idealmente concebido ou pré concebido.

As pedagogias ditas críticas, e entre estas a cultura corporal, apresentam a

concepção de que a existência de criticidade por parte do aluno vem como sinônimo de

se ter um conceito, uma visão de mundo na lógica marxista, onde a crítica significa a

identificação com um marco ideológico identificado como ideal (LOVISOLO, 1997).

Entretanto, como se pode observar no cotidiano universitário, sindical e escolar, o que

existe é a incorporação de frases de efeito e jargões supostamente politizados, sem

que se incorporem também os instrumentos de reflexão e análise, o que os torna tão

alienantes quanto os discursos despolitizados. As palavras de ordem sem reflexão

apenas auxiliam a maquiar um discurso supostamente crítico, que no fundo pode

esconder uma espécie de religiosidade e mesmo um ressentimento.

Para o Coletivo de Autores o desenvolvimento do pensamento crítico no espaço

da educação física se dá através do contato com a metodologia da cultura corporal.

Assim, a utopia é de que todos possam se assumir enquanto seres críticos, com

capacidade de ter e fazer uma análise do quadro social, político e econômico. Desta

forma, supõem que o processo de formação de alunos críticos e reflexivos não pode

acontecer no cenário educacional dominado por pedagogias tradicionais,

escolanovistas ou tecnicistas.

Segundo o Coletivo de Autores, a aptidão física pode ser lida como tradicional, e

como paradigma de ensino que não dá conta de fornecer instrumentos de reflexão e

crítica sobre a sociedade, já que não opera na lógica do ideário marxista.

Page 24: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

24

Outra referência de análise deste nosso estudo é a forte crítica que o Coletivo de

Autores estabelece ao uso que o poder político faz da educação e da educação física

como forma de manutenção e ampliação de seu alcance de poder. Porém, o que

propõe como estratégia de ação e objetivo de toda prática educativa, dentro desta

perspectiva, é basicamente buscar hegemonia nos campos político e pedagógico. O

belicismo9 é evidente nos discursos. O fim da educação acaba por confundir-se com a

tomada de poder. Nessa direção, os autores se tornam porta-vozes dos “...interesses

históricos da classe trabalhadora [que] vêm se expressando através da luta e da

vontade política para tomar a direção da sociedade, construindo a hegemonia popular”

(p.24). Não sabemos se é exagero esta nossa interpretação, mas o discurso do

Coletivo de Autores por vezes parece reivindicar a instauração de um regime totalitário,

onde a hegemonia seja popular, fazendo lembrar da tese da ditadura do proletariado.

Como sabemos, em nossos dias o discurso favorável a instauração de ditaduras soa

como um espécie de anacronismo.

A cultura corporal tem como objetivo contribuir e ser um processo de

transformação social, por entender que o espaço escolar é um locus privilegiado para

esta ação, na medida que contribui com a formação política e intelectual do educando.

Como dissemos no início desta seção, ao pensar na escola como um espaço de

transformação social, o Coletivo de Autores estabelece uma conciliação entre

romantismo e iluminismo, pois enquanto pensa o cidadão e a sociedade numa ótica

romântica (valorização daquilo que é singular, particular e local), pensa a educação

numa visão iluminista (de valorização de ideais científicos e universais).

O que foi visto até aqui caracteriza a estrutura maior da obra analisada, que é

pautar-se numa constante relação entre o palco da política e o palco da educação,

dizendo que a proposta pedagógica tratada no livro advém de uma interpretação da

política em sua forma mais geral. A este fato, Lovisolo (1990) chama de “...processo de

politização da educação e pedagogização da política.”(p.61)

Pode-se pensar, então, em dizer que esta imbricação entre política e educação

9 Fato visível nas falas em palestras e congêneres, quando se diz que estamos vivendo um período pré-

revolucionário, sendo a luta armada uma das opções de tomada de poder pela classe trabalhadora (vide palestra de

abertura do IV EnFEFE, proferida pela profª. Celi Taffarel).

Page 25: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

25

configura o paradoxo maior desta obra, que se dá entre o romantismo e o iluminismo,

numa busca de conciliação entre estes dois modelos de pensamento.

Logo ao início os autores afirmam que este livro “...deve fornecer elementos

teóricos para assimilação consciente do conhecimento, de modo que possa auxiliar o

professor a pensar autonomamente.” (p.17); e que “...pretende-se instigar o professor

a eleger [...] aquela perspectiva que responde às exigências atuais do processo de

construção da qualidade pedagógica da escola pública brasileira”. (p.23)

O que se lê acima indica a imagem que os autores fazem dos professores que

atuam no espaço escolar, considerando-os incapazes e sem autonomia. Indicam a

necessidade de um agente externo para conduzi-los nesta passagem para o estágio de

um pensar autônomo, para a construção de uma educação melhor. Segundo o ponto

de vista do Coletivo de Autores, o que é melhor é determinado, não possibilitando ao

leitor o direito de acordo ou desacordo, já que faz um embate entre a aptidão física que

é vista como negativa, injusta e retrógrada e a cultura corporal, vista como positiva,

justa e de vanguarda, donde depreende-se que só esta pode ser aceita.

De forma clara, pode-se observar que aqui se configura como eixo de análise a

idéia de que sempre tem de haver uma condução externa para que se possa alcançar

o que há de melhor, existindo sempre um deslocamento para fora, o que acontece por

falta de autonomia, que sempre pertence ao outro.

Veyne (1982), numa análise sobre as práticas de governo na sua relação com

os cidadãos, considerou três diferentes tipos: povo rebanho, quando este é tratado e

conduzido sempre por um superior, que deve cuidar para que o povo permaneça

saudável; povo criança, quando o povo deve ser cuidado por ser frágil e incapaz de

seguir sozinho, e quando trata o povo como se cuida de um fluxo de águas, que se

guia por si próprio e o estado só deve acompanhar este fluxo, por onde cada qual

seguirá.

Esta consideração feita por Veyne permite dizer que, quando faz referencia ao

professor e ao educando, vigora no Coletivo de Autores a concepção do povo criança,

por considerar que este precisa ser conduzido, levado ao melhor caminho, protegido

Page 26: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

26

até que consiga alcançar certo grau de maturidade. Nesta relação entre política e

educação, quando se trata do povo há grande ambigüidade, pois o Coletivo de Autores

o considera ao mesmo tempo maduro e imaturo. O povo é tratado simultaneamente

como criança e como um fluxo de águas. Nisto também reside o paradoxo da

conciliação do inconciliável.

Na apresentação de sua intenção do que chama projeto político-pedagógico, o

Coletivo de Autores afirma que

...os interesses históricos da classe trabalhadora vêm se expressando através da luta e da vontade política para tomar a direção da sociedade, construindo a hegemonia popular Essa luta se expressa através de uma ação prática, no sentido de transformar a sociedade de forma que os trabalhadores possam usufruir do resultado de seu trabalho. (p.24).

Aqui fica nítida a percepção de um povo consciente e maduro, portanto capaz de

conduzir suas ações, encaminhar suas diretrizes de vida e lutar por seus interesses e

motivações. Ao mesmo tempo apresenta a noção de um povo que precisa ter uma

condução para que alcance estágios de superioridade. Isto fica visível quando o

Coletivo de Autores fala que“...deve fornecer elementos teóricos para assimilação

consciente do conhecimento, de modo que possa auxiliar o professor a pensar

autonomamente” (p.17).

...o confronto do saber popular (senso comum) com o conhecimento científico universal selecionado pela escola, o saber escolar, é do ponto de vista metodológico, fundamental para a reflexão pedagógica. Isso porque instiga o aluno ao longo de tal escolarização, a ultrapassar o senso comum e construir formas mais elaboradas de pensamento. (p.32).

Com esta confrontação, identifica-se a ambigüidade, pois ao mesmo tempo em

que enxerga no povo uma capacidade de auto-condução, identifica a necessidade de

haver algo de fora que seja capaz de conduzir a massa; assim como vê nos valores de

origem da população algo de forte representatividade, o Coletivo de Autores vê

também algo que precisa ser trabalhado, ser superado.

Esta oposição entre valorização do que é popular e identificação de necessidade

de superação, pode ser situada naquilo que trataremos por pertencimento e

distanciamento, isto é, a conciliação do romantismo com o iluminismo. Na mesma

medida que valoriza a cultura popular, suas raízes e tradições, o Coletivo de Autores

Page 27: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

27

procura saltar desta para a visão científica ou crítica através do trato pedagógico,

sendo isto chamado de salto qualitativo.

Este trilho que pretende iniciar sua via na cultura do aluno e terminar na cultura

universal, é uma caracterização de que deve existir uma mudança de percepções e

relações com a história de vida do aluno, pretendendo que se parta de uma para

chegar à outra.

Utilizando o argumento de Lovisolo (1990), podemos dizer que a convivência

estabelecida entre a noção de pertencimento, que se caracteriza como marco do

romantismo, e a noção de distanciamento, que se caracteriza como marco do

iluminismo, exemplifica a conciliação de perspectivas inicialmente contrárias em suas

formulações, tendo em vista que são maneiras distintas de se pensar a ação educativa

e as relações políticas. Este fato pode ser positivo numa tentativa de construção

pedagógica, pois fortalece a proposição. Assim é no caso da cultura corporal, mas que

ao mesmo tempo acaba por criar dificuldades para se sair do plano da idealização para

o plano da concretização.

O pertencimento vale-se de criar uma proximidade com o eixo cultural original do

indivíduo; tem característica de manutenção das raízes e tradições e tem um caráter

local; já o distanciamento, com uma caracterização cosmopolita, pauta-se num

constante afastamento dos valores locais e regionais, tendendo a buscar uma relação

mais distante das origens de cada pessoa. Assim, afirma-se uma necessidade de

identificação com os dados da realidade na qual se inserem os alunos, sendo isto uma

forma de valorização do popular, do que lhe é peculiar em sua vivência. No entanto, ao

mesmo tempo afirma-se a necessidade de, através do trato pedagógico de tais

conhecimentos, possibilitar ao aluno uma aproximação/adesão com a cultura clássica

e/ou erudita. Citando Libâneo10, o Coletivo de Autores diz que não se trata de oposição

total entre a cultura erudita e a popular, mas uma relação de progressão, quando “se

passa da experiência imediata ao conhecimento sistematizado.” (p.32).

Identifica-se então uma realidade que é a de, através do contato com o espaço

escolar, possibilitar ao aluno um afastamento de suas vivências imediatas e mais

10

LIBÂNEO, José Carlos. (1985). Democratização da escola pública: a pedagogia crítico-social dos conteúdos. São

Page 28: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

28

próximas, encaminhando-se para uma realidade que não é característica em sua

história, que é originária e característica de outra realidade social. Isto demonstra a

noção de distanciamento. Assim, como superar o dilema etnocêntrico se a proposta da

escola é socializar os alunos com a cultura cosmopolita e erudita?

Vê-se aqui outro paradoxo da obra, que se dá entre pertencimento e

distanciamento, onde o primeiro molda-se ao romantismo e o segundo ajusta-se ao

iluminismo. Isto se identifica com a visão romântica sobre a população e com a visão

iluminista da educação. Romântica pois fala daquilo que é próprio ao povo, comum ao

seu meio social e iluminista por se pautar nas perspectivas educacionais, nos eixos

constitutivos da ciência, numa cultura cosmopolita.

A partir disto, e com apoio em Lovisolo (1990), podemos inferir que a utilização

da cultura local como base do conhecimento escolar pode ser na verdade um ardil

metodológico, pela necessidade de se criar um convencimento de seus interesses

próprios, a partir da lógica de levar o aluno até o que é universal afastando-o de suas

raízes. Ao mesmo tempo em que se busca a valorização da cultura popular, pretende-

se a sua transformação; a autonomia só será construída quando as classes populares

tiverem adotado os valores e os elementos da cultura erudita. Instala-se uma oposição

que tenta ser trabalhada conjuntamente na cultura popular, que é visualizar o que é

popular em seu meio natural, com sua cultura própria, e fazer vigorar as formas de trato

com o conhecimento do meio científico.

Nicolaci-da-Costa (1987), quando discorre sobre o sucesso escolar das classes

populares, fala dos conflitos que esses alunos podem vir a ter, chegando a uma

possível rejeição de suas origens: “...todos nós estamos familiarizados com estórias do

filho de fulaninho que “se formou na escola” à custa de sacrifícios da mãe, do pai ou de

ambos, e depois teve vergonha de suas origens e rejeitou-os” (p.52). A autora

argumenta que o aluno bem sucedido passa por uma sofrida adaptação quando retorna

da escola ao seu ambiente natural, pois já incorporou elementos típicos da escola e

estranhos ao seu grupo social, o que cria um conflito interno de grande ordem. Ainda

sobre isto, existe a idéia de que “parece que o sucesso escolar do sujeito de camada

popular tem o potencial de roubar-lhe não somente a identidade cultural..” (p.54) Aqui,

Paulo: Loyola.

Page 29: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

29

a relação entre pertencimento e distanciamento acaba por criar um problema para a

criança, pois esta passa a pertencer à cultura escolar quando tem sucesso, mas

distancia-se de sua cultura de origem.

Lovisolo (1990), mostra que também é possível dentro da relação entre

pertencimento e distanciamento, identificar uma nova conciliação, desta feita entre o

populismo e o vanguardismo, isto no plano político. O populismo vem a se aproximar

do romantismo e o vanguardismo do iluminismo.

Esta conciliação de índole política consolida-se na efetivação da ação

pedagógica. O caráter populista é percebido na tentativa de trazer para dentro do

espaço escolar aquilo que é característico de cada indivíduo, de cada população,

vinculado à idéia de pertencimento. Isto se percebe quando no Coletivo de Autores é

dito que a educação física escolar “[...] contribui para a afirmação dos interesses de

classe das camadas populares...” (p.40). O vanguardismo, é vislumbrado na tendência

universalizante no trato com o conteúdo, prendendo-se ao fato de direcionar o aluno

para este mundo, numa perspectiva de distanciamento do que lhe é de origem: “[...]

existe uma cultura corporal resultado de conhecimentos socialmente produzidos e

historicamente acumulados pela humanidade que necessitam ser retraçados e

transmitidos para os alunos na escola” (p.40). É possível identificar ainda que

[...] a perspectiva da educação física escolar, que tem como objeto de estudo o desenvolvimento da aptidão física do homem, tem contribuído historicamente para a defesa dos interesses da classe no poder, mantendo a estrutura da sociedade capitalista. (p.36).

Aqui, é possível perceber que os autores elaboram a idéia de que o que

denominam aptidão física, está colocada como mecanismo de defesa dos interesses

da classe dirigente. Por outro lado, “...a expectativa da educação física escolar, que

tem como objetivo a reflexão sobre a cultura corporal, contribui para a afirmação dos

interesses de classe das camadas populares, na medida em que desenvolve uma

reflexão pedagógica...” (p.40). Fica evidente que a intenção do texto é propor um novo

entendimento sobre a sociedade a partir da pedagogia que resignifique isso que se

denomina cultura corporal.

Page 30: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

30

Ao colocar a aptidão física associada ao sistema capitalista e a cultura corporal

associada a uma suposta pedagogia marxista, o Coletivo de Autores não se preocupa

em clarificar o que vem a ser a aptidão física, nem o que seja cultura corporal. Valem-

se apenas da defesa de sua proposição como sendo a que vai acabar com todas as

mazelas de nossa sociedade. Ghiraldelli Junior (1996), também questiona esta posição

do Coletivo de Autores quando diz que a pedagogia marxista “silencia pela simples

razão de que advoga o socialismo, sem mais nem menos, acreditando não precisar

com isto explicar mais nada?” (p.185).

Com a adoção desta linha de confronto, o Coletivo de Autores configura uma

tendência à intolerância, haja vista que não pretende dialogar, pois há uma pré-

determinação que é a de ver de um lado o bem e de outro o mal.11

A busca de enquadramento do país num ideal de modernidade, que se configura

como um elemento típico da noção iluminista, numa visão globalizante a partir de

referenciais de construção da norma científica, pode ser identificado na passagem a

seguir: “trata-se de uma direção científica do conhecimento universal enquanto saber

escolar.”(p.30) Isto acaba por se opor ao ideal romântico de defesa apaixonada, e por

vezes contundente, do que é popular. O argumento da direção científica evidencia a

clara posição cientificista.

Ainda sobre esta busca pela inserção do país na modernidade, uma

modernidade que levará a nação a um outro estágio de relações, vemos em Ghiraldelli

Junior (1996), que

Por sua vez, os grupos advogados da pedagogia marxista também desejavam e realização da utopia da modernização, porém, esta é bem vinda apenas como situação transitória para uma outra modernidade na qual o capitalismo cede lugar ao socialismo.(p.157).

Assim, segundo o Coletivo de Autores, instaurar-se-ia um movimento de

passagem que se vincularia a uma mudança de estágios de consciência, de mudança

de perspectivas e valores, que permitiria acontecer esta alteração do quadro sócio-

11

Cabe dizer que esta intolerância, por várias vezes se mostrou no cenário da Educação física, onde em encontros se

criavam conflitos e lutas por pessoas discordarem de nossas posições.

Page 31: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

31

político-econômico, propiciando a derrocada do capitalismo e a ascensão do

socialismo. Essas são idealizações das pedagogias de ordem marxista.

Podemos observar o seguinte quadro: o aluno, e também a educação física,

encontram-se num determinado patamar, e procura-se, com a proposta da cultura

corporal, levar este aluno e esta educação física para um outro nível. Contudo, este

nível não é apenas do conhecimento e do saber, pois o objetivo pelo qual a sociedade

deve lutar é o do conhecimento incorporando valores. Para isto, é preciso que se faça

uma conversão de valores, de conhecimentos e de perspectivas. Deve-se buscar

identificar como se dará esta mudança, de que maneira será executada, de que

maneira será viabilizada esta passagem de um aluno e de uma educação física que

não são críticos para um aluno e uma educação física que sejam críticos? Como se

efetiva esta mudança de graus de consciência?

Para fazer acontecer esta mudança, o Coletivo de Autores mete à cena uma

perspectiva semelhante à religiosa, que prevê algo como uma conversão, que vai

depender de uma iluminação. Esta iluminação que tem caráter teórico, acontece

quando existe um contato e uma vivência com a cultura corporal, no caso o livro

analisado. O processo pedagógico nesta perspectiva propiciará o encontro do caminho

para a libertação, para a salvação de quem até então se encontrava em estado de

dependência - os professores comuns e os escolares pertencentes à classe

trabalhadora. Esta libertação assume uma dimensão político-social, haja vista que tem

como objetivo final da cultura corporal potencializar um quadro de mudança e

transformação das subjetividades em relação à dinâmica social.

Em Lovisolo (1990), podemos identificar que todo este processo de conversão é

notadamente iluminista, pois preconiza que a mesma se efetivará quando houver a

efetivação de uma nova noção e compreensão de um quadro político-social, uma nova

compreensão do processo histórico. Haverá uma iluminação que permitirá ao homem

comum ser encaminhado para um grau superior de cidadania. Esse processo efetiva-

se a partir da apropriação dos métodos científicos, dos valores normativos que balizam

o entendimento e ações no mundo. Contudo, o paradoxo se instala: a cultura local é

abandonada ou reinterpretada? Caso seja reinterpretada, onde localizaremos a

originalidade do saber local?

Page 32: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

32

O Coletivo de Autores, utiliza uma lógica normativa e generalizante, sempre a partir

da orientação ideológica assumida explicitamente - o marxismo - como uma teoria

superior para interpretar a realidade. Nessa perspectiva, o marxismo como teoria

sociológica desaparece, para ceder lugar aos ideais e aos valores normativos de uma

utopia ou de uma teleologia também presentes em um Marx militante político. Isto faz com

que se torne difícil entender onde haverá espaço para a dialética na cultura corporal.

Como ser dialético quando a compreensão, a análise e a intervenção baseada nos

valores normativos são definidas aprioristicamente? Como ser dialético onde o ideal é

somente o que é visto a partir de sua própria orientação política? Como dar trato dialético

ao conhecimento, onde já existe uma interpretação definida da realidade social e da

direção que esta deve tomar?

Sobre isto Ghiraldelli Junior (1996) diz que “os socialistas precisam, novamente,

aprender a debater sem achar que conhecem o futuro, porque não conhecem, pois

ninguém conhece” (p.186). É preciso restaurar, ou criar este hábito no campo da

educação física, para que os que participem em encontros e eventos acadêmicos ou

envolvidos na labuta do cotidiano façam do diálogo o mecanismo de avanço para a

área.

Em uma das passagens do livro, num ensaio totalizante, o Coletivo de Autores

utiliza como argumento para justificar suas propostas e suas críticas, determinados

sentidos e valores que afirmam terem alunos e professores sobre o esporte:

...para o aluno, o que ele deve fazer para jogar - como driblar, correr, passar e fintar - é apenas um meio para atingir algo para si mesmo, como por exemplo: prazer, auto estima etc. O seu sentido pessoal do jogo tem relação com a realidade de sua própria vida, com suas motivações.[...} o professor vê no basquete um evento, mais do que lúdico, de luta entre equipes, das quais, uma será naturalmente a ganhadora.[...] Por esse motivo, para o professor, driblar, correr, passar, fintar etc. devem ser executados sem erros. (p.62).

Estas passagens, indicam o vínculo entre política e educação que pode ser

identificado no livro. Aqui o Coletivo de Autores tenta, de alguma forma, a partir de tipos

ideais, estabelecer ligações entre o cenário da política capitalista, que se repete na

ação do professor, e uma pratica alienada em consonância com os ideais capitalistas.

Page 33: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

33

A cultura corporal afirma-se como uma pedagogia que, mais do que lidar com os

aspectos técnicos específicos da educação física, tem a preocupação de estar

formando os educandos para que estes possam intervir na modificação da organização

político-econômica da sociedade brasileira. Para isso, esta teoria busca tratar o

conhecimento de forma que esse possa

... ser retraçado desde sua origem ou gênese, a fim de possibilitar ao aluno a visão de historicidade, permitindo-lhe compreender-se enquanto sujeito histórico, capaz de interferir nos rumos de sua vida privada e da atividade social sistematizada.” (p.40).

Esta perspectiva da cultura corporal - de preparar o educando para um futuro,

para um mundo que se pretende novo através da educação - mostra-nos “...o desejo

de arrancar das mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo”

(Arendt,1997:17) já que o novo será demonstrado e instalado por quem detém o

controle do processo educacional e não pelo próprio aluno.

Sobre esta relação de enfrentamento entre passado e futuro, Nóvoa (1999), diz

que “fala-se muito em preparar para a vida. Os educadores transmitem uma visão de

futuro luminosa, mas esquecem as sombras do presente, e isto reflete uma

incapacidade de enfrentar os problemas de hoje...” Isto denota que este vácuo

existente cria um quadro de não atribuir sentido ao momento vivido, não refletir uma

realidade, que é o tempo real do aluno dentro da escola.

Outro desdobramento é a forma como o Coletivo de Autores lida com a questão

dos valores da cultura popular e da normatização científica dentro de sua proposta

pedagógica. Sob o rótulo do marxismo, pode-se identificar nessa postura um forte viés

cientificista e positivista, quando se acredita que a intervenção no sentido da

transformação social deve ser realizada a partir da ciência.

Existe um constante apelo para um respeito aos diversos valores da classe

trabalhadora, num contexto de relativismo a diferentes culturas, o que é uma

característica típica do romantismo. Por outro lado aplica-se a razão iluminista quando

se usa da universalização dos ideais de alta civilização e consciência crítica para fazer

uma defesa do que é ou não bom, correto e aceitável em sua teleologia para a futura

sociedade.

Page 34: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

34

O que está sob o discurso de construção de uma “democracia” através da

valorização do popular, que se ajusta ao romantismo, pode ser na verdade um

mascaramento de uma posição que na verdade pretende a imposição, por

“comprometidos”, de valores tidos como ideais que mais se assemelham ao ideal

iluminista. Isto se observa quando o Coletivo de Autores, citando uma palestra

proferida por Marilena Chauí, elege quatro elementos chaves como sendo a base de

ação da cultura corporal em sua politização, a saber: desestabilizar, estruturar,

convencer e consolidar. Sobre isto diz o Coletivo de Autores, que

Na educação, esses momentos são historicamente vividos e dão movimento às

lutas pelas transformações educacionais.

Na escola, esse movimento orienta o horizonte dos educadores comprometidos

com a democracia deste país.

Na educação física, esse movimento se expressa na vontade política de

construção de uma teoria geral da educação física que consubstancie uma

prática transformadora.

Neste livro ambos são contemplados. (p.43)

Os autores estabelecem uma relação de dependência entre a pedagogia e a

política, devendo estar a primeira a serviço da Segunda como forma de poder alcançar

os ideais desejados por estes, que crêem, são os necessários para se alcançar uma

sociedade melhor.

No sentido de reiterar algumas das idéias discutidas ao longo desta seção,

mesmo correndo o risco de ser repetitivo gostaria de reforçar alguns pontos relevantes.

Quando se busca no Coletivo de Autores trabalhar a participação dos

educandos na proposta pedagógica, vê-se de novo a existência de contradições na

forma de entendimento como esta se dá. É dito, de início, que a classe trabalhadora

esteve sempre a expressar seus interesses e desejos através de um movimento que

representaria uma luta entre classes, onde a classe dominante tinha o interesse de

manter o poder e a classe dominada de tomar o poder. É a leitura de uma população

madura, conseqüente, responsável e resistente, capaz de dirigir seus próprios

caminhos, o que representa uma concepção fundamentalmente iluminista. Todavia, a

Page 35: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

35

partir do momento em que são apresentadas as proposições de uma nova pedagogia,

a sociedade passa a ser vista pelo Coletivo de Autores como conformista, pois entende

que somente a partir desta nova concepção de educação é que estaremos lutando a

favor de uma sociedade mais justa e igualitária. Afirma o Coletivo de Autores que é

através da cultura corporal que os alunos serão levados a um nível de conhecimento

elevado e crítico, e que, por outro lado, a concepção negada, a aptidão física, não

permite ao educando alcançar o nível de compreensão necessária.

Lovisolo (1990), mostra que quando se vislumbra uma integração positiva entre

a ação pedagógica e a formação política, entendendo que essa conjunção por si só da

conta de uma modificação de estados de consciência, ocorre também uma conciliação

entre uma posição romântica, vista na formação política, e uma iluminista, na lógica da

ação pedagógica. Talvez esta seja a principal das conciliações, justo que é a partir daí

que se constrói a lógica desta obra.

Observemos o paradoxo neste tipo de conciliação. O iluminismo pensa a

educação como uma aprendizagem que leva ao caminho de um distanciamento,

entendendo que a cultura de um povo é sempre um estágio no processo civilizatório,

que tem um caráter universalista; em contrapartida, o romantismo é pensado a partir de

um pertencimento, da valorização de uma cultura que é local, especifica e original a

cada nação. Como pode ser visto, romantismo e iluminismo funcionam numa oposição

polar, ou seja, estão em pólos opostos e bastante distantes no que se refere ao

pensamento sobre educação.

Este sentido de pertencimento e distanciamento permeia toda a obra, onde

distanciamento vem simbolizar a mudança do estado de consciência da população,

alterando suas formas de compreensão da realidade, numa ação de desencantamento

(Idem, p.28). Pertencimento, vem significar que isto deva acontecer sem que se

abandone tradições e raízes próprias, numa defesa da cultura popular, mas buscado-

se uma reinterpretação da mesma.

A construção e o reforço desta conjugação contínua de proposições que levem

ao pertencimento e ao mesmo tempo proposições que se dirigem ao distanciamento,

situa-se num contexto entre um populismo que pretende defender interesses da classe

Page 36: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

36

popular e um vanguardismo que pretende a construção de uma nova sociedade, a

partir do domínio da razão.

Dentro desta relação entre política e educação, vislumbra-se uma série de

contradições nas quais acaba por cair o Coletivo de Autores, onde a maior delas talvez

seja a perspectiva normatizadora e totalitária, que é criticada quando vista na aptidão

física, mas bem aceita pela cultura corporal.

3.2- A METODOLOGIA DE ENSINO E A AVALIAÇÃO.

A apresentação de uma proposta didático-metodológica é a grande pretensão do

Coletivo de Autores, quando pensa em tratar de “aspectos específicos de um programa

de educação física para o ensino fundamental e médio” (p.19). Ainda é dito que a

cultura corporal vem “responder à inquietação do professor quanto ao conhecimento a

ser tratado, à sua distribuição nas diferentes séries e aos procedimentos para ensiná-

lo”(p.61).

Com a análise do que se identifica como sendo a metodologia de ensino em si,

pode-se observar que a cultura corporal tem a característica de ser ampla e ainda de

trazer exigências de conhecimento que remontam à formação profissional, e fazem com

que esta seja revista e repensada, apontando aí uma perspectiva que tenta pensar

também as graduações a partir do referencial da cultura corporal.

É dito que o livro foi escrito “...pensando no professor de educação física que

encontramos, em várias oportunidades, nas reuniões das escolas, nas associações,

nos cursos de aperfeiçoamento e formação, nos congressos.” (p.17). Entretanto, como

possui uma orientação metodológica baseada no marxismo, é possível acreditar que o

livro não se coloca aberto a quem pense em outra perspectiva ou mesmo que não

possua domínio sobre a lógica marxista. Isto traria limites a sua pretensão, pois nem

todos os professores são marxistas nem vêem no marxismo a saída para os problemas

da educação física. Contudo, a perspectiva metodológica ou os discursos da cultura

corporal podem ter sido reapropriados pelos professores a partir do que julgam

significativo para seu exercício profissional, independente da perspectiva marxista

anunciada pelos autores.

Page 37: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

37

Existe no livro uma intenção de não ser “um mero receituário de atividades, uma

lista de novos exercícios e de novos jogos” (p.17), ou seja, de não querer se tornar um

manual didático. Isto ocasiona o dilema de pretender agir na mudança das ações

cotidianas do professor no espaço escolar sem dar receitas do como fazê-lo. Dar

mostras do como fazer, estabelecer um manual didático, não seria, ao nosso ver,

nenhum problema. Ao contrário, apenas estaria o Coletivo de Autores coerente com

seus objetivos de contribuir para mudar a ação profissional do professor na escola.

Um dos problemas observados na obra, como já escrito, é que o Coletivo de

Autores assume a perspectiva marxista como uma doutrina, o que contribui para fazer

do livro e da própria cultura corporal, um receituário ideológico. Porém, o Coletivo de

Autores também não assume este papel. Assim, não se assume como uma coisa nem

outra, não é manual didático-metodológico e também não é manual político. Isto sem

dúvida contribui para as dificuldades de compreensão e aceitação da obra pelos

professores comuns espalhados pelas escolas brasileiras.

Outro grande problema identificado na cultura corporal, está na compreensão da

ação do profissional de educação física que atua na escola. O Coletivo de Autores fala

de um professor que deve pensar a educação física como campo de conhecimento, de

estudos e de trabalho. Existe a pretensão de se ter um professor que possa dominar

conhecimentos como história, biomecânica, técnica desportiva e ainda ser capaz de

estabelecer uma relação que deve ser dialética, com a cultura de cada grupo social

com o qual se trabalha, onde a

...metodologia aqui é entendida como uma das formas de apreensão do conhecimento específico da educação física, tratado a partir de uma visão de totalidade, onde sempre está presente o singular de cada tema da cultura corporal e o geral que é a expressão corporal como linguagem social e historicamente construída. (p.19)

Ora, podemos perceber que esta é uma expectativa bastante ousada e que

requer uma formação profissional que ainda não sabemos se a educação física é

capaz de dar conta, onde o professor tem de dominar uma série de conhecimentos

específicos e gerais, ser capaz de fazer uma análise da sociedade local e poder

estabelecer relações das atividades corporais com a totalidade social (economia,

cultura, religião, etc). Assim, ou a pretensão do Coletivo de Autores é ousada demais

ou apenas espera análises e explicações da realidade através de aforismos e jargões

Page 38: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

38

políticos vinculados à militância de esquerda.

A metodologia pretendida pelo Coletivo de Autores, situa-se próximo de uma

repetição das condições da graduação dentro da escola, pois o professor tem de poder

lidar com questões específicas do conteúdo com que atua no momento, dentro de uma

ação investigativa. Em tom de reflexão, podemos dizer que um aluno que esteja

envolvido com a cultura corporal teria uma formação bastante próxima a uma

graduação em educação física, na medida em que a proposta da cultura corporal prevê

que o professor deve administrar em pequenas doses o conteúdo de sua formação

acadêmica. Em outras palavras, o professor deve socializar com seus alunos os

conhecimentos adquiridos em sua formação profissional quase que da mesma forma

que os apreendeu. Nessa perspectiva, o professor deixa de ser um mediador para

tornar-se um reprodutor de sua formação em pequena escala12.

Na concepção do Coletivo de Autores, o professor deve ter condições de

analisar e interpretar o fenômeno do esporte, da dança, dos jogos etc, a partir das

diferentes lentes disciplinares (biomecânica, fisiologia, história, filosofia) e ainda

socializar esses conhecimentos no espaço de aula com seus alunos. A pretensão

parece desmedida, na medida em que a universidade não consegue em cursos dessa

natureza realizar boas análises multidisciplinares e interdisciplinares. Mas o Coletivo de

Autores transfere com tranqüilidade essa tarefa para os professores que estão atuando

no ensino fundamental.

Pensando sobre a atuação do profissional de educação física, Lovisolo (1995),

nos diz que este “... se nos aparece muito próximo da figura do bricoleur, de Lévi-

Strauss...” ou seja “... é formado, fundamentalmente, para combinar conhecimentos,

técnicas e metodologias...”(p.20). Lovisolo ainda alerta para a necessidade de não

confundirmos os papéis que um profissional pode assumir, quais sejam: o de cientista

quando produz conhecimento e o de bricoleur, ou interventor, quando elabora

programas.

É justamente este tipo de confusão, que acreditamos aconteça no Coletivo de

Autores, que pensa o professor com uma função dupla, e por isto mesmo é

12

Como já visto na seção 1.1.

Page 39: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

39

extremamente difícil de ser executada, que é ser um pesquisador, que milite nas mais

variadas áreas de saber e ao mesmo tempo ser um interventor, que deve transportar

para sua prática docente este cabedal de conhecimentos. O professor, na perspectiva

da cultura corporal, deve pautar sua intervenção pelas regras da ação científica e, ao

mesmo tempo, levar em conta, no processo de intervenção, a cultura e os valores

locais. Assim, a vertente iluminista aparece mais uma vez em conciliação com o

romantismo.

Tendo em conta as pretensões do Coletivo de Autores, no que se refere a ação

docente, somos obrigados a pensar no tipo de formação que deveria ter este

profissional e a que temos hoje. Apoiado no estudo de Muniz (1996), pode-se dizer que

hoje ainda existe uma distância real entre as propostas pedagógicas e vida diária do

profissional que está na escola, já que estas pouco tem chegado ou estado ao alcance

do debate dos que lá estão. Assim, segundo Lovisolo (1995) “a eficácia tampouco

existe quando a valorização é meramente discursiva e não se concretiza na prática...”

(p.12) Ou seja enquanto estas propostas não derem conta de uma realidade e não

estiverem ao alcance de quem está atuando na escola, seu sucesso será meramente

discursivo.

Outro ponto de discussão é o próprio sentido atribuído à cultura corporal e seus

modelos de exemplificação.

Quando busca apontar exemplos do que seja o significado maior da obra em

estudo - a construção de uma proposta pedagógica, o Coletivo de Autores fala que a

educação física dentro da escola deve buscar dar trato pedagógico a uma série de

atividades que compõe o “...acervo de formas de representação do mundo [...]

exteriorizadas pela expressão corporal: jogos, danças, lutas, exercícios ginásticos,

esporte, malabarismo, contorcionismo, mímica e outros” (p.38). Percebe-se a clara

tentativa de criar uma proximidade com o popular, tendo em vista que as atividades

selecionadas/indicadas são as atividades que se dão nos vários ambientes sociais,

com diferentes formas de apropriação e expressão. Por outro lado quando aponta

exemplos daquilo que pretende construir, o Coletivo de Autores acaba por indicar as

atividades que já são características e típicas do leque de conteúdos da educação

física desde muito, dentre as quais podemos destacar os jogos populares, atletismo,

Page 40: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

40

futebol, voleibol, basquetebol, capoeira, ginástica, dança. Ou seja, daquilo que

denomina cultura corporal, o Coletivo de Autores utiliza como atividades as que já são

tradicionais na esfera da educação física escolar.

Em nenhum momento, mesmo quando da exemplificação dos conteúdos, o

Coletivo de Autores consegue apresentar modelos que sejam realmente inovadores em

educação física. O que acaba por fazer é sugerir algo por demais amplo e portanto de

difícil compreensão, propondo para as aulas, em menor escala, uma repetição das

condições tradicionais dos currículos de formação de professores. O Coletivo de

Autores tenta partir de um conhecimento já acumulado para atingir um modelo ideal de

superação, mas acaba por criar uma proposta didático-pedagógica que pouco avança

em termos reais em relação ao que já é tradicional. Perde a oportunidade de

transformar em programas de ensino o conhecimento adquirido pelo professor, com

coerência, competência, de forma efetivamente interdisciplinar para o ensino formal.

Consideremos aqui, que a pretensão do Coletivo de Autores não é modesta.

Mesmo não existindo estudos que consigam dar conta da totalidade dos

fenômenos sociais atribuídos à cultura corporal (jogos, esporte, mímica, malabarismo,

dança e outros), o Coletivo de Autores reivindica que os professores não apenas

entendam estes fenômenos em sua totalidade, mas também a partir de diversos

campos disciplinares. Deve-se ter em conta o fato de não termos consolidada no

espaço de nossa formação profissional uma massa crítica dos temas indicados como

típicos da cultura corporal. Além disto, ainda temos pouca divulgação das produções

científicas junto aos professores.

O que é possível identificar no Coletivo de Autores é que cultura corporal ao

mesmo tempo é tudo e não é nada; ela pode estar representando um elenco de coisas

novas e ao mesmo tempo uma série de coisas velhas; ela dá significado por força de

jargão ao possível tratamento pedagógico que devem receber os conteúdos, mas não

indica concretamente como deve ser dado esse tratamento. Sua compreensão é

múltipla e diferenciada, é um conceito vazio e sem exigência de rigor, indicando mais

do que qualquer coisa uma ideologização do entendimento do papel e da forma de

ação da educação física no cenário escolar.

Page 41: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

41

Seus autores acreditam e postulam uma interdependência entre educação e

política. Isto vai ter maior representatividade na metodologia proposta na obra, onde é

dito que o conteúdo deva ter uma

...compreensão [que] deve instigar o aluno a assumir a postura de produtor de outras atividades corporais que, no decorrer da história, poderão ser institucionalizadas.”, e que“...o conhecimento é tratado de forma a [...] possibilitar ao aluno a visão de historicidade, permitindo-lhe compreender-se enquanto sujeito histórico, capaz de interferir nos rumos de sua vida privada e da atividade social sistematizada. (p.40).

Existe neste movimento de pedagogização da política e politização da

pedagogia, uma ação de conciliação entre a política e a pedagogia, o que pode ser

entendido como uma incoerência em relação ao objetivo de levar a classe popular ao

modernismo, tendo em vista que o modernismo tem como referência entender estes

dois fenômenos como sendo autônomos (Lovisolo, 1990). Mas a intenção da cultura

corporal é ainda mais pretensiosa, quando na citação anterior os autores pretendem

que os alunos tornem-se produtores de outras atividades corporais. Parece que já seria

suficiente se a escola conseguisse socializar os conhecimentos e atividades a que se

propõe hoje; seria bom que a escola conseguisse trabalhar com os alunos o estágio de

conhecimentos que atingimos hoje, para que o futuro adulto tenha instrumentos para

pensar, sentir, admirar e interferir, na medida do possível, nesse já complexo mundo.

Segundo Lovisolo (1990), esta mesma conciliação faz com que se perceba no

Coletivo de Autores uma pretensa

...capacidade [...] de, num mesmo movimento ideológico, auto-atribuir-se eficiência na consecução dos objetivos [...] de gerar consciência crítica, vontade e saber de libertação. Tudo se passa como se o “técnico”, o “pedagógico” e o “político” tivessem sido integrados numa mesma equação...(p.13).

O que se identifica nesta relação da metodologia de ensino com a matriz

ideológica é que se cria uma relação em que a primeira esteja a serviço da segunda,

acabando, assim, por ser funcional e utilitarista.

Page 42: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

42

3.3- A PERSPECTIVA DE USO DA HISTÓRIA NO COLETIVO DE AUTORES.

Na estruturação do Coletivo de Autores, a história funciona como eixo de análise

e justificativa da proposta didático-pedagógica. O peso desta, como fundamento para a

ação, pode ser medido pelo fato dos autores dedicarem um capítulo específico para a

história da educação física e por retomarem argumentos dessa natureza ao longo do

texto. O Coletivo de Autores, tem como marco principal fornecer elementos que

propiciem ao professor uma prática pedagógica que vislumbre a transformação social,

sendo que seu objetivo é: “...é oferecer aos professores de educação física um

referencial teórico capaz de orientar uma prática docente comprometida com o

processo de transformação social”. (p.49)

Para tanto, acreditam ser imprescindível que se faça uma análise sobre o

passado tanto da sociedade brasileira quanto da educação física, como forma de

referenciar as ações do presente que devem estar vinculadas a um projeto

revolucionário. Quer o Coletivo de Autores com isto, construir uma perspectiva que

rompa com o passado, considerado-o negativo, e moldar um futuro que será diferente e

mais evoluído. A teleologia do processo pedagógico não se limita aos objetivos

educacionais, mas sobretudo aos objetivos de transformação do modelo político-

econômico adotado por nossa sociedade. De fato, o passado e o presente no âmbito

da escola e da sociedade devem ser superados, pois para o Coletivo de Autores, “As

idéias iniciais, [...] no âmbito da educação física escolar serão aqui recuperados[as]

num esforço de síntese superadora.” (p.49). Podemos observar que a perspectiva

evolucionista da história está presente neste tipo de argumento. O sentido negativo é

conferido ao passado para justificar a intervenção no presente.

Essa concepção de história vem carregada de um alto caráter utilitário, por ser

referência para um projeto de intervenção. Nessa linha, pensam que, de forma ideal,

uma ação pedagógica superadora só se alcança quando se conhece o passado para

melhor atuar no presente e moldar o futuro. Ainda, o estudo do passado serve para

“desenvolve[r] argumentos científicos na perspectiva histórica, para levar o professor à

compreensão dos fundamentos que têm legitimado a educação física na escola

brasileira” (p.18-19).

Page 43: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

43

Coerente com o princípio básico ou motor da história no marxismo, o Coletivo de

Autores afirma que “nas sociedades de classe, como é o caso do Brasil, o movimento

social se caracteriza, fundamentalmente, pela luta entre as classes sociais a fim de

afirmarem seus interesses” (p.23). Tal argumento no escopo do texto funciona apenas

como uma profissão de fé no marxismo e no modelo socialista de sociedade, já que

boa parte das análises históricas apresentadas no texto, tanto sobre a sociedade

quanto sobre a educação física, não demonstram o papel da luta de classes nessas

esferas. Além disso, como se pode justificar ou explicar as mudanças de concepção

pedagógica na educação e na educação física pela luta de classes no Brasil? Que

papel teve a luta de classes na ampliação do ensino público na década de 30? No

fundo a idéia que está colocada é a de que “tudo tem haver com tudo” (parafraseando

o professor Vítor Marinho)13. Entretanto, tal perspectiva de totalidade apenas lança

mais escuridão do que esclarece as tramas sobre os processos históricos, ações ou

mentalidades em determinados contextos históricos, assim como a perspectiva de que

o modelo político-econômico condiciona de certa forma todas as instâncias sociais.

Na educação física isto se torna evidente quando observamos as periodizações

(políticas ou econômicas) externas ao objeto de estudo; um exemplo é uma obra de

Ghiraldelli Junior14, muito usada como referência para estudos históricos15. Ao se

adotar este tipo de concepção de história, torna-se difícil aceitar que determinadas

esferas sociais possam ter relativa autonomia ou dinâmicas próprias. A perspectiva

teleológica ou evolucionista do devenir histórico, bem como o uso da história como

motivo ou base para intervenção, demonstra o alto caráter utilitário com que os autores

pensam este campo disciplinar.

Sobre este tipo de compreensão da história, Popper (1961) vai propor a

denominação historicismo, por entender que isto acaba não sendo,

13

Título de um texto do livro Fundamentos pedagógicos: educação física, organizado por ele próprio, da editora Ao

Livro Técnico – Rio de Janeiro, 1982. 14

GHIRALDELLI JUNIOR, P. (1989). Educação física progressista: a pedagogia crítico-social dos conteúdos. São

Paulo: Loyola. 15

O próprio autor já teceu duras críticas ao modelo de construção adotado no livro em obras posteriores,

demonstrando o dogmatismo adotado e de sua fragilidade diante de uma leitura de avaliação da forma. Também

Lovisolo (1998) e Pagni(1995), tecem críticas à este modelo de análise histórica, tentando mostrar sua limitação e

seu estreito vínculo com um ativismo político. Ainda Lovisolo(op.cit) fala da falta de autonomia deste campo de

estudos, o que facilita o surgimento de uma história de identidade. Já Pagni(op.cit), fala ainda da necessidade dos

estudos em história da educação física assumirem um caráter mais limitado no tocante ao seu campo de análise, a

Page 44: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

44

...História no tradicional sentido de crônica de fatos históricos. A espécie de história a que os historicistas querem identificar a sociologia volta-se não apenas para trás, mas também para a frente, para o futuro: o estudo das forças atuantes e principalmente das leis de desenvolvimento social.” (p.37).

Ainda Popper (op.cit:), diz que

os historicistas, em maioria, tem marcada inclinação para o „ativismo‟...”[...]“...E isso nos permite saber exatamente qual a espécie de atividade admitida como razoável pelos historicistas: somente aquelas atividades que se ajustam às transformações próximas e as facilitam.[...] Cada ação e cada reflexão historicista objetivam o passado para ter como

predizer o futuro. (p.40-41)

Com estas palavras Popper está dialogando com as especificidades do

conhecer, além de estar denunciando a atitude pouco distanciada destes que nomeia

de historicistas. Popper poderia dizer que algumas construções científicas no campo

das ciências naturais ou biológicas podem explicar e predizer o desenvolvimento de

determinados fenômenos. Entretanto, para ele o campo da história ou das ciências

sociais só poderiam elaborar explicações científicas locais e pós fato. Isto é, a

generalização, a busca de leis nesse campo apenas representa a tradição cientificista

de não distinguir as especificidades entre o tipo de conhecimento gerado pelas ciências

sociais e pelo campo das ciências da natureza. Por outro lado, a predição de

fenômenos sociais ou do futuro da sociedade por cientistas sociais, em muito se

assemelha à atividade de místicos e esotéricos. O Coletivo de Autores, dentro de sua

intenção de elaborar uma pedagogia que gere uma transformação social, acaba por

fazer uso e valer-se de uma compreensão de história que é acima de tudo ideológica,

que deve representar sonhos e interesses de um grupo social, na sua luta para afirmar

o futuro inevitável da sociedade: o socialismo. A história, como campo disciplinar

desaparece para transformar-se num argumento de legitimação para suas pretensões

de transformação pela autoridade e pela força da “ciência histórica”.

Quando da leitura e análise do Movimento Social no Brasil, o Coletivo de

Autores diz que a luta de classes sempre foi o motor das ações e projetos de mudança

social, numa lógica que entende a história como um bloco único e que assim avança. O

livro tenta nos fazer crer que a economia é o eixo central, causa e efeito de todos os

acontecimentos e fatos sociais. Esta é uma tendência que repete a orientação marxista

fim de poderem ser mais representativos, ao contrário do que acontece no Coletivo de Autores.

Page 45: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

45

de querer tornar a história uma ciência semelhante ao modelo da física clássica, que

apresenta e trabalha com dados que são universais e constantes.

Todavia, Veyne (1982) fala “..que não pode haver uma ciência da história, pois

não é suficiente que haja determinismo para que uma ciência se torne

possível...”(p.139). Boudon (1990) também nos mostra que ...

As teorias da mudança social só podem pertencer ao gênero científico (no sentido popperiano) com uma condição: que os dados cuja explicação se procura constituam um conjunto bem definido. O que implica que tais teorias não podem ser senão locais e parciais. (p.288).

Veyne (1982), mostra que a análise histórica depende do entendimento do

contexto singular onde ocorrem os eventos, quando diz que

Sabe-se, entretanto, que não é assim, que o marxismo nunca previu, nem explicou...” e que na “...história, só existem explicações de circunstâncias.” além do que, “...a explicação histórica não segue caminhos já traçados de uma vez por todas... (p.138).

Veyne está dialogando contra a visão de uma explicação total e totalizante do

devir histórico, onde os eventos e os dados apenas confirmam, por cadeias causais, o

curso inevitável da história. Entretanto, devemos deixar claro que bons historiadores

marxistas, como por exemplo Hobsbawm e E. P. Thompson, não trabalham com este

tipo de causalidade e de inevitabilidade. A discussão colocada por Veyne está

relacionada a uma espécie de marxismo popular que esteve presente no campo da

história e, em nossa percepção, continua presente na pedagogia e nos movimentos de

esquerda em nosso país.

Boudon (1990) pode servir para mostrar que a importância dada à luta de

classes como o “motor da história” no Coletivo de Autores pode ser relativizada, pois

“não se pode dar aos conflitos de classe uma importância decisiva[...] é que mudanças

consideráveis podem produzir-se sem serem acompanhadas de conflito.”(p.271). O que

Boudon demonstra é que mudanças podem ocorrer sem conflito e que, assim, não

podemos tomar o modelo explicativo do conflito como a única possibilidade de

entendimento da transformação ou da mudança social.

Page 46: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

46

A luta de classes como o “motor da história”, é uma idealização teórica que

acaba simplificando as relações sociais, a criatividade humana e as diferentes

possibilidades e novos fatos que o presente apresenta a humanidade. Nesse caso

confunde-se o ativismo com o ofício do historiador (Hobsbawm,1998). O Coletivo de

Autores, de fato, confunde estes papéis pelo uso que faz da história.

Reiteramos estas perguntas noutro nível de detalhamento: Será a luta de

classes a única e verdadeira possibilidade de entendimento da transformação social?

Existirá uma regularidade nas mudanças sociais? A resposta a cada pergunta desta

não pode ser dada abstratamente. Cada problema ou questão colocada pelo

historiador deve ser respondida utilizando os recursos do estoque teórico que

possuímos. Os variados modelos de explicação - inclusive o da luta de classes - podem

ser ferramentas que auxiliem a explicar uma determinada questão. Entretanto, partir

apenas de um modelo explicativo, a priori, indica que a explicação já está dada

independentemente dos dados ou da questão que possuímos. Esta é uma atitude que

pode ser denominada de “verificacionista”, na medida em que os dados apenas são

colhidos para confirmar uma explicação prévia.

Dentro desta ótica de entendimento das relações e dinâmicas sociais, e como

não podem demonstrar a dinâmica de transformação da educação física pela luta de

classes, Coletivo de Autores propõe uma situação de oposição ou de conflito entre a

concepção da cultura corporal e da aptidão física. A cultura corporal é auto-identificada

com a lógica marxista, revolucionária e progressista e a aptidão física é identificada

com o conservadorismo, com a alienação e todas as demais mazelas identificadas

como subproduto do capitalismo. Assim, fortifica-se a concepção de que a cultura

corporal representa o futuro, o avanço e a transformação, enquanto a aptidão física

simboliza o passado - negativo – devendo-se lutar para superá-lo. Pode-se perguntar; a

sociedade quando é progressista ou revolucionária também tem uma escola

revolucionária ou progressista? Arendt (1997), nesse caso teria uma resposta negativa,

pois tomando como exemplo o modelo educacional americano mostra que existem

descompassos entre o que se adota em termos educacionais e o sistema político-

econômico vigente. Arendt afirma que enquanto em um pode estar prevalecendo o

ideal progressista, em outro pode estar instaurado um sistema tradicional ou vice-

versa. Daí decorre que a sincronia histórica pretendida pelo Coletivo de Autores - ou a

Page 47: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

47

crença que no estágio da “luta de classes” o proletariado brasileiro exige mudanças no

sistema educacional - apenas representa o ideal dos que se colocam como porta-vozes

das classes populares. O determinismo na leitura histórica do Coletivo de Autores é

evidente, e seja este qual for, pode não ser uma representação do real e sim a

configuração do desejo de um tipo de mundo, ou como diz Lovisolo (1998) “...a

narrativa histórica resultante pode ser apenas desejo do pensamento[...] e não história

vinculada à reconstrução ou resignificação de “fatos” ou “eventos” já tratados...” (p.57).

O Coletivo de Autores constrói e faz uso de um sentido de história que nos

permite dizer que se faz sim a construção de um mito, na verdade a construção de uma

história que quer ser negativa em relação ao passado, na pretensão de derrubar a

chamada aptidão física como modelo pedagógico e solidificar a cultura corporal; se faz

assim na verdade um abuso de caráter ideológico da história, ou seja o uso de uma

história de passado como forma de justificar uma identidade no presente, se constrói

uma história de identidade (Hobsbawm, 1997). A história de identidade serve para

agregar adeptos, como motivo de protesto, para fazer guerra etc., mas pouco serve

para explicar o “como” de uma determinada trama ou evento histórico.

A história de identidade como argumento de legitimação fica evidente quando os

componentes do Coletivo de Autores apresentam seus currículos, associando suas

vidas pessoais e acadêmicas com movimentos e lutas sociais que assumem o tom de

vanguarda, de esquerda. A história de vida também aparece como um argumento de

legitimação para a proposta de intervenção pedagógica apresentada pelo livro. A

missão do grupo no projeto do livro fica explícita quando afirmam que “...pensávamos

possuir a exata medida do desafio que estávamos por enfrentar. Ledo engano.[...]

Porém, desde aquela ocasião, sabíamos da relevância do projeto.” (p.09). O tom de

missão associado ao projeto e as trajetórias de vida podem ser indícios das confusões

e usos que fazem da história.

Quando tentam justificar seu entendimento sobre o que é aptidão física, os

autores acabam por usar os mesmos artifícios de generalização que usam na análise

da situação político-econômica brasileira. Para tal, valem-se dos textos legais que

normatizavam a educação física nacional, e em nenhum momento se perguntam se a

dinâmica interna das aulas de educação física na escola (com professores e alunos

Page 48: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

48

num plano real) funcionava da maneira prevista ou idealizada pelas normas

governamentais. Assim, sem dados empíricos que balizassem seus argumentos,

constróem um tipo ideal ou modelo da aptidão física que se confunde com os valores e

objetivos do modelo político-econômico para afirmarem o modelo idealizado, a cultura

corporal, como progressista e revolucionário. Vale lembrar Popper (1961), quando diz

que a “História se caracteriza por seu interesse pelos eventos reais, singulares ou

específicos e não pelas generalizações ou leis.” (p.112).

O uso da história como foco central do projeto pedagógico do Coletivo de

Autores se expressa quando dizem que:

É fundamental para essa perspectiva da prática pedagógica da educação física o desenvolvimento da noção de historicidade da cultura corporal. É preciso que o aluno entenda que [...] Todas essas atividades corporais foram construídas em determinadas épocas históricas, como respostas a determinados estímulos, desafios ou necessidades humanas.

O conteúdo de ensino, obviamente é configurado pelas atividades corporais institucionalizadas. No entanto, essa visão de historicidade tem um objetivo: a compreensão de que a produção humana é histórica, inesgotável e provisória.”(p.39-40)

Com isto, vemos que para o Coletivo de Autores a História é deveras importante

na consecução da pedagogia que preconizam, podendo ser entendido, no sentido

global, que é ela que vai dar motivação e significado as pretensões políticas de

transformação social. O uso da história nessa direção confunde-se com ativismo.

Denota-se daí que a história vem como uma simbolização e representação dos

interesses políticos manifestos ou não dos autores, sendo uma chave para a realização

e efetivação do que Lovisolo (1990) chama de politização da educação16.

Por fim, é possível analisar que no Coletivo de Autores a história é a forma de se

justificar o desejo maior que é a configuração de uma sociedade mais justa e

democrática. Entretanto, para o Coletivo de Autores a justiça social só pode ser

conseguida a partir do idealizado e da inevitável afirmação do modelo socialista. A

história, neste caso, serve para se ler o passado negativamente e projetar o futuro que

deverá ser positivo. No caso específico da educação física, a concepção da cultura

16

Lovisolo faz um estudo sobre o movimento de educação popular na América Latina e no Brasil, considerando que

a politização da educação é um de seus marcos, numa tentativa de conciliação. Isto acaba por se tornar um paradoxo

em relação ao seu desejo de levar o país à uma modernidade, já que esta pensa estas duas instâncias de forma

Page 49: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

49

corporal apresentada como transformadora e revolucionária, é um caminho que

anuncia esse devir. Lembremos o silogismo entre o todo e parte que fica latente na

concepção da obra em análise. Construções históricas desse tipo caem no que

Hobsbawm classificou de história de identidade. A história como campo disciplinar

nesse caso desaparece, para dar lugar ao ativismo político.

Assim, acreditamos que deveríamos começar a refletir sobre o uso da história na

educação física, para evitar, como diz Lovisolo (1998), que a história dita crítica acabe

por “Reproduz[ir], em espelho deformador, aquilo que pretende combater.” (p.57).

separada.

Page 50: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

50

4- CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Por fim, pode-se dizer que a obra estudada traz em sua constituição discursiva

vários marcos que nos permitem falar da existência do que estamos chamando de

conciliação do inconciliável, a exemplo de Lovisolo (1990). Como conclusões prévias,

estes dados podem ser considerados como limitantes para o que a obra se propõe, que

é pensar um modelo de intervenção, pois traz o sentido de uma incoerência interna.

É interessante poder ver que na sua essência, a obra Metodologia do Ensino da

Educação Física estrutura-se a partir de uma tentativa do estamos chamando de

conciliação do inconciliável, pois tenta usar como argumentos de construção duas

interpretações distintas da realidade, que rumam em direções opostas: o romantismo e

o iluminismo. Os integrantes do Coletivo de Autores tentam, a todo momento, fazer

com que estes referenciais de análise possam servir de subsídios à proposição

pedagógica que apresentam, sempre tendo como base uma leitura de mundo que a

todo momento tentam justificar como a que permite uma compreensão mais justa e

ideal. Utilizam-se da tendência de fazer uso de um discurso normatizador e de caráter

monista, pois acreditam que o uso de jargões e palavras de ordem valem como

justificativas de sua opção, principalmente quando estabelecem críticas ao modelo por

eles denominado de aptidão física, não havendo uma demonstração dos alvos de suas

críticas. Acompanhando o ideal do romantismo, associam-se o populismo, o

pertencimento e a tolerância; já seguindo o iluminismo, vêm o vanguardismo, o

distanciamento e a intolerância. Todas estas características formam a base de toda a

elaboração do livro, que traz como marca a tentativa de ser um caminho no sentido de

levar o país à modernidade. Cunham como marca principal da obra o termo cultura

corporal, como sendo o entendimento e a construção básicas que garantem seu valor e

sentido; todavia, a pretensão de ter esta noção de cultura corporal como valor ideal,

que justifica a proposição da obra, acaba por cair na armadilha que é o fato de que este

termo significa tudo e não significa nada.

Por fim, podemos afirmar que esta é uma obra tipicamente romântico-iluminista,

que se pauta numa confusa relação entre valores e ideais que são destoantes.

Page 51: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

51

5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, H. (1997) Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva.

BOUDON, R. (1990) O lugar da desordem. Lisboa: Gradiva.

COLETIVO DE AUTORES. (1992) Metodologia do ensino da Educação Física. São

Paulo: Cortez.

GHIRALDELLI JUNIOR, P. (1996) Educação e razão histórica. São Paulo: Cortez.

HOBSBAWM, E. Introdução: A invenção das tradições. In: Hobsbawn, E. & Ranger, T.

(1997) A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra.

_____________.(1998) Sobre história. São Paulo. Cia das Letras.

GÓIS JUNIOR, E. (2000) Os higienistas e a educação física: uma história de ideais.

Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: UGF.

LOVISOLO, H. (1990) Educação Popular: maioridade e conciliação. Salvador: UFBa.

Empresa Gráfica da Bahia.

____________. (1995) Educação Física a arte da mediação. Rio de Janeiro: Sprint.

____________. (1997) Estética, esporte e educação física. Rio de Janeiro: Sprint.

____________. (1998) História oficial e história crítica: pela autonomia do campo. In: VI

Encontro Brasileiro de História do Esporte, Lazer e Educação Física Rio de Janeiro.

Coletânea.

MUNIZ, N. (1996) Influências do pensamento pedagógico renovador da educação

física: sonho ou realidade? Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: UGF.

NICOLACI-DA-COSTA, A. (1997) Sujeito e cotidiano - um estudo da dimensão

psicológica do social. Rio de Janeiro: Campus.

NÓVOA, A. (1999) A escola erra ao preparar para o futuro. [online]Disponível na

Internet

POPPER, K. (1961) A miséria do historicismo. São Paulo: Cultrix.

RESENDE, H. (1992) A educação física na perspectiva da “cultura corporal”: uma

proposição didático-pedagógica. Tese de Livre-Docência. Rio de Janeiro: UGF.

VEYNE, P. (1982) Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Brasília:

Editora UnB.

Page 52: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

52

OS OBSTÁCULOS VERBAIS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO FÍSICA

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS.

A educação física, por tradição, sempre buscou identificar e definir

conceitualmente as diferentes modalidades de intervenção que seu campo profissional

abarca. É constante a luta que trava por argumentos que lhe fundamentem cientifica

e/ou pedagogicamente, seja do ponto de vista acadêmico, profissional ou educacional.

Nela, a busca por legitimidade e status dá origem a toda uma produção de narrativas.

O intenso debate acerca da legitimidade social da educação física e do prestígio

de seus profissionais motivou, e ainda continua a motivar, boa parte das conversas e

textos produzidos no interior deste campo profissional. Podemos destacar dois eixos na

produção das narrativas: a) a luta interna que busca angariar status e a legitimidade da

educação física elevando-a ou transformando-a em disciplina científica. Nesse

processo a busca de analogias e comparações com as demais áreas de conhecimento

torna-se quase uma obsessão. b) o problema do auto-conceito negativo do professor

de educação física pode ser visualizado a partir das análises que indicam que a

formação, além de deficitária, ainda carece de entendimento acerca da “...sublimidade

e imprescindibilidade de sua profissão...” (Dantas, 1987. p.40). Dantas ainda indica que

esta imagem negativa da profissão pode ser observada numa “declaração como a que

fez Woody Allen, parodiando Bernard Shaw: “quem sabe faz; quem não sabe ensina. E

quem não sabe ensinar, ensina Educação Física.” (p.35)

A partir deste sentimento, foram postulados e formulados diversos

encaminhamentos para a ação profissional e acadêmica da educação física em sua

atuação dentro e fora da escola, que tentam justificar a “sublimidade e

imprescindibilidade” da profissão, no sentido dado por Dantas. Estas formulações

tornaram-se indicativos orientadores, vertentes possíveis de um agir pedagógico ou

científico que pudesse contribuir para a mudança deste quadro de desprestígio no

interior deste campo de atuação.

Page 53: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

53

Na particular discussão do campo da história da educação, a dinâmica da

educação física e suas diversas orientações de intervenção historicamente

estabelecidas passaram a ser analisadas em correspondência com tendências da

educação brasileira. A educação física, independente da área de intervenção e dos

atores sociais, passou a ser pensada juntamente com a esfera da educação formal.

Cabe aduzir que tais tendências formuladas no campo da educação ou no campo da

educação física sempre, buscaram sincronia com as periodizações da história política

brasileira. Sobre isto, Melo (1999) diz que “A periodização continua a se submeter a

especificidades exteriores ao objeto...” (p.39).

Estas diversas orientações se agrupam no que se convencionou chamar de

tendências pedagógicas da educação física. Cada uma destas tendências é formulada

tendo em conta a noção de mundo que pensa a realidade de forma totalizante e

coerente. Assim, o papel social da educação física, a atuação do professor e a política

governamental sempre no passado sempre agiram em perfeita sincronia com a

ideologia dominante. Tal coerência pode ser atestada quando se pensa que a

organização político-pedagógica da cada tendência esteve em sintonia com a ideologia

dominante na época. Contudo, para fazer sentido, esta noção de história unívoca e

totalizante que se pretende revolucionária, tem que dar voz à mudança, buscando no

mar desta alienação os processos de resistência. Em outras palavras, é preciso

descobrir o germe da contradição que cada modelo político-econômico traz como

elemento de sua autodestruição. Por esta razão as análises tomam a negatividade do

passado como elemento de aprendizagem num presente que se anunciará melhor,

belo, justo e democrático. Tal fato é, segundo Melo (1999)

agravado por uma compreensão que parte do presente com hipóteses traçadas já basicamente confirmadas, o que faz forjar no passado os elementos necessários para provar a hipótese inicial... (p.39).

Neste sentido, a idéia de crise torna-se fundamental para que seja anunciada a

possibilidade de mudança. Sobre o surgimento de diversas tendências, Ghiraldelli

Junior (1988), afirma que

A educação física está em ebulição. Desde o início dos anos 80, qualquer observador da área pode constatar que em vários estados do país pululam núcleos empenhados na rediscussão de temas que vão desde a redefinição do papel da educação física na sociedade brasileira até questões ligadas às mudanças necessárias ao nível da prática efetiva nas quadras, ginásios e

Page 54: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

54

campos.(p.15)

As tendências pedagógicas na área da educação física, tem servido como

formas de entendimento acerca do papel e da forma de ação desta disciplina na

escola, buscando fornecer elementos orientadores, ou mesmo exemplificadores, do

fazer pedagógico do professor que deve ser generalizado para qualquer tipo de

intervenção. Uma discussão tensa no campo da educação física pode ser localizada

entre dois grandes grupos: 1) aqueles que advogam a unidade, isto é, o profissional de

educação física é um educador independente do campo de intervenção; 2) aqueles que

pensam a profissão a partir dos diferentes tipos de intervenção. Assim, ser profissional

de educação física fora do ambiente escolar, da educação de crianças e jovens pode

se assemelhar a qualquer profissão liberal: advogados, médicos, enfermeiros etc. O

lugar do educador para este grupo limita-se ao ensino formal de crianças e jovens. Este

grupo advoga que a formação universitária deve garantir o atendimento das demandas

diferenciadas que estão sendo impostas pelo mercado para o profissional de educação

física. Observe-se que o debate torna-se complexo quando existem propostas advindas

do campo das instituições esportivas que pensam que as faculdades de educação

física não estão atendendo as necessidades do esporte de rendimento. Nesse sentido,

Bracht (1999) identifica que já é feita uma pressão, onde

Os dirigentes esportivos, cada vez mais claramente, reivindicam uma formação universitária específica para os profissionais do campo esportivo, argumentando inclusive que as atuais faculdades de EF não suprem as suas necessidades... (p.26)

Contudo, o discurso da crítica sobre os diversos campos de atuação profissional

nasce do interior do debate pedagógico da educação física por aqueles que pensam a

unidade da profissão a partir da esfera da educação e da pedagogia. Assim, todo o

passado da educação física é pensado a partir da lógica do discurso pedagógico.

Podemos entender esse processo na medida em que a escola foi pensada no passado

recente como o núcleo principal de difusão da cultura e do conhecimento.

Apesar da aparente fragmentação e diferenciação dos objetivos sociais dos

diferentes tipos de intervenção no campo da educação que se vem processando desde

o final dos anos de 1970, o discurso pedagógico no início dos anos 80 elaborou críticas

pensando o campo como unitário. Os diferentes tipos de intervenção profissional foram

pensados a partir dos modelos didáticos-pedagógicos da educação física escolar.

Page 55: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

55

Neste sentido podemos visualizar a construção de uma massa crítica que caminha

naquilo que Resende (1992) denominou como Pensamento Pedagógico Renovador da

Educação Física Brasileira (PPREFB). Tal movimento, segundo Costa (1998), é

resultante do “...surgimento de reflexões, críticas, proposições conceituais e de

intervenção pedagógica em relação ao discurso e à prática da educação física

hegemonicamente instituídos.” (p.08)

Muniz (1996), categorizou estas várias tendências pedagógicas vislumbradas

hoje no seio da educação física. Segundo seu tipo de formulação, estas podem ser “...

(a) a da denúncia; (b) a da proposição de princípios conceituais; e (c) a da proposição

de fundamentos de intervenção didático-pedagógica”. (p.25-26). Cabe ressaltar que o

momento „b e c‟ sempre tomaram a educação formal como o lugar central para

consecução de suas propostas revolucionárias. Contudo, é a partir deste suposto

modelo ideal ou revolucionário da educação física escolar que as demais instancias de

atuação profissional devem ser pensadas. Em outras palavras pode-se afirmar que a

pedagogia histórico-crítica deve orientar o perfil do profissional de educação física,

independente da sua especificidade de atuação profissional. Seria a pedagogia ou o

discurso pedagógico que garantiria a unidade do nosso campo.

Observa-se que cada uma das contribuições, a partir do discurso pedagógico da

educação física, normalmente tem sido caracterizadas pela proposição de uma nova

terminologia ou nome que demarque uma identidade positiva e traduza novos valores

políticos, científicos e/ou pedagógicos para o campo. A lógica parece funcionar da

seguinte maneira: a da introdução de um novo nome ou marca deve indicar uma

suposta diferença em relação à tradição do campo. Cada texto-proposta de educação

física parece apresentar essa característica.

Os nomes propostos como marca da posição pedagógica e ideológica dos

autores e/ou da proposta de educação física sofrem processos de resignificação no

interior do campo. Os leitores e professores ao apropriarem-se do “novo nome” acabam

por torná-lo um símbolo que já não carece de entendimentos e descrições daquilo que

o termo deve indicar. Os nomes tornam-se, assim, pretensões ou palavras de força no

interior das próprias obras que pretendem romper em relação à tradicional educação

física.

Page 56: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

56

De tempos para cá diversos novos nomes foram cunhados e difundidos no

interior do campo. Costa (1998), coloca como exemplos, a educação física

revolucionária (MEDINA, 1986); progressista (GHIRALDELLI JUNIOR, 1988); histórico-crítica

(CASTELLANI FILHO, 1991); crítico-emancipatória (KUNZ, 1994); a estas, acrescentamos a

crítico-superadora ou cultura corporal (COLETIVO DE AUTORES, 1992).

O uso de novos “conceitos” ou novos nomes que tentam abarcar o universo das

atividades que fazem parte do rol de práticas corporais é vasto no cenário da educação

física. Podemos trazer como exemplo, segundo Castellani Filho (1998): cultura de

movimento (KUNZ, 1991); cultura física (BETTI, 1992); cultura corporal do movimento

(BRACHT, 1996 ). Além destes, temos ainda Manuel Sérgio (1991) com a Ciência da

Motricidade Humana; Tani (1996) com a Cinesiologia, e as Ciências do Esporte.

Observem que todos estes “nomes-conceitos” tentam estabelecer unidade no campo e

ruptura em relação à tradição.

Todas estas novas denominações pretendem possibilitar uma compreensão

acerca das atividades físicas que dêem conta de um entendimento que visa ser mais

amplo e diverso, indo além de uma noção de caráter técnico, tendo sempre a expectativa

de tentar ser um avanço naquilo que os autores apontam como sendo passível de

mudança. A partir deste amplo desejo de lutas nominalistas no interior do campo é que

vamos centrar a discussão nas próximas seções.

Page 57: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

57

2. A LUTA POR UM STATUS E UMA IDENTIDADE.

A educação física brasileira traz consigo uma característica constante que é a

idéia de crise, que circula em nosso meio fazendo com que pareça ser rotineira e

perene. Assim, seu desenvolvimento tem se dado por entre este eterno sentimento de

crise.

Neste trajeto dois aspectos sempre se fizeram presentes: a luta por status

acadêmico e a crise de identidade. Podemos dizer que um se dá motivado pelo outro,

ou seja, que a luta por status se motiva pela crise de identidade, e que a crise de

identidade se dá na luta por se alcançar um status. Ou seja, é a eterna luta por saber

quem veio primeiro, o ovo ou a galinha, onde o debate encerra-se numa espécie de

circularidade.

Na educação física, seja em seu meio acadêmico ou profissional, a luta pela

conquista de status que lhe confira prestígio e respeitabilidade tem sido um aspecto

muito presente. Esta luta tem se dado na tentativa de construir uma disciplina tanto

acadêmico-científica quanto uma disciplina curricular, para que o campo passe a ser

respeitado socialmente.

O desejo é igualar a educação física às demais disciplinas acadêmicas ou

curriculares, sempre na busca de prestígio. Isto se dá principalmente por se crer que a

educação física é, de uma forma ou de outra, considerada inferior às demais áreas de

conhecimento, deixando assim de ter junto à sociedade reconhecimento e valorização,

o que provoca uma baixa auto-estima e um baixo auto-conceito entre seus próprios

profissionais.

Este tipo de sentimento fez com que internamente se motivasse um constante

discurso de auto-valorização da importância da educação física para a sociedade, para

o indivíduo, numa espécie de campanha pelo reconhecimento da área. Isto ocorre mais

entre seus próprios profissionais do que na sociedade, o que faz parecer que era, antes

de tudo uma necessidade de auto-convencimento. Como diz o adágio, “é preciso

sempre se falar no assunto que é para ver se nós mesmos acreditamos”. Aduzido a

Page 58: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

58

este sentimento, travou-se uma longa luta pela construção e solidificação da educação

física como campo de conhecimento.

Bracht (1999) em uma obra que tenta discutir as relações entre a educação

física e a ciência, diz que a educação física em suas características de formação

profissional fez “retardar o aparecimento do intelectual da EF.” (p.18). Dando

continuidade a esta idéia, o mesmo autor diz que “os intelectuais que pensaram a EF

brasileira, neste período, trouxeram/adquiriram o instrumental para tanto em outros

campos, ou seja, o campo da “EF” 17 não dispunha dos meios para teorizar sua

prática.” (p.18)

Bracht, neste contexto tenta demonstrar que a formação da massa crítica em

educação física deu-se com o aporte teórico e instrumental de outros campos

disciplinares. Sendo assim, sempre existiu uma motivação para se elaborar

justificativas de origem teórica para a área, tentando fazer-se um apelo de ordem

científica, indo buscar apoio ou se aproximando de outras áreas de conhecimento já

reconhecidas pela sociedade. Mas, segundo Bracht o problema é que os intelectuais da

educação física tornaram-se mais historiadores, sociólogos, teóricos da educação em

geral, fisiologistas etc., e pouco contribuíram para teorizar a intervenção em vários

níveis, inclusive o da produção de conhecimentos específicos para o nosso campo.

O que se observou e ainda se observa é que se busca uma identificação com as

chamadas ciências mães (fisiologia, biologia, física, sociologia, psicologia). Assim, as

produções em educação física, mais do que nunca, acabam por criar aproximações

com estas áreas e afastamento da própria educação física, passando a produzir

conhecimentos nestas outras áreas e não mais em educação física.

Podemos observar que em suas obras, Valter Bracht, vem se preocupando com

o fato da educação física se manter dependente de outras áreas, não criando

independência e pensamento próprio. Bracht tenta nos fazer crer da necessidade de

criar uma teoria específica para a educação física.

17

Aspas do autor.

Page 59: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

59

Para Lovisolo (1995) o problema não está localizado na ausência de teoria

específica, mas em uma certa confusão entre o papel do pesquisador e o do professor,

e na indefinição se dá entre disciplina e programa de atividade, e que este fato é típico

de uma área que ainda está em busca de sua especificidade. Assim, a idéia de

afastamento se dá pelas dificuldades de mediar os conhecimentos oriundos de outros

campos disciplinares na intervenção. Para Lovisolo (1995) o foco de atenção não seria

a falta de uma teoria específica para a área, já que a “intervenção no campo das

atividades corporais continua sendo o núcleo da tradição da educação física.” (p.29).

Se para Bracht o problema da falta de status se dá em função da dependência teórica

e da ausência de uma teoria que fundamente a prática, para Lovisolo o problema se

localiza pela qualidade das mediações nos diferentes processos de intervenção.

Argumentos de natureza mais cientificista também são formulados na busca de

status para o campo. Tani (1996) constata uma crise de identidade na educação física

que surgiu com “...uma fase de turbulências em que aspectos como preparação

profissional, atuação profissional, identidade acadêmica, pesquisa e pós-graduação

foram questionados e discutidos” (p.12). Esta crise acaba se dando num entrave entre

correntes de pensamento em nossa área, que tentam identificar um campo de estudos,

um objeto de estudo específico para a educação física, tentando criar um estatuto

científico, epistemológico.

Com esta não delimitação clara do objeto específico de estudos da educação

física, o que ocorre é a aproximação e identificação com outras áreas de conhecimento

que se encontram solidificadas, estruturadas como disciplinas científicas e curriculares.

Assim, pesquisadores vem tentando reconhecer qual seria o campo de conhecimento

específico da educação física, tentando dar unidade e identidade própria a educação

física, buscando também auferir prestígio para este campo do conhecimento.

Esta busca por prestígio dá-se quando existe um diálogo externo, quando

profissionais de educação física vão produzir ou debater em outras frentes, indo

dialogar ou produzir em áreas diferentes da de sua formação original. Além disto, esta

busca por um objeto de estudo específico vem da meta de querer tornar a educação

física uma ciência, por entender que só assim estaria em condições de obter

Page 60: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

60

reconhecimento, de ter uma afirmação no espaço universitário, e também na sociedade

em geral.

Esta tentativa de tornar a educação física um campo que desfrute de prestígio

vem se dando de forma rotineira, podendo ser vislumbradas várias destas

elucubrações teóricas em trabalhos de pesquisadores nacionais e estrangeiros. Estas

campanhas por transformações se dão a partir da definição do que a Educação Física

deve ser, sendo aí que se chocam os que a entendem como área de intervenção e os

que a entendem como campo científico.

Nesta busca, estão no primeiro time as “culturas”, dentre elas a cultura corporal,

que vem pensando a educação física com um olhar a partir da escola. Neste time

temos “jogadores” que se apresentam com nomes diferentes, mas que têm em comum

o fato de definirem-se como culturais, que tentam em torno de si agregar tudo que dá

no desenvolvimento da área. No outro time, temos os “jogadores” que tem em comum

o fato de quererem mudar a área para formar uma nova ciência, onde a troca do nome

torna-se fundamental. Tornar científica a educação física também é meio de elevação

de status. É justamente sobre este grupo que nos deteremos na próxima seção.

Page 61: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

61

3. PENSANDO UM NOVO CAMINHO, TALVEZ ATÉ UM NOVO NOME.

Na luta por um novo sentido para a educação física, até o nome educação física

tem sido alvo de críticas internas, tentando-se buscar outra denominação que

atendesse as orientações propostas em cada nova construção conceitual.

Estas proposições conceituais apontam claramente dois caminhos: o viés

científico e o político e/ou cultural, estando ambos a serviço da justificação de um

suposto modelo teórico. Cada um tem sua justificativa para a matriz teórica escolhida,

definindo o papel social da educação física e sob que ótica ela deve atender a

sociedade, seja na área da saúde ou da formação da cidadania, ou mesmo na junção

de ambas.

A questão que se refere ao nome educação física vem da consideração de que

este não mais traz uma significação real ao que se pensa sobre a área e sobre o que

ela deve ser. Esta divergência em relação ao nome vem significar mais um momento

de crise interna, já que existe uma diversidade de proposições que tentam dar conta de

dar-lhe uma nova denominação.

As várias denominações novas tentam representar aquilo que pensam seus

autores do que deve ser a área em seus espaços de intervenção e estudos. Com muita

propriedade, Lovisolo (2000) diz que estas divergências conceituais, podem ser

“indicador de uma crise profunda em relação aos objetivos da intervenção e aos

objetivos das teorias que referenciam as pesquisas e legitimam a intervenção” (p.7),

pois cada proposta aponta caminhos diferentes para a área, no seu fazer e no seu

pensar.

Podemos identificar várias destas denominações criadas na intenção de

substituir o nome educação física, cada qual tentando seguir seu próprio caminho,

podendo cada uma delas ser uma proposta de um autor ou mesmo de um grupo de

autores, vinculados ou não a uma instituição de ensino ou de pesquisa. Podemos citar

Cinesiologia, Ciência da Motricidade Humana, Ciências do Esporte, dentre outros,

como exemplos de tentativas de cunhar um novo nome para a área em substituição ao

Page 62: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

62

atual. Todas estas propostas de novos nomes, entendem que o termo educação física

é por si só um obstáculo ao seu desenvolvimento, seja na tentativa de ganhar prestígio

acadêmico, ou na idéia de se ter um conhecimento comum e específico para esta área.

Cada um destes novos nomes traz uma tentativa de redefinição do objeto de estudo e

de novas propostas de intervenção.

Este debate na educação física já está se tornando uma tradição. É evidente a

circulação do debate epistemológico ou da proposição de novos nomes,

principalmente, através de periódicos, livros e seminários. Durante certo tempo as

Revistas Movimento, da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio

Grande do Sul, e Motus Corporis, do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em

Educação Física da Universidade Gama Filho, promoveram uma seqüência de debates

e uma edição especial, respectivamente, sobre o tema. Ainda sobre esta discussão

relativa ao nome Educação Física e sua possível modificação, Tani (1996) afirma que

este debate teve um impulso Brasil a partir das reflexões do Prof. Manuel Sérgio Vieira

e Cunha18, para, após isto, passar a receber grande atenção e mesmo passar por forte

tensão. Tani (idem) afirma ainda que “...a maioria desses estudos tem enfocado

questões conceituais e não tem resultado na proposição concreta de uma estrutura

acadêmica para a área” (p. 25). A Cinesiologia, surge, então, como um novo nome

proposto pelo Prof. Tani, vinculado a tradicional Universidade de São Paulo, e vem com

a idéia de dar uma identidade acadêmica para a área. Como definição, TANI, (1996) diz

que a Cinesiologia é

...uma área de conhecimento que tem como objeto de estudo o movimento humano, com seu foco de preocupações centrado no estudo de movimentos genéricos (postura, locomoção, manipulação) e específicos do esporte, exercício, ginástica, jogo e dança. (p.25-26)

Em sua estruturação, a Cinesiologia seria dividida em três sub-áreas, a saber:

biodinâmica do movimento humano, comportamento motor humano e estudos sócio-

culturais do movimento humano. Existe a pretensão de que estas três sub-áreas

incorporem as várias especialidades que já estão estabelecidas na educação física.

A cinesiologia, não obtém resultado na sua proposição de unificar a área, visto

tentar propor ações sobre algo genérico - os movimentos - sendo que os movimentos

18

Embora seja este o nome completo, estaremos tratando por Manuel Sérgio, como ficou mais conhecido este autor.

Page 63: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

63

podem possuir todo tipo de representação. Então a cinesiologia está, assim como a

educação física, sem foco definido, sem objeto de estudo específico.

Outra proposta de um nome diferente para a educação física, veio com a Ciência

da Motricidade Humana, termo sugerido pelo Prof. Manuel Sérgio da Universidade

Técnica de Lisboa.

Para Manuel Sérgio (1991)

não só o termo educação física não tem sentido, porque seria tentar ressuscitar um cartesianismo defunto, como não tem autonomia, dado que se afirma tão-só um elemento (ao lado de outros) da educação integral...(p.74)

A idéia da construção da Ciência da Motricidade Humana, vem com o intuito de

transformar o cenário da educação física, tentando atribuir-lhe uma legitimidade

científica, em que o que se observa é a conduta motora, sempre vista sob a luz de uma

dada teoria.

Manuel Sérgio (1991) entende que para uma legitimação social da educação

física, esta deve “...procurar entender-se como ciência independente e autônoma e

com um objeto de estudo que não oferece dúvidas19 sobre os seus fundamentos

lógicos, epistemológicos e existenciais.” (p.78). Para tanto, crê que a Ciência da

Motricidade Humana dá conta destas questões por surgir como uma nova ciência que

vai avançar para além do que a educação física é, pois através do que chama de corte

epistemológico cria-se uma ciência específica, independente, deixando assim de ser

uma parte de uma área mais geral, que é a pedagogia. Não se pode deixar de observar

que Manuel Sérgio (1991) institui uma ciência com um argumento de autoridade

quando diz que o objeto de estudo da motricidade humana não “...oferece dúvidas

sobre os seus fundamentos lógicos, epistemológicos e existenciais.” (p.78)

Para Manuel Sérgio, filósofo português, a educação motora deve vir a ser o

ramo pedagógico da Ciência da Motricidade Humana, como veio de representação

desta nas ações profissionais. Assim, com o conjunto destas atitudes se conseguirá

adquirir “...o lugar indiscutível20 entre as ciências universitárias (o que não acontece

19

Grifo nosso 20

Grifo nosso

Page 64: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

64

com a educação física).” (p.86). Observe-se que mais uma vez seu argumento é de

força.

A tese da Ciência da Motricidade Humana acaba também caindo por terra, pois

não consegue atingir os objetivos pretendidos, dentre eles o de mudar o nome

educação física para Ciência da Motricidade Humana nem mesmo em seu país de

origem, pois apenas a instituição à qual o Prof. Dr. Manuel Sérgio está vinculado

profissionalmente adotou sua “nova ciência”. Ou seja, não foi capaz de convencer seus

próprios vizinhos.

A tese da Ciência da Motricidade Humana não consegue definir um objeto de

estudos específico - uma teoria, como a princípio era seu interesse. O que acaba fazendo

é criar múltiplos olhares e perspectivas sobre um mesmo fenômeno - o movimento

humano, o que já acontece em nosso campo. Sua perspectiva, assim como a de Tani,

acabam por criar uma nova organização institucional para aquilo que já acontece, isto é, a

produção de pesquisas a partir de diferentes disciplinas científicas. Entretanto, a

perspectiva inter/multi ou transdisciplinar ainda continua sendo mais um desejo do que

uma perspectiva concreta de realização. Mais uma vez se percebe que a tentativa de

unidade não tem sucesso pois, ao contrário, estimula-se a multiplicidade de abordagens e

compreensões, o que acaba contrapondo-se ao interesse maior de agrupar tudo que se

dá na área sob uma única roupagem, da mesma forma como acontece com a cultura

corporal, que discutiremos mais à frente.

A denominação Ciências do Esporte é outra manifestação de uma tentativa de

se pensar outro nome para a Educação Física. Bracht (1999), diz que é

...exatamente quando a EF deixa de se apresentar como ginástica(métodos ginásticos) e consolida-se o esporte enquanto seu conteúdo maior, que as chamadas Ciências do Esporte instalam-se no campo, inicialmente chamado de EF.(p.31).

Sobre o mesmo tema, Paiva (1994) coloca que a tentativa de transformar a

educação física em Ciências do Esporte tem seu auge num editorial da Revista

Brasileira de Ciências do Esporte (RBCE), do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte

(CBCE), onde é dito que o professor de Educação Física deveria ser visto como um

mestre em Ciências do Esporte.

Page 65: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

65

O uso do termo Ciências do Esporte21 solidifica-se quando este passa a ocupar

quase totalmente o cenário da educação física, passando mesmo a representá-la, e tanto

as produções acadêmicas quanto todo o processo de intervenção se voltam para o

esporte em suas várias formas de expressão.

Segundo Bracht (1999) existe ainda uma grande dificuldade entre a educação

física e as Ciências do Esporte, de se “diferenciar a identidade epistemológica de uma ou

de outra, nem sequer uma identidade própria.” (p.78). chegando os termos a se

confundirem ou a serem usados em conjunto.

Entende-se, nesta linha, que o esporte tem a característica de ter estreitos laços

com diversas áreas de conhecimento, “o que empresta a ele uma característica

interdisciplinar.” (TUBINO, 1999:p.7). Observa-se aqui que a tentativa de engodamento

acaba por criar a confusão que Bracht menciona acima.

Podemos observar, na proposta das Ciências do Esporte, que não existe uma

ciência, mas sim estudos sobre esporte a partir de disciplinas mães, ou seja, olhares

específicos sobre um mesmo fenômeno mas com problemáticas totalmente distintas, o

que faz com que se tenha uma diversidade de interpretações sobre o mesmo tema e não

uma interdisciplinaridade. As resoluções dos problemas são isoladas e assim o termo

Ciências do Esporte torna-se mais um nome que auxilia a nublar e obscurecer o

entendimento da educação física.

Se há lógica em entender como estudos das Ciências do Esporte tudo aquilo que

se refere ao corpo, aos jogos e corporalidade, poderíamos afirmar que o clássico trabalho

de Paul Veyne (1982) sobre o desaparecimento dos gladiadores da Roma Antiga é

também uma produção em Ciências do Esporte, já que ele tenta estudar sob a lógica da

produção histórica, um fato que tem por base aspectos referentes ao corpo, ao

movimento humano.

O argumento contrafactual acima serve para indicar que não se cria um campo

científico por decreto ou por imposição de um determinado grupo. No caso das Ciências

21

Em Portugal, na Universidade do Porto, o nome adotado é Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação

Física, podendo ser extinto o termo Educação Física, segundo palavras do prof. Dr. Jorge O. Bento.

Page 66: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

66

do Esporte o que acontece são os estudos a partir de diferentes disciplinas científicas que

problematizam o esporte ou atividades corporais segundo a própria lógica e perspectivas

teóricas. Neste caso os que advogam a denominação Ciências do Esporte confundem o

campo científico com o fenômeno ou com a temática, desconsiderando que um campo de

investigação científico se forma a partir de problemas ou quebra-cabeças comuns (KUHN,

1989).

Os três exemplos tratados, a Cinesiologia, a Ciência da Motricidade Humana e as

Ciências do Esporte, são construções que pretendem, através de uma nova elaboração

supostamente epistemológica, propor uma nova denominação em substituição à

educação física, na pretensão maior de assumirem um novo patamar no meio acadêmico,

adquirindo mais status no espaço universitário, como afirmam Tani e Manuel Sérgio

explicitamente.

Todavia, estas novas propostas de nomes em substituição ao já tradicional termo

educação física, acabam não adquirindo o prestígio pretendido e ainda aumentam os mal-

entendidos. Dar um novo nome para uma nova área tem servido para aumentar a

confusão e as lutas internas da educação física, num confronto entre grupos que

pretendem assumir para si a verdade absoluta e o poder de, com uma nova

denominação, reorganizarem a área. O nome torna-se quase uma solução mágica.

Este movimento de lutas internas em uma área especializada, onde se identificam

várias relações, como força, poder e interesses, é composto basicamente por pessoas

que acreditam e têm paixão por algo que é o objeto central, que Bourdieu (1989) chama

de campo. Nesta análise, nos valendo de Bourdieu, podemos dizer que estas lutas na

educação física se dão na intenção de constituir um campo de conhecimento específico e

unitário.

Como contraponto às tentativas de construção de uma nova área, existem autores

como Lovisolo, Betti e Bracht que entendem que não é uma nova ordem epistemológica e

uma nova denominação que farão com que se organize e se qualifique a educação física.

Estes autores não acreditam que é instituindo-se uma ciência ou mesmo uma nova

ciência da educação física, ou outro nome qualquer, que conseguir-se-á atingir maior

Page 67: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

67

qualidade ou construir-se-á uma área mais organizada, pois não enxergam necessidade

de se gastar tanta verve nisso. Entendem que a educação física é uma área que se pauta

na intervenção e que portanto deve ser pensada para além dos dualismos estabelecidos

entre campo científico - área de intervenção, ciências humanas - ciências biológicas como

vem acontecendo, e acreditam numa mediação que vá contribuir para que se qualifique o

ato de intervenção profissional, nos vários campos possíveis de atuação de um

profissional de educação física.22

Observe-se que para alem da instituição de uma nova ciência, com um nome que

deveria substituir ou englobar o tradicional termo educação física, temos em nosso campo

a tradição de criar classificações que devem traduzir objetivos, valores e meios das

atividades. Este tema será tratado na próxima seção.

22

A luta no interior do campo se torna mais complexa quando entra em cena o conflito entre os formados a partir

das ciências sociais e os formados a partir das ciências biomédicas. Neste sentido, dois caminhos podem ser

destacados: a) aqueles que afirmam que a educação física deve ser construída pela lógica do conhecimento

biomédico e b) pelo conhecimento das áreas de ciências humanas e sociais. O debate é para identificar em qual área

a educação física se insere. Neste aspecto, os órgãos governamentais de pesquisa e ensino (MEC, CNPq e CAPES)

enquadram a educação física na área de ciências da saúde, mas em diversas IES ela está colocada na área de ciências

humanas e sociais. Isto por si só tem gerado um intenso, constante e inflamado debate interno.

Page 68: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

68

4. CRIANDO CONCEITOS E MAIS CONCEITOS.

Um outro fator que pode ser identificado no seio da educação física é algo que

podemos dizer já ser uma tradição da área, que é o hábito de criar conceitos, classificar

atividades. Isto decorre da tentativa de articular diferenças e criar aproximações, com o

interesse de possibilitar um melhor entendimento pelos os próprios profissionais e pela

sociedade.

Todavia, esta diversidade de conceitos e classificações inventadas tem

colaborado para criar, ou mesmo ampliar, as dificuldades de entendimento da

educação física, seja nas suas propostas de intervenção ou de investigação e estudo.

Podemos observar e constatar um intenso debate tautológico, onde várias

denominações, conceituações e classificações tem sido propostas para se analisar o

mesmo fenômeno, podendo ser este a própria educação física ou o esporte. Acerca

disto, vários exemplos podem ser usados. No caso do esporte, Tubino (1992) cria uma

conceituação que o classifica em três dimensões: o esporte-educação, o esporte-

participação e o esporte-performance. Outro estudioso do tema é Bracht (1997), que

faz outra classificação considerando duas dimensões: o esporte de alto rendimento ou

espetáculo e o esporte enquanto atividade de lazer. Em ambos os casos existe uma

confusão entre os objetivos sociais pretendidos e a natureza deste mesmo fenômeno.

Esta confusão entre os objetivos e a natureza do esporte traz ainda mais

dificuldades para seu entendimento, fazendo com que circulemos entre opiniões

contrárias e diversas que se representam desde os cursos de graduação até as

políticas públicas, além de criar modelos-ideais fechados para um fenômeno social

complexo que se manifesta dinamicamente nos espaços sociais. As narrativas

competitivas, educativas e socializatórias em torno do esporte aparecem independente

do espaço onde se manifesta esse fenômeno social.

Também sobre as atividades físicas, criam-se classificações e denominações.

Faria Junior (1999), analisando as produções da área, aponta alguns termos correntes:

atividade física, atividade corporal, exercícios, aptidão física. Neste caso, assim como

no esporte, esta variada classificação contribui para que se instaure uma grande

Page 69: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

69

confusão no uso e na compreensão destes termos, obscurecendo ainda mais cada um

deles.

Neste quadro, se estabelece uma rotina e também uma tradição na forma de

construir o conhecimento, onde se entende que conhecer é classificar e quanto mais se

classifica, mais se conhece; assim, acabamos por ser reforçadores da tradição de

Linnaeus 23, só que com pouca funcionalidade.

Assim, o sonho de construção de uma unidade acaba por ficar cada vez mais

distante, servindo as várias denominações somente para criar barreiras entre os

profissionais, dificultando ou impedindo o diálogo, colaborando para que se formem

guetos, o que sem dúvida acaba por limitar as possibilidades de avanço do

conhecimento e da intervenção. Isto está representado na idéia de que estas

denominações são criadas para serem representações de pensamentos de grupos ou

de intelectuais da área, que tentam fazer com que a educação física assuma para si o

que consideram ideal.

Neste aspecto, Lovisolo (2000) trabalha com o que chama de tribos24 da

educação física, que são a representação destes pensamentos e posições diversos,

onde cada uma encaminha sua atividade de intervenção e de construção de

conhecimento para a esfera do que consideram que a educação física deve ser. Estas

tribos constróem para si um mecanismo de representação que vai de um sistema de

linguajar específico até um sistema de valores atribuídos a suas ações profissionais.

Não existe uma interface destas tribos e cada uma caminha em um sentido, que pode

ser oposto ao de outra, constituindo divisões internas marcantes.

Lovisolo (2000), diz que a “...falta de integração está-se agudizando nos

fundamentos e na prática de intervenção, mesmo nas recomendações que são

formuladas para se atingirem os diversos objetivos.” (p. 12)

Apesar dessa dinâmica de divergência de posições e visões, do ponto de vista

institucional a unidade da educação física continua garantida, seja na formação em

23

Karl vonáLinné, ou Linnaeus. Ele publicou, em 1735, o livro Systema Nature onde propunha um sistema de

classificação de todos os organismos baseado nas suas semelhanças. Esse sistema foi muito aceito até o século XIX,

e continua servindo de base para o pensamento de toda a taxionomia e as ciências biológicas atuais.

Page 70: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

70

nível de graduação, seja na questão da organização dos profissionais em órgãos

corporativos, já que em ambos se mantém e se efetiva a denominação educação física.

Como podemos observar, cria-se na educação física uma lógica de

“autodestruição” quando os termos e/ou conceitos ao invés de representarem e

explicarem a área traduzem mais a identidade das tribos (no sentido de Lovisolo) e os

“nomes” se tornam bandeiras de grupos. O debate em torno das classificações ao invés

de contribuir com o entendimento, tem servido para que ela permaneça em um nível que

não a faz avançar, pois este tipo de comportamento não favorece o debate em bases

mais racionais, que é o que há de melhor no sentido de fazer avançar qualquer campo de

conhecimento.

Reforçando esta idéia, existe uma outra luta para definir onde a educação física

deve atuar, qual seu espaço principal, daí surgindo um outro campo de batalha, de

confronto de idéias e ideais, que são as propostas específicas para o espaço de

intervenção na área escolar. São estas que veremos adiante, tentando analisar sua

circulação no campo pedagógico da educação física.

24

As tribos indicadas são quatro: a da potência, a da conservação, a da estética e a da educação física escolar.

Page 71: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

71

5. A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR E SUAS “CULTURAS”.

A proposta veiculada através da obra Metodologia do Ensino da Educação

Física, trouxe um modelo de ação pedagógica, denominado por seus autores como

pedagogia crítico-superadora. No texto, o termo cultura corporal parece ganhar mais

força que a perspectiva pedagógica anunciada no início da obra. Tanto que os atores

passaram a identificar o livro e a proposta pedagógica como “cultura corporal”. A idéia

geral da pedagogia crítico-superadora acabou sendo engessada pela idéia parcial da

cultura corporal. Esse nome ganhou tanta força que os próprios intelectuais próximos a

essa perspectiva pedagógica da educação física passaram a cunhar nomes que

traduzissem mais especificamente o universo das atividades corporais que deveriam

ser tratadas pela educação física.

A cultura corporal passou a ser elemento nas discussões cotidianas dentro de

nossa área de conhecimento, em vários e diversos ambientes. O que se viu foi uma

grande e variada gama de entendimentos e compreensões que tentavam e tentam, até

hoje, propor uma noção mais exata ao termo. Assim, a divergência e as confusões de

entendimento perduram, haja vista que o conceito ou conceitos utilizados não

contribuem para dar-lhe significado no campo pedagógico da educação física,

chegando mesmo a contribuir para tornar mais difícil esta tarefa. De fato, a força que o

termo cultura corporal ganhou, passando a fazer parte do jargão específico da

educação física, não veio carregada de compreensão nem de uma noção exata de seu

significado.

No Coletivo de Autores (1992) a explicação para o conceito cultura corporal vem

a ser

o acervo de formas de representação do mundo que o homem tem produzido no decorrer da história, exteriorizados pela expressão corporal: jogos, danças, lutas, exercícios ginásticos, esporte, malabarismo, contorcionismo, mímica e outros, que podem ser identificados como formas de representação simbólica de realidades vividas pelo homem, historicamente criadas e culturalmente desenvolvidas. (p.38)

Page 72: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

72

Na verdade, o que o Coletivo de Autores quer é dar um tratamento lingüístico

único, homogêneo, às atividades que, de uma forma ou de outra, fazem parte da

tradição de nossa área e da sociedade em geral. Mas, observemos que a descrição

acima pode dar lugar ao entendimento que qualquer atividade corporal humana é

passível de ser tratada pedagogicamente pela educação física. O sentido atribuído a

cultura corporal abarca quase todas as atividades humanas, na medida que entende

que o homem é o seu corpo e a exteriorização destas atividades se dá pela expressão

corporal, o que acaba sendo um conceito que agrega quase todo o agir humano.

A intenção dos autores em distinguir o que seja cultura corporal, acaba por

tornar mais difuso e global o conceito que pretende substituir a tradicional idéia de

educação física e esporte. Isto acaba por tornar ainda mais difícil o processo de

seleção de conteúdos em educação física escolar, o que por si só já traz grande

dificuldade para os professores. A noção de uma cultura corporal representada por

uma totalidade de manifestações corporais humanas, cria um sentimento de

indiscriminação dos conteúdos.

Castellani Filho, um dos autores do livro, em texto mais recente, de 1998, afirma

que a cultura corporal vem a ser um componente da cultura de homens e mulheres

brasileiras,

...uma totalidade formada pela interação de distintas práticas sociais, tais como a dança, o jogo, a ginástica, o esporte que, por sua vez, materializam-se, ganham forma, através das práticas corporais. (p.54)

Observemos que esta é uma explicação por demais vaga e inexata, que abre

espaço para um extenso debate tautológico acerca da expressão cultura corporal. Na

tentativa de explicar, confunde ainda mais o cenário.

Estas dificuldades de compreensão e delimitação de cultura corporal fazem com

que esta expressão, difundida pelo Coletivo de Autores, assuma um caráter

polissêmico. A partir deste sentido de polissemia em que a cultura corporal se viu

envolta, é que surgiu a necessidade de seus próprios idealizadores cunharem “termos-

conceitos” que melhor definissem o universo de conhecimentos e práticas que

deveriam ser tratados na educação física. As tentativas de adjetivações surgiram nas

Page 73: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

73

elaborações de Kunz, com o conceito de cultura de movimento, de Betti, com o de

cultura física e de Bracht, com o de cultura corporal do movimento.

As propostas dessa natureza passaram a ter uma gama muito mais vasta de

orientação. Chegam a poder ser pensadas como uma forma de se entender a

educação física, além da pretensão de ser unificadora para a nossa área de

conhecimento, ou até a ser uma forma de se articular a organização curricular no que

tange a formação profissional universitária.25.

As aproximações entre cultura corporal e educação física, de certa forma podem

fazer com que aumentem as dificuldades de identificação dos sentidos que esta

assume quando se pensa a educação física escolar e mais diretamente o sentido da

própria cultura corporal. Ao mesmo tempo que cultura corporal passou a ser usada

para identificar diversas situações dentro da educação física, aumentou a dificuldade

de buscar seus significados no campo didático-pedagógico, fazendo com que

aumentem as dúvidas sobre seu(s) sentido(s).

O grupo das “culturas” defende a idéia de que a educação física é um campo

iminentemente pedagógico, onde os profissionais enxergam “o movimentar-se humano

sob a ótica do pedagógico.” (BRACHT, 1999:p.33)

Ainda Bracht (1999) diz que na educação física, podem-se identificar

...três perspectivas diferentes de caracterização ou de delimitação: a) tentativa de delimitação de um campo acadêmico que teorize a prática pedagógica [...] b) tentativa de construir um campo interdisciplinar a partir das Ciências do Esporte, [...] c) a tentativa de construção de uma nova ciência.... (p.25)

Neste aspecto, a questão da teorização da prática pedagógica mostra-se como

uma das vertentes da campanha pela definição da especificidade da educação física e

como as demais, tem a intenção de ser o elo aglutinador da área. Com esta tentativa

de caracterização da área por uma matriz que tenta dar unidade à educação física,

cria-se mais uma definição, caracterização, rotulação, etc, que serve para aumentar as

dificuldades de seu entendimento.

25

Depoimento do Prof. Antônio Jorge Soares, sobre os debates da reforma curricular na UFES em 1998 e falas de

alguns dos autores do livro em estudo, em debates e encontros acadêmicos que discutiam o assunto.

Page 74: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

74

Esta campanha se constrói pelo contato que autores da educação física vem

mantendo com estudos da área pedagógica, entendendo que é preciso construir a

teoria da educação física a partir do veio da pedagogia, em oposição ao eixo do

pensamento biológico.

Neste caminho que visa a “...necessidade de construção de uma teoria da EF,

entendida esta como uma prática pedagógica, ou seja, uma repedagogização do teorizar

na EF...” (BRACHT, 1999:p.24), é que surgem as “culturas” como tentativa de ser a

resposta à questão da especificidade da educação física.

Ultimamente, isto é representado principalmente pela oposição entre o que vem

sendo chamando de aptidão física e o que se convencionou chamar de cultura corporal,

principalmente após a publicação da obra em estudo.

Esta tentativa de definir a cultura corporal como conceito unificador, dando uma

identidade única à educação física, seja ela teórica, científica ou metodológica, esgota-

se no momento em que acaba por trazer mais problemas do que soluções, pois

esbarra em alguns obstáculos de vários níveis e tipos.

É desta maneira que a cultura corporal se expressa no Coletivo de Autores,

tendo como proposta definir o viés pedagógico como a matriz específica da educação

física. Isto transparece quando seus autores tentam dar uma definição sobre o que vem

a ser educação física, dizendo que esta é uma prática pedagógica que deve tematizar

conhecimentos do que chamam cultura corporal. Querem fazer entender que a cultura

corporal deve ser a identidade da área educação física, sendo sua caracterização

eminentemente pedagógica que lhe garantirá status e identidade na esfera escolar e

universitária.

A cultura corporal passa a circular pela educação física como algo que chega

para ser a solução dos problemas e que tem a característica de poder juntar em torno

de si tudo que se constrói na educação física, desde os currículos universitários até os

planos de ensino na esfera escolar.

Page 75: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

75

Esta tentativa de unidade pela cultura corporal dá a entender que ela é a base

para pensar e agir na área. Parece a velha cena de um filme, cujo enredo baseia-se

numa luta pelo poder de dizer e definir caminhos para a educação física. As cenas são

recheadas de batalhas entre o “bem e o mal”, opostos que a cada época são

representados por personagens diferentes que se apresentam como sendo os

salvadores da área.

Muitas vezes o que se pensa fazer não se representa na realidade; mostra-se

tão somente como uma utopia que preenche o cenário real da vida de poucos. Além

disto, é um fato a existência de uma divergência de significados sobre o conceito

cultura corporal no grupo de referência que defende uma pedagogia crítica para

educação física. Retomemos algumas definições sobre cultura corporal, segundo seus

autores,

A EF é uma prática de intervenção e o que a caracteriza é a intenção pedagógica com que trata um conteúdo que é configurado/retirado do universo da cultura corporal de movimento.(BRACHT, 1999:p.32-33).

...integrante da cultura do homem e da mulher brasileiros, a cultura corporal constitui-se como uma totalidade formada pela interação de distintas práticas sociais, tais como a dança, o jogo, a ginástica, o esporte que, por sua vez, materializam-se, ganham forma, através das práticas corporais. Enquanto práticas sociais, refletem a atividade produtiva humana de buscar respostas às suas necessidades. (CASTELLANI FILHO, 1997:p. 12).

26

Vejam como a intenção de ser o veio identificador da área se esvai nas próprias

tentativas de definição da cultura corporal por seus ideólogos, pois não é possível

encontrar consenso entre as mesmas sequer quanto ao termo a ser usado, se cultura

corporal, se cultura corporal de movimento, ou outro qualquer.

O fato do nome cultura corporal haver se difundido não quer dizer que tenha

conseguido conceituar seu significado, ou mesmo que essa perspectiva se materialize

nas ações didático-metodológicas de quem está nas salas de aula. Em última instância,

a proposta do Coletivo de Autores é ser uma resposta aos que atuam no cotidiano

escolar, devendo para isso “fornecer elementos teóricos para a assimilação consciente

26

Grifos do autor.

Page 76: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

76

do conhecimento, de modo que possa auxiliar o professor a pensar autonomamente27.

(p. 17)

Ao fazer uso do termo cultura corporal como palavra-força, como se ela por si

pudesse definir e explicar o sentido pretendido pelos autores quando da construção de

sua obra, o Coletivo de Autores acaba por cair no que Bachelard (1996) chama de

obstáculo verbal na formação do espírito científico. O uso exaustivo de um conceito ou

de uma imagem potente ou global pode tornar ainda mais difícil a compreensão dos

fenômenos, pois “... uma única imagem, ou até uma única palavra, constitui toda a

explicação. Pretendemos assim caracterizar, como obstáculos ao pensamento

científico, hábitos de natureza verbal.” (p. 91).

O uso de palavras-força ou auto-explicativas que acabam servindo para explicar

qualquer tipo de fato ou fenômeno, acaba por se tornar um empecilho para a

consolidação do debate no campo da educação física. Podemos usar Bachelard no

caso da educação física para pensar que possuímos obstáculos dessa natureza,

mesmo entendendo não serem estes propriamente científicos. O nosso problema é de

constituição de um campo onde as divergências sobre sua natureza remetem à

seguinte questão: somos uma ciência ou um campo de intervenção? O que importa é

que os obstáculos verbais podem dificultar a comunicação em qualquer campo, seja

científico e ou não. E este é caso da educação física e sua diversidade de nomes e

conceitos que tentam conferir-lhe identidade mas acabam por reforçar a segmentação

ou as tribos.

O uso recorrente de um determinado conceito na educação física para justificar

ou fazer valer uma forma de pensamento, nas mais diversas situações e contextos,

fazem com que o tudo seja nada e o nada seja tudo ao mesmo tempo, pois “os

fenômenos são expressados: já parece que foram explicados. São reconhecidos: já

parece que são conhecidos.” (BACHELARD, 1996: p. 91)

Este fato é recorrente nas produções em educação física que tentam ser

proposições pedagógicas, desde as primeiras obras até as que hoje podemos chamar

de culturas (corporal de movimento, física e corporal). Todas as que se alinham com as

27

Aqui remeto o leitor para o primeiro artigo, onde analiso mais detidamente este assunto.

Page 77: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

77

chamadas pedagogias críticas da educação física tentam ser auto-explicativas, e

acreditam que a simples instituição do termo já diz a que vieram com fundamento em

sua própria lógica, pois segundo Bachelard (1996) “A função... é de uma evidência

clara e distinta, a tal ponto que não se sente a necessidade de explicá-la.” (p.91)

Porém, nenhuma delas consegue ser nitidamente compreendida e aceita pelos

que deveriam ser seus maiores beneficiados, os professores que atuam na educação

básica. A recente dissertação de mestrado defendida por Muniz (1996) mostra que as

principais produções neste campo, dentre elas a cultura corporal, não são

compreendidas ou sequer conhecidas pelos professores, mesmo que algumas

propostas sejam usadas em documentos da área. No caso dos PCN‟s28, a educação

física, na segunda fase do ensino fundamental, pauta-se numa proposta denominada

como Cultura Corporal de Movimento. Eis aí o exemplo de como a força dos grupos se

faz presente nas políticas públicas de educação quando instituem um conceito que não

é ainda consenso entre os próprios especialistas da área.

A veiculação dessas propostas para a educação física escolar em documentos

oficiais, é mostra de que elas ganham força com a participação de seus autores ou

seguidores em grupos ou equipes responsáveis pela criação de propostas didático-

metodológicas nas várias redes de ensino. Mesmo assim, isto não garante sua

inserção real no cotidiano escolar ou sua compreensão.

O fato da proposta pedagógica em estudo fazer uso sistemático e abusivo do

termo cultura corporal, acaba por enquadrá-la no que Bachelard chama de obstáculo

epistemológico, o que pode ser um obstáculo ao debate e para os acordos. Durante

muito tempo a educação física esteve dividida em dois pólos opostos que não se

colocavam propensos ao debate: o da dita esquerda e o da chamada direita. Esta

polarização por vezes criava um clima de tensão e real conflito, fato facilmente

identificável nos encontros e congressos da área.

Com isto, percebemos que a cultura corporal, que a princípio tenta valer-se da

lógica do pensamento científico em sua organização, acaba permanecendo na fase

denominada por Bachelard de estágio pré-científico, por fazer uso de generalizações

28

Parâmetros Curriculares Nacionais, documento do Ministério da Educação que pretende indicar propostas

Page 78: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

78

indefinidas - o próprio termo cultura corporal - que expressa fenômenos variados na

educação física. Ou melhor, tenta explicar sozinho toda a corporalidade humana.

O uso de imagens e termos pode não colaborar na formação de um espírito

aberto ao debate no campo da educação física, que sem dúvida é um desejo da

proposta, tendo em vista que estas “nem sempre são imagens passageiras; levam a

um pensamento autônomo...” (BACHELARD, 1996:p.101), ou seja, acabam por circular

sem que se possa perceber/identificar seu significado no campo pedagógico, levando a

possíveis e variadas interpretações.

Assim, podemos dizer que a cultura corporal ressente-se de justificativas

maiores que possam significar aquilo que seus autores pretendem, que é servir como

uma construção que seja o viés unificador da educação física via matriz pedagógica.

Por isso, as propostas culturalistas para a educação física escolar, mais

notadamente a cultura corporal, tem interesse em seu próprio fortalecimento como eixo

unificador da educação física, tentando criar uma identidade específica para a área.

A cultura corporal se corporifica na certeza de que sua existência, por si só,

define seus ideais e desejos. Este pensamento vem na esteira de pensamentos

anteriores que acreditam ser a educação física uma área que permite diversas e

variadas construções, que sirvam para dar encaminhamento ao que ela deve ser e

como deve agir. Assim, tenta encampar em torno de si os elementos constituintes

deste campo, sem que para isso precise de justificativas maiores ou de construções

mais elaboradas, apoiando-se no fato da educação física ser ainda um campo recente,

aberto a variadas interpretações, fato comum nas áreas em construção, o que o torna

uma arena fácil para lutas e confrontos.

Em seu projeto, a cultura corporal tenta ser uma proposta que se firme como

alternativa para o processo de intervenção profissional no espaço escolar, este

sentimento se expande para o desejo de ser a própria definição da área. Entretanto

este querer não encontra ressonância efetiva, já que não se materializa nas práticas

profissionais, firmando-se mais como um ideal que qualquer outra coisa.

pedagógicas par as várias áreas de conhecimento, no ensino fundamental.

Page 79: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

79

Na educação física existe esta tendência à circularidade de idéias e propostas

sem definição e sem compreensão de seus significados, que acaba por ser um entrave

para a solidificação da área. Assim, estas propostas “jogam contra si próprias” na

medida que não conseguem ser incorporadas efetivamente pela educação física,

ficando restritas a um determinado grupo. A figura a que esta situação nos remete é a

do cachorro que tenta morder seu próprio rabo.

Page 80: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

80

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Concluindo, podemos apontar que o campo da educação física tem se

constituído sobre algumas características bastante peculiares, que trazem para seu

meio alguns elementos que acabam lhe sendo típicos. É um cenário composto por um

sentimento de crise que acaba fazendo circular um ideário de mudanças. Esta crise

passa por um sentimento de baixa auto-estima e baixo auto-conceito em relação à área

e à condição de seus profissionais, despertando desejos de mudanças que alterem

este quadro. E estas tendências de mudanças vão das matizes teóricas ao próprio

nome educação física, sempre orientados a partir das perspectivas de grupos ou de

autores.

Neste movimento instaura-se uma luta e um constante e acalorado debate entre

os que desejam pensar a área como disciplina científica e os que não a entendem

como ciência, além dos que a querem definir como uma disciplina de orientação

eminentemente pedagógica.

Os que a pensam como ciência têm tentado elaborar uma nova orientação

epistemológica, com um cabedal de conhecimentos que lhe seja próprio, de forma a

configurá-la no meio universitário como disciplina científica; os que a entendem como

uma arte da intervenção pensam em melhor construir os saberes que contribuam para

um melhor fazer por parte do professor, e por último, os que a pensam como uma área

da ação pedagógica, que querem construir uma forma de pensar que justifique

acadêmica e politicamente este tipo de pensamento.

Neste emaranhado de idéias e formas de pensar, tem sido uma rotina as

rotulações, as classificações e as conceituações dos elementos de que a educação

física lança mão em suas ações.

Assim, tem surgido diversas interpretações sobre um mesmo fato, que tem

colaborado para obscurecer ainda mais a área, ao invés de servir para clarear e facilitar

o entendimento, como, a princípio, é real a intenção.

Page 81: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

81

É por esta razão que no campo da educação física escolar surgem formas de

pensar a intervenção e a área a partir do campo culturalista. De fato, a cultura corporal

aparece com a intenção de ser o eixo norteador do pensamento e da ação da

educação física escolar, tentando ser o elemento aglutinador deste campo que tem se

mostrado partido e difuso. Além disso a cultura corporal assume para si a

responsabilidade de tentar dar conta de todo o pensar em educação física, fazendo

com que as idéias e as ações circulem a partir de suas perspectivas teóricas.

Na realidade a cultura corporal acaba sendo o inverso do que se propõe,

tornando ainda mais confusas as formas que se tem pensado a área ao invés de torná-

la mais clara e de dar-lhe mais transparência. Também não consegue definir

claramente seu papel no campo pedagógico da educação física por acreditar que sua

simples existência define o que é e o que pensa, sem elaborar formas de se fazer

entender.

Page 82: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

82

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

BACHELARD, G. (1996). A formação do espírito científico. Rio de Janeiro:

Contraponto.

BOURDIEU, P. (1983). Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco zero.

BRACHT, V. (1997). Sociologia crítica do esporte: uma introdução. Vitória: UFES.

_______ _ . (1999). Educação física e ciência: cenas de um casamento (in)feliz. Ijuí:

Unijuí.

CASTELLANI FILHO, L. (1997). Projeto de reorganização da trajetória escolar no

ensino fundamental: uma proposta pedagógica para a Educação Física. Revista da

Educação Física/UEM. Maringá: v.8, n.1, p. 11-19.

_____ ___________. (1998). Política educacional e educação física. São Paulo:

Autores associados.

COLETIVO DE AUTORES. (1992). Metodologia de ensino da Educação Física. São

Paulo: Cortez.

COSTA, M. (1998). As críticas formuladas pelos autores identificados com o

pensamento pedagógico renovador da educação física brasileira. Dissertação de

mestrado. Rio de Janeiro. UGF.

CUNHA, M. S. V. e. (1991) Educação física ou ciência da motricidade humana. São

Paulo: Papirus.

DANTAS, E. H. M. (1987) Auto-imagem do professor de educação física. In: Oliveira.

Vítor Marinho de. (org). Fundamentos pedagógicos - educação física. Rio de Janeiro:

Ao Livro Técnico.

FARIA JUNIOR, A.G. de. (1999). Atividade física, saúde e ambiente. In FARIA

JUNIOR, A. G. de, et al. (orgs). Uma introdução à Educação Física. Niterói: Corpus.

GHIRALDELLI JUNIOR, P. (1988) Educação Física progressista: a pedagogia crítico-

social dos conteúdos e a Educação física brasileira. São Paulo : Loyola.

KUHN, T. S. (1989) A tensão essencial. Lisboa: Edições Setenta.

LOVISOLO, Hugo. (1995) Educação Física: a arte da mediação. Rio de Janeiro: Sprint.

_ __ ____. (2000) Atividade física, educação e saúde. Rio de Janeiro: Sprint.

MELO, V. A. de. (1999) História da Educação Física e do Esporte no Brasil: panorama

e perspectivas. São Paulo: Ibrasa.

MUNIZ, N. L. (1996) Influências do pensamento pedagógico renovador da educação

Page 83: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

83

física: sonho ou realidade? Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro. UGF.

PAIVA, F. S. L. de (1994). Ciência e poder simbólico no Colégio Brasileiro de Ciências

do Esporte. Vitória: CEFD-UFES.

RESENDE, H. G. de. (1992) A educação física na perspectiva da cultura corporal: uma

proposição didático-pedagógica. Tese de livre docência em Educação Física. Rio de

Janeiro: UGF.

TANI, G. (1996). Cinesiologia, educação física e esporte: ordem emanante do caos na

estrutura acadêmica. Revista Motus Corporis, vol.3, n.2, p. 9-49.

TUBINO. M. J. G. (1992). Dimensões sociais do esporte. São Paulo: Cortez.

_________ .(1999). O que é esporte. São Paulo: Brasiliense.

VEYNE, P. M. (1982). Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história.

Brasília: Ed. UnB.

Page 84: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

84

CONCLUSÃO GERAL DO ESTUDO.

Este estudo teve a intenção de contribuir com as produções no campo

pedagógico da educação física, tendo para isto realizado uma análise crítica sobre uma

das principais obras da área.

O trabalho se desenvolveu com o objetivo de poder tentar entender as

características teóricas da obra e sua inserção na área da educação física escolar,

tendo para isto usado o próprio modelo organizacional dela como base e sua projeção

na educação física.

Como primeiro dado, constatou-se que o Coletivo de Autores utiliza o que

durante o texto denominamos de modelo em cascata, pelo fato de sempre se estruturar

em três níveis. O primeiro, onde faz uma análise da sociedade em seu aspecto político-

econômico; o segundo, em que analisa a educação segundo dados do nível anterior e

por fim, quando estuda a própria educação física, utilizando-se de elementos dos dois

níveis anteriores, respectivamente.

Dentro deste modelo em cascata, o Coletivo de Autores se constrói a partir de

referenciais que possuem argumentos que se mostram diferentes e mesmo opostos,

que são o iluminismo e o romantismo. Estes dois modos de análise e interpretação da

realidade circulam pela obra e caracterizam sua proposta dando-lhe potência para

arregimentar adeptos do discurso crítico neste campo.

Esta junção em um mesmo eixo de dois modelos de interpretação e construção

distintos, fazem com que a obra possua a característica de tentar fazer uma conciliação

do inconciliável, de tentar costurar num mesmo nível o que seria a princípio, destoante,

contraditório e oposto.

A obra se pauta num tipo de interpretação da sociedade que usa o romantismo

como eixo, para em sua proposição trabalhar na linha do iluminismo. Assim, diz-se que

primeiro ela enxerga aquilo que quer ver, para depois propor aquilo que deseja como

Page 85: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

85

solução ao que é visto por ela, assumindo o papel de iluminados redentores da

educação física em seu papel social e da própria sociedade.

O Coletivo de Autores tenta propor um modelo didático-pedagógico para a

educação física escolar, o que acaba não se dando, haja vista que acaba por ser mais

do que tudo uma politização da pedagogia, com uma tendência a ser dogmática e

pouco real. Isto se mostra na pouca influência que a obra teve no trabalho dos

professores no cotidiano escolar, mas em contrapartida teve grande circulação no meio

acadêmico.

A proposta do livro, convencionalmente chamada de cultura corporal faz parte da

tradição da educação física de criar rotulações, marcas e classificações, numa

característica de considerar que isto cria uma maior qualificação de suas ações e

proposições, quando ao contrário acaba por aumentar mais ainda a dificuldade de se

entender a área e seus mecanismos de construção.

Nesta linha, várias foram as tendências em se criar para a educação física,

nomes, marcas que venham em substituição ao termo tradicional. Além de trazerem a

proposta de outros nomes, também se pensa em construir uma área diferente da

original, isto por entender que a educação física não correspondia aos desejos e

sentimentos de valorização acadêmica e profissional, seja isto pelo argumento da

ciência ou político-cultural.

Acontece que estas diversas tentativas de mudança daquilo que já é tradicional,

não lograram êxito, pois não conseguiam cumprir aquilo que se colocavam como

objetivo, pois na perspectiva de criar algo novo, apenas repetiam velhos dilemas, não

definiam a contento sua forma de pensar e de agir.

Todas estas tentativas criam um efeito negativo, já que possibilitam a criação de

obstáculos à melhor compreensão de um fenômeno, no caso a educação física e com

isso ao invés de propiciar maior entendimento, criam mais dificuldades ao debate no

campo.

Page 86: INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais. No presente estudo cuidamos especificamente das

86

Estas novas formas de pensar a educação física como área, se dividem entre

aqueles que querem fundar uma nova ciência, aqueles que entendem ser a matriz

pedagógica o eixo comum da Educação física (caso da cultura corporal) e aqueles que

não viam muito interessem em pensar uma nova área, mas sim em qualificar a

educação física, por a verem como espaço de intervenção.

Neste cenário em que diferentes propostas co-habitam o mesmo espaço, a

cultura corporal caminha pelo campo da educação física como se tivesse amplo e

tranqüilo entendimento, chegando mesmo a fugir de sua expectativa inicial, ampliando-

se para um modo de interpretação da educação física.

No que podemos chamar de um conflito interno, a cultura corporal se coloca

como alternativa político-pedagógica, mas ao mesmo tempo se nega como modelo

didático, o que contribui para dificultar uma compreensão sobre o que possa significar,

já que esboça ser algo que ao mesmo tempo nega. Assim, de forma geral entendemos

que a cultura corporal vem servindo ao contrário do que é circulante em nosso meio,

para criar grandes obstáculos ao desenvolvimento e compreensão da própria educação

física e de seu papel na área escolar.

Desta forma é que então encerramos este estudo, tendo claro a noção de que o

mesmo é provisório e portanto aberto a todo tipo de análise e compreensões, mas

sempre afirmando que o mesmo tenta ser uma contribuição para a educação física, em

seu modo de se ver e justificar, num espírito que se coloca aberto ao diálogo, como

veio construtor maior de um campo, seja científico ou de intervenção profissional.