INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO · 2016. 9. 20. · mecanismos de intervenção nos vários espaços...
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ROCHA JUNIOR, Coriolano P. (2000). Propostas pedagógicas em Educação Física: um olhar sobre a cultura corporal. (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro: PPGEF/UGF. Orientador: Dr. Antonio Jorge Gonçalves Soares.
INTRODUÇÃO GERAL AO ESTUDO.
O presente estudo faz parte da linha de pesquisa denominada “Pensamento
Pedagógico da Educação Física Brasileira”, que está vinculada à área de concentração
de estudos intitulada “Educação Física & Cultura”, desenvolvida no Programa de Pós-
Graduação Stricto-Sensu em Educação Física da Universidade Gama Filho.
Esta linha de pesquisa tem como um de seus objetivos a análise e a
investigação do conteúdo de artigos e livros identificados com o Pensamento
Pedagógico Renovador da Educação Física Brasileira (PPREFB). Neste sentido, nosso
material de análise é a obra denominada Metodologia do Ensino da Educação Física,
elaborada por um do Coletivo de Autores (1992)1.
Há algum tempo, a Educação Física vem fazendo uma auto-análise sobre a
constituição de seu campo de estudos e de seus espaços de intervenção. Neste caminho,
diversas correntes que pensam a Educação Física em si e seus espaços de atuação
profissional tem, de formas diferentes, se apresentado e tentado criar modelos de
intervenção para a área.
Estas formas de pensar pautam-se em referenciais diversos e por isso apresentam
formas de compreensão e propostas que se mostram diversas, e por vezes divergentes,
sobre a educação física e seu papel social. De comum entre elas há o fato de seus
formuladores entenderem que o atual estágio da educação física não condiz com o que
pensam sobre ela. Assim, vão sendo formuladas construções teóricas que investigam a
área, e a partir daí tentam propor ações que tentam modificar a educação física e seus
mecanismos de intervenção nos vários espaços de atuação de seus profissionais.
No presente estudo cuidamos especificamente das propostas que pensam a
educação física escolar a partir de uma perspectiva histórico-crítica. Neste sentido, a
proposta deste estudo é analisar um dos livros que vem sendo considerados de maior
relevância na área - Metodologia do Ensino da Educação Física - tendo em vista sua
circulação e veiculação em nosso meio.
Esta obra serve de base para este estudo por que tenta indicar uma proposta
1 COLETIVO DE AUTORES. (1992). Metodologia do ensino da Educação Física. São Paulo: Cortez.
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didático-metodológica para a educação física no espaço escolar, por seus autores
acreditarem que é este o espaço principal, o eixo maior deste componente curricular. A
proposta indicada pelo livro é a chamada pedagogia crítico-superadora, que acabou
sendo mais conhecida em nosso meio como cultura corporal.
A opção por trabalhar sobre este livro vem também do fato de entendermos que
é uma das mais significativas no campo da educação física, mais especificamente
entre aquelas que abordam a educação física escolar. Ela tem tido grande circulação
em nossa área, constando tanto nas bibliografias dos cursos de graduação, quanto nas
dos concursos públicos. Não é difícil ver que, desde seu lançamento, é uma das mais
comentadas e discutidas pelos que atuam na educação física.
Um dos principais fatos que contribuíram para sua aceitação é a reconhecida
qualidade de seus seis autores, todos com grande respeitabilidade no nosso meio
profissional. É possível que seja a obra mais comentada no campo pedagógico da
educação física, talvez por representar as ambições e as intenções de todo um
movimento político dentro da educação física, do qual fazem parte seus autores, que
se vincula ao que se chama de “esquerda da educação física”. Este movimento teve na
época do lançamento do livro, um dos seus momentos de maior repercussão.
Com isto, o presente estudo ocupa-se em analisar criticamente o modo de
construção da obra em questão e sua significação no campo pedagógico da educação
física escolar, em seus mecanismos de elaboração teórica a partir de sua estrutura
constituinte. A referência será o modelo proposto por Lovisolo (1990)2, quando analisa as
obras que pensam a educação popular, para buscar entender o campo da educação
física em sua constituição e o significado do Coletivo de Autores (assim passaremos a
tratar o livro em tela, daqui por diante) e sua proposta didático-pedagógica no espaço da
educação física escolar.
Para o desenvolvimento do estudo, na parte que se refere à compreensão da obra,
utilizaremos dois marcos teóricos - o iluminismo e o romantismo - entendendo que o livro
é construído a partir de uma tensão criada entre estes marcos. Talvez esta tensão seja
um elemento positivo, mas que ao mesmo tempo pode apresentar esse aspecto
contraditório em sua argumentação, e talvez disto decorra sua potência. Assim,
aproveitando a mesma estrutura de sua construção é que o analisaremos, tendo esta
tensão e suas decorrências como pano de fundo de nosso estudo.
2 LOVISOLO, Hugo R. (1990). Educação Popular: maioridade e conciliação. Salvador: UFBa. Empresa Gráfica da
Bahia.
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A construção da análise extrapola do que falam os autores para o pensamento de
outros autores sobre os fenômenos e relações tratadas na obra, tais como política,
educação, educação física, história. Assim, tentamos entender a obra especificamente a
partir do que a mesma trata, porém a partir de uma leitura crítica e não de uma leitura
ativista.
No artigo seguinte, vamos analisar além da obra em questão, os embates, os
autores e as propostas que tentam entender a área. Assim, buscamos a compreensão de
como a educação física organiza-se como campo profissional instituído e onde os atores
sociais travam suas lutas por busca de prestígio e hegemonia3. Vale a observação que as
lutas travam-se em torno do conceito, da ciência ou da perspectiva teórica que deve
melhor fundamentar o que convencionou-se chamar de educação física.
Neste trabalho utilizaremos o termo educação física como o campo instituído de
lutas onde são pensadas desde as mais variadas formas de intervenção até os debates
acadêmicos sobre a constituição deste campo como uma nova ciência. As lutas em torno
da definição de um conceito ou de uma teoria científica ou pedagógica que dê identidade
à área, ainda que se afirme como necessidade de demarcação dos limites do campo,
acaba por revelar o desejo de afirmação da hegemonia de determinado grupo na
definição dos valores, dos objetivos, da função social e dos gostos do que chamamos
educação física. Esta segunda parte do estudo tem a intenção de fazer uma leitura crítica
dessa dinâmica.
A forma dada a este estudo é a de dois artigos que se completam e formam o
corpo do trabalho. Apesar dos artigos possuírem autonomia, existe um fio condutor que
perpassa a ambos, permitindo continuidade em sua essência. Ressalte-se que o objeto
de análise é o mesmo e há uma preocupação em constituir uma parte introdutória e outra
conclusiva sobre todo o trabalho, que permite uma visão geral do texto.
A motivação para este estudo é o fato de eu ter sempre estado, em minha
trajetória acadêmico-profissional, vinculado ao que se pensa e ao que se produz sobre
educação física escolar, desde os bancos da graduação. De alguma forma venho
tentando intervir neste caminho, por acreditar que o espaço escolar pode permitir ao
profissional de educação física trabalhar na constituição de um novo modelo de educação
física e de sociedade.
Assim, a cultura corporal, enquanto proposta, esteve em meus caminhos e meus
3 Usamos o que diz Pierre Bourdieu sobre campo em “Questões de sociologia” (1983), editora Marco Zero: “Um
campo e também o campo científico, se define entre outras coisas através da definição dos objetos de disputas e dos
interesses específicos que são irredutíveis aos objetos de disputas e aos interesses próprios de outros campos...”.
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sonhos, pelo fato da publicação do livro coincidir com a conclusão do meu curso de
graduação e de minha inserção no mercado de trabalho - mais diretamente na área
escolar - além de eu estar colocado no mesmo campo político que a obra tenta
representar. O debate em torno da demarcação, da busca da identidade e da legitimidade
da educação física, seja como área de intervenção, como pedagogia ou como ciência, foi
por mim acompanhado nos diferentes fóruns que participei, onde a dificuldade do debate
e da comunicação parece ter sido a tônica.
Ao fator acadêmico-profissional soma-se minha longa vinculação ao cenário
político, desde o movimento estudantil secundarista até o movimento partidário, tendo
sido a participação política um dos fatores de maior relevância em minha formação
universitária. Nestes espaços circulava, e ainda circulo, por entre ideais e perspectivas de
transformação, fato que sempre me aproximou dos pensamentos dito renovadores no
campo da educação física.
Com o passar dos anos e com minha circulação por espaços sociais vários, como
estudante, professor, coordenador de ensino e militante, criou-se em mim um sentimento
de angústia para tentar entender o significado do movimento político organizado e suas
formas de representação, inclusive na educação física.
Neste sentido, tentar entender com maior distanciamento a obra do Coletivo de
Autores, e tentar entender a dinâmica do debate no campo na educação física, tornou-se
um desafio de ordem intelectual e existencial, já que por vezes o que acreditamos parecer
uma solução mágica e definitiva pode revelar-se como um obstáculo ao debate e aos
acordos.
Assim, procedi a uma revisão do pensamento destes movimentos, e aí da própria
cultura corporal, para que pudesse dar minha contribuição para melhoria e resignificação
deles, sem deixar de lado o sonho e a luta pela melhoria de toda a sociedade.
É assim, com este espírito de tentar compreender o que é parte de minha história
pessoal e parte de uma produção específica em educação física, na busca de contribuir
com uma melhoria daquilo que tento acreditar, que este estudo seguirá.
Com isto, expostas às motivações acadêmicas e pessoais para este estudo, bem
como sua estruturação, passamos ao desenvolvimento do texto onde tentaremos dar
conta, de forma satisfatória, do pretendido.
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A ANÁLISE DE UMA OBRA: TENTANDO ENTENDER O COLETIVO DE AUTORES.
1. INICIANDO O ESTUDO.
1.1 - UM BREVE ENTENDIMENTO SOBRE A EDUCAÇÃO FÍSICA.
A educação física, como campo de conhecimento, caracteriza-se por ser uma
área que abarca diversos campos disciplinares, desde fisiologia até a filosofia. Neste
sentido, Lovisolo (1995) afirma que a educação física é uma área de conhecimento
“...claramente mosaico, fragmentária, multidisciplinar e não dominantemente
disciplinar.”(p.19). É a partir desta diversidade de saberes que são pensados diferentes
processos de intervenção em campos como o esporte, o lazer, a saúde e também a
educação física escolar, que embora possam ter objetivos variados e divergentes
agrupam-se sob a denominação genérica de educação física. Contudo, os objetivos e
os meios para a intervenção podem diferenciar-se radicalmente. Com isto, pode-se
criar uma variedade de técnicas e métodos que dêem subsídios para as diferentes
intervenções, muitas vezes a partir da base de disciplinas científicas e/ou experiências.
Sob o nome genérico de educação física podemos pensar em variados tipos de
intervenção: o uso de recursos de alta tecnologia para que se possa alcançar a máxima
performance de atletas; os programas de atividades físicas para a população adulta ou
de terceira idade; as propostas pedagógicas e os modelos didáticos para o ensino de
esportes e atividades corporais para crianças e adolescentes. Entretanto, mesmo não
havendo uma unidade de meios e objetivos, no que tange ao seu conceito teórico - que
tem dado espaço a numerosos debates e tautologias4, podemos observar que os
atores sociais (crianças e o homem comum), dão significado e unidade às diferentes
dimensões da educação física e dos esportes, agrupando em um único eixo as
diferentes atividades corporais que se vinculam ao esporte, ao lazer e à educação
física. Tendo em vista os diferentes campos de intervenção que são entendidos ou
vinculados à educação física, estaremos aqui pensando apenas no espaço da
educação formal, isto é, a educação física escolar.
4 Aqui não estaremos tratando deste tema de forma direta, apenas mencionando sua existência.
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1.2 - O OBJETO DE ANÁLISE.
Desde muito se tem tentado na área da educação física a construção de
conhecimentos que possam dar conta de servir de embasamento aos profissionais que
atuam na área escolar. A partir deste interesse pode-se apontar a construção de
diversas obras com as mais diferentes propostas, tendo por base as mais variadas
vertentes do saber e/ou posições ideológicas.
Tais obras buscam de forma efetiva ou não, pensar e construir conhecimentos e
instrumentos que possam subsidiar a intervenção do profissional dentro da escola em
sua rotina de aulas. Muitas vezes esta discussão, e as conseqüentes propostas,
acabam sendo mais gerais que específicas.
No Brasil esta área de estudos teve notável avanço a partir da década de
oitenta, quando se avolumaram as produções e as publicações e a realização de
encontros científicos, o que contribui para que haja uma maior circulação de idéias e
das várias propostas elaboradas.
No campo da pedagogia da educação física, a partir deste período, os discursos
caracterizados como histórico-críticos assumem prevalência sobre os demais, por
terem atingido em nosso meio grande repercussão. Com base neste argumento, o
objeto de análise deste primeiro artigo são as elaborações da educação física escolar
que se fundamentam a partir da perspectiva histórico-crítica da educação. Como seria
impossível dar conta de todas as propostas histórico-críticas de educação física,
selecionamos a que foi difundida pelo Coletivo de Autores, que pode ser considerada
um típico exemplo destas propostas.
A escolha desta obra não é aleatória, e os argumentos que fundamentaram esta
opção foram: a) o fato deste livro constar em quase todos os concursos públicos em
nossa área; b) seu uso freqüente nas bibliografias dos cursos de graduação em
educação física; c) sua utilização como referência básica de estudos e projetos de
caráter científico; d) o fato de ser um dos poucos livros que tentam apresentar uma
proposta explícita para uma intervenção no espaço escolar. Estes dados, vistos em
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conjunto, indicam a importância desta obra, o que por si só justifica tomá-la como
referencial para a análise dos discursos e das pedagogias histórico-críticas na
educação física escolar. Mesmo que outras análises já tenham sido feitas sobre o
Coletivo de Autores, vale dizer que neste trabalho estaremos dando nossa
contribuição nesse mesmo sentido.
O Coletivo de Autores tornou-se um texto frutífero pela profusão dos relatos de
experiência sobre a aplicação deste tipo de proposta, pela produção de artigos apenas
reiterativos dos valores e da ideologia veiculados e pelos inúmeros textos e livros que
foram construídos como reforço ou ampliação deste modelo pedagógico5. De fato, esta
obra criou vários exegetas.
As críticas a esta obra são raras ou modestas e geralmente não geram rupturas.
Neste sentido, um outro objetivo deste estudo é descrever e analisar a lógica, os
valores e os modelos gerais que inspiram o livro.
O livro foi elaborado a partir de textos de alguns professores e pesquisadores de
reconhecido prestígio e renome em nossa área: Profa. Carmen Lúcia Soares, Profa.
Celi Nelza Zülke Taffarel, Profa. Elizabeth Varjal, Prof. Lino Castellani Filho, Profa.
Michelli Ortega Escobar e Prof. Valter Bracht.
Logo de início é possível observar na obra algumas singularidades que
merecem ser descritas e analisadas. Dentre elas, a forma como se destaca a autoria
do livro. No campo editorial brasileiro é comum a utilização de algumas estratégias
básicas em obras que possuem diversos autores. Uma delas é destacar como
organizador aquele que tem o papel de fazer o diálogo entre os vários autores e a
editora. Outra seria colocar-se em ordem alfabética os nomes dos autores. Outra,
ainda, seria estar à frente aquele que é o principal autor ou que tenha coordenado a
seleção dos textos. No entanto, neste livro não foi usada nenhuma destas estratégias
habituais, pois o que aparece tanto na capa quanto na catalogação bibliográfica é o
termo Coletivo de Autores.
5 Como exemplo, podemos citar que no Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, realizado em Goiânia, no ano
de 1997, de um total de 314 trabalhos publicados, 54 fazem uso do Coletivo de Autores em suas referências e em 12
grupos de trabalho temático, o livro aparece em 10 como referência, sendo que destes diversos se referiam a
relatórios de experiência com a cultura corporal, assim como também no último Encontro Fluminense de Educação
Física Escolar, realizado em Niterói em 2000, vários relatos a partir da obra foram apresentados.
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Assim, cabe indagar porque não colocar estes prestigiados nomes na capa do
livro? Pode-se pensar, a princípio, que tal estratégia estaria vinculada ao chamado
“mercado de citações”, pois caso se optasse pela escolha de um nome principal, os
demais apareceriam como “et al.” e como sabemos isto não traz muito prestígio para
todos. Por certo, esta não foi à razão. Como poderemos ver mais adiante, a estratégia
de usarem a denominação Coletivo de Autores, está vinculada às crenças e ideologias
dos autores. Por agora adentremos um pouco mais no contexto do livro.
1.3 - ENTENDENDO A OBRA.
O livro busca apresentar uma proposta pedagógica denominada pelos próprios
autores de “crítico-superadora”, na tentativa de romper tanto com a visão biologicista,
que até então teria dado suporte às pedagogias tradicionais e tecnicistas, quanto com
as visões existencialista, psicomotricista e cognitivista na educação física. Neste
sentido, cunharam o termo ou conceito cultura corporal, afirmando ser este o objeto de
conhecimento ou o conteúdo a ser tratado pela educação física na escola. Este
conceito acabou por adquirir um grande significado simbólico em nossa área, chegando
a representar a proposta indicada no livro, apesar deste não apresentar precisão e rigor
em sua descrição.
Numa visão internalista, essa proposta didático-metodológica, segundo Resende
(1992), pode ser enquadrada no que se denomina de Pensamento Pedagógico
Renovador da Educação Física Brasileira (PPREFB). Mais exatamente, coloca-se entre
aquelas que fazem uma proposição de fundamentos para uma intervenção didático-
pedagógica, chegando mesmo a exemplificar um modelo de aplicação (MUNIZ, 1996).
Para construir o livro, os autores lançam uma pergunta que vão tentar responder
no transcorrer dos textos: o que é educação física? É na busca da resposta para esta
questão, que os autores pautam suas proposições. Dizem que tal pergunta, “...só faz
sentido, quando a preocupação é compreender essa prática para tentar transformá-
la.”(p.50) e que a busca de respostas para a questão levantada, servirá de base “...para
a construção de uma perspectiva pedagógica superadora...” (p.56). Esta questão é de
difícil resposta, pois sendo de cunho essencialista, ou platônica, tenta buscar uma
essência que se esconde por trás das aparências. A questão seria sociologicamente
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mais bem colocada se os autores se perguntassem: “como, em que situações sociais
os chamados professores de educação física operam?” Os autores parecem objetivar
trabalhar com um ideal normativo do que seja para eles a educação física, e nessa
direção acabam por buscar “a essência”, já que as aparências do fenômeno educação
física são múltiplas.
É possível observar que o foco das preocupações dos autores é a escola. Suas
análises pretendem pensar numa totalidade o que denominam de cultura corporal,
como sendo o objeto de conhecimento a ser problematizado e pedagogizado nas aulas
de educação física no ensino formal. Neste sentido, são levados a separar o “joio do
trigo”, isto é, as manifestações maléficas ou alienadas do esporte e das atividades
corporais presentes na dinâmica escolar e também da dinâmica social, assim como a
perspectiva tradicional e alienada da pedagogia da educação física, no sentido de
resignificar tanto a cultura corporal quanto à pedagogia da educação física.
Assim, a pretensão, na perspectiva dos autores, é fundamentar uma proposta
pedagógica que possa superar o que existe e ser “... uma pedagogia emergente, que
busca responder a determinados interesses de classe...”(p.25). De fato, ao longo da
obra os autores consideram a intervenção pedagógica e a intervenção política como
indissociáveis. Trabalham com a idéia de que a totalidade gera obrigatoriamente
reflexibilidade na parte, ou seja, a intervenção em um dos dois campos faz com que o
outro também se modifique. Tal perspectiva, ainda que não seja a intenção, parece
gerar confusões como a de que existem interesses de classe em todos os traços
culturais. De certa forma, esse tipo de perspectiva gera distorções interpretativas no
entendimento da dinâmica social, por considerar qualquer processo de difusão cultural
como algo organizado pela mão invisível do capitalismo para oprimir as classes
populares. Os autores parecem esquecer da boa tradição marxista, de que a opressão
sofrida pelas classes populares é pela via econômica e se dá, na sociedade brasileira,
fundamentalmente pela brutal concentração de renda nas mãos de poucos. Ou seja, o
problema da opressão é de distribuição.
Na intenção de tentar aproximar o leitor da obra analisada, apresento uma
síntese de sua estrutura. O livro é dividido em quatro capítulos, onde, segundo os
autores “os leitores encontrarão elementos básicos para: a) elaboração de uma teoria
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pedagógica; b) elaboração de um programa específico para cada um dos graus de
ensino”(p.18). Por isto, é possível observar que os autores colocam-se no duplo papel
de, ao mesmo tempo, produzir uma alternativa teórica e apresentar um modelo
didático, o que demonstra seu bom interesse, mas sua difícil tarefa.
O primeiro capítulo trata do desenvolvimento da educação física no currículo
escolar, apontando formas e concepções do trato pedagógico dessa disciplina na
escola. Analisa o currículo, a questão dos ciclos de escolarização e faz uma
confrontação entre duas propostas pedagógicas: a chamada de aptidão física, que é
considerada hegemônica em nosso campo e a da cultura corporal, apontada como uma
proposta emergente. Segundo os autores, a aptidão física caracteriza-se por possuir
estreito vínculo e mesmo estar a serviço do modelo político-econômico vigente, onde “
os interesses imediatos da classe proprietária, correspondem às suas necessidades de
acumular riquezas, gerar mais renda, ampliar o consumo, o patrimônio etc” (p.24).
Assim, o capitalismo traz em si uma pedagogia que se reproduz em todas as instâncias
sociais, e a educação física
apóia-se nos fundamentos sociológicos, antropológicos, psicológicos e, enfaticamente, nos biológicos para educar o homem forte, ágil, empreendedor, que disputa uma situação social privilegiada na sociedade competitiva de livre concorrência: a capitalista. Procura, através da educação, adaptar o homem à sociedade, alienando-o de sua condição de sujeito histórico, capaz de intervir na transformação da mesma. (p.36)
Para os autores, a conjuntura político-econômica acaba por gerar uma
pedagogia ajustada aos seus valores e objetivos sociais. Assim, o seu papel é de
produzir alienados na medida em que “veicula seus interesses, seus valores, sua ética
e sua moral como universais...”(p.24). Em contrapartida, a pedagogia emergente da
cultura corporal pensa privilegiar os interesses de emancipação da classe trabalhadora:
os interesses imediatos da classe trabalhadora, na qual se incluem as camadas populares, correspondem à sua necessidade de sobrevivência, à luta no cotidiano pelo direito ao emprego, ao salário, á alimentação, ao transporte, à habitação, à saúde, à educação, enfim, às condições dignas de existência.(p.24)
Como contraponto a esta noção de que a luta de classes é o motor histórico do
desenvolvimento da sociedade, podemos buscar como exemplo a construção e a
efetivação de políticas de saúde em períodos que remontam ao início do movimento
higienista na Europa. Este movimento que geralmente é caracterizado como tendo sido
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ideológico, representando os valores de uma determinada classe social (análise
marxista), significou uma junção de esforços de vários setores sociais. Pensadores,
industriais, operários e sindicalistas, colaboraram para a construção do ideário
higienista. Parece claro que o que animou o movimento higienista não foi o conflito
direto entre classes, já que todos, de uma forma ou de outra, estavam preocupados em
criar melhores condições de vida e de trabalho.
Por esta época, tanto trabalhadores quanto proprietários se valeram dos
conhecimentos gerados por estudiosos, principalmente os da fisiologia da fadiga, para
poder construir suas ações e assim justificar a redução da jornada de trabalho, pois foi
possível compreender que, assim como as máquinas, também os trabalhadores
deveriam merecer cuidados. Com isso, foi revista a distribuição de horas entre trabalho
e descanso, as condições de higiene gerais da população, dentre outras coisas. Tendo
em vista este cenário, Rabinbach em seu livro The Human Motor (1992)6, trabalha com
o conceito do motor humano, argumentando que o corpo humano como força de
trabalho era o motor do desenvolvimento econômico.
O movimento higienista, de forma geral, serviu como base para construção das
metrópoles. Segundo Góis Junior (2000), apoiado em Rabinbach , “o quadro de
constante crescimento da indústria e da pobreza constituíram um cenário propenso às
reformas de vários setores da sociedade”(p.18-19). Além disso, a construção dos
estados nacionais requeria a “...efetivação da idéia de que a população era a grande
riqueza das nações.”(p.20)
Assim, podemos identificar que a luta entre classes sociais nem sempre é o
agente histórico das ações e das mudanças sociais, ocorrendo também associação
entre estas para construir e consolidar uma dinâmica de relações em que os objetivos
sejam os mesmos.
O Coletivo de Autores aponta que a proposta da cultura corporal vem como uma
tentativa de fazer avançar a área em relação à proposta da aptidão física. Afirmam que
“na perspectiva da reflexão sobre a cultura corporal, a dinâmica curricular, no âmbito da
6 RABINBACH, Anson . (1992). The Human Motor. Los Angeles: University of California Press.
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educação física, tem características bem diferenciadas das da tendência anterior.
(p.38)
É lugar comum falar em superação quando se anunciam proposições de
intervenção pedagógica como novas. O novo sempre é apresentado como mais eficaz,
como referência de mudança, progresso e de evolução em relação ao que está
constituído. Produz-se a necessidade de propor uma identificação, uma marca, e para
tal sempre fazem a leitura de que o passado está ligado a uma noção inadequada do
que querem para o futuro. Hobsbawn (1997) diz que os movimentos progressistas
sempre rompem com o passado, estabelecendo contrastes nítidos que possam
demarcar ou justificar as diferenças. Nesse sentido, a história é usada como um
instrumento de eficácia simbólica.
O segundo capítulo do Coletivo de Autores vem exatamente demonstrar isto
quando constrói uma breve análise histórica das tendências da educação física. O
sentido de evolução, ou a construção negativa do passado, fica expressa quando os
autores afirmam que “diferentes respostas tem sido historicamente construídas sem,
contudo, contribuírem substancialmente para a superação da prática conservadora
existente” (p.50). A concepção de história para os autores vem carregada de um alto
caráter utilitário por ser referência para um projeto de intervenção. A idéia de
superação é central, e nessa perspectiva pensam que ela só pode ser alcançada caso
se conheça o passado para melhor intervir no presente e perspectivar o futuro.
“acredita-se que o breve histórico aqui colocado fornece os elementos de base para a
construção de uma perspectiva pedagógica superadora...” (p.56). O conhecimento da
história serve para construir um projeto de futuro, um futuro que vá superar o presente,
mas para isso tem que se conhecer o passado.
A história assume no texto uma perspectiva teleológica e evolucionista, pois a
intervenção no presente se justifica através dela. Como exemplo deste raciocínio,
buscamos uma música muito identificada com as ações do movimento esquerdista no
país - Para não dizer que não falei de flores (ou Caminhando, como ficou popularmente
conhecida) - cantada por Geraldo Vandré, onde num de seus versos é dito “a certeza
na frente à história na mão”. É assim que é pensada a história neste livro, como um
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elemento de compreensão do passado que vai respaldar uma ação já determinada
para o futuro.
Fica evidente que a transformação pedagógica que os autores pretendem não
se restringe ao âmbito da educação física, pois a perspectiva de análise histórica que
utilizam é do tipo economicista e totalizante, isto é, o sistema político e econômico se
reproduz em todas as esferas sociais. A implicação lógica é que todo o passado da
educação física na sociedade capitalista teria sido moldado por objetivos e tecnologias,
em sintonia com o contexto de evolução desse modelo econômico. Como os autores
consideram esse modelo político-econômico desumano, alienante e deseducativo,
operam no sentido de romper e combatê-lo. Assim, o silogismo que constróem é o
seguinte: se o todo está na parte, tentar mudar a parte é, em certa medida mudar o
todo. Neste sentido, a opção política e pedagógica pode “determina[r] um alvo onde se
quer chegar, busca[r] uma direção[...] que poderá ser conservadora ou
transformadora...” (p.25)
No capítulo três, os autores se concentram no esforço de demonstrar e
exemplificar como a concepção da educação física da cultura corporal pode ser
desenvolvida nas aulas: “[...] neste capítulo serão abordados alguns aspectos
específicos de um programa de educação física [...] quanto ao conhecimento a ser
tratado, à sua distribuição nas diferentes séries e aos procedimentos para ensiná-lo...”
(p.61)
É aqui que se concentra o maior interesse da obra, que é o de tentar construir
exemplos e modelos sobre como efetivamente lidar com os conteúdos e as diferentes
formas de trabalha-los dentro dos ciclos de escolarização, estabelecendo uma
categorização dos elementos de cada conteúdo para cada ciclo.
O capítulo quatro trata da avaliação na educação física escolar. Para os autores,
[...] o sentido de avaliação do processo ensino-aprendizagem em educação física é o de fazer com que ela sirva de referência para a análise da aproximação ou distanciamento do eixo curricular que norteia o projeto pedagógico da escola... (p.103).
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Nesta parte do livro os autores não chegam a fazer uma proposta clara de
avaliação; apenas demonstram acreditar na necessidade de uma aproximação de sua
posição ideológica com uma forma de organizar e pensar a avaliação.
De forma sintética, podemos dizer que o livro pauta-se em fazer uma análise da
educação e da educação física, tendo por base a estrutura político-econômica da
nação, para daí poder apresentar sua proposta pedagógica dentro de uma vertente
ideológica eleita pelos autores numa compreensão de que o que acontece na
sociedade se repete na escola e na educação física. Como visto, em linhas gerais é
assim que se estrutura e se apresenta este livro ao leitor.
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2. Mapeando as questões teóricas.
Nesta etapa apontaremos, ainda que de forma simples, as hipóteses que se tem
em conta neste estudo.
2.1 - DO MODELO.
As obras em educação física que tratam de aspectos didático-metodológicos
buscam amparo em estudos da área da educação, e por vezes realizam uma
adaptação, uma reconstrução de proposições pedagógicas de caráter mais geral para
as especificidades da educação física. Numa visualização ampla das obras sobre
educação e educação física, observa-se a presença de um fenômeno em sua
construção teórica, que é um tipo de lógica que se pode denominar de modelo em
cascata7, onde o fenômeno só pode ser explicado a partir de sucessivos processos
dedutivos, do geral ao específico. Assim, para explicar o que se passa na educação
física, a reconstrução é a seguinte: os analistas tomam a sociedade sob a ótica
generalizante da política e da economia no modelo capitalista; em seguida comentam
os reflexos desse modelo de sociedade na esfera da educação, e por fim de que
maneira tais reflexos ideológicos incidem sobre os modelos pedagógicos da educação
física.
E justamente esta compreensão será um dos eixos deste estudo, ou seja, que o
Coletivo de Autores tem como base para sua construção o modelo em cascata. Em
outras palavras, a justificativa teórica do Coletivo de Autores é construída, a priori,
neste modelo macro. Os argumentos (por certo ideologizados) fornecidos pelos autores
apenas confirmam, pela força da missão que estão imbuídos, que a realidade é assim
tal como o modelo geral apresentado:
Catarinense, gaúcha, pernambucana, paulista, chilena e paranaense... oriundos de diferentes regiões, temos a nos unir a mesma vontade política de arriscar, de desencadear esforços conjuntos visando a concretização de nossa utopia, unidos que estamos na consecução de um mesmo projeto histórico.(p.15)
7 Termo sugerido pelo amigo Edivaldo Góis Junior em conversa pessoal.
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Aqui observamos que os autores colocam-se numa obrigação de caráter moral,
na qual têm de estar unidos para a consecução de suas metas, mesmo que para isso
as diferenças e divergências devam ser mascaradas ou oprimidas. Esta vontade
demonstra a boa índole com a qual os autores partem para a construção do livro, de
estarem todos unidos numa mesma fé, de assumirem um mesmo papel; mas ao
mesmo tempo esta boa vontade mostra-se de difícil realização, pois como pode um
número tão grande de autores apresentar as mesmas compreensões e sentimentos?
Na defesa de suas posições, por vezes o Coletivo de Autores acaba por usar os
mesmos argumentos e posições que critica quando fala sobre o modelo da aptidão
física. Em todo o livro é feita uma crítica feroz ao modelo da aptidão física, e que este
tem estado a serviço do capitalismo numa relação funcionalista. Assim, este modelo
pedagógico estaria estabelecido para fazer valer os interesses do modelo político-
econômico, crendo que a aptidão física “recorre à filosofia liberal para a formação do
caráter do indivíduo, valorizando a obediência, o respeito às normas e à hierarquia.”
(p.36)
Na tarefa de apresentar um modelo diferente, os autores acabam por também
cair na relação funcionalista que criticam, pois entendem que a educação, e no caso a
educação física, devem estar a serviço da mudança social numa perspectiva
transformadora. Esta mudança pauta-se no cenário da luta de classes, que considera o
socialismo como ideal. O Coletivo de Autores diz que a cultura corporal...
...contribui para o desenvolvimento da identidade de classe dos alunos, [...] essa identidade é condição objetiva para construção de sua consciência de classe e para seu engajamento deliberado na luta organizada pela transformação estrutural da sociedade e pela conquista da hegemonia popular. (p.40)
Sobre esta situação de paradoxo, Lovisolo(1995), nos diz que:
...muitos revolucionários da educação raciocinam como os empresários que apenas querem para os trabalhadores uma educação útil para o processo produtivo. Os revolucionários quase sempre a pretendem útil para o processo organizativo-político. Ambos são funcionalistas e utilitaristas da educação. (p.17)
17
Assim, dentro da relação funcionalista existente no Coletivo de Autores, abre-se
espaço para a seguinte questão: onde fica espaço para a dialética proposta pelos
autores?
O livro, que apresenta a lógica do modelo em cascata, inicia sua análise ou
justificativa afirmando que a situação político-econômica brasileira, injusta e desigual,
está diretamente relacionada com as questões específicas da educação e da educação
física. A ordem dedutiva é sempre esta, em que pese a interferência que é uma
condicionante da que está logo abaixo. Desta forma, é difícil explicar a mudança e
mesmo a emancipação, tendo em vista que é criado um quadro de dependência mútua,
onde um fator só se altera se os anteriores também se alterarem. E assim colocada,
como último platô desta cascata, a modificação da educação física fica sendo a mais
difícil.
2.2- O TODO NAS PARTES E AS PARTES NO TODO.
O livro do Coletivo de Autores está bastante próximo de outras linhas de estudo
e proposições da educação e da educação física que tem como linha teórica o
marxismo. Ghiraldelli Junior (1996) diz que estas propostas pedagógicas “...se mantêm
mais no plano da prática pedagógica e/ou da prática político-partidária, sendo
obrigados a enveredarem basicamente por discursos marcadamente normativos.”
(p.189). Nesse caso, o plano discursivo destas propostas considera mais o dever ser,
os desejos, do que as demandas específicas dos atendidos pelo ensino formal.
A partir disto, pensadores e suas respectivas propostas baseiam-se na idéia de
que o todo (capitalismo) faz-se presente nas partes (pedagogias) e que quando alguma
mudança é operada na parte, também se opera mudança no todo, caracterizando
estreita vinculação entre todo e partes e partes e todo e, conseqüentemente, entre
política e educação. Isto mostra que o tipo de modelo utilizado constitui-se num
formalismo que considera o real a partir de um ideal normativo.
O Coletivo de Autores apresenta com este tipo de entendimento - do todo nas
partes e das partes no todo - a idéia de dominância, na qual o controle da classe
trabalhadora - a classe dominada - é feito por quem está de fora; ou seja, desloca-se o
18
eixo para fora do próprio núcleo social. Segundo Lovisolo (1990), “uma espécie de
convencimento generalizado de que o nosso centro está fora, de que o motor da nossa
dinâmica está sempre em outro lugar” (p.16). Aqui se manifesta um paradoxo, pois este
entendimento de que o centro está fora, é aplicado à análise da sociedade. Enquanto
dizem que a classe trabalhadora é controlada, conduzida por uma classe dominante,
ao mesmo tempo o Coletivo de Autores se propõe a defender uma proposta
pedagógica que pode conduzir os alunos a um grau superior de conscientização. Com
isto, quer dizer que o estado em que se encontra a classe trabalhadora e os seus filhos
é de trevas, é de alienação. Assim, o papel dos apóstolos da transformação seria
elevar os alunos à posição de iluminados. Apesar das boas intenções e do discurso
democrático que funciona como mote dos discursos progressistas, não se pode deixar
de apostar que essa é uma posição “...semelhante a do catequizador e a do
colonizador.” (LOVISOLO, 1995: 09).
Assim, como construir um projeto de autonomia, que sem dúvida é o interesse
da obra, com uma idéia geral de condução por quem está de fora? Como ser autônomo
quando é preciso que alguém mostre a realidade? A idéia de autonomia não se efetiva,
pois ela é construída não pelos educandos, mas sim pelos professores que assumem
para si este papel.
2.3 - DOIS MODELOS DE ANÁLISE EM PAUTA.
Em “Educação Popular: maioridade e conciliação” Lovisolo (1990), realizou uma
análise sobre o movimento da Educação Popular na América Latina, com especial
atenção para o Brasil. Nela, entende que o modelo brasileiro vem a significar o anseio
pela construção de uma modernidade nas sociedades periféricas ou subdesenvolvidas,
dizendo que “o objetivo de construção da modernidade me parece haver sido e ser o
contexto de referência maior da atuação da intelectualidade latino-americana...”(p.21).
Também falando sobre estes intelectuais, Ghiraldelli Junior (1996) aponta que “...talvez
seja possível vê-los aglutinados na medida em que esses grupos sempre advogaram
projetos no sentido de integrar o país na modernidade...(p.150).
Em sua análise sobre a educação popular, Lovisolo (1990) aponta que na base
da proposta de intervenção deste movimento educacional está representado o que
19
chama de conciliação entre duas vertentes que são consideradas teoricamente
inconciliáveis: o romantismo e o iluminismo.
De forma geral, podemos dizer que o romantismo é um movimento de oposição
aos valores do racionalismo iluminista, nas formas de encarar as relações e as
produções humanas, valorizando emoções e sentimentos, a natureza humana em sua
totalidade. As noções de particularidade, de cultura local e de pertencimento, são
fundamentais para entender esse movimento. Pode-se pensar que o romantismo
constitui a base para afirmação de narrativas populistas.
Por outro lado, o iluminismo é um movimento de ordem intelectual que se
caracteriza pela valorização da razão e, de forma diametralmente oposta ao
romantismo, trabalha com as noções de distanciamento, de universalização e de
cosmopolitismo.
Ao apontarmos algumas características, tanto do romantismo quanto do
iluminismo, não o fazemos para identifica-los como positivos ou negativos, mas apenas
com o sentido de situar algumas marcas que perpassam pelo Coletivo de Autores,
como elementos representativos da construção da obra e que contribuem para sua
consolidação em nosso meio, que ao mesmo tempo aparecem como um fator que
dificulta o entendimento da coerência do ponto de vista teórico da obra.
Nessa direção, Lovisolo (1990) procura situar os paradoxos que animam a
Educação Popular, onde as aparentes contradições ou contra-sensos tornaram as
propostas educativas da educação libertadora potentes ideologicamente. Neste mesmo
sentido, pensa-se que a tese geral apresentada por Lovisolo sobre a Educação Popular
pode ser estendida e testada nas pedagogias que se autodenominam críticas na
educação e na educação física e que ao pensar o ensino formal apresentam
continuidade com as teses de Paulo Freire. No caso específico da educação física,
Medina (1983), num livro pioneiro8 do Pensamento Renovador da educação física,
trabalhou diretamente com as categorias de consciência utilizada por Paulo Freire. Da
mesma forma, vários autores do campo da educação trilharam por esse caminho.
8 MEDINA, João Paulo Subirá. (1983). A Educação Física cuida do corpo e “mente”. São Paulo: Papirus.
20
Com isto formula-se a hipótese de que o Coletivo de Autores se vale também da
conciliação entre romantismo e iluminismo, buscando conciliar valores e ideais que são
inconciliáveis do ponto de vista teórico, mas que aparentam ser potentes do ponto de
vista ideológico. Talvez por este motivo a proposta da cultura corporal tenha produzido
impacto junto aos professores universitários da educação física, insatisfeitos com o
modelo político-econômico e com a educação em nossa sociedade.
O que se apresentou aqui foi a hipótese que norteia este estudo. Poderemos
observar, ao longo do texto, que o Coletivo de Autores trabalha com este tipo de
construção. Talvez, o impacto da proposta da cultura corporal seja explicado a partir
dos paradoxos identificados por Lovisolo. Adentremos um pouco mais na obra.
21
3. ANÁLISE DA OBRA.
3.1- POLÍTICA E EDUCAÇÃO
Quando o Coletivo de Autores fala do surgimento de uma pedagogia, diz que
esta surge quando existem “... momentos em que se acirra o conflito, o que vem a
provocar uma crise. E é exatamente dessa crise que emergem as pedagogias” (p.24).
Ainda quando fala da proposta do livro, dizem que “o presente texto trata de uma
pedagogia emergente, [...] denominada aqui de crítico-superadora.” (p.25). Pode-se
notar, nos segmentos acima, aquilo que Ghiraldelli Junior (1996) identificou como um
discurso normativo presente nas construções das pedagogias críticas. Assim, o
surgimento de uma nova pedagogia, ou de qualquer coisa, só pode surgir via conflito
ou crise, e esta é uma normatividade que guia o processo social ou a realidade no
discurso do Coletivo de Autores.
Outra idéia bastante forte no Coletivo de Autores é a de crise como o cenário
ideal para a criação, neste caso especificamente, de pedagogias,. Todavia, este tipo de
pensamento é por si só excludente e difícil de demonstrar, justamente por negar outras
formas possíveis de criação que não a crise.
Ao tratar das relações sociais, o Coletivo de Autores afirma que a classe
dominante faz uso da política, da cultura e da economia para garantir sua hegemonia
ideológica, pois “ela detém a direção da sociedade: a direção política, intelectual e
moral” (p.24). O modelo de análise sócio-política utilizado no escopo da obra apresenta
a sociedade como algo estanque, nitidamente cindida entre dominantes e dominados
ou entre burguesia e proletariado, sendo os últimos denominados genericamente de
classe trabalhadora. A obra em estudo parece querer negar a dinâmica social que
coloca o conceito de trabalho em xeque. O Coletivo de Autores parece pensar a
sociedade apenas a partir do conflito entre dominantes e dominados, não levando em
conta as possíveis relações entre as diversas classes sociais, ou mesmo o fato de que
as diferentes classes podem, por vezes, apresentar os mesmos interesses e que a
produção de uma história e de uma cultura, podem acontecer dentro deste quadro de
relações múltiplas. A propósito, Boudon (1990) afirma que as mudanças também
22
podem acontecer no seio de uma tradição, sem que haja necessidade de grandes
rupturas e conflitos.
Podemos dizer que numa construção como esta há, na verdade, uma autêntica
ideologização ou doutrinação desse tipo de argumento normativo. O curioso é que os
autores, no decorrer da obra, não apresentam dados ou argumentos que de alguma
forma explicitem a idéia de conflito, de luta entre dominantes e dominados, seja na
sociedade, na educação ou na educação física. Por não apresentarem argumentos
plausíveis, os autores acabam por impor aos leitores apenas seus valores normativos
sobre a sociedade e sobre a educação que idealizam. Parecem não prescindir de uma
necessidade de estabelecer seus valores e sentidos como verdades absolutas e
únicas, onde talvez até se ignore “...as alterações na dinâmica da vida efetiva, do
pensamento e dos paradigmas científicos e filosóficos.” (GHIRALDELLI JUNIOR,
1996:158). Na esteira de Ghiraldelli Junior, poderíamos dizer que o Coletivo de Autores
pretende congelar a realidade.
A perspectiva apresentada é a da construção de uma sociedade futura, que seja
socialista. Embora os argumentos sejam ideologizados e doutrinadores, seus autores
fazem sua autodefesa dizendo que “tratar dos grandes problemas sócio-políticos atuais
não significa um ato de doutrinamento” (p.63). De fato, a doutrina é tão forte que os
autores necessitam defender-se da pecha que lhes pode ser imputada.
Arendt (1997), quando trata da relação entre política e educação, diz que o
desejo de criar um novo modelo de sociedade a partir do cenário educativo “...é um
simulacro de educação, enquanto o objetivo real é a coerção sem o uso da força.”
(p.225). Os argumentos do Coletivo de Autores se autodenunciam quando afirmam
“defendemos uma proposta clara [...] que viabilize a leitura da realidade estabelecendo
laços concretos com projetos políticos de mudanças sociais” (p.63). De fato, o
argumento anunciado pelos autores, apesar das boas intenções, pode ser lido como
vanguardista que pressupõe a coerção sem fazer uso da força, tentando para isto fazer
uso do peso de uma argumentação que se apresenta como científica.
Assim, podemos dizer que os autores fazem uma análise da estrutura social a
partir de um único enfoque, não levando em conta outras formas possíveis de
23
entendimento de sociedade. Para isto, tentam de qualquer forma encaixá-la em um
modelo teórico escolhido como ideal e unicamente correto, ou seja, vêem o que
querem e do ponto de vista que querem e, principalmente, só o que querem e
objetivam. Ghiraldelli Junior (1996), apresenta a concepção daquilo que chama de
esgotamento das energias utópicas, quando diz que as proposições pedagógicas de
caráter marxista devem estar atentas e considerar as alterações no cenário da filosofia
social, a fim de tentar rever suas idéias e suas afirmações. [...] “assim, a pedagogia
marxista não pode mais se dar o direito de proferir frases de efeito.” (p.186), devendo
refazer sua leitura de realidade a partir de um cenário efetivamente instalado e não
mais um cenário idealmente concebido ou pré concebido.
As pedagogias ditas críticas, e entre estas a cultura corporal, apresentam a
concepção de que a existência de criticidade por parte do aluno vem como sinônimo de
se ter um conceito, uma visão de mundo na lógica marxista, onde a crítica significa a
identificação com um marco ideológico identificado como ideal (LOVISOLO, 1997).
Entretanto, como se pode observar no cotidiano universitário, sindical e escolar, o que
existe é a incorporação de frases de efeito e jargões supostamente politizados, sem
que se incorporem também os instrumentos de reflexão e análise, o que os torna tão
alienantes quanto os discursos despolitizados. As palavras de ordem sem reflexão
apenas auxiliam a maquiar um discurso supostamente crítico, que no fundo pode
esconder uma espécie de religiosidade e mesmo um ressentimento.
Para o Coletivo de Autores o desenvolvimento do pensamento crítico no espaço
da educação física se dá através do contato com a metodologia da cultura corporal.
Assim, a utopia é de que todos possam se assumir enquanto seres críticos, com
capacidade de ter e fazer uma análise do quadro social, político e econômico. Desta
forma, supõem que o processo de formação de alunos críticos e reflexivos não pode
acontecer no cenário educacional dominado por pedagogias tradicionais,
escolanovistas ou tecnicistas.
Segundo o Coletivo de Autores, a aptidão física pode ser lida como tradicional, e
como paradigma de ensino que não dá conta de fornecer instrumentos de reflexão e
crítica sobre a sociedade, já que não opera na lógica do ideário marxista.
24
Outra referência de análise deste nosso estudo é a forte crítica que o Coletivo de
Autores estabelece ao uso que o poder político faz da educação e da educação física
como forma de manutenção e ampliação de seu alcance de poder. Porém, o que
propõe como estratégia de ação e objetivo de toda prática educativa, dentro desta
perspectiva, é basicamente buscar hegemonia nos campos político e pedagógico. O
belicismo9 é evidente nos discursos. O fim da educação acaba por confundir-se com a
tomada de poder. Nessa direção, os autores se tornam porta-vozes dos “...interesses
históricos da classe trabalhadora [que] vêm se expressando através da luta e da
vontade política para tomar a direção da sociedade, construindo a hegemonia popular”
(p.24). Não sabemos se é exagero esta nossa interpretação, mas o discurso do
Coletivo de Autores por vezes parece reivindicar a instauração de um regime totalitário,
onde a hegemonia seja popular, fazendo lembrar da tese da ditadura do proletariado.
Como sabemos, em nossos dias o discurso favorável a instauração de ditaduras soa
como um espécie de anacronismo.
A cultura corporal tem como objetivo contribuir e ser um processo de
transformação social, por entender que o espaço escolar é um locus privilegiado para
esta ação, na medida que contribui com a formação política e intelectual do educando.
Como dissemos no início desta seção, ao pensar na escola como um espaço de
transformação social, o Coletivo de Autores estabelece uma conciliação entre
romantismo e iluminismo, pois enquanto pensa o cidadão e a sociedade numa ótica
romântica (valorização daquilo que é singular, particular e local), pensa a educação
numa visão iluminista (de valorização de ideais científicos e universais).
O que foi visto até aqui caracteriza a estrutura maior da obra analisada, que é
pautar-se numa constante relação entre o palco da política e o palco da educação,
dizendo que a proposta pedagógica tratada no livro advém de uma interpretação da
política em sua forma mais geral. A este fato, Lovisolo (1990) chama de “...processo de
politização da educação e pedagogização da política.”(p.61)
Pode-se pensar, então, em dizer que esta imbricação entre política e educação
9 Fato visível nas falas em palestras e congêneres, quando se diz que estamos vivendo um período pré-
revolucionário, sendo a luta armada uma das opções de tomada de poder pela classe trabalhadora (vide palestra de
abertura do IV EnFEFE, proferida pela profª. Celi Taffarel).
25
configura o paradoxo maior desta obra, que se dá entre o romantismo e o iluminismo,
numa busca de conciliação entre estes dois modelos de pensamento.
Logo ao início os autores afirmam que este livro “...deve fornecer elementos
teóricos para assimilação consciente do conhecimento, de modo que possa auxiliar o
professor a pensar autonomamente.” (p.17); e que “...pretende-se instigar o professor
a eleger [...] aquela perspectiva que responde às exigências atuais do processo de
construção da qualidade pedagógica da escola pública brasileira”. (p.23)
O que se lê acima indica a imagem que os autores fazem dos professores que
atuam no espaço escolar, considerando-os incapazes e sem autonomia. Indicam a
necessidade de um agente externo para conduzi-los nesta passagem para o estágio de
um pensar autônomo, para a construção de uma educação melhor. Segundo o ponto
de vista do Coletivo de Autores, o que é melhor é determinado, não possibilitando ao
leitor o direito de acordo ou desacordo, já que faz um embate entre a aptidão física que
é vista como negativa, injusta e retrógrada e a cultura corporal, vista como positiva,
justa e de vanguarda, donde depreende-se que só esta pode ser aceita.
De forma clara, pode-se observar que aqui se configura como eixo de análise a
idéia de que sempre tem de haver uma condução externa para que se possa alcançar
o que há de melhor, existindo sempre um deslocamento para fora, o que acontece por
falta de autonomia, que sempre pertence ao outro.
Veyne (1982), numa análise sobre as práticas de governo na sua relação com
os cidadãos, considerou três diferentes tipos: povo rebanho, quando este é tratado e
conduzido sempre por um superior, que deve cuidar para que o povo permaneça
saudável; povo criança, quando o povo deve ser cuidado por ser frágil e incapaz de
seguir sozinho, e quando trata o povo como se cuida de um fluxo de águas, que se
guia por si próprio e o estado só deve acompanhar este fluxo, por onde cada qual
seguirá.
Esta consideração feita por Veyne permite dizer que, quando faz referencia ao
professor e ao educando, vigora no Coletivo de Autores a concepção do povo criança,
por considerar que este precisa ser conduzido, levado ao melhor caminho, protegido
26
até que consiga alcançar certo grau de maturidade. Nesta relação entre política e
educação, quando se trata do povo há grande ambigüidade, pois o Coletivo de Autores
o considera ao mesmo tempo maduro e imaturo. O povo é tratado simultaneamente
como criança e como um fluxo de águas. Nisto também reside o paradoxo da
conciliação do inconciliável.
Na apresentação de sua intenção do que chama projeto político-pedagógico, o
Coletivo de Autores afirma que
...os interesses históricos da classe trabalhadora vêm se expressando através da luta e da vontade política para tomar a direção da sociedade, construindo a hegemonia popular Essa luta se expressa através de uma ação prática, no sentido de transformar a sociedade de forma que os trabalhadores possam usufruir do resultado de seu trabalho. (p.24).
Aqui fica nítida a percepção de um povo consciente e maduro, portanto capaz de
conduzir suas ações, encaminhar suas diretrizes de vida e lutar por seus interesses e
motivações. Ao mesmo tempo apresenta a noção de um povo que precisa ter uma
condução para que alcance estágios de superioridade. Isto fica visível quando o
Coletivo de Autores fala que“...deve fornecer elementos teóricos para assimilação
consciente do conhecimento, de modo que possa auxiliar o professor a pensar
autonomamente” (p.17).
...o confronto do saber popular (senso comum) com o conhecimento científico universal selecionado pela escola, o saber escolar, é do ponto de vista metodológico, fundamental para a reflexão pedagógica. Isso porque instiga o aluno ao longo de tal escolarização, a ultrapassar o senso comum e construir formas mais elaboradas de pensamento. (p.32).
Com esta confrontação, identifica-se a ambigüidade, pois ao mesmo tempo em
que enxerga no povo uma capacidade de auto-condução, identifica a necessidade de
haver algo de fora que seja capaz de conduzir a massa; assim como vê nos valores de
origem da população algo de forte representatividade, o Coletivo de Autores vê
também algo que precisa ser trabalhado, ser superado.
Esta oposição entre valorização do que é popular e identificação de necessidade
de superação, pode ser situada naquilo que trataremos por pertencimento e
distanciamento, isto é, a conciliação do romantismo com o iluminismo. Na mesma
medida que valoriza a cultura popular, suas raízes e tradições, o Coletivo de Autores
27
procura saltar desta para a visão científica ou crítica através do trato pedagógico,
sendo isto chamado de salto qualitativo.
Este trilho que pretende iniciar sua via na cultura do aluno e terminar na cultura
universal, é uma caracterização de que deve existir uma mudança de percepções e
relações com a história de vida do aluno, pretendendo que se parta de uma para
chegar à outra.
Utilizando o argumento de Lovisolo (1990), podemos dizer que a convivência
estabelecida entre a noção de pertencimento, que se caracteriza como marco do
romantismo, e a noção de distanciamento, que se caracteriza como marco do
iluminismo, exemplifica a conciliação de perspectivas inicialmente contrárias em suas
formulações, tendo em vista que são maneiras distintas de se pensar a ação educativa
e as relações políticas. Este fato pode ser positivo numa tentativa de construção
pedagógica, pois fortalece a proposição. Assim é no caso da cultura corporal, mas que
ao mesmo tempo acaba por criar dificuldades para se sair do plano da idealização para
o plano da concretização.
O pertencimento vale-se de criar uma proximidade com o eixo cultural original do
indivíduo; tem característica de manutenção das raízes e tradições e tem um caráter
local; já o distanciamento, com uma caracterização cosmopolita, pauta-se num
constante afastamento dos valores locais e regionais, tendendo a buscar uma relação
mais distante das origens de cada pessoa. Assim, afirma-se uma necessidade de
identificação com os dados da realidade na qual se inserem os alunos, sendo isto uma
forma de valorização do popular, do que lhe é peculiar em sua vivência. No entanto, ao
mesmo tempo afirma-se a necessidade de, através do trato pedagógico de tais
conhecimentos, possibilitar ao aluno uma aproximação/adesão com a cultura clássica
e/ou erudita. Citando Libâneo10, o Coletivo de Autores diz que não se trata de oposição
total entre a cultura erudita e a popular, mas uma relação de progressão, quando “se
passa da experiência imediata ao conhecimento sistematizado.” (p.32).
Identifica-se então uma realidade que é a de, através do contato com o espaço
escolar, possibilitar ao aluno um afastamento de suas vivências imediatas e mais
10
LIBÂNEO, José Carlos. (1985). Democratização da escola pública: a pedagogia crítico-social dos conteúdos. São
28
próximas, encaminhando-se para uma realidade que não é característica em sua
história, que é originária e característica de outra realidade social. Isto demonstra a
noção de distanciamento. Assim, como superar o dilema etnocêntrico se a proposta da
escola é socializar os alunos com a cultura cosmopolita e erudita?
Vê-se aqui outro paradoxo da obra, que se dá entre pertencimento e
distanciamento, onde o primeiro molda-se ao romantismo e o segundo ajusta-se ao
iluminismo. Isto se identifica com a visão romântica sobre a população e com a visão
iluminista da educação. Romântica pois fala daquilo que é próprio ao povo, comum ao
seu meio social e iluminista por se pautar nas perspectivas educacionais, nos eixos
constitutivos da ciência, numa cultura cosmopolita.
A partir disto, e com apoio em Lovisolo (1990), podemos inferir que a utilização
da cultura local como base do conhecimento escolar pode ser na verdade um ardil
metodológico, pela necessidade de se criar um convencimento de seus interesses
próprios, a partir da lógica de levar o aluno até o que é universal afastando-o de suas
raízes. Ao mesmo tempo em que se busca a valorização da cultura popular, pretende-
se a sua transformação; a autonomia só será construída quando as classes populares
tiverem adotado os valores e os elementos da cultura erudita. Instala-se uma oposição
que tenta ser trabalhada conjuntamente na cultura popular, que é visualizar o que é
popular em seu meio natural, com sua cultura própria, e fazer vigorar as formas de trato
com o conhecimento do meio científico.
Nicolaci-da-Costa (1987), quando discorre sobre o sucesso escolar das classes
populares, fala dos conflitos que esses alunos podem vir a ter, chegando a uma
possível rejeição de suas origens: “...todos nós estamos familiarizados com estórias do
filho de fulaninho que “se formou na escola” à custa de sacrifícios da mãe, do pai ou de
ambos, e depois teve vergonha de suas origens e rejeitou-os” (p.52). A autora
argumenta que o aluno bem sucedido passa por uma sofrida adaptação quando retorna
da escola ao seu ambiente natural, pois já incorporou elementos típicos da escola e
estranhos ao seu grupo social, o que cria um conflito interno de grande ordem. Ainda
sobre isto, existe a idéia de que “parece que o sucesso escolar do sujeito de camada
popular tem o potencial de roubar-lhe não somente a identidade cultural..” (p.54) Aqui,
Paulo: Loyola.
29
a relação entre pertencimento e distanciamento acaba por criar um problema para a
criança, pois esta passa a pertencer à cultura escolar quando tem sucesso, mas
distancia-se de sua cultura de origem.
Lovisolo (1990), mostra que também é possível dentro da relação entre
pertencimento e distanciamento, identificar uma nova conciliação, desta feita entre o
populismo e o vanguardismo, isto no plano político. O populismo vem a se aproximar
do romantismo e o vanguardismo do iluminismo.
Esta conciliação de índole política consolida-se na efetivação da ação
pedagógica. O caráter populista é percebido na tentativa de trazer para dentro do
espaço escolar aquilo que é característico de cada indivíduo, de cada população,
vinculado à idéia de pertencimento. Isto se percebe quando no Coletivo de Autores é
dito que a educação física escolar “[...] contribui para a afirmação dos interesses de
classe das camadas populares...” (p.40). O vanguardismo, é vislumbrado na tendência
universalizante no trato com o conteúdo, prendendo-se ao fato de direcionar o aluno
para este mundo, numa perspectiva de distanciamento do que lhe é de origem: “[...]
existe uma cultura corporal resultado de conhecimentos socialmente produzidos e
historicamente acumulados pela humanidade que necessitam ser retraçados e
transmitidos para os alunos na escola” (p.40). É possível identificar ainda que
[...] a perspectiva da educação física escolar, que tem como objeto de estudo o desenvolvimento da aptidão física do homem, tem contribuído historicamente para a defesa dos interesses da classe no poder, mantendo a estrutura da sociedade capitalista. (p.36).
Aqui, é possível perceber que os autores elaboram a idéia de que o que
denominam aptidão física, está colocada como mecanismo de defesa dos interesses
da classe dirigente. Por outro lado, “...a expectativa da educação física escolar, que
tem como objetivo a reflexão sobre a cultura corporal, contribui para a afirmação dos
interesses de classe das camadas populares, na medida em que desenvolve uma
reflexão pedagógica...” (p.40). Fica evidente que a intenção do texto é propor um novo
entendimento sobre a sociedade a partir da pedagogia que resignifique isso que se
denomina cultura corporal.
30
Ao colocar a aptidão física associada ao sistema capitalista e a cultura corporal
associada a uma suposta pedagogia marxista, o Coletivo de Autores não se preocupa
em clarificar o que vem a ser a aptidão física, nem o que seja cultura corporal. Valem-
se apenas da defesa de sua proposição como sendo a que vai acabar com todas as
mazelas de nossa sociedade. Ghiraldelli Junior (1996), também questiona esta posição
do Coletivo de Autores quando diz que a pedagogia marxista “silencia pela simples
razão de que advoga o socialismo, sem mais nem menos, acreditando não precisar
com isto explicar mais nada?” (p.185).
Com a adoção desta linha de confronto, o Coletivo de Autores configura uma
tendência à intolerância, haja vista que não pretende dialogar, pois há uma pré-
determinação que é a de ver de um lado o bem e de outro o mal.11
A busca de enquadramento do país num ideal de modernidade, que se configura
como um elemento típico da noção iluminista, numa visão globalizante a partir de
referenciais de construção da norma científica, pode ser identificado na passagem a
seguir: “trata-se de uma direção científica do conhecimento universal enquanto saber
escolar.”(p.30) Isto acaba por se opor ao ideal romântico de defesa apaixonada, e por
vezes contundente, do que é popular. O argumento da direção científica evidencia a
clara posição cientificista.
Ainda sobre esta busca pela inserção do país na modernidade, uma
modernidade que levará a nação a um outro estágio de relações, vemos em Ghiraldelli
Junior (1996), que
Por sua vez, os grupos advogados da pedagogia marxista também desejavam e realização da utopia da modernização, porém, esta é bem vinda apenas como situação transitória para uma outra modernidade na qual o capitalismo cede lugar ao socialismo.(p.157).
Assim, segundo o Coletivo de Autores, instaurar-se-ia um movimento de
passagem que se vincularia a uma mudança de estágios de consciência, de mudança
de perspectivas e valores, que permitiria acontecer esta alteração do quadro sócio-
11
Cabe dizer que esta intolerância, por várias vezes se mostrou no cenário da Educação física, onde em encontros se
criavam conflitos e lutas por pessoas discordarem de nossas posições.
31
político-econômico, propiciando a derrocada do capitalismo e a ascensão do
socialismo. Essas são idealizações das pedagogias de ordem marxista.
Podemos observar o seguinte quadro: o aluno, e também a educação física,
encontram-se num determinado patamar, e procura-se, com a proposta da cultura
corporal, levar este aluno e esta educação física para um outro nível. Contudo, este
nível não é apenas do conhecimento e do saber, pois o objetivo pelo qual a sociedade
deve lutar é o do conhecimento incorporando valores. Para isto, é preciso que se faça
uma conversão de valores, de conhecimentos e de perspectivas. Deve-se buscar
identificar como se dará esta mudança, de que maneira será executada, de que
maneira será viabilizada esta passagem de um aluno e de uma educação física que
não são críticos para um aluno e uma educação física que sejam críticos? Como se
efetiva esta mudança de graus de consciência?
Para fazer acontecer esta mudança, o Coletivo de Autores mete à cena uma
perspectiva semelhante à religiosa, que prevê algo como uma conversão, que vai
depender de uma iluminação. Esta iluminação que tem caráter teórico, acontece
quando existe um contato e uma vivência com a cultura corporal, no caso o livro
analisado. O processo pedagógico nesta perspectiva propiciará o encontro do caminho
para a libertação, para a salvação de quem até então se encontrava em estado de
dependência - os professores comuns e os escolares pertencentes à classe
trabalhadora. Esta libertação assume uma dimensão político-social, haja vista que tem
como objetivo final da cultura corporal potencializar um quadro de mudança e
transformação das subjetividades em relação à dinâmica social.
Em Lovisolo (1990), podemos identificar que todo este processo de conversão é
notadamente iluminista, pois preconiza que a mesma se efetivará quando houver a
efetivação de uma nova noção e compreensão de um quadro político-social, uma nova
compreensão do processo histórico. Haverá uma iluminação que permitirá ao homem
comum ser encaminhado para um grau superior de cidadania. Esse processo efetiva-
se a partir da apropriação dos métodos científicos, dos valores normativos que balizam
o entendimento e ações no mundo. Contudo, o paradoxo se instala: a cultura local é
abandonada ou reinterpretada? Caso seja reinterpretada, onde localizaremos a
originalidade do saber local?
32
O Coletivo de Autores, utiliza uma lógica normativa e generalizante, sempre a partir
da orientação ideológica assumida explicitamente - o marxismo - como uma teoria
superior para interpretar a realidade. Nessa perspectiva, o marxismo como teoria
sociológica desaparece, para ceder lugar aos ideais e aos valores normativos de uma
utopia ou de uma teleologia também presentes em um Marx militante político. Isto faz com
que se torne difícil entender onde haverá espaço para a dialética na cultura corporal.
Como ser dialético quando a compreensão, a análise e a intervenção baseada nos
valores normativos são definidas aprioristicamente? Como ser dialético onde o ideal é
somente o que é visto a partir de sua própria orientação política? Como dar trato dialético
ao conhecimento, onde já existe uma interpretação definida da realidade social e da
direção que esta deve tomar?
Sobre isto Ghiraldelli Junior (1996) diz que “os socialistas precisam, novamente,
aprender a debater sem achar que conhecem o futuro, porque não conhecem, pois
ninguém conhece” (p.186). É preciso restaurar, ou criar este hábito no campo da
educação física, para que os que participem em encontros e eventos acadêmicos ou
envolvidos na labuta do cotidiano façam do diálogo o mecanismo de avanço para a
área.
Em uma das passagens do livro, num ensaio totalizante, o Coletivo de Autores
utiliza como argumento para justificar suas propostas e suas críticas, determinados
sentidos e valores que afirmam terem alunos e professores sobre o esporte:
...para o aluno, o que ele deve fazer para jogar - como driblar, correr, passar e fintar - é apenas um meio para atingir algo para si mesmo, como por exemplo: prazer, auto estima etc. O seu sentido pessoal do jogo tem relação com a realidade de sua própria vida, com suas motivações.[...} o professor vê no basquete um evento, mais do que lúdico, de luta entre equipes, das quais, uma será naturalmente a ganhadora.[...] Por esse motivo, para o professor, driblar, correr, passar, fintar etc. devem ser executados sem erros. (p.62).
Estas passagens, indicam o vínculo entre política e educação que pode ser
identificado no livro. Aqui o Coletivo de Autores tenta, de alguma forma, a partir de tipos
ideais, estabelecer ligações entre o cenário da política capitalista, que se repete na
ação do professor, e uma pratica alienada em consonância com os ideais capitalistas.
33
A cultura corporal afirma-se como uma pedagogia que, mais do que lidar com os
aspectos técnicos específicos da educação física, tem a preocupação de estar
formando os educandos para que estes possam intervir na modificação da organização
político-econômica da sociedade brasileira. Para isso, esta teoria busca tratar o
conhecimento de forma que esse possa
... ser retraçado desde sua origem ou gênese, a fim de possibilitar ao aluno a visão de historicidade, permitindo-lhe compreender-se enquanto sujeito histórico, capaz de interferir nos rumos de sua vida privada e da atividade social sistematizada.” (p.40).
Esta perspectiva da cultura corporal - de preparar o educando para um futuro,
para um mundo que se pretende novo através da educação - mostra-nos “...o desejo
de arrancar das mãos dos recém-chegados sua própria oportunidade face ao novo”
(Arendt,1997:17) já que o novo será demonstrado e instalado por quem detém o
controle do processo educacional e não pelo próprio aluno.
Sobre esta relação de enfrentamento entre passado e futuro, Nóvoa (1999), diz
que “fala-se muito em preparar para a vida. Os educadores transmitem uma visão de
futuro luminosa, mas esquecem as sombras do presente, e isto reflete uma
incapacidade de enfrentar os problemas de hoje...” Isto denota que este vácuo
existente cria um quadro de não atribuir sentido ao momento vivido, não refletir uma
realidade, que é o tempo real do aluno dentro da escola.
Outro desdobramento é a forma como o Coletivo de Autores lida com a questão
dos valores da cultura popular e da normatização científica dentro de sua proposta
pedagógica. Sob o rótulo do marxismo, pode-se identificar nessa postura um forte viés
cientificista e positivista, quando se acredita que a intervenção no sentido da
transformação social deve ser realizada a partir da ciência.
Existe um constante apelo para um respeito aos diversos valores da classe
trabalhadora, num contexto de relativismo a diferentes culturas, o que é uma
característica típica do romantismo. Por outro lado aplica-se a razão iluminista quando
se usa da universalização dos ideais de alta civilização e consciência crítica para fazer
uma defesa do que é ou não bom, correto e aceitável em sua teleologia para a futura
sociedade.
34
O que está sob o discurso de construção de uma “democracia” através da
valorização do popular, que se ajusta ao romantismo, pode ser na verdade um
mascaramento de uma posição que na verdade pretende a imposição, por
“comprometidos”, de valores tidos como ideais que mais se assemelham ao ideal
iluminista. Isto se observa quando o Coletivo de Autores, citando uma palestra
proferida por Marilena Chauí, elege quatro elementos chaves como sendo a base de
ação da cultura corporal em sua politização, a saber: desestabilizar, estruturar,
convencer e consolidar. Sobre isto diz o Coletivo de Autores, que
Na educação, esses momentos são historicamente vividos e dão movimento às
lutas pelas transformações educacionais.
Na escola, esse movimento orienta o horizonte dos educadores comprometidos
com a democracia deste país.
Na educação física, esse movimento se expressa na vontade política de
construção de uma teoria geral da educação física que consubstancie uma
prática transformadora.
Neste livro ambos são contemplados. (p.43)
Os autores estabelecem uma relação de dependência entre a pedagogia e a
política, devendo estar a primeira a serviço da Segunda como forma de poder alcançar
os ideais desejados por estes, que crêem, são os necessários para se alcançar uma
sociedade melhor.
No sentido de reiterar algumas das idéias discutidas ao longo desta seção,
mesmo correndo o risco de ser repetitivo gostaria de reforçar alguns pontos relevantes.
Quando se busca no Coletivo de Autores trabalhar a participação dos
educandos na proposta pedagógica, vê-se de novo a existência de contradições na
forma de entendimento como esta se dá. É dito, de início, que a classe trabalhadora
esteve sempre a expressar seus interesses e desejos através de um movimento que
representaria uma luta entre classes, onde a classe dominante tinha o interesse de
manter o poder e a classe dominada de tomar o poder. É a leitura de uma população
madura, conseqüente, responsável e resistente, capaz de dirigir seus próprios
caminhos, o que representa uma concepção fundamentalmente iluminista. Todavia, a
35
partir do momento em que são apresentadas as proposições de uma nova pedagogia,
a sociedade passa a ser vista pelo Coletivo de Autores como conformista, pois entende
que somente a partir desta nova concepção de educação é que estaremos lutando a
favor de uma sociedade mais justa e igualitária. Afirma o Coletivo de Autores que é
através da cultura corporal que os alunos serão levados a um nível de conhecimento
elevado e crítico, e que, por outro lado, a concepção negada, a aptidão física, não
permite ao educando alcançar o nível de compreensão necessária.
Lovisolo (1990), mostra que quando se vislumbra uma integração positiva entre
a ação pedagógica e a formação política, entendendo que essa conjunção por si só da
conta de uma modificação de estados de consciência, ocorre também uma conciliação
entre uma posição romântica, vista na formação política, e uma iluminista, na lógica da
ação pedagógica. Talvez esta seja a principal das conciliações, justo que é a partir daí
que se constrói a lógica desta obra.
Observemos o paradoxo neste tipo de conciliação. O iluminismo pensa a
educação como uma aprendizagem que leva ao caminho de um distanciamento,
entendendo que a cultura de um povo é sempre um estágio no processo civilizatório,
que tem um caráter universalista; em contrapartida, o romantismo é pensado a partir de
um pertencimento, da valorização de uma cultura que é local, especifica e original a
cada nação. Como pode ser visto, romantismo e iluminismo funcionam numa oposição
polar, ou seja, estão em pólos opostos e bastante distantes no que se refere ao
pensamento sobre educação.
Este sentido de pertencimento e distanciamento permeia toda a obra, onde
distanciamento vem simbolizar a mudança do estado de consciência da população,
alterando suas formas de compreensão da realidade, numa ação de desencantamento
(Idem, p.28). Pertencimento, vem significar que isto deva acontecer sem que se
abandone tradições e raízes próprias, numa defesa da cultura popular, mas buscado-
se uma reinterpretação da mesma.
A construção e o reforço desta conjugação contínua de proposições que levem
ao pertencimento e ao mesmo tempo proposições que se dirigem ao distanciamento,
situa-se num contexto entre um populismo que pretende defender interesses da classe
36
popular e um vanguardismo que pretende a construção de uma nova sociedade, a
partir do domínio da razão.
Dentro desta relação entre política e educação, vislumbra-se uma série de
contradições nas quais acaba por cair o Coletivo de Autores, onde a maior delas talvez
seja a perspectiva normatizadora e totalitária, que é criticada quando vista na aptidão
física, mas bem aceita pela cultura corporal.
3.2- A METODOLOGIA DE ENSINO E A AVALIAÇÃO.
A apresentação de uma proposta didático-metodológica é a grande pretensão do
Coletivo de Autores, quando pensa em tratar de “aspectos específicos de um programa
de educação física para o ensino fundamental e médio” (p.19). Ainda é dito que a
cultura corporal vem “responder à inquietação do professor quanto ao conhecimento a
ser tratado, à sua distribuição nas diferentes séries e aos procedimentos para ensiná-
lo”(p.61).
Com a análise do que se identifica como sendo a metodologia de ensino em si,
pode-se observar que a cultura corporal tem a característica de ser ampla e ainda de
trazer exigências de conhecimento que remontam à formação profissional, e fazem com
que esta seja revista e repensada, apontando aí uma perspectiva que tenta pensar
também as graduações a partir do referencial da cultura corporal.
É dito que o livro foi escrito “...pensando no professor de educação física que
encontramos, em várias oportunidades, nas reuniões das escolas, nas associações,
nos cursos de aperfeiçoamento e formação, nos congressos.” (p.17). Entretanto, como
possui uma orientação metodológica baseada no marxismo, é possível acreditar que o
livro não se coloca aberto a quem pense em outra perspectiva ou mesmo que não
possua domínio sobre a lógica marxista. Isto traria limites a sua pretensão, pois nem
todos os professores são marxistas nem vêem no marxismo a saída para os problemas
da educação física. Contudo, a perspectiva metodológica ou os discursos da cultura
corporal podem ter sido reapropriados pelos professores a partir do que julgam
significativo para seu exercício profissional, independente da perspectiva marxista
anunciada pelos autores.
37
Existe no livro uma intenção de não ser “um mero receituário de atividades, uma
lista de novos exercícios e de novos jogos” (p.17), ou seja, de não querer se tornar um
manual didático. Isto ocasiona o dilema de pretender agir na mudança das ações
cotidianas do professor no espaço escolar sem dar receitas do como fazê-lo. Dar
mostras do como fazer, estabelecer um manual didático, não seria, ao nosso ver,
nenhum problema. Ao contrário, apenas estaria o Coletivo de Autores coerente com
seus objetivos de contribuir para mudar a ação profissional do professor na escola.
Um dos problemas observados na obra, como já escrito, é que o Coletivo de
Autores assume a perspectiva marxista como uma doutrina, o que contribui para fazer
do livro e da própria cultura corporal, um receituário ideológico. Porém, o Coletivo de
Autores também não assume este papel. Assim, não se assume como uma coisa nem
outra, não é manual didático-metodológico e também não é manual político. Isto sem
dúvida contribui para as dificuldades de compreensão e aceitação da obra pelos
professores comuns espalhados pelas escolas brasileiras.
Outro grande problema identificado na cultura corporal, está na compreensão da
ação do profissional de educação física que atua na escola. O Coletivo de Autores fala
de um professor que deve pensar a educação física como campo de conhecimento, de
estudos e de trabalho. Existe a pretensão de se ter um professor que possa dominar
conhecimentos como história, biomecânica, técnica desportiva e ainda ser capaz de
estabelecer uma relação que deve ser dialética, com a cultura de cada grupo social
com o qual se trabalha, onde a
...metodologia aqui é entendida como uma das formas de apreensão do conhecimento específico da educação física, tratado a partir de uma visão de totalidade, onde sempre está presente o singular de cada tema da cultura corporal e o geral que é a expressão corporal como linguagem social e historicamente construída. (p.19)
Ora, podemos perceber que esta é uma expectativa bastante ousada e que
requer uma formação profissional que ainda não sabemos se a educação física é
capaz de dar conta, onde o professor tem de dominar uma série de conhecimentos
específicos e gerais, ser capaz de fazer uma análise da sociedade local e poder
estabelecer relações das atividades corporais com a totalidade social (economia,
cultura, religião, etc). Assim, ou a pretensão do Coletivo de Autores é ousada demais
ou apenas espera análises e explicações da realidade através de aforismos e jargões
38
políticos vinculados à militância de esquerda.
A metodologia pretendida pelo Coletivo de Autores, situa-se próximo de uma
repetição das condições da graduação dentro da escola, pois o professor tem de poder
lidar com questões específicas do conteúdo com que atua no momento, dentro de uma
ação investigativa. Em tom de reflexão, podemos dizer que um aluno que esteja
envolvido com a cultura corporal teria uma formação bastante próxima a uma
graduação em educação física, na medida em que a proposta da cultura corporal prevê
que o professor deve administrar em pequenas doses o conteúdo de sua formação
acadêmica. Em outras palavras, o professor deve socializar com seus alunos os
conhecimentos adquiridos em sua formação profissional quase que da mesma forma
que os apreendeu. Nessa perspectiva, o professor deixa de ser um mediador para
tornar-se um reprodutor de sua formação em pequena escala12.
Na concepção do Coletivo de Autores, o professor deve ter condições de
analisar e interpretar o fenômeno do esporte, da dança, dos jogos etc, a partir das
diferentes lentes disciplinares (biomecânica, fisiologia, história, filosofia) e ainda
socializar esses conhecimentos no espaço de aula com seus alunos. A pretensão
parece desmedida, na medida em que a universidade não consegue em cursos dessa
natureza realizar boas análises multidisciplinares e interdisciplinares. Mas o Coletivo de
Autores transfere com tranqüilidade essa tarefa para os professores que estão atuando
no ensino fundamental.
Pensando sobre a atuação do profissional de educação física, Lovisolo (1995),
nos diz que este “... se nos aparece muito próximo da figura do bricoleur, de Lévi-
Strauss...” ou seja “... é formado, fundamentalmente, para combinar conhecimentos,
técnicas e metodologias...”(p.20). Lovisolo ainda alerta para a necessidade de não
confundirmos os papéis que um profissional pode assumir, quais sejam: o de cientista
quando produz conhecimento e o de bricoleur, ou interventor, quando elabora
programas.
É justamente este tipo de confusão, que acreditamos aconteça no Coletivo de
Autores, que pensa o professor com uma função dupla, e por isto mesmo é
12
Como já visto na seção 1.1.
39
extremamente difícil de ser executada, que é ser um pesquisador, que milite nas mais
variadas áreas de saber e ao mesmo tempo ser um interventor, que deve transportar
para sua prática docente este cabedal de conhecimentos. O professor, na perspectiva
da cultura corporal, deve pautar sua intervenção pelas regras da ação científica e, ao
mesmo tempo, levar em conta, no processo de intervenção, a cultura e os valores
locais. Assim, a vertente iluminista aparece mais uma vez em conciliação com o
romantismo.
Tendo em conta as pretensões do Coletivo de Autores, no que se refere a ação
docente, somos obrigados a pensar no tipo de formação que deveria ter este
profissional e a que temos hoje. Apoiado no estudo de Muniz (1996), pode-se dizer que
hoje ainda existe uma distância real entre as propostas pedagógicas e vida diária do
profissional que está na escola, já que estas pouco tem chegado ou estado ao alcance
do debate dos que lá estão. Assim, segundo Lovisolo (1995) “a eficácia tampouco
existe quando a valorização é meramente discursiva e não se concretiza na prática...”
(p.12) Ou seja enquanto estas propostas não derem conta de uma realidade e não
estiverem ao alcance de quem está atuando na escola, seu sucesso será meramente
discursivo.
Outro ponto de discussão é o próprio sentido atribuído à cultura corporal e seus
modelos de exemplificação.
Quando busca apontar exemplos do que seja o significado maior da obra em
estudo - a construção de uma proposta pedagógica, o Coletivo de Autores fala que a
educação física dentro da escola deve buscar dar trato pedagógico a uma série de
atividades que compõe o “...acervo de formas de representação do mundo [...]
exteriorizadas pela expressão corporal: jogos, danças, lutas, exercícios ginásticos,
esporte, malabarismo, contorcionismo, mímica e outros” (p.38). Percebe-se a clara
tentativa de criar uma proximidade com o popular, tendo em vista que as atividades
selecionadas/indicadas são as atividades que se dão nos vários ambientes sociais,
com diferentes formas de apropriação e expressão. Por outro lado quando aponta
exemplos daquilo que pretende construir, o Coletivo de Autores acaba por indicar as
atividades que já são características e típicas do leque de conteúdos da educação
física desde muito, dentre as quais podemos destacar os jogos populares, atletismo,
40
futebol, voleibol, basquetebol, capoeira, ginástica, dança. Ou seja, daquilo que
denomina cultura corporal, o Coletivo de Autores utiliza como atividades as que já são
tradicionais na esfera da educação física escolar.
Em nenhum momento, mesmo quando da exemplificação dos conteúdos, o
Coletivo de Autores consegue apresentar modelos que sejam realmente inovadores em
educação física. O que acaba por fazer é sugerir algo por demais amplo e portanto de
difícil compreensão, propondo para as aulas, em menor escala, uma repetição das
condições tradicionais dos currículos de formação de professores. O Coletivo de
Autores tenta partir de um conhecimento já acumulado para atingir um modelo ideal de
superação, mas acaba por criar uma proposta didático-pedagógica que pouco avança
em termos reais em relação ao que já é tradicional. Perde a oportunidade de
transformar em programas de ensino o conhecimento adquirido pelo professor, com
coerência, competência, de forma efetivamente interdisciplinar para o ensino formal.
Consideremos aqui, que a pretensão do Coletivo de Autores não é modesta.
Mesmo não existindo estudos que consigam dar conta da totalidade dos
fenômenos sociais atribuídos à cultura corporal (jogos, esporte, mímica, malabarismo,
dança e outros), o Coletivo de Autores reivindica que os professores não apenas
entendam estes fenômenos em sua totalidade, mas também a partir de diversos
campos disciplinares. Deve-se ter em conta o fato de não termos consolidada no
espaço de nossa formação profissional uma massa crítica dos temas indicados como
típicos da cultura corporal. Além disto, ainda temos pouca divulgação das produções
científicas junto aos professores.
O que é possível identificar no Coletivo de Autores é que cultura corporal ao
mesmo tempo é tudo e não é nada; ela pode estar representando um elenco de coisas
novas e ao mesmo tempo uma série de coisas velhas; ela dá significado por força de
jargão ao possível tratamento pedagógico que devem receber os conteúdos, mas não
indica concretamente como deve ser dado esse tratamento. Sua compreensão é
múltipla e diferenciada, é um conceito vazio e sem exigência de rigor, indicando mais
do que qualquer coisa uma ideologização do entendimento do papel e da forma de
ação da educação física no cenário escolar.
41
Seus autores acreditam e postulam uma interdependência entre educação e
política. Isto vai ter maior representatividade na metodologia proposta na obra, onde é
dito que o conteúdo deva ter uma
...compreensão [que] deve instigar o aluno a assumir a postura de produtor de outras atividades corporais que, no decorrer da história, poderão ser institucionalizadas.”, e que“...o conhecimento é tratado de forma a [...] possibilitar ao aluno a visão de historicidade, permitindo-lhe compreender-se enquanto sujeito histórico, capaz de interferir nos rumos de sua vida privada e da atividade social sistematizada. (p.40).
Existe neste movimento de pedagogização da política e politização da
pedagogia, uma ação de conciliação entre a política e a pedagogia, o que pode ser
entendido como uma incoerência em relação ao objetivo de levar a classe popular ao
modernismo, tendo em vista que o modernismo tem como referência entender estes
dois fenômenos como sendo autônomos (Lovisolo, 1990). Mas a intenção da cultura
corporal é ainda mais pretensiosa, quando na citação anterior os autores pretendem
que os alunos tornem-se produtores de outras atividades corporais. Parece que já seria
suficiente se a escola conseguisse socializar os conhecimentos e atividades a que se
propõe hoje; seria bom que a escola conseguisse trabalhar com os alunos o estágio de
conhecimentos que atingimos hoje, para que o futuro adulto tenha instrumentos para
pensar, sentir, admirar e interferir, na medida do possível, nesse já complexo mundo.
Segundo Lovisolo (1990), esta mesma conciliação faz com que se perceba no
Coletivo de Autores uma pretensa
...capacidade [...] de, num mesmo movimento ideológico, auto-atribuir-se eficiência na consecução dos objetivos [...] de gerar consciência crítica, vontade e saber de libertação. Tudo se passa como se o “técnico”, o “pedagógico” e o “político” tivessem sido integrados numa mesma equação...(p.13).
O que se identifica nesta relação da metodologia de ensino com a matriz
ideológica é que se cria uma relação em que a primeira esteja a serviço da segunda,
acabando, assim, por ser funcional e utilitarista.
42
3.3- A PERSPECTIVA DE USO DA HISTÓRIA NO COLETIVO DE AUTORES.
Na estruturação do Coletivo de Autores, a história funciona como eixo de análise
e justificativa da proposta didático-pedagógica. O peso desta, como fundamento para a
ação, pode ser medido pelo fato dos autores dedicarem um capítulo específico para a
história da educação física e por retomarem argumentos dessa natureza ao longo do
texto. O Coletivo de Autores, tem como marco principal fornecer elementos que
propiciem ao professor uma prática pedagógica que vislumbre a transformação social,
sendo que seu objetivo é: “...é oferecer aos professores de educação física um
referencial teórico capaz de orientar uma prática docente comprometida com o
processo de transformação social”. (p.49)
Para tanto, acreditam ser imprescindível que se faça uma análise sobre o
passado tanto da sociedade brasileira quanto da educação física, como forma de
referenciar as ações do presente que devem estar vinculadas a um projeto
revolucionário. Quer o Coletivo de Autores com isto, construir uma perspectiva que
rompa com o passado, considerado-o negativo, e moldar um futuro que será diferente e
mais evoluído. A teleologia do processo pedagógico não se limita aos objetivos
educacionais, mas sobretudo aos objetivos de transformação do modelo político-
econômico adotado por nossa sociedade. De fato, o passado e o presente no âmbito
da escola e da sociedade devem ser superados, pois para o Coletivo de Autores, “As
idéias iniciais, [...] no âmbito da educação física escolar serão aqui recuperados[as]
num esforço de síntese superadora.” (p.49). Podemos observar que a perspectiva
evolucionista da história está presente neste tipo de argumento. O sentido negativo é
conferido ao passado para justificar a intervenção no presente.
Essa concepção de história vem carregada de um alto caráter utilitário, por ser
referência para um projeto de intervenção. Nessa linha, pensam que, de forma ideal,
uma ação pedagógica superadora só se alcança quando se conhece o passado para
melhor atuar no presente e moldar o futuro. Ainda, o estudo do passado serve para
“desenvolve[r] argumentos científicos na perspectiva histórica, para levar o professor à
compreensão dos fundamentos que têm legitimado a educação física na escola
brasileira” (p.18-19).
43
Coerente com o princípio básico ou motor da história no marxismo, o Coletivo de
Autores afirma que “nas sociedades de classe, como é o caso do Brasil, o movimento
social se caracteriza, fundamentalmente, pela luta entre as classes sociais a fim de
afirmarem seus interesses” (p.23). Tal argumento no escopo do texto funciona apenas
como uma profissão de fé no marxismo e no modelo socialista de sociedade, já que
boa parte das análises históricas apresentadas no texto, tanto sobre a sociedade
quanto sobre a educação física, não demonstram o papel da luta de classes nessas
esferas. Além disso, como se pode justificar ou explicar as mudanças de concepção
pedagógica na educação e na educação física pela luta de classes no Brasil? Que
papel teve a luta de classes na ampliação do ensino público na década de 30? No
fundo a idéia que está colocada é a de que “tudo tem haver com tudo” (parafraseando
o professor Vítor Marinho)13. Entretanto, tal perspectiva de totalidade apenas lança
mais escuridão do que esclarece as tramas sobre os processos históricos, ações ou
mentalidades em determinados contextos históricos, assim como a perspectiva de que
o modelo político-econômico condiciona de certa forma todas as instâncias sociais.
Na educação física isto se torna evidente quando observamos as periodizações
(políticas ou econômicas) externas ao objeto de estudo; um exemplo é uma obra de
Ghiraldelli Junior14, muito usada como referência para estudos históricos15. Ao se
adotar este tipo de concepção de história, torna-se difícil aceitar que determinadas
esferas sociais possam ter relativa autonomia ou dinâmicas próprias. A perspectiva
teleológica ou evolucionista do devenir histórico, bem como o uso da história como
motivo ou base para intervenção, demonstra o alto caráter utilitário com que os autores
pensam este campo disciplinar.
Sobre este tipo de compreensão da história, Popper (1961) vai propor a
denominação historicismo, por entender que isto acaba não sendo,
13
Título de um texto do livro Fundamentos pedagógicos: educação física, organizado por ele próprio, da editora Ao
Livro Técnico – Rio de Janeiro, 1982. 14
GHIRALDELLI JUNIOR, P. (1989). Educação física progressista: a pedagogia crítico-social dos conteúdos. São
Paulo: Loyola. 15
O próprio autor já teceu duras críticas ao modelo de construção adotado no livro em obras posteriores,
demonstrando o dogmatismo adotado e de sua fragilidade diante de uma leitura de avaliação da forma. Também
Lovisolo (1998) e Pagni(1995), tecem críticas à este modelo de análise histórica, tentando mostrar sua limitação e
seu estreito vínculo com um ativismo político. Ainda Lovisolo(op.cit) fala da falta de autonomia deste campo de
estudos, o que facilita o surgimento de uma história de identidade. Já Pagni(op.cit), fala ainda da necessidade dos
estudos em história da educação física assumirem um caráter mais limitado no tocante ao seu campo de análise, a
44
...História no tradicional sentido de crônica de fatos históricos. A espécie de história a que os historicistas querem identificar a sociologia volta-se não apenas para trás, mas também para a frente, para o futuro: o estudo das forças atuantes e principalmente das leis de desenvolvimento social.” (p.37).
Ainda Popper (op.cit:), diz que
os historicistas, em maioria, tem marcada inclinação para o „ativismo‟...”[...]“...E isso nos permite saber exatamente qual a espécie de atividade admitida como razoável pelos historicistas: somente aquelas atividades que se ajustam às transformações próximas e as facilitam.[...] Cada ação e cada reflexão historicista objetivam o passado para ter como
predizer o futuro. (p.40-41)
Com estas palavras Popper está dialogando com as especificidades do
conhecer, além de estar denunciando a atitude pouco distanciada destes que nomeia
de historicistas. Popper poderia dizer que algumas construções científicas no campo
das ciências naturais ou biológicas podem explicar e predizer o desenvolvimento de
determinados fenômenos. Entretanto, para ele o campo da história ou das ciências
sociais só poderiam elaborar explicações científicas locais e pós fato. Isto é, a
generalização, a busca de leis nesse campo apenas representa a tradição cientificista
de não distinguir as especificidades entre o tipo de conhecimento gerado pelas ciências
sociais e pelo campo das ciências da natureza. Por outro lado, a predição de
fenômenos sociais ou do futuro da sociedade por cientistas sociais, em muito se
assemelha à atividade de místicos e esotéricos. O Coletivo de Autores, dentro de sua
intenção de elaborar uma pedagogia que gere uma transformação social, acaba por
fazer uso e valer-se de uma compreensão de história que é acima de tudo ideológica,
que deve representar sonhos e interesses de um grupo social, na sua luta para afirmar
o futuro inevitável da sociedade: o socialismo. A história, como campo disciplinar
desaparece para transformar-se num argumento de legitimação para suas pretensões
de transformação pela autoridade e pela força da “ciência histórica”.
Quando da leitura e análise do Movimento Social no Brasil, o Coletivo de
Autores diz que a luta de classes sempre foi o motor das ações e projetos de mudança
social, numa lógica que entende a história como um bloco único e que assim avança. O
livro tenta nos fazer crer que a economia é o eixo central, causa e efeito de todos os
acontecimentos e fatos sociais. Esta é uma tendência que repete a orientação marxista
fim de poderem ser mais representativos, ao contrário do que acontece no Coletivo de Autores.
45
de querer tornar a história uma ciência semelhante ao modelo da física clássica, que
apresenta e trabalha com dados que são universais e constantes.
Todavia, Veyne (1982) fala “..que não pode haver uma ciência da história, pois
não é suficiente que haja determinismo para que uma ciência se torne
possível...”(p.139). Boudon (1990) também nos mostra que ...
As teorias da mudança social só podem pertencer ao gênero científico (no sentido popperiano) com uma condição: que os dados cuja explicação se procura constituam um conjunto bem definido. O que implica que tais teorias não podem ser senão locais e parciais. (p.288).
Veyne (1982), mostra que a análise histórica depende do entendimento do
contexto singular onde ocorrem os eventos, quando diz que
Sabe-se, entretanto, que não é assim, que o marxismo nunca previu, nem explicou...” e que na “...história, só existem explicações de circunstâncias.” além do que, “...a explicação histórica não segue caminhos já traçados de uma vez por todas... (p.138).
Veyne está dialogando contra a visão de uma explicação total e totalizante do
devir histórico, onde os eventos e os dados apenas confirmam, por cadeias causais, o
curso inevitável da história. Entretanto, devemos deixar claro que bons historiadores
marxistas, como por exemplo Hobsbawm e E. P. Thompson, não trabalham com este
tipo de causalidade e de inevitabilidade. A discussão colocada por Veyne está
relacionada a uma espécie de marxismo popular que esteve presente no campo da
história e, em nossa percepção, continua presente na pedagogia e nos movimentos de
esquerda em nosso país.
Boudon (1990) pode servir para mostrar que a importância dada à luta de
classes como o “motor da história” no Coletivo de Autores pode ser relativizada, pois
“não se pode dar aos conflitos de classe uma importância decisiva[...] é que mudanças
consideráveis podem produzir-se sem serem acompanhadas de conflito.”(p.271). O que
Boudon demonstra é que mudanças podem ocorrer sem conflito e que, assim, não
podemos tomar o modelo explicativo do conflito como a única possibilidade de
entendimento da transformação ou da mudança social.
46
A luta de classes como o “motor da história”, é uma idealização teórica que
acaba simplificando as relações sociais, a criatividade humana e as diferentes
possibilidades e novos fatos que o presente apresenta a humanidade. Nesse caso
confunde-se o ativismo com o ofício do historiador (Hobsbawm,1998). O Coletivo de
Autores, de fato, confunde estes papéis pelo uso que faz da história.
Reiteramos estas perguntas noutro nível de detalhamento: Será a luta de
classes a única e verdadeira possibilidade de entendimento da transformação social?
Existirá uma regularidade nas mudanças sociais? A resposta a cada pergunta desta
não pode ser dada abstratamente. Cada problema ou questão colocada pelo
historiador deve ser respondida utilizando os recursos do estoque teórico que
possuímos. Os variados modelos de explicação - inclusive o da luta de classes - podem
ser ferramentas que auxiliem a explicar uma determinada questão. Entretanto, partir
apenas de um modelo explicativo, a priori, indica que a explicação já está dada
independentemente dos dados ou da questão que possuímos. Esta é uma atitude que
pode ser denominada de “verificacionista”, na medida em que os dados apenas são
colhidos para confirmar uma explicação prévia.
Dentro desta ótica de entendimento das relações e dinâmicas sociais, e como
não podem demonstrar a dinâmica de transformação da educação física pela luta de
classes, Coletivo de Autores propõe uma situação de oposição ou de conflito entre a
concepção da cultura corporal e da aptidão física. A cultura corporal é auto-identificada
com a lógica marxista, revolucionária e progressista e a aptidão física é identificada
com o conservadorismo, com a alienação e todas as demais mazelas identificadas
como subproduto do capitalismo. Assim, fortifica-se a concepção de que a cultura
corporal representa o futuro, o avanço e a transformação, enquanto a aptidão física
simboliza o passado - negativo – devendo-se lutar para superá-lo. Pode-se perguntar; a
sociedade quando é progressista ou revolucionária também tem uma escola
revolucionária ou progressista? Arendt (1997), nesse caso teria uma resposta negativa,
pois tomando como exemplo o modelo educacional americano mostra que existem
descompassos entre o que se adota em termos educacionais e o sistema político-
econômico vigente. Arendt afirma que enquanto em um pode estar prevalecendo o
ideal progressista, em outro pode estar instaurado um sistema tradicional ou vice-
versa. Daí decorre que a sincronia histórica pretendida pelo Coletivo de Autores - ou a
47
crença que no estágio da “luta de classes” o proletariado brasileiro exige mudanças no
sistema educacional - apenas representa o ideal dos que se colocam como porta-vozes
das classes populares. O determinismo na leitura histórica do Coletivo de Autores é
evidente, e seja este qual for, pode não ser uma representação do real e sim a
configuração do desejo de um tipo de mundo, ou como diz Lovisolo (1998) “...a
narrativa histórica resultante pode ser apenas desejo do pensamento[...] e não história
vinculada à reconstrução ou resignificação de “fatos” ou “eventos” já tratados...” (p.57).
O Coletivo de Autores constrói e faz uso de um sentido de história que nos
permite dizer que se faz sim a construção de um mito, na verdade a construção de uma
história que quer ser negativa em relação ao passado, na pretensão de derrubar a
chamada aptidão física como modelo pedagógico e solidificar a cultura corporal; se faz
assim na verdade um abuso de caráter ideológico da história, ou seja o uso de uma
história de passado como forma de justificar uma identidade no presente, se constrói
uma história de identidade (Hobsbawm, 1997). A história de identidade serve para
agregar adeptos, como motivo de protesto, para fazer guerra etc., mas pouco serve
para explicar o “como” de uma determinada trama ou evento histórico.
A história de identidade como argumento de legitimação fica evidente quando os
componentes do Coletivo de Autores apresentam seus currículos, associando suas
vidas pessoais e acadêmicas com movimentos e lutas sociais que assumem o tom de
vanguarda, de esquerda. A história de vida também aparece como um argumento de
legitimação para a proposta de intervenção pedagógica apresentada pelo livro. A
missão do grupo no projeto do livro fica explícita quando afirmam que “...pensávamos
possuir a exata medida do desafio que estávamos por enfrentar. Ledo engano.[...]
Porém, desde aquela ocasião, sabíamos da relevância do projeto.” (p.09). O tom de
missão associado ao projeto e as trajetórias de vida podem ser indícios das confusões
e usos que fazem da história.
Quando tentam justificar seu entendimento sobre o que é aptidão física, os
autores acabam por usar os mesmos artifícios de generalização que usam na análise
da situação político-econômica brasileira. Para tal, valem-se dos textos legais que
normatizavam a educação física nacional, e em nenhum momento se perguntam se a
dinâmica interna das aulas de educação física na escola (com professores e alunos
48
num plano real) funcionava da maneira prevista ou idealizada pelas normas
governamentais. Assim, sem dados empíricos que balizassem seus argumentos,
constróem um tipo ideal ou modelo da aptidão física que se confunde com os valores e
objetivos do modelo político-econômico para afirmarem o modelo idealizado, a cultura
corporal, como progressista e revolucionário. Vale lembrar Popper (1961), quando diz
que a “História se caracteriza por seu interesse pelos eventos reais, singulares ou
específicos e não pelas generalizações ou leis.” (p.112).
O uso da história como foco central do projeto pedagógico do Coletivo de
Autores se expressa quando dizem que:
É fundamental para essa perspectiva da prática pedagógica da educação física o desenvolvimento da noção de historicidade da cultura corporal. É preciso que o aluno entenda que [...] Todas essas atividades corporais foram construídas em determinadas épocas históricas, como respostas a determinados estímulos, desafios ou necessidades humanas.
O conteúdo de ensino, obviamente é configurado pelas atividades corporais institucionalizadas. No entanto, essa visão de historicidade tem um objetivo: a compreensão de que a produção humana é histórica, inesgotável e provisória.”(p.39-40)
Com isto, vemos que para o Coletivo de Autores a História é deveras importante
na consecução da pedagogia que preconizam, podendo ser entendido, no sentido
global, que é ela que vai dar motivação e significado as pretensões políticas de
transformação social. O uso da história nessa direção confunde-se com ativismo.
Denota-se daí que a história vem como uma simbolização e representação dos
interesses políticos manifestos ou não dos autores, sendo uma chave para a realização
e efetivação do que Lovisolo (1990) chama de politização da educação16.
Por fim, é possível analisar que no Coletivo de Autores a história é a forma de se
justificar o desejo maior que é a configuração de uma sociedade mais justa e
democrática. Entretanto, para o Coletivo de Autores a justiça social só pode ser
conseguida a partir do idealizado e da inevitável afirmação do modelo socialista. A
história, neste caso, serve para se ler o passado negativamente e projetar o futuro que
deverá ser positivo. No caso específico da educação física, a concepção da cultura
16
Lovisolo faz um estudo sobre o movimento de educação popular na América Latina e no Brasil, considerando que
a politização da educação é um de seus marcos, numa tentativa de conciliação. Isto acaba por se tornar um paradoxo
em relação ao seu desejo de levar o país à uma modernidade, já que esta pensa estas duas instâncias de forma
49
corporal apresentada como transformadora e revolucionária, é um caminho que
anuncia esse devir. Lembremos o silogismo entre o todo e parte que fica latente na
concepção da obra em análise. Construções históricas desse tipo caem no que
Hobsbawm classificou de história de identidade. A história como campo disciplinar
nesse caso desaparece, para dar lugar ao ativismo político.
Assim, acreditamos que deveríamos começar a refletir sobre o uso da história na
educação física, para evitar, como diz Lovisolo (1998), que a história dita crítica acabe
por “Reproduz[ir], em espelho deformador, aquilo que pretende combater.” (p.57).
separada.
50
4- CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Por fim, pode-se dizer que a obra estudada traz em sua constituição discursiva
vários marcos que nos permitem falar da existência do que estamos chamando de
conciliação do inconciliável, a exemplo de Lovisolo (1990). Como conclusões prévias,
estes dados podem ser considerados como limitantes para o que a obra se propõe, que
é pensar um modelo de intervenção, pois traz o sentido de uma incoerência interna.
É interessante poder ver que na sua essência, a obra Metodologia do Ensino da
Educação Física estrutura-se a partir de uma tentativa do estamos chamando de
conciliação do inconciliável, pois tenta usar como argumentos de construção duas
interpretações distintas da realidade, que rumam em direções opostas: o romantismo e
o iluminismo. Os integrantes do Coletivo de Autores tentam, a todo momento, fazer
com que estes referenciais de análise possam servir de subsídios à proposição
pedagógica que apresentam, sempre tendo como base uma leitura de mundo que a
todo momento tentam justificar como a que permite uma compreensão mais justa e
ideal. Utilizam-se da tendência de fazer uso de um discurso normatizador e de caráter
monista, pois acreditam que o uso de jargões e palavras de ordem valem como
justificativas de sua opção, principalmente quando estabelecem críticas ao modelo por
eles denominado de aptidão física, não havendo uma demonstração dos alvos de suas
críticas. Acompanhando o ideal do romantismo, associam-se o populismo, o
pertencimento e a tolerância; já seguindo o iluminismo, vêm o vanguardismo, o
distanciamento e a intolerância. Todas estas características formam a base de toda a
elaboração do livro, que traz como marca a tentativa de ser um caminho no sentido de
levar o país à modernidade. Cunham como marca principal da obra o termo cultura
corporal, como sendo o entendimento e a construção básicas que garantem seu valor e
sentido; todavia, a pretensão de ter esta noção de cultura corporal como valor ideal,
que justifica a proposição da obra, acaba por cair na armadilha que é o fato de que este
termo significa tudo e não significa nada.
Por fim, podemos afirmar que esta é uma obra tipicamente romântico-iluminista,
que se pauta numa confusa relação entre valores e ideais que são destoantes.
51
5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, H. (1997) Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva.
BOUDON, R. (1990) O lugar da desordem. Lisboa: Gradiva.
COLETIVO DE AUTORES. (1992) Metodologia do ensino da Educação Física. São
Paulo: Cortez.
GHIRALDELLI JUNIOR, P. (1996) Educação e razão histórica. São Paulo: Cortez.
HOBSBAWM, E. Introdução: A invenção das tradições. In: Hobsbawn, E. & Ranger, T.
(1997) A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra.
_____________.(1998) Sobre história. São Paulo. Cia das Letras.
GÓIS JUNIOR, E. (2000) Os higienistas e a educação física: uma história de ideais.
Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: UGF.
LOVISOLO, H. (1990) Educação Popular: maioridade e conciliação. Salvador: UFBa.
Empresa Gráfica da Bahia.
____________. (1995) Educação Física a arte da mediação. Rio de Janeiro: Sprint.
____________. (1997) Estética, esporte e educação física. Rio de Janeiro: Sprint.
____________. (1998) História oficial e história crítica: pela autonomia do campo. In: VI
Encontro Brasileiro de História do Esporte, Lazer e Educação Física Rio de Janeiro.
Coletânea.
MUNIZ, N. (1996) Influências do pensamento pedagógico renovador da educação
física: sonho ou realidade? Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: UGF.
NICOLACI-DA-COSTA, A. (1997) Sujeito e cotidiano - um estudo da dimensão
psicológica do social. Rio de Janeiro: Campus.
NÓVOA, A. (1999) A escola erra ao preparar para o futuro. [online]Disponível na
Internet
POPPER, K. (1961) A miséria do historicismo. São Paulo: Cultrix.
RESENDE, H. (1992) A educação física na perspectiva da “cultura corporal”: uma
proposição didático-pedagógica. Tese de Livre-Docência. Rio de Janeiro: UGF.
VEYNE, P. (1982) Como se escreve a história; Foucault revoluciona a história. Brasília:
Editora UnB.
52
OS OBSTÁCULOS VERBAIS NO CAMPO DA EDUCAÇÃO FÍSICA
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS.
A educação física, por tradição, sempre buscou identificar e definir
conceitualmente as diferentes modalidades de intervenção que seu campo profissional
abarca. É constante a luta que trava por argumentos que lhe fundamentem cientifica
e/ou pedagogicamente, seja do ponto de vista acadêmico, profissional ou educacional.
Nela, a busca por legitimidade e status dá origem a toda uma produção de narrativas.
O intenso debate acerca da legitimidade social da educação física e do prestígio
de seus profissionais motivou, e ainda continua a motivar, boa parte das conversas e
textos produzidos no interior deste campo profissional. Podemos destacar dois eixos na
produção das narrativas: a) a luta interna que busca angariar status e a legitimidade da
educação física elevando-a ou transformando-a em disciplina científica. Nesse
processo a busca de analogias e comparações com as demais áreas de conhecimento
torna-se quase uma obsessão. b) o problema do auto-conceito negativo do professor
de educação física pode ser visualizado a partir das análises que indicam que a
formação, além de deficitária, ainda carece de entendimento acerca da “...sublimidade
e imprescindibilidade de sua profissão...” (Dantas, 1987. p.40). Dantas ainda indica que
esta imagem negativa da profissão pode ser observada numa “declaração como a que
fez Woody Allen, parodiando Bernard Shaw: “quem sabe faz; quem não sabe ensina. E
quem não sabe ensinar, ensina Educação Física.” (p.35)
A partir deste sentimento, foram postulados e formulados diversos
encaminhamentos para a ação profissional e acadêmica da educação física em sua
atuação dentro e fora da escola, que tentam justificar a “sublimidade e
imprescindibilidade” da profissão, no sentido dado por Dantas. Estas formulações
tornaram-se indicativos orientadores, vertentes possíveis de um agir pedagógico ou
científico que pudesse contribuir para a mudança deste quadro de desprestígio no
interior deste campo de atuação.
53
Na particular discussão do campo da história da educação, a dinâmica da
educação física e suas diversas orientações de intervenção historicamente
estabelecidas passaram a ser analisadas em correspondência com tendências da
educação brasileira. A educação física, independente da área de intervenção e dos
atores sociais, passou a ser pensada juntamente com a esfera da educação formal.
Cabe aduzir que tais tendências formuladas no campo da educação ou no campo da
educação física sempre, buscaram sincronia com as periodizações da história política
brasileira. Sobre isto, Melo (1999) diz que “A periodização continua a se submeter a
especificidades exteriores ao objeto...” (p.39).
Estas diversas orientações se agrupam no que se convencionou chamar de
tendências pedagógicas da educação física. Cada uma destas tendências é formulada
tendo em conta a noção de mundo que pensa a realidade de forma totalizante e
coerente. Assim, o papel social da educação física, a atuação do professor e a política
governamental sempre no passado sempre agiram em perfeita sincronia com a
ideologia dominante. Tal coerência pode ser atestada quando se pensa que a
organização político-pedagógica da cada tendência esteve em sintonia com a ideologia
dominante na época. Contudo, para fazer sentido, esta noção de história unívoca e
totalizante que se pretende revolucionária, tem que dar voz à mudança, buscando no
mar desta alienação os processos de resistência. Em outras palavras, é preciso
descobrir o germe da contradição que cada modelo político-econômico traz como
elemento de sua autodestruição. Por esta razão as análises tomam a negatividade do
passado como elemento de aprendizagem num presente que se anunciará melhor,
belo, justo e democrático. Tal fato é, segundo Melo (1999)
agravado por uma compreensão que parte do presente com hipóteses traçadas já basicamente confirmadas, o que faz forjar no passado os elementos necessários para provar a hipótese inicial... (p.39).
Neste sentido, a idéia de crise torna-se fundamental para que seja anunciada a
possibilidade de mudança. Sobre o surgimento de diversas tendências, Ghiraldelli
Junior (1988), afirma que
A educação física está em ebulição. Desde o início dos anos 80, qualquer observador da área pode constatar que em vários estados do país pululam núcleos empenhados na rediscussão de temas que vão desde a redefinição do papel da educação física na sociedade brasileira até questões ligadas às mudanças necessárias ao nível da prática efetiva nas quadras, ginásios e
54
campos.(p.15)
As tendências pedagógicas na área da educação física, tem servido como
formas de entendimento acerca do papel e da forma de ação desta disciplina na
escola, buscando fornecer elementos orientadores, ou mesmo exemplificadores, do
fazer pedagógico do professor que deve ser generalizado para qualquer tipo de
intervenção. Uma discussão tensa no campo da educação física pode ser localizada
entre dois grandes grupos: 1) aqueles que advogam a unidade, isto é, o profissional de
educação física é um educador independente do campo de intervenção; 2) aqueles que
pensam a profissão a partir dos diferentes tipos de intervenção. Assim, ser profissional
de educação física fora do ambiente escolar, da educação de crianças e jovens pode
se assemelhar a qualquer profissão liberal: advogados, médicos, enfermeiros etc. O
lugar do educador para este grupo limita-se ao ensino formal de crianças e jovens. Este
grupo advoga que a formação universitária deve garantir o atendimento das demandas
diferenciadas que estão sendo impostas pelo mercado para o profissional de educação
física. Observe-se que o debate torna-se complexo quando existem propostas advindas
do campo das instituições esportivas que pensam que as faculdades de educação
física não estão atendendo as necessidades do esporte de rendimento. Nesse sentido,
Bracht (1999) identifica que já é feita uma pressão, onde
Os dirigentes esportivos, cada vez mais claramente, reivindicam uma formação universitária específica para os profissionais do campo esportivo, argumentando inclusive que as atuais faculdades de EF não suprem as suas necessidades... (p.26)
Contudo, o discurso da crítica sobre os diversos campos de atuação profissional
nasce do interior do debate pedagógico da educação física por aqueles que pensam a
unidade da profissão a partir da esfera da educação e da pedagogia. Assim, todo o
passado da educação física é pensado a partir da lógica do discurso pedagógico.
Podemos entender esse processo na medida em que a escola foi pensada no passado
recente como o núcleo principal de difusão da cultura e do conhecimento.
Apesar da aparente fragmentação e diferenciação dos objetivos sociais dos
diferentes tipos de intervenção no campo da educação que se vem processando desde
o final dos anos de 1970, o discurso pedagógico no início dos anos 80 elaborou críticas
pensando o campo como unitário. Os diferentes tipos de intervenção profissional foram
pensados a partir dos modelos didáticos-pedagógicos da educação física escolar.
55
Neste sentido podemos visualizar a construção de uma massa crítica que caminha
naquilo que Resende (1992) denominou como Pensamento Pedagógico Renovador da
Educação Física Brasileira (PPREFB). Tal movimento, segundo Costa (1998), é
resultante do “...surgimento de reflexões, críticas, proposições conceituais e de
intervenção pedagógica em relação ao discurso e à prática da educação física
hegemonicamente instituídos.” (p.08)
Muniz (1996), categorizou estas várias tendências pedagógicas vislumbradas
hoje no seio da educação física. Segundo seu tipo de formulação, estas podem ser “...
(a) a da denúncia; (b) a da proposição de princípios conceituais; e (c) a da proposição
de fundamentos de intervenção didático-pedagógica”. (p.25-26). Cabe ressaltar que o
momento „b e c‟ sempre tomaram a educação formal como o lugar central para
consecução de suas propostas revolucionárias. Contudo, é a partir deste suposto
modelo ideal ou revolucionário da educação física escolar que as demais instancias de
atuação profissional devem ser pensadas. Em outras palavras pode-se afirmar que a
pedagogia histórico-crítica deve orientar o perfil do profissional de educação física,
independente da sua especificidade de atuação profissional. Seria a pedagogia ou o
discurso pedagógico que garantiria a unidade do nosso campo.
Observa-se que cada uma das contribuições, a partir do discurso pedagógico da
educação física, normalmente tem sido caracterizadas pela proposição de uma nova
terminologia ou nome que demarque uma identidade positiva e traduza novos valores
políticos, científicos e/ou pedagógicos para o campo. A lógica parece funcionar da
seguinte maneira: a da introdução de um novo nome ou marca deve indicar uma
suposta diferença em relação à tradição do campo. Cada texto-proposta de educação
física parece apresentar essa característica.
Os nomes propostos como marca da posição pedagógica e ideológica dos
autores e/ou da proposta de educação física sofrem processos de resignificação no
interior do campo. Os leitores e professores ao apropriarem-se do “novo nome” acabam
por torná-lo um símbolo que já não carece de entendimentos e descrições daquilo que
o termo deve indicar. Os nomes tornam-se, assim, pretensões ou palavras de força no
interior das próprias obras que pretendem romper em relação à tradicional educação
física.
56
De tempos para cá diversos novos nomes foram cunhados e difundidos no
interior do campo. Costa (1998), coloca como exemplos, a educação física
revolucionária (MEDINA, 1986); progressista (GHIRALDELLI JUNIOR, 1988); histórico-crítica
(CASTELLANI FILHO, 1991); crítico-emancipatória (KUNZ, 1994); a estas, acrescentamos a
crítico-superadora ou cultura corporal (COLETIVO DE AUTORES, 1992).
O uso de novos “conceitos” ou novos nomes que tentam abarcar o universo das
atividades que fazem parte do rol de práticas corporais é vasto no cenário da educação
física. Podemos trazer como exemplo, segundo Castellani Filho (1998): cultura de
movimento (KUNZ, 1991); cultura física (BETTI, 1992); cultura corporal do movimento
(BRACHT, 1996 ). Além destes, temos ainda Manuel Sérgio (1991) com a Ciência da
Motricidade Humana; Tani (1996) com a Cinesiologia, e as Ciências do Esporte.
Observem que todos estes “nomes-conceitos” tentam estabelecer unidade no campo e
ruptura em relação à tradição.
Todas estas novas denominações pretendem possibilitar uma compreensão
acerca das atividades físicas que dêem conta de um entendimento que visa ser mais
amplo e diverso, indo além de uma noção de caráter técnico, tendo sempre a expectativa
de tentar ser um avanço naquilo que os autores apontam como sendo passível de
mudança. A partir deste amplo desejo de lutas nominalistas no interior do campo é que
vamos centrar a discussão nas próximas seções.
57
2. A LUTA POR UM STATUS E UMA IDENTIDADE.
A educação física brasileira traz consigo uma característica constante que é a
idéia de crise, que circula em nosso meio fazendo com que pareça ser rotineira e
perene. Assim, seu desenvolvimento tem se dado por entre este eterno sentimento de
crise.
Neste trajeto dois aspectos sempre se fizeram presentes: a luta por status
acadêmico e a crise de identidade. Podemos dizer que um se dá motivado pelo outro,
ou seja, que a luta por status se motiva pela crise de identidade, e que a crise de
identidade se dá na luta por se alcançar um status. Ou seja, é a eterna luta por saber
quem veio primeiro, o ovo ou a galinha, onde o debate encerra-se numa espécie de
circularidade.
Na educação física, seja em seu meio acadêmico ou profissional, a luta pela
conquista de status que lhe confira prestígio e respeitabilidade tem sido um aspecto
muito presente. Esta luta tem se dado na tentativa de construir uma disciplina tanto
acadêmico-científica quanto uma disciplina curricular, para que o campo passe a ser
respeitado socialmente.
O desejo é igualar a educação física às demais disciplinas acadêmicas ou
curriculares, sempre na busca de prestígio. Isto se dá principalmente por se crer que a
educação física é, de uma forma ou de outra, considerada inferior às demais áreas de
conhecimento, deixando assim de ter junto à sociedade reconhecimento e valorização,
o que provoca uma baixa auto-estima e um baixo auto-conceito entre seus próprios
profissionais.
Este tipo de sentimento fez com que internamente se motivasse um constante
discurso de auto-valorização da importância da educação física para a sociedade, para
o indivíduo, numa espécie de campanha pelo reconhecimento da área. Isto ocorre mais
entre seus próprios profissionais do que na sociedade, o que faz parecer que era, antes
de tudo uma necessidade de auto-convencimento. Como diz o adágio, “é preciso
sempre se falar no assunto que é para ver se nós mesmos acreditamos”. Aduzido a
58
este sentimento, travou-se uma longa luta pela construção e solidificação da educação
física como campo de conhecimento.
Bracht (1999) em uma obra que tenta discutir as relações entre a educação
física e a ciência, diz que a educação física em suas características de formação
profissional fez “retardar o aparecimento do intelectual da EF.” (p.18). Dando
continuidade a esta idéia, o mesmo autor diz que “os intelectuais que pensaram a EF
brasileira, neste período, trouxeram/adquiriram o instrumental para tanto em outros
campos, ou seja, o campo da “EF” 17 não dispunha dos meios para teorizar sua
prática.” (p.18)
Bracht, neste contexto tenta demonstrar que a formação da massa crítica em
educação física deu-se com o aporte teórico e instrumental de outros campos
disciplinares. Sendo assim, sempre existiu uma motivação para se elaborar
justificativas de origem teórica para a área, tentando fazer-se um apelo de ordem
científica, indo buscar apoio ou se aproximando de outras áreas de conhecimento já
reconhecidas pela sociedade. Mas, segundo Bracht o problema é que os intelectuais da
educação física tornaram-se mais historiadores, sociólogos, teóricos da educação em
geral, fisiologistas etc., e pouco contribuíram para teorizar a intervenção em vários
níveis, inclusive o da produção de conhecimentos específicos para o nosso campo.
O que se observou e ainda se observa é que se busca uma identificação com as
chamadas ciências mães (fisiologia, biologia, física, sociologia, psicologia). Assim, as
produções em educação física, mais do que nunca, acabam por criar aproximações
com estas áreas e afastamento da própria educação física, passando a produzir
conhecimentos nestas outras áreas e não mais em educação física.
Podemos observar que em suas obras, Valter Bracht, vem se preocupando com
o fato da educação física se manter dependente de outras áreas, não criando
independência e pensamento próprio. Bracht tenta nos fazer crer da necessidade de
criar uma teoria específica para a educação física.
17
Aspas do autor.
59
Para Lovisolo (1995) o problema não está localizado na ausência de teoria
específica, mas em uma certa confusão entre o papel do pesquisador e o do professor,
e na indefinição se dá entre disciplina e programa de atividade, e que este fato é típico
de uma área que ainda está em busca de sua especificidade. Assim, a idéia de
afastamento se dá pelas dificuldades de mediar os conhecimentos oriundos de outros
campos disciplinares na intervenção. Para Lovisolo (1995) o foco de atenção não seria
a falta de uma teoria específica para a área, já que a “intervenção no campo das
atividades corporais continua sendo o núcleo da tradição da educação física.” (p.29).
Se para Bracht o problema da falta de status se dá em função da dependência teórica
e da ausência de uma teoria que fundamente a prática, para Lovisolo o problema se
localiza pela qualidade das mediações nos diferentes processos de intervenção.
Argumentos de natureza mais cientificista também são formulados na busca de
status para o campo. Tani (1996) constata uma crise de identidade na educação física
que surgiu com “...uma fase de turbulências em que aspectos como preparação
profissional, atuação profissional, identidade acadêmica, pesquisa e pós-graduação
foram questionados e discutidos” (p.12). Esta crise acaba se dando num entrave entre
correntes de pensamento em nossa área, que tentam identificar um campo de estudos,
um objeto de estudo específico para a educação física, tentando criar um estatuto
científico, epistemológico.
Com esta não delimitação clara do objeto específico de estudos da educação
física, o que ocorre é a aproximação e identificação com outras áreas de conhecimento
que se encontram solidificadas, estruturadas como disciplinas científicas e curriculares.
Assim, pesquisadores vem tentando reconhecer qual seria o campo de conhecimento
específico da educação física, tentando dar unidade e identidade própria a educação
física, buscando também auferir prestígio para este campo do conhecimento.
Esta busca por prestígio dá-se quando existe um diálogo externo, quando
profissionais de educação física vão produzir ou debater em outras frentes, indo
dialogar ou produzir em áreas diferentes da de sua formação original. Além disto, esta
busca por um objeto de estudo específico vem da meta de querer tornar a educação
física uma ciência, por entender que só assim estaria em condições de obter
60
reconhecimento, de ter uma afirmação no espaço universitário, e também na sociedade
em geral.
Esta tentativa de tornar a educação física um campo que desfrute de prestígio
vem se dando de forma rotineira, podendo ser vislumbradas várias destas
elucubrações teóricas em trabalhos de pesquisadores nacionais e estrangeiros. Estas
campanhas por transformações se dão a partir da definição do que a Educação Física
deve ser, sendo aí que se chocam os que a entendem como área de intervenção e os
que a entendem como campo científico.
Nesta busca, estão no primeiro time as “culturas”, dentre elas a cultura corporal,
que vem pensando a educação física com um olhar a partir da escola. Neste time
temos “jogadores” que se apresentam com nomes diferentes, mas que têm em comum
o fato de definirem-se como culturais, que tentam em torno de si agregar tudo que dá
no desenvolvimento da área. No outro time, temos os “jogadores” que tem em comum
o fato de quererem mudar a área para formar uma nova ciência, onde a troca do nome
torna-se fundamental. Tornar científica a educação física também é meio de elevação
de status. É justamente sobre este grupo que nos deteremos na próxima seção.
61
3. PENSANDO UM NOVO CAMINHO, TALVEZ ATÉ UM NOVO NOME.
Na luta por um novo sentido para a educação física, até o nome educação física
tem sido alvo de críticas internas, tentando-se buscar outra denominação que
atendesse as orientações propostas em cada nova construção conceitual.
Estas proposições conceituais apontam claramente dois caminhos: o viés
científico e o político e/ou cultural, estando ambos a serviço da justificação de um
suposto modelo teórico. Cada um tem sua justificativa para a matriz teórica escolhida,
definindo o papel social da educação física e sob que ótica ela deve atender a
sociedade, seja na área da saúde ou da formação da cidadania, ou mesmo na junção
de ambas.
A questão que se refere ao nome educação física vem da consideração de que
este não mais traz uma significação real ao que se pensa sobre a área e sobre o que
ela deve ser. Esta divergência em relação ao nome vem significar mais um momento
de crise interna, já que existe uma diversidade de proposições que tentam dar conta de
dar-lhe uma nova denominação.
As várias denominações novas tentam representar aquilo que pensam seus
autores do que deve ser a área em seus espaços de intervenção e estudos. Com muita
propriedade, Lovisolo (2000) diz que estas divergências conceituais, podem ser
“indicador de uma crise profunda em relação aos objetivos da intervenção e aos
objetivos das teorias que referenciam as pesquisas e legitimam a intervenção” (p.7),
pois cada proposta aponta caminhos diferentes para a área, no seu fazer e no seu
pensar.
Podemos identificar várias destas denominações criadas na intenção de
substituir o nome educação física, cada qual tentando seguir seu próprio caminho,
podendo cada uma delas ser uma proposta de um autor ou mesmo de um grupo de
autores, vinculados ou não a uma instituição de ensino ou de pesquisa. Podemos citar
Cinesiologia, Ciência da Motricidade Humana, Ciências do Esporte, dentre outros,
como exemplos de tentativas de cunhar um novo nome para a área em substituição ao
62
atual. Todas estas propostas de novos nomes, entendem que o termo educação física
é por si só um obstáculo ao seu desenvolvimento, seja na tentativa de ganhar prestígio
acadêmico, ou na idéia de se ter um conhecimento comum e específico para esta área.
Cada um destes novos nomes traz uma tentativa de redefinição do objeto de estudo e
de novas propostas de intervenção.
Este debate na educação física já está se tornando uma tradição. É evidente a
circulação do debate epistemológico ou da proposição de novos nomes,
principalmente, através de periódicos, livros e seminários. Durante certo tempo as
Revistas Movimento, da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, e Motus Corporis, do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em
Educação Física da Universidade Gama Filho, promoveram uma seqüência de debates
e uma edição especial, respectivamente, sobre o tema. Ainda sobre esta discussão
relativa ao nome Educação Física e sua possível modificação, Tani (1996) afirma que
este debate teve um impulso Brasil a partir das reflexões do Prof. Manuel Sérgio Vieira
e Cunha18, para, após isto, passar a receber grande atenção e mesmo passar por forte
tensão. Tani (idem) afirma ainda que “...a maioria desses estudos tem enfocado
questões conceituais e não tem resultado na proposição concreta de uma estrutura
acadêmica para a área” (p. 25). A Cinesiologia, surge, então, como um novo nome
proposto pelo Prof. Tani, vinculado a tradicional Universidade de São Paulo, e vem com
a idéia de dar uma identidade acadêmica para a área. Como definição, TANI, (1996) diz
que a Cinesiologia é
...uma área de conhecimento que tem como objeto de estudo o movimento humano, com seu foco de preocupações centrado no estudo de movimentos genéricos (postura, locomoção, manipulação) e específicos do esporte, exercício, ginástica, jogo e dança. (p.25-26)
Em sua estruturação, a Cinesiologia seria dividida em três sub-áreas, a saber:
biodinâmica do movimento humano, comportamento motor humano e estudos sócio-
culturais do movimento humano. Existe a pretensão de que estas três sub-áreas
incorporem as várias especialidades que já estão estabelecidas na educação física.
A cinesiologia, não obtém resultado na sua proposição de unificar a área, visto
tentar propor ações sobre algo genérico - os movimentos - sendo que os movimentos
18
Embora seja este o nome completo, estaremos tratando por Manuel Sérgio, como ficou mais conhecido este autor.
63
podem possuir todo tipo de representação. Então a cinesiologia está, assim como a
educação física, sem foco definido, sem objeto de estudo específico.
Outra proposta de um nome diferente para a educação física, veio com a Ciência
da Motricidade Humana, termo sugerido pelo Prof. Manuel Sérgio da Universidade
Técnica de Lisboa.
Para Manuel Sérgio (1991)
não só o termo educação física não tem sentido, porque seria tentar ressuscitar um cartesianismo defunto, como não tem autonomia, dado que se afirma tão-só um elemento (ao lado de outros) da educação integral...(p.74)
A idéia da construção da Ciência da Motricidade Humana, vem com o intuito de
transformar o cenário da educação física, tentando atribuir-lhe uma legitimidade
científica, em que o que se observa é a conduta motora, sempre vista sob a luz de uma
dada teoria.
Manuel Sérgio (1991) entende que para uma legitimação social da educação
física, esta deve “...procurar entender-se como ciência independente e autônoma e
com um objeto de estudo que não oferece dúvidas19 sobre os seus fundamentos
lógicos, epistemológicos e existenciais.” (p.78). Para tanto, crê que a Ciência da
Motricidade Humana dá conta destas questões por surgir como uma nova ciência que
vai avançar para além do que a educação física é, pois através do que chama de corte
epistemológico cria-se uma ciência específica, independente, deixando assim de ser
uma parte de uma área mais geral, que é a pedagogia. Não se pode deixar de observar
que Manuel Sérgio (1991) institui uma ciência com um argumento de autoridade
quando diz que o objeto de estudo da motricidade humana não “...oferece dúvidas
sobre os seus fundamentos lógicos, epistemológicos e existenciais.” (p.78)
Para Manuel Sérgio, filósofo português, a educação motora deve vir a ser o
ramo pedagógico da Ciência da Motricidade Humana, como veio de representação
desta nas ações profissionais. Assim, com o conjunto destas atitudes se conseguirá
adquirir “...o lugar indiscutível20 entre as ciências universitárias (o que não acontece
19
Grifo nosso 20
Grifo nosso
64
com a educação física).” (p.86). Observe-se que mais uma vez seu argumento é de
força.
A tese da Ciência da Motricidade Humana acaba também caindo por terra, pois
não consegue atingir os objetivos pretendidos, dentre eles o de mudar o nome
educação física para Ciência da Motricidade Humana nem mesmo em seu país de
origem, pois apenas a instituição à qual o Prof. Dr. Manuel Sérgio está vinculado
profissionalmente adotou sua “nova ciência”. Ou seja, não foi capaz de convencer seus
próprios vizinhos.
A tese da Ciência da Motricidade Humana não consegue definir um objeto de
estudos específico - uma teoria, como a princípio era seu interesse. O que acaba fazendo
é criar múltiplos olhares e perspectivas sobre um mesmo fenômeno - o movimento
humano, o que já acontece em nosso campo. Sua perspectiva, assim como a de Tani,
acabam por criar uma nova organização institucional para aquilo que já acontece, isto é, a
produção de pesquisas a partir de diferentes disciplinas científicas. Entretanto, a
perspectiva inter/multi ou transdisciplinar ainda continua sendo mais um desejo do que
uma perspectiva concreta de realização. Mais uma vez se percebe que a tentativa de
unidade não tem sucesso pois, ao contrário, estimula-se a multiplicidade de abordagens e
compreensões, o que acaba contrapondo-se ao interesse maior de agrupar tudo que se
dá na área sob uma única roupagem, da mesma forma como acontece com a cultura
corporal, que discutiremos mais à frente.
A denominação Ciências do Esporte é outra manifestação de uma tentativa de
se pensar outro nome para a Educação Física. Bracht (1999), diz que é
...exatamente quando a EF deixa de se apresentar como ginástica(métodos ginásticos) e consolida-se o esporte enquanto seu conteúdo maior, que as chamadas Ciências do Esporte instalam-se no campo, inicialmente chamado de EF.(p.31).
Sobre o mesmo tema, Paiva (1994) coloca que a tentativa de transformar a
educação física em Ciências do Esporte tem seu auge num editorial da Revista
Brasileira de Ciências do Esporte (RBCE), do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte
(CBCE), onde é dito que o professor de Educação Física deveria ser visto como um
mestre em Ciências do Esporte.
65
O uso do termo Ciências do Esporte21 solidifica-se quando este passa a ocupar
quase totalmente o cenário da educação física, passando mesmo a representá-la, e tanto
as produções acadêmicas quanto todo o processo de intervenção se voltam para o
esporte em suas várias formas de expressão.
Segundo Bracht (1999) existe ainda uma grande dificuldade entre a educação
física e as Ciências do Esporte, de se “diferenciar a identidade epistemológica de uma ou
de outra, nem sequer uma identidade própria.” (p.78). chegando os termos a se
confundirem ou a serem usados em conjunto.
Entende-se, nesta linha, que o esporte tem a característica de ter estreitos laços
com diversas áreas de conhecimento, “o que empresta a ele uma característica
interdisciplinar.” (TUBINO, 1999:p.7). Observa-se aqui que a tentativa de engodamento
acaba por criar a confusão que Bracht menciona acima.
Podemos observar, na proposta das Ciências do Esporte, que não existe uma
ciência, mas sim estudos sobre esporte a partir de disciplinas mães, ou seja, olhares
específicos sobre um mesmo fenômeno mas com problemáticas totalmente distintas, o
que faz com que se tenha uma diversidade de interpretações sobre o mesmo tema e não
uma interdisciplinaridade. As resoluções dos problemas são isoladas e assim o termo
Ciências do Esporte torna-se mais um nome que auxilia a nublar e obscurecer o
entendimento da educação física.
Se há lógica em entender como estudos das Ciências do Esporte tudo aquilo que
se refere ao corpo, aos jogos e corporalidade, poderíamos afirmar que o clássico trabalho
de Paul Veyne (1982) sobre o desaparecimento dos gladiadores da Roma Antiga é
também uma produção em Ciências do Esporte, já que ele tenta estudar sob a lógica da
produção histórica, um fato que tem por base aspectos referentes ao corpo, ao
movimento humano.
O argumento contrafactual acima serve para indicar que não se cria um campo
científico por decreto ou por imposição de um determinado grupo. No caso das Ciências
21
Em Portugal, na Universidade do Porto, o nome adotado é Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação
Física, podendo ser extinto o termo Educação Física, segundo palavras do prof. Dr. Jorge O. Bento.
66
do Esporte o que acontece são os estudos a partir de diferentes disciplinas científicas que
problematizam o esporte ou atividades corporais segundo a própria lógica e perspectivas
teóricas. Neste caso os que advogam a denominação Ciências do Esporte confundem o
campo científico com o fenômeno ou com a temática, desconsiderando que um campo de
investigação científico se forma a partir de problemas ou quebra-cabeças comuns (KUHN,
1989).
Os três exemplos tratados, a Cinesiologia, a Ciência da Motricidade Humana e as
Ciências do Esporte, são construções que pretendem, através de uma nova elaboração
supostamente epistemológica, propor uma nova denominação em substituição à
educação física, na pretensão maior de assumirem um novo patamar no meio acadêmico,
adquirindo mais status no espaço universitário, como afirmam Tani e Manuel Sérgio
explicitamente.
Todavia, estas novas propostas de nomes em substituição ao já tradicional termo
educação física, acabam não adquirindo o prestígio pretendido e ainda aumentam os mal-
entendidos. Dar um novo nome para uma nova área tem servido para aumentar a
confusão e as lutas internas da educação física, num confronto entre grupos que
pretendem assumir para si a verdade absoluta e o poder de, com uma nova
denominação, reorganizarem a área. O nome torna-se quase uma solução mágica.
Este movimento de lutas internas em uma área especializada, onde se identificam
várias relações, como força, poder e interesses, é composto basicamente por pessoas
que acreditam e têm paixão por algo que é o objeto central, que Bourdieu (1989) chama
de campo. Nesta análise, nos valendo de Bourdieu, podemos dizer que estas lutas na
educação física se dão na intenção de constituir um campo de conhecimento específico e
unitário.
Como contraponto às tentativas de construção de uma nova área, existem autores
como Lovisolo, Betti e Bracht que entendem que não é uma nova ordem epistemológica e
uma nova denominação que farão com que se organize e se qualifique a educação física.
Estes autores não acreditam que é instituindo-se uma ciência ou mesmo uma nova
ciência da educação física, ou outro nome qualquer, que conseguir-se-á atingir maior
67
qualidade ou construir-se-á uma área mais organizada, pois não enxergam necessidade
de se gastar tanta verve nisso. Entendem que a educação física é uma área que se pauta
na intervenção e que portanto deve ser pensada para além dos dualismos estabelecidos
entre campo científico - área de intervenção, ciências humanas - ciências biológicas como
vem acontecendo, e acreditam numa mediação que vá contribuir para que se qualifique o
ato de intervenção profissional, nos vários campos possíveis de atuação de um
profissional de educação física.22
Observe-se que para alem da instituição de uma nova ciência, com um nome que
deveria substituir ou englobar o tradicional termo educação física, temos em nosso campo
a tradição de criar classificações que devem traduzir objetivos, valores e meios das
atividades. Este tema será tratado na próxima seção.
22
A luta no interior do campo se torna mais complexa quando entra em cena o conflito entre os formados a partir
das ciências sociais e os formados a partir das ciências biomédicas. Neste sentido, dois caminhos podem ser
destacados: a) aqueles que afirmam que a educação física deve ser construída pela lógica do conhecimento
biomédico e b) pelo conhecimento das áreas de ciências humanas e sociais. O debate é para identificar em qual área
a educação física se insere. Neste aspecto, os órgãos governamentais de pesquisa e ensino (MEC, CNPq e CAPES)
enquadram a educação física na área de ciências da saúde, mas em diversas IES ela está colocada na área de ciências
humanas e sociais. Isto por si só tem gerado um intenso, constante e inflamado debate interno.
68
4. CRIANDO CONCEITOS E MAIS CONCEITOS.
Um outro fator que pode ser identificado no seio da educação física é algo que
podemos dizer já ser uma tradição da área, que é o hábito de criar conceitos, classificar
atividades. Isto decorre da tentativa de articular diferenças e criar aproximações, com o
interesse de possibilitar um melhor entendimento pelos os próprios profissionais e pela
sociedade.
Todavia, esta diversidade de conceitos e classificações inventadas tem
colaborado para criar, ou mesmo ampliar, as dificuldades de entendimento da
educação física, seja nas suas propostas de intervenção ou de investigação e estudo.
Podemos observar e constatar um intenso debate tautológico, onde várias
denominações, conceituações e classificações tem sido propostas para se analisar o
mesmo fenômeno, podendo ser este a própria educação física ou o esporte. Acerca
disto, vários exemplos podem ser usados. No caso do esporte, Tubino (1992) cria uma
conceituação que o classifica em três dimensões: o esporte-educação, o esporte-
participação e o esporte-performance. Outro estudioso do tema é Bracht (1997), que
faz outra classificação considerando duas dimensões: o esporte de alto rendimento ou
espetáculo e o esporte enquanto atividade de lazer. Em ambos os casos existe uma
confusão entre os objetivos sociais pretendidos e a natureza deste mesmo fenômeno.
Esta confusão entre os objetivos e a natureza do esporte traz ainda mais
dificuldades para seu entendimento, fazendo com que circulemos entre opiniões
contrárias e diversas que se representam desde os cursos de graduação até as
políticas públicas, além de criar modelos-ideais fechados para um fenômeno social
complexo que se manifesta dinamicamente nos espaços sociais. As narrativas
competitivas, educativas e socializatórias em torno do esporte aparecem independente
do espaço onde se manifesta esse fenômeno social.
Também sobre as atividades físicas, criam-se classificações e denominações.
Faria Junior (1999), analisando as produções da área, aponta alguns termos correntes:
atividade física, atividade corporal, exercícios, aptidão física. Neste caso, assim como
no esporte, esta variada classificação contribui para que se instaure uma grande
69
confusão no uso e na compreensão destes termos, obscurecendo ainda mais cada um
deles.
Neste quadro, se estabelece uma rotina e também uma tradição na forma de
construir o conhecimento, onde se entende que conhecer é classificar e quanto mais se
classifica, mais se conhece; assim, acabamos por ser reforçadores da tradição de
Linnaeus 23, só que com pouca funcionalidade.
Assim, o sonho de construção de uma unidade acaba por ficar cada vez mais
distante, servindo as várias denominações somente para criar barreiras entre os
profissionais, dificultando ou impedindo o diálogo, colaborando para que se formem
guetos, o que sem dúvida acaba por limitar as possibilidades de avanço do
conhecimento e da intervenção. Isto está representado na idéia de que estas
denominações são criadas para serem representações de pensamentos de grupos ou
de intelectuais da área, que tentam fazer com que a educação física assuma para si o
que consideram ideal.
Neste aspecto, Lovisolo (2000) trabalha com o que chama de tribos24 da
educação física, que são a representação destes pensamentos e posições diversos,
onde cada uma encaminha sua atividade de intervenção e de construção de
conhecimento para a esfera do que consideram que a educação física deve ser. Estas
tribos constróem para si um mecanismo de representação que vai de um sistema de
linguajar específico até um sistema de valores atribuídos a suas ações profissionais.
Não existe uma interface destas tribos e cada uma caminha em um sentido, que pode
ser oposto ao de outra, constituindo divisões internas marcantes.
Lovisolo (2000), diz que a “...falta de integração está-se agudizando nos
fundamentos e na prática de intervenção, mesmo nas recomendações que são
formuladas para se atingirem os diversos objetivos.” (p. 12)
Apesar dessa dinâmica de divergência de posições e visões, do ponto de vista
institucional a unidade da educação física continua garantida, seja na formação em
23
Karl vonáLinné, ou Linnaeus. Ele publicou, em 1735, o livro Systema Nature onde propunha um sistema de
classificação de todos os organismos baseado nas suas semelhanças. Esse sistema foi muito aceito até o século XIX,
e continua servindo de base para o pensamento de toda a taxionomia e as ciências biológicas atuais.
70
nível de graduação, seja na questão da organização dos profissionais em órgãos
corporativos, já que em ambos se mantém e se efetiva a denominação educação física.
Como podemos observar, cria-se na educação física uma lógica de
“autodestruição” quando os termos e/ou conceitos ao invés de representarem e
explicarem a área traduzem mais a identidade das tribos (no sentido de Lovisolo) e os
“nomes” se tornam bandeiras de grupos. O debate em torno das classificações ao invés
de contribuir com o entendimento, tem servido para que ela permaneça em um nível que
não a faz avançar, pois este tipo de comportamento não favorece o debate em bases
mais racionais, que é o que há de melhor no sentido de fazer avançar qualquer campo de
conhecimento.
Reforçando esta idéia, existe uma outra luta para definir onde a educação física
deve atuar, qual seu espaço principal, daí surgindo um outro campo de batalha, de
confronto de idéias e ideais, que são as propostas específicas para o espaço de
intervenção na área escolar. São estas que veremos adiante, tentando analisar sua
circulação no campo pedagógico da educação física.
24
As tribos indicadas são quatro: a da potência, a da conservação, a da estética e a da educação física escolar.
71
5. A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR E SUAS “CULTURAS”.
A proposta veiculada através da obra Metodologia do Ensino da Educação
Física, trouxe um modelo de ação pedagógica, denominado por seus autores como
pedagogia crítico-superadora. No texto, o termo cultura corporal parece ganhar mais
força que a perspectiva pedagógica anunciada no início da obra. Tanto que os atores
passaram a identificar o livro e a proposta pedagógica como “cultura corporal”. A idéia
geral da pedagogia crítico-superadora acabou sendo engessada pela idéia parcial da
cultura corporal. Esse nome ganhou tanta força que os próprios intelectuais próximos a
essa perspectiva pedagógica da educação física passaram a cunhar nomes que
traduzissem mais especificamente o universo das atividades corporais que deveriam
ser tratadas pela educação física.
A cultura corporal passou a ser elemento nas discussões cotidianas dentro de
nossa área de conhecimento, em vários e diversos ambientes. O que se viu foi uma
grande e variada gama de entendimentos e compreensões que tentavam e tentam, até
hoje, propor uma noção mais exata ao termo. Assim, a divergência e as confusões de
entendimento perduram, haja vista que o conceito ou conceitos utilizados não
contribuem para dar-lhe significado no campo pedagógico da educação física,
chegando mesmo a contribuir para tornar mais difícil esta tarefa. De fato, a força que o
termo cultura corporal ganhou, passando a fazer parte do jargão específico da
educação física, não veio carregada de compreensão nem de uma noção exata de seu
significado.
No Coletivo de Autores (1992) a explicação para o conceito cultura corporal vem
a ser
o acervo de formas de representação do mundo que o homem tem produzido no decorrer da história, exteriorizados pela expressão corporal: jogos, danças, lutas, exercícios ginásticos, esporte, malabarismo, contorcionismo, mímica e outros, que podem ser identificados como formas de representação simbólica de realidades vividas pelo homem, historicamente criadas e culturalmente desenvolvidas. (p.38)
72
Na verdade, o que o Coletivo de Autores quer é dar um tratamento lingüístico
único, homogêneo, às atividades que, de uma forma ou de outra, fazem parte da
tradição de nossa área e da sociedade em geral. Mas, observemos que a descrição
acima pode dar lugar ao entendimento que qualquer atividade corporal humana é
passível de ser tratada pedagogicamente pela educação física. O sentido atribuído a
cultura corporal abarca quase todas as atividades humanas, na medida que entende
que o homem é o seu corpo e a exteriorização destas atividades se dá pela expressão
corporal, o que acaba sendo um conceito que agrega quase todo o agir humano.
A intenção dos autores em distinguir o que seja cultura corporal, acaba por
tornar mais difuso e global o conceito que pretende substituir a tradicional idéia de
educação física e esporte. Isto acaba por tornar ainda mais difícil o processo de
seleção de conteúdos em educação física escolar, o que por si só já traz grande
dificuldade para os professores. A noção de uma cultura corporal representada por
uma totalidade de manifestações corporais humanas, cria um sentimento de
indiscriminação dos conteúdos.
Castellani Filho, um dos autores do livro, em texto mais recente, de 1998, afirma
que a cultura corporal vem a ser um componente da cultura de homens e mulheres
brasileiras,
...uma totalidade formada pela interação de distintas práticas sociais, tais como a dança, o jogo, a ginástica, o esporte que, por sua vez, materializam-se, ganham forma, através das práticas corporais. (p.54)
Observemos que esta é uma explicação por demais vaga e inexata, que abre
espaço para um extenso debate tautológico acerca da expressão cultura corporal. Na
tentativa de explicar, confunde ainda mais o cenário.
Estas dificuldades de compreensão e delimitação de cultura corporal fazem com
que esta expressão, difundida pelo Coletivo de Autores, assuma um caráter
polissêmico. A partir deste sentido de polissemia em que a cultura corporal se viu
envolta, é que surgiu a necessidade de seus próprios idealizadores cunharem “termos-
conceitos” que melhor definissem o universo de conhecimentos e práticas que
deveriam ser tratados na educação física. As tentativas de adjetivações surgiram nas
73
elaborações de Kunz, com o conceito de cultura de movimento, de Betti, com o de
cultura física e de Bracht, com o de cultura corporal do movimento.
As propostas dessa natureza passaram a ter uma gama muito mais vasta de
orientação. Chegam a poder ser pensadas como uma forma de se entender a
educação física, além da pretensão de ser unificadora para a nossa área de
conhecimento, ou até a ser uma forma de se articular a organização curricular no que
tange a formação profissional universitária.25.
As aproximações entre cultura corporal e educação física, de certa forma podem
fazer com que aumentem as dificuldades de identificação dos sentidos que esta
assume quando se pensa a educação física escolar e mais diretamente o sentido da
própria cultura corporal. Ao mesmo tempo que cultura corporal passou a ser usada
para identificar diversas situações dentro da educação física, aumentou a dificuldade
de buscar seus significados no campo didático-pedagógico, fazendo com que
aumentem as dúvidas sobre seu(s) sentido(s).
O grupo das “culturas” defende a idéia de que a educação física é um campo
iminentemente pedagógico, onde os profissionais enxergam “o movimentar-se humano
sob a ótica do pedagógico.” (BRACHT, 1999:p.33)
Ainda Bracht (1999) diz que na educação física, podem-se identificar
...três perspectivas diferentes de caracterização ou de delimitação: a) tentativa de delimitação de um campo acadêmico que teorize a prática pedagógica [...] b) tentativa de construir um campo interdisciplinar a partir das Ciências do Esporte, [...] c) a tentativa de construção de uma nova ciência.... (p.25)
Neste aspecto, a questão da teorização da prática pedagógica mostra-se como
uma das vertentes da campanha pela definição da especificidade da educação física e
como as demais, tem a intenção de ser o elo aglutinador da área. Com esta tentativa
de caracterização da área por uma matriz que tenta dar unidade à educação física,
cria-se mais uma definição, caracterização, rotulação, etc, que serve para aumentar as
dificuldades de seu entendimento.
25
Depoimento do Prof. Antônio Jorge Soares, sobre os debates da reforma curricular na UFES em 1998 e falas de
alguns dos autores do livro em estudo, em debates e encontros acadêmicos que discutiam o assunto.
74
Esta campanha se constrói pelo contato que autores da educação física vem
mantendo com estudos da área pedagógica, entendendo que é preciso construir a
teoria da educação física a partir do veio da pedagogia, em oposição ao eixo do
pensamento biológico.
Neste caminho que visa a “...necessidade de construção de uma teoria da EF,
entendida esta como uma prática pedagógica, ou seja, uma repedagogização do teorizar
na EF...” (BRACHT, 1999:p.24), é que surgem as “culturas” como tentativa de ser a
resposta à questão da especificidade da educação física.
Ultimamente, isto é representado principalmente pela oposição entre o que vem
sendo chamando de aptidão física e o que se convencionou chamar de cultura corporal,
principalmente após a publicação da obra em estudo.
Esta tentativa de definir a cultura corporal como conceito unificador, dando uma
identidade única à educação física, seja ela teórica, científica ou metodológica, esgota-
se no momento em que acaba por trazer mais problemas do que soluções, pois
esbarra em alguns obstáculos de vários níveis e tipos.
É desta maneira que a cultura corporal se expressa no Coletivo de Autores,
tendo como proposta definir o viés pedagógico como a matriz específica da educação
física. Isto transparece quando seus autores tentam dar uma definição sobre o que vem
a ser educação física, dizendo que esta é uma prática pedagógica que deve tematizar
conhecimentos do que chamam cultura corporal. Querem fazer entender que a cultura
corporal deve ser a identidade da área educação física, sendo sua caracterização
eminentemente pedagógica que lhe garantirá status e identidade na esfera escolar e
universitária.
A cultura corporal passa a circular pela educação física como algo que chega
para ser a solução dos problemas e que tem a característica de poder juntar em torno
de si tudo que se constrói na educação física, desde os currículos universitários até os
planos de ensino na esfera escolar.
75
Esta tentativa de unidade pela cultura corporal dá a entender que ela é a base
para pensar e agir na área. Parece a velha cena de um filme, cujo enredo baseia-se
numa luta pelo poder de dizer e definir caminhos para a educação física. As cenas são
recheadas de batalhas entre o “bem e o mal”, opostos que a cada época são
representados por personagens diferentes que se apresentam como sendo os
salvadores da área.
Muitas vezes o que se pensa fazer não se representa na realidade; mostra-se
tão somente como uma utopia que preenche o cenário real da vida de poucos. Além
disto, é um fato a existência de uma divergência de significados sobre o conceito
cultura corporal no grupo de referência que defende uma pedagogia crítica para
educação física. Retomemos algumas definições sobre cultura corporal, segundo seus
autores,
A EF é uma prática de intervenção e o que a caracteriza é a intenção pedagógica com que trata um conteúdo que é configurado/retirado do universo da cultura corporal de movimento.(BRACHT, 1999:p.32-33).
...integrante da cultura do homem e da mulher brasileiros, a cultura corporal constitui-se como uma totalidade formada pela interação de distintas práticas sociais, tais como a dança, o jogo, a ginástica, o esporte que, por sua vez, materializam-se, ganham forma, através das práticas corporais. Enquanto práticas sociais, refletem a atividade produtiva humana de buscar respostas às suas necessidades. (CASTELLANI FILHO, 1997:p. 12).
26
Vejam como a intenção de ser o veio identificador da área se esvai nas próprias
tentativas de definição da cultura corporal por seus ideólogos, pois não é possível
encontrar consenso entre as mesmas sequer quanto ao termo a ser usado, se cultura
corporal, se cultura corporal de movimento, ou outro qualquer.
O fato do nome cultura corporal haver se difundido não quer dizer que tenha
conseguido conceituar seu significado, ou mesmo que essa perspectiva se materialize
nas ações didático-metodológicas de quem está nas salas de aula. Em última instância,
a proposta do Coletivo de Autores é ser uma resposta aos que atuam no cotidiano
escolar, devendo para isso “fornecer elementos teóricos para a assimilação consciente
26
Grifos do autor.
76
do conhecimento, de modo que possa auxiliar o professor a pensar autonomamente27.
(p. 17)
Ao fazer uso do termo cultura corporal como palavra-força, como se ela por si
pudesse definir e explicar o sentido pretendido pelos autores quando da construção de
sua obra, o Coletivo de Autores acaba por cair no que Bachelard (1996) chama de
obstáculo verbal na formação do espírito científico. O uso exaustivo de um conceito ou
de uma imagem potente ou global pode tornar ainda mais difícil a compreensão dos
fenômenos, pois “... uma única imagem, ou até uma única palavra, constitui toda a
explicação. Pretendemos assim caracterizar, como obstáculos ao pensamento
científico, hábitos de natureza verbal.” (p. 91).
O uso de palavras-força ou auto-explicativas que acabam servindo para explicar
qualquer tipo de fato ou fenômeno, acaba por se tornar um empecilho para a
consolidação do debate no campo da educação física. Podemos usar Bachelard no
caso da educação física para pensar que possuímos obstáculos dessa natureza,
mesmo entendendo não serem estes propriamente científicos. O nosso problema é de
constituição de um campo onde as divergências sobre sua natureza remetem à
seguinte questão: somos uma ciência ou um campo de intervenção? O que importa é
que os obstáculos verbais podem dificultar a comunicação em qualquer campo, seja
científico e ou não. E este é caso da educação física e sua diversidade de nomes e
conceitos que tentam conferir-lhe identidade mas acabam por reforçar a segmentação
ou as tribos.
O uso recorrente de um determinado conceito na educação física para justificar
ou fazer valer uma forma de pensamento, nas mais diversas situações e contextos,
fazem com que o tudo seja nada e o nada seja tudo ao mesmo tempo, pois “os
fenômenos são expressados: já parece que foram explicados. São reconhecidos: já
parece que são conhecidos.” (BACHELARD, 1996: p. 91)
Este fato é recorrente nas produções em educação física que tentam ser
proposições pedagógicas, desde as primeiras obras até as que hoje podemos chamar
de culturas (corporal de movimento, física e corporal). Todas as que se alinham com as
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Aqui remeto o leitor para o primeiro artigo, onde analiso mais detidamente este assunto.
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chamadas pedagogias críticas da educação física tentam ser auto-explicativas, e
acreditam que a simples instituição do termo já diz a que vieram com fundamento em
sua própria lógica, pois segundo Bachelard (1996) “A função... é de uma evidência
clara e distinta, a tal ponto que não se sente a necessidade de explicá-la.” (p.91)
Porém, nenhuma delas consegue ser nitidamente compreendida e aceita pelos
que deveriam ser seus maiores beneficiados, os professores que atuam na educação
básica. A recente dissertação de mestrado defendida por Muniz (1996) mostra que as
principais produções neste campo, dentre elas a cultura corporal, não são
compreendidas ou sequer conhecidas pelos professores, mesmo que algumas
propostas sejam usadas em documentos da área. No caso dos PCN‟s28, a educação
física, na segunda fase do ensino fundamental, pauta-se numa proposta denominada
como Cultura Corporal de Movimento. Eis aí o exemplo de como a força dos grupos se
faz presente nas políticas públicas de educação quando instituem um conceito que não
é ainda consenso entre os próprios especialistas da área.
A veiculação dessas propostas para a educação física escolar em documentos
oficiais, é mostra de que elas ganham força com a participação de seus autores ou
seguidores em grupos ou equipes responsáveis pela criação de propostas didático-
metodológicas nas várias redes de ensino. Mesmo assim, isto não garante sua
inserção real no cotidiano escolar ou sua compreensão.
O fato da proposta pedagógica em estudo fazer uso sistemático e abusivo do
termo cultura corporal, acaba por enquadrá-la no que Bachelard chama de obstáculo
epistemológico, o que pode ser um obstáculo ao debate e para os acordos. Durante
muito tempo a educação física esteve dividida em dois pólos opostos que não se
colocavam propensos ao debate: o da dita esquerda e o da chamada direita. Esta
polarização por vezes criava um clima de tensão e real conflito, fato facilmente
identificável nos encontros e congressos da área.
Com isto, percebemos que a cultura corporal, que a princípio tenta valer-se da
lógica do pensamento científico em sua organização, acaba permanecendo na fase
denominada por Bachelard de estágio pré-científico, por fazer uso de generalizações
28
Parâmetros Curriculares Nacionais, documento do Ministério da Educação que pretende indicar propostas
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indefinidas - o próprio termo cultura corporal - que expressa fenômenos variados na
educação física. Ou melhor, tenta explicar sozinho toda a corporalidade humana.
O uso de imagens e termos pode não colaborar na formação de um espírito
aberto ao debate no campo da educação física, que sem dúvida é um desejo da
proposta, tendo em vista que estas “nem sempre são imagens passageiras; levam a
um pensamento autônomo...” (BACHELARD, 1996:p.101), ou seja, acabam por circular
sem que se possa perceber/identificar seu significado no campo pedagógico, levando a
possíveis e variadas interpretações.
Assim, podemos dizer que a cultura corporal ressente-se de justificativas
maiores que possam significar aquilo que seus autores pretendem, que é servir como
uma construção que seja o viés unificador da educação física via matriz pedagógica.
Por isso, as propostas culturalistas para a educação física escolar, mais
notadamente a cultura corporal, tem interesse em seu próprio fortalecimento como eixo
unificador da educação física, tentando criar uma identidade específica para a área.
A cultura corporal se corporifica na certeza de que sua existência, por si só,
define seus ideais e desejos. Este pensamento vem na esteira de pensamentos
anteriores que acreditam ser a educação física uma área que permite diversas e
variadas construções, que sirvam para dar encaminhamento ao que ela deve ser e
como deve agir. Assim, tenta encampar em torno de si os elementos constituintes
deste campo, sem que para isso precise de justificativas maiores ou de construções
mais elaboradas, apoiando-se no fato da educação física ser ainda um campo recente,
aberto a variadas interpretações, fato comum nas áreas em construção, o que o torna
uma arena fácil para lutas e confrontos.
Em seu projeto, a cultura corporal tenta ser uma proposta que se firme como
alternativa para o processo de intervenção profissional no espaço escolar, este
sentimento se expande para o desejo de ser a própria definição da área. Entretanto
este querer não encontra ressonância efetiva, já que não se materializa nas práticas
profissionais, firmando-se mais como um ideal que qualquer outra coisa.
pedagógicas par as várias áreas de conhecimento, no ensino fundamental.
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Na educação física existe esta tendência à circularidade de idéias e propostas
sem definição e sem compreensão de seus significados, que acaba por ser um entrave
para a solidificação da área. Assim, estas propostas “jogam contra si próprias” na
medida que não conseguem ser incorporadas efetivamente pela educação física,
ficando restritas a um determinado grupo. A figura a que esta situação nos remete é a
do cachorro que tenta morder seu próprio rabo.
80
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Concluindo, podemos apontar que o campo da educação física tem se
constituído sobre algumas características bastante peculiares, que trazem para seu
meio alguns elementos que acabam lhe sendo típicos. É um cenário composto por um
sentimento de crise que acaba fazendo circular um ideário de mudanças. Esta crise
passa por um sentimento de baixa auto-estima e baixo auto-conceito em relação à área
e à condição de seus profissionais, despertando desejos de mudanças que alterem
este quadro. E estas tendências de mudanças vão das matizes teóricas ao próprio
nome educação física, sempre orientados a partir das perspectivas de grupos ou de
autores.
Neste movimento instaura-se uma luta e um constante e acalorado debate entre
os que desejam pensar a área como disciplina científica e os que não a entendem
como ciência, além dos que a querem definir como uma disciplina de orientação
eminentemente pedagógica.
Os que a pensam como ciência têm tentado elaborar uma nova orientação
epistemológica, com um cabedal de conhecimentos que lhe seja próprio, de forma a
configurá-la no meio universitário como disciplina científica; os que a entendem como
uma arte da intervenção pensam em melhor construir os saberes que contribuam para
um melhor fazer por parte do professor, e por último, os que a pensam como uma área
da ação pedagógica, que querem construir uma forma de pensar que justifique
acadêmica e politicamente este tipo de pensamento.
Neste emaranhado de idéias e formas de pensar, tem sido uma rotina as
rotulações, as classificações e as conceituações dos elementos de que a educação
física lança mão em suas ações.
Assim, tem surgido diversas interpretações sobre um mesmo fato, que tem
colaborado para obscurecer ainda mais a área, ao invés de servir para clarear e facilitar
o entendimento, como, a princípio, é real a intenção.
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É por esta razão que no campo da educação física escolar surgem formas de
pensar a intervenção e a área a partir do campo culturalista. De fato, a cultura corporal
aparece com a intenção de ser o eixo norteador do pensamento e da ação da
educação física escolar, tentando ser o elemento aglutinador deste campo que tem se
mostrado partido e difuso. Além disso a cultura corporal assume para si a
responsabilidade de tentar dar conta de todo o pensar em educação física, fazendo
com que as idéias e as ações circulem a partir de suas perspectivas teóricas.
Na realidade a cultura corporal acaba sendo o inverso do que se propõe,
tornando ainda mais confusas as formas que se tem pensado a área ao invés de torná-
la mais clara e de dar-lhe mais transparência. Também não consegue definir
claramente seu papel no campo pedagógico da educação física por acreditar que sua
simples existência define o que é e o que pensa, sem elaborar formas de se fazer
entender.
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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
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CONCLUSÃO GERAL DO ESTUDO.
Este estudo teve a intenção de contribuir com as produções no campo
pedagógico da educação física, tendo para isto realizado uma análise crítica sobre uma
das principais obras da área.
O trabalho se desenvolveu com o objetivo de poder tentar entender as
características teóricas da obra e sua inserção na área da educação física escolar,
tendo para isto usado o próprio modelo organizacional dela como base e sua projeção
na educação física.
Como primeiro dado, constatou-se que o Coletivo de Autores utiliza o que
durante o texto denominamos de modelo em cascata, pelo fato de sempre se estruturar
em três níveis. O primeiro, onde faz uma análise da sociedade em seu aspecto político-
econômico; o segundo, em que analisa a educação segundo dados do nível anterior e
por fim, quando estuda a própria educação física, utilizando-se de elementos dos dois
níveis anteriores, respectivamente.
Dentro deste modelo em cascata, o Coletivo de Autores se constrói a partir de
referenciais que possuem argumentos que se mostram diferentes e mesmo opostos,
que são o iluminismo e o romantismo. Estes dois modos de análise e interpretação da
realidade circulam pela obra e caracterizam sua proposta dando-lhe potência para
arregimentar adeptos do discurso crítico neste campo.
Esta junção em um mesmo eixo de dois modelos de interpretação e construção
distintos, fazem com que a obra possua a característica de tentar fazer uma conciliação
do inconciliável, de tentar costurar num mesmo nível o que seria a princípio, destoante,
contraditório e oposto.
A obra se pauta num tipo de interpretação da sociedade que usa o romantismo
como eixo, para em sua proposição trabalhar na linha do iluminismo. Assim, diz-se que
primeiro ela enxerga aquilo que quer ver, para depois propor aquilo que deseja como
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solução ao que é visto por ela, assumindo o papel de iluminados redentores da
educação física em seu papel social e da própria sociedade.
O Coletivo de Autores tenta propor um modelo didático-pedagógico para a
educação física escolar, o que acaba não se dando, haja vista que acaba por ser mais
do que tudo uma politização da pedagogia, com uma tendência a ser dogmática e
pouco real. Isto se mostra na pouca influência que a obra teve no trabalho dos
professores no cotidiano escolar, mas em contrapartida teve grande circulação no meio
acadêmico.
A proposta do livro, convencionalmente chamada de cultura corporal faz parte da
tradição da educação física de criar rotulações, marcas e classificações, numa
característica de considerar que isto cria uma maior qualificação de suas ações e
proposições, quando ao contrário acaba por aumentar mais ainda a dificuldade de se
entender a área e seus mecanismos de construção.
Nesta linha, várias foram as tendências em se criar para a educação física,
nomes, marcas que venham em substituição ao termo tradicional. Além de trazerem a
proposta de outros nomes, também se pensa em construir uma área diferente da
original, isto por entender que a educação física não correspondia aos desejos e
sentimentos de valorização acadêmica e profissional, seja isto pelo argumento da
ciência ou político-cultural.
Acontece que estas diversas tentativas de mudança daquilo que já é tradicional,
não lograram êxito, pois não conseguiam cumprir aquilo que se colocavam como
objetivo, pois na perspectiva de criar algo novo, apenas repetiam velhos dilemas, não
definiam a contento sua forma de pensar e de agir.
Todas estas tentativas criam um efeito negativo, já que possibilitam a criação de
obstáculos à melhor compreensão de um fenômeno, no caso a educação física e com
isso ao invés de propiciar maior entendimento, criam mais dificuldades ao debate no
campo.
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Estas novas formas de pensar a educação física como área, se dividem entre
aqueles que querem fundar uma nova ciência, aqueles que entendem ser a matriz
pedagógica o eixo comum da Educação física (caso da cultura corporal) e aqueles que
não viam muito interessem em pensar uma nova área, mas sim em qualificar a
educação física, por a verem como espaço de intervenção.
Neste cenário em que diferentes propostas co-habitam o mesmo espaço, a
cultura corporal caminha pelo campo da educação física como se tivesse amplo e
tranqüilo entendimento, chegando mesmo a fugir de sua expectativa inicial, ampliando-
se para um modo de interpretação da educação física.
No que podemos chamar de um conflito interno, a cultura corporal se coloca
como alternativa político-pedagógica, mas ao mesmo tempo se nega como modelo
didático, o que contribui para dificultar uma compreensão sobre o que possa significar,
já que esboça ser algo que ao mesmo tempo nega. Assim, de forma geral entendemos
que a cultura corporal vem servindo ao contrário do que é circulante em nosso meio,
para criar grandes obstáculos ao desenvolvimento e compreensão da própria educação
física e de seu papel na área escolar.
Desta forma é que então encerramos este estudo, tendo claro a noção de que o
mesmo é provisório e portanto aberto a todo tipo de análise e compreensões, mas
sempre afirmando que o mesmo tenta ser uma contribuição para a educação física, em
seu modo de se ver e justificar, num espírito que se coloca aberto ao diálogo, como
veio construtor maior de um campo, seja científico ou de intervenção profissional.