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Introdução à Dialética
João Borba
A Dialética é uma das principais heranças atuais do pensamento de Heráclito. Como a
Filosofia é um grande campo de debates históricos que sempre se reatualizam e numca se
acabam, a melhor maneira para começarmos a falar em Dialética talvez seja retomar em
linhas gerais o grande debate entre Heráclito e Parmênides, e compará-la com com a Lógica,
que é uma das principais heranças atuais de Parmênides. O debate entre lógicos e dialéticos
hoje retoma em outros termos e de uma nova maneira o debate entre Parmênides e Heráclito.
Podemos dizer que, nesse debate, os parmenidianos levaram grande vantagem ao
longo da História, contribuindo para a formação das tradições mais sólidas e antigas da
Filosofia, enquanto os heracliteanos perderam terreno e só reapareceram com força a partir de
sua retomada pelos dialéticos no século XIX d. C. Isso geralmente torna mais difícil
entendermos o raciocínio dialético do que o raciocínio lógico, que segue uma linha de
pensamento com a qual estamos mais acostumados.
Podemos dizer que a herança parmenidiana que entrou para a história da Filosofia foi
basicamente a valorização da unidade, a idéia de uma verdade imutável, e a noção de que essa
verdade não pode ser contraditória. Na Lógica isso está presente por um lado no princípio de
identidade (que diz que cada coisa é idêntica a si mesma e não algo em transformação) e no
princípio de não contradição (que diz que o que é contraditório é falso), e por outro na
valorização de um raciocínio tão perfeitamente coerente que todas as idéias estejam de acordo
umas com as outras formando uma grande unidade em que nenhuma parte do raciocínio
discorde ou contradiga o resto dele.
A principal herança heracliteana, ao contrário, foi a idéia de que tudo muda, tudo flui,
a valorização da multiplicidade, da pluralidade e a idéia de que nessa multiplicidade de coisas
em transformação, tudo está em contradição, tudo está em conflito e nada concorda
completamente com nada. Para Heráclito, a verdade seria o conjunto de toda essa
multiplicidade de coisas em transformação e contraditórias umas com as outras que forma o
mundo. Então, para captá-la, seria preciso o que hoje chamamos de uma visão global ou visão
de conjunto (alguns preferem dizer uma visão holística) de tudo isso.
Uma visão de conjunto é uma, é um modo de se perceber o conjunto, e portanto
também tem uma certa unidade. Mas por isso mesmo, para os heracliteanos, é preciso tomar o
cuidado de não supervalorizar a idéia de que é uma visão de conjunto e não acabar
desvalorizando a multiplicidade das coisas que existem ou até fazendo-a desaparecer como se
essa “visão de conjunto”, que é algo que ocorre só nos nossos pensamentos, fosse “mais
verdadeira” do que a multiplicidade em sua totalidade, ou seja, do que a própria realidade em
seu conjunto, porque nosso próprio pensamento, no qual estamos formando essa “visão de
conjunto”, é apenas uma pequena parte dessa realidade. Em outras palavras, é preciso tomar
cuidado para não deixar a “idéia” que formamos do conjunto da realidade em sua
multiplicidade, transformar-se em uma unidade no sentido de Parmênides, como se fosse
“absolutamente verdadeira” só por ser uma unidade e justamente por isso.
A visão de conjunto dos heracliteanos é como a visão de um grande campo de batalhas
em que tudo está em luta, ou de um grande jogo com milhões e milhões de competidores.
Para falar dessa visão global que precisamos ter do grande campo de confrontos que é o
mundo, Heráclito, também falava em uma “unidade”, mas dizia que era preciso buscar a
unidade na multiplicidade e a multiplicidade na unidade, sem nunca esquecermos que essa
unidade é feita de múltiplas coisas. Os dialéticos de hoje chamam essa visão do conjunto de
totalidade: a totalidade de todas as coisas em constante transformação e contraditórias umas
com as outras que formam o mundo, ou o resultado total de tudo isso.
Pode-se dizer que a unidade da multiplicidade de que os heracliteanos falam é o ponto
de vista do general diante do mapa onde planeja sua estratégia, e não o do soldado que está no
campo e não vê o conjunto. Por isso é que dizemos que há uma “unidade” nessa
multiplicidade: estamos falando da totalidade dos conflitos envolvidos. É importante notar
que nessa luta ou nesse jogo não existem apenas dois exércitos ou dois “times”: tudo está em
luta contra tudo, como num jogo de futebol onde não existem times e cada um joga por si
mesmo, ou então existem muitos times jogando ao mesmo tempo, e os times mudam, os
jogadores podem começar a “jogar contra” e mudar de time no meio do jogo. Não é à toa que
costuma ser difícil entender a dialética: para os dialéticos, a própria realidade é complicada,
se entendermos bem o sentido dessa palavra... as coisas estão todas co-implicadas, cada uma
implica as outras ao redor e vice-versa, num enorme jogo de teses e antíteses entrelaçadas.
Para entendermos melhor o pensamento dialético, vamos começar pela noção de que
tudo flui, tudo muda constantemente. Heráclito dizia que não é possível a gente se banhar
duas vezes no mesmo rio, porque da segunda vez, as águas passaram e o rio já não é mais o
mesmo. As águas do rio eram uma metáfora muito comum na época para se falar da vida, do
rio da vida que vai passando, com a idéia de que o que passou, já passou e não volta mais, as
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coisas já se transformaram, a situação já mudou. É difícil acompanhar esse fluxo das coisas,
porque nos apegamos a elas do modo como estão agora, e não vemos o tempo passar.
Mas o tempo sempre passa, implacavelmente, e não temos como impedir que as coisas
mudem, a não ser que a gente se iluda imaginando em nossa fantasia que as coisas ainda são
do mesmo modo que eram. Caimos nessa ilusão o tempo todo, tentando “imobilizar” as coisas
do jeito como elas são.
Quando damos um nome para uma coisa e continuamos tratando-a por esse nome
porque reconhecemos que ela continua sendo “a mesma” coisa, na verdade estamos presos a
uma ilusão, porque se a examinarmos direito perceberemos que a coisa está mudando, mesmo
que seja bem lentamente. Embora a gente não se dê conta, quando fazemos isso, quando
tratamos as coisas como se elas fossem sempre as mesmas (e fazemos isso o tempo todo),
estamos pensando abstratamente; em outras palavras, fazer isso é abstrair (extrair, subtrair,
tirar) o nosso pensamento do mundo (imaginariamente, porque na verdade é claro que ele
continua sendo parte do mundo), e ficar parado no tempo, apegado à mesma velha imagem
que estávamos acostumados a fazer das coisas, enquanto o mundo na verdade está mudando
debaixo do nosso nariz (e mesmo que não percebamos, nós mesmos estamos mudando junto,
porque também somos parte do mundo).
Existe uma coisa nessa idéia do fluxo do mundo dos heracliteanos que incomoda
bastante os lógicos: além de ser contrária ao princípio lógico da identidade, parece difícil
explicar aonde o fluxo começa e aonde ele acaba. Se tudo se transforma, se uma coisa está se
transformando na outra, como é que vamos conseguir dizer, no meio desse fluxo de
transformação, que existe uma coisa de um lado e outra coisa de outro? Será que no fundo
tudo é uma coisa só, uma mesma grande massa de transformações, um mesmo grande
processo que não tem começo nem fim? Mas então como é que os heracliteanos podem dizer
ao mesmo tempo que existe uma multiplicidade de coisas, diferentes umas das outras e até
contraditórias umas com as outras?
Para os lógicos, uma coisa não pode ser ao mesmo tempo outra coisa (princípio de
identidade) e duas coisas contraditórias não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo
(princípio de não-contradição). “P e ao mesmo tempo não-P” é uma contradição. Ou “P” é
verdadeiro, ou “não-P” é que é verdadeiro, não é possível as duas coisas serem verdadeiras ao
mesmo tempo, não é possível que uma linha, por exemplo, ao mesmo tempo seja reta e não
seja reta: ou ela é reta ou não é, porque senão o raciocínio vira um “vale tudo” e não é mais
possível ter certeza de nada. O “não” é muito importante para os lógicos, e se eles dizem que
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uma coisa não é outra, que o que é “A” não é “B” por exemplo, podemos imaginar uma linha
divisória bem nítida separando as duas coisas, tudo o que está de um lado faz parte de “A” e
tudo o que está do outro faz parte de “B”, e não existe nada no meio do caminho, se o que é
“A” não é “B” e o que é “B” não é “A”, podemos representar essa relação entre “A” e “B”
(que é uma relação de negação, em que cada um nega o outro), da seguinte maneira:
Existe um corte, uma separação radical entre aquilo que é “A” e aquilo que é “B”.
Acontece que, para os dialéticos, esse corte ou separação radical não existe: para eles,
“A” e “B” não são coisas imóveis, imutáveis: são processos de transformação, uma coisa está
se transformando na outra, e vice-versa, “A” está se transformando em “B” e “B” está se
transformando em “A”. Ou seja, cada coisa está se transformando em uma outra que não é ela
e que por isso a contradiz, e isso quer dizer que cada coisa está se transformando no seu
contrário. Os dialéticos chamam isso de oposição dialética entre as coisas que estão em jogo.
No caso, dizem que “A” e “B” estão em oposição dialética um com o outro, e que essa
oposição ao mesmo tempo é um processo de transformação de um no outro. Que absurdo! —
diriam os lógicos — o que é fruta não é pedra e o que é pedra não é fruta, não importa o tipo
de fruta ou o tipo de pedra, não há nada no meio do caminho entre os dois, e mesmo que
houvesse, não poderíamos dizer que as frutas estão se transformando em pedras e as pedras
em frutas! Do mesmo modo, o que é amarelo não é branco e o que é branco não é amarelo, e
mesmo que existam cores intermediárias entre amarelo e branco, não podemos dizer que o
amarelo está se transformando em branco e o branco está se transformando em amarelo!
Claro que não — responderiam os dialéticos — mas a própria lógica (e qualquer
lógico concordaria plenamente com isso) diz que fruta e pedra assim como amarelo e branco,
não são coisas contraditórias uma com a outra, são apenas diferentes uma da outra, e segundo
os lógicos elas são diferentes justamente porque não se misturam, cada uma é igual a si
mesma. O contrário de “fruta” não é “pedra”, o contrário de “fruta” é não-fruta, e o mesmo
vale para qualquer outro exemplo. O contrário de “branco” não é “amarelo”, e na verdade
também não é “preto”, como as pessoas costumam pensar: o contrário de “branco” é não-
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branco. É assim que os lógicos raciocinam, e quando os dialéticos dizem que as coisas estão
sempre se tranformando em seus contrários, não estão raciocinando de uma maneira tão
diferente assim.
Então o que os dialéticos estão dizendo? Não estão dizendo de maneira nenhuma que
as frutas podem estar se transformando em pedras, ou qualquer absurdo do gênero. A
dialética não está interessada em usar um esquema de raciocínio que possa funcionar para
qualquer coisa independentemente da observação, como o raciocínio dos lógicos. Pelo
contrário, para os dialéticos não é qualquer coisa que pode ser colocada em oposição
dialética com qualquer outra coisa, porque não é o raciocínio do próprio dialético quem
coloca as coisas em oposição: cada coisa no mundo está em oposição com alguma outra, mas
para saber com qual, os dialéticos precisam observar como as coisas ocorrem no mundo e
perceber o que está se transformando em quê.
O que estão dizendo, é que as frutas estão se transformando em não-frutas! E é
realmente isso que os dialéticos dizem: se observarmos as frutas como realmente existem, no
mundo, veremos que com o tempo (não importa se lenta ou rapidamente) elas se desfazem e
deixam de ser frutas, e é neste sentido que podemos dizer que viram não-frutas. Quanto a
isto, única diferença em relação à maneira de pensar dos lógicos é que os dialéticos procuram
sempre se lembrar de que no mundo não conseguimos observar realmente nada que seja um
“não-branco” ou uma “não-fruta”, uma “não-coisa”: existe sempre alguma coisa fazendo o
papel de “não-branco” ou de “não-fruta” ou de não-seja-lá-o-que-for. E se temos uma coisa
“P” qualquer, não podemos adivinhar só pelo uso do raciocínio o que é que está fazendo o
papel de “não-P”. Então, para os dialéticos, é preciso observar no mundo o que é que está
fazendo esse papel, o que é que está negando “P”.
No caso do amarelo, por exemplo, um dialético diria que não existe o amarelo em
estado puro fora do mundo (esse amarelo em estado puro seria só uma abstração lógica), o
que observamos realmente é alguma coisa que é amarela, por exemplo uma fruta, e o amarelo
dessa coisa, do modo como podemos observá-lo na realidade, quando deixa de ser amarelo e
passa a ser outra coisa, ou seja, quando é negado por alguma outra coisa na qual ele se
transforma, que coisa é essa? Se estamos falando de uma fruta, podemos imaginar que será o
marrom ou talvez o preto, conforme a fruta for apodrecendo. Neste caso específico, o não-
amarelo no qual o amarelo se transforma e que portanto nega o amarelo, e que os dialéticos
dizem que é contraditório com ele, é o marrom ou o preto da fruta apodrecida. Então os
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dialéticos dizem que este amarelo (da fruta que estamos observando) está em “oposição
dialética” com este marrom ou preto (da fruta quando ela apodrece).
E isto acontece gradualmente, se estamos falando da contradição entre o que é “A” e o
que é “B”, isso não pode ser representado por uma linha que simplesmente separa “A” e “B”.
Do ponto de vista dialético, “A” e “B” são dois processos que se interpenetram, formando
duas “ondas” no mesmo fluxo geral de transformações das coisas do mundo umas nas outras.
Isso quer dizer que há uma multiplicidade de processos diferentes uns dos outros (na verdade
opostos uns aos outros) formando esse grande fluxo que forma o conjunto de todos eles.
Confrome um lado da oposição vai se desenvolvendo, o outro vai deixando de existir,
e poderíamos representar melhor a coisa da seguinte maneira:
Podemos raciocinar então que, quando o processo “A” (por exemplo o
desenvolvimento da cor amarela em uma fruta), representado no diagrama pelas linhas
pontilhadas, se inicia, já traz implicado nele necessariamente a sua negação, que é o processo
“B” (no caso, o surgimento da cor marrom ou preta). Não porque já existam pigmentos de cor
marrom ou preta ali (na verdade não importa se esses pigmentos da outra cor já estão
presentes ou não), e sim porque o amarelo da fruta madura só é o que é, e só conseguimos
entender realmente o que ele é, na medida em que existe também na própria idéia do que esse
amarelo significa, a idéia do marrom ou preto em que ele vai se transformar quando a fruta já
estiver apodrecida. O processo “A” só existe necessariamente interpenetrado por “B”. Então,
se o processo “A” vai se desenvolver por inteiro até o fim, o processo “B” que o nega vai
necessariamente se desenvolver junto com ele, porque um não existe sem o outro, cada etapa
do desenvolvimento de um envolve necessariamente alguma etapa de desenvolvimento do
outro, e quando o processo “A” estiver entrando em declínio, o processo “B” vai estar
avançando para o seu ápice.
No caso do exemplo de que estávamos falando, esse amarelo do processo “A”
significa para nós que a fruta não está apodrecida, ou seja, que o processo de apodrecimento
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A B
(“B”) não está presente, que a fruta está madura e pode ser comida. Mas na verdade, como
podemos ver pelo segundo diagrama, ela não está imóvel no estado de “madura”, como nosso
pensamento lógico e abstrato tende a imaginar: ela está sempre e ao tempo todo em um
processo de transformação (que pode ser mais rápido ou mais lento) que vai passando do
maduro ao apodrecido, e isso quer dizer que o apodrecimento já está a caminho, assim como
o envelhecimento já está a caminho desde o momento em que somos recém-nascidos, e
embora essa possa ser uma imagem desagradável para algumas pessoas, esse é o fluxo natural
das coisas, é assim que o mundo se manifesta para nós, quando o observamos com a devida
atenção. Poderíamos pensar da mesma maneira, aliás, no processo de passagem da fruta verde
para a fruta madura, ou seja, pensá-lo como dois processos opostos que se interpenetram.
Nada impede que cada um desses processos seja composto por outros processos
menores, por explo: a passagem do amarelo para o marrom ou preto é só uma oposição
dialética menor dentro de uma outra maior, que é a oposição dialética entre o processo de
amadurecimento da fruta como um todo e o seu processo de apodrecimento. A mudança de
cor é só uma parte de uma transformação maior. O apodrecimento de uma fruta não é só uma
questão de mudança de cor, há muitos outros aspectos envolvidos além da cor, que também
precisariam ser examinados para entendermos o conjunto dessas transformações da fruta
madura em fruta podre; e para os dialéticos, o que importa é justamente tentarmos
compreender as coisas de uma maneira mais abrangente, considerando tudo o que está
envolvido no assunto, e não só abstrairmos um aspecto dessas transformações separando-o do
contexto para o pensarmos isoladamente, como fazem os lógicos.
Os dialéticos criticam insistentemente o pensamento abstrato, que para raciocinar
pensa as coisas isoladamente e quase sempre se esquece que elas estão ocorrendo em um
contexto maior, envolvendo uma porção de outras coisas. E os lógicos criticam
insistentemente o raciocínio dialético justamente porque quando raciocinamos abstratamente
ele parece contraditório e absurdo. É que o interesse dos lógicos não é o mesmo interesse dos
dialéticos, estão interessados em questões diferentes, mas cada grupo insiste em criticar o
outro a partir de seu próprio ponto de vista.
O que interessa aos lógicos é desenvolver leis ou regras que tornem o raciocínio
abstrato mais eficaz, para que possamos raciocinar com clareza e chegando a certezas
independentemente de qualquer necessidade de observar ou descrever como são as coisas
fora do raciocínio, quanto mais independentemente melhor, por isso se aproximam cada vez
mais da matemática. O que interessa aos dialéticos, ao contrário, é compreender como as
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coisas ocorrem concretamente no mundo, e da maneira mais abrangente e menos abstrata
que for possível, ou seja, levando em consideração tudo o que for possível e de alguma
maneira puder ser considerado relevante. São duas propostas diferentes.
Um professor com tendência logicista, em uma sala de aula, poderia preocupar-se em
explicar uma frase como “esta parede é toda amarela”, e mostrar que ela é contraditória com a
frase “esta parede é toda azul”, e que não podemos dizer “esta parede é toda amarela e é toda
azul” porque isso seria um absurdo (e, por mais que isso pareça óbvio, muitos alunos sempre
acabam dizendo esse mesmo tipo de absurdo em suas provas ou trabalhos sem nem se darem
conta). Aprender o raciocínio lógico pode ser muito importante por exemplo para
percebermos contradições e absurdos por detrás das coisas que políticos e economistas nos
dizem na televisão, e para muitas outras coisas na vida, mas isso já não é uma questão de
lógica, um professor pode preocupar-se com isso, mas não é o seu lado lógico que se
preocupa com isso, porque a maneira como a lógica vai ser aplicada na nossa vida, para
entendermos melhor as coisas, já não é um problema da Lógica. A Lógica só está preocupada
em desenvolver os raciocínios lógicos, e não com aquilo que podemos fazer com eles na vida.
Um professor com tendência para a dialética, por outro lado, estaria mais preocupado
em pensar no seguinte tipo de questões: Qual é o sentido de uma frase como “a parede é toda
azul”? Que parede é essa, afinal? Quem sou eu (quem é essa pessoa que está dizendo essa
frase)? Quem são as pessoas para quem estou dizendo isso? Por que estou dizendo isso? Qual
o sentido de ensinar essas coisas que estou ensinando? Se ensino que é absurdo dizer que
“esta parede é toda azul e é toda amarela”, qual é o sentido de ensinar isso? Qual vai ser o
resultado prático quando essas pessoas utilizarem isto na sua vida?
Existe todo um mundo ao nosso redor, em que medida e de que maneira esse
raciocínio lógico que estou ensinando para essas pessoas pode interferir nesse contexto
maior? Existe uma pessoa (eu, professor, com toda a minha história de vida) dizendo essas
frases para um grupo alunos (que são pessoas com suas histórias de vida fora desta sala de
aula) e ensinando a eles algo a respeito do raciocínio lógico (que é uma forma de raciocinar
que nos últimos séculos se desenvolveu muito ao se aproximar da matemática), e isto está
sendo feito dentro desta sala de aula, neste prédio, nesta instituição, nesta cidade, neste país, e
cada uma dessas coisas também tem uma história e existe neste mundo dentro de um contexto
maior, que envolve questões sociais, psicológicas, econômicas, políticas etc.
Em que medida e de que maneira, então, todo esse contexto também não interfere
naquilo que estou ensinando neste momento para estas pessoas? Em que medida e de que
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maneira, por exemplo, esse contexto histórico mai amplo, que envolve questões sociais,
psicológicas, políticas, econômicas etc., não interfere no próprio raciocínio lógico que me diz
que é absurdo dizer “esta parede é toda azul e é toda amarela”? Será que existe, por exemplo,
alguma relação entre esse modo abstrato de raciocinar e o modo como funciona a vida nas
sociedades capitalistas em geral?
Assim, não basta considerarmos só alguma coisa em particular, como por exemplo a
fruta amarela que estávamos analisando: ela está em um contexto maior e faz parte de todo
um ciclo da natureza e das relações entre os homens e a natureza (e na medida em que é
vendida como mercadoria e consumida como alimento, também está envolvida nas relações
entre os próprios homens uns com os outros). Se examinarmos como um todo pelo menos o
ciclo natural dessa fruta, perceberemos, a respeito do assunto, ainda mais uma coisa que é
considerada muito interessante pelos dialéticos: o próprio fato de ser um ciclo, portanto um
movimento com uma certa circularidade.
A fruta desaparece, mas suas sementes vão dar lugar a novas frutas, então podemos
dizer que, depois da passagem do processo do que é fruta para o processo de toda uma porção
de coisas que são não-fruta, em algum momento temos de novo fruta (e depois de novo coisas
que são não-fruta, e assim por diante). Existe um vai-e-vem entre a situação em que existe
fruta e a situação em que não existe fruta. Heráclito dizia que as trasformações do mundo
podiam ser simbolizadas pelo fogo, que se acende e se apaga — e parecia estar se referindo
especialmente àquele fogo do céu que chamamos de “Sol”, e que parece acender-se com o
raiar do dia e apagar-se com o anoitecer, num movimento que sempre se repete. É essa idéia
de uma oscilação entre uma situação e a situação contrária o que vai ajudar os dialéticos a
explicarem mais claramente como é que nesse grande fluxo de transformações das coisas do
mundo, as coisas não acabam se misturando umas com as outras, ou seja, como é que
podemos ainda dizer que existe uma multiplicidade ou pluralidade de coisas no mundo.
Já havíamos dito que esta é uma questão que incomoda os lógicos, na maneira de
pensar dos dialéticos: se tudo se transforma, como é que vamos conseguir dizer, no meio
desse fluxo de transformação, que existe uma coisa de um lado e outra coisa de outro? Se os
dois processos opostos se interpenetram, como é que podemos distinguir um do outro? Como
é que podemos dizer o que faz parte de um dos processos e o que faz parte do processo
“contrário”? Será que no fundo tudo é uma coisa só, uma mesma grande massa de
transformações, um mesmo grande processo que não tem começo nem fim? E nesse caso, por
que os dialéticos insistem tanto em falar de “oposições” dialéticas entre as coisas?
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No final das contas, as coisas não caminham todas na mesma direção, de “A” para
“B” naquele diagrama, mesmo que uma se desfazendo e a outra se desenvolvendo? Não é
possível dizer que são apenas as duas etapas de um processo só? E nesse caso como é que os
dialéticos podem justificar a idéia heraliteana de que existe uma multiplicidade de coisas?
Essa multiplicidade ou pluralidade não é afinal só uma questão de “nome”? — Aí é que
está: a resposta dos dialéticos é não.
Mas por que, afinal de contas, temos que dizer que são dois processos e não duas
etapas do mesmo processo? A resposta está naquela oscilação entre uma coisa e o que não é
essa coisa, e que emerge na medida em que essa coisa vai se “apagando”, ou seja, a resposta
está naquela oscilação que Heráclito simboliza com o fogo do Sol, com a eterna oscilação
entre o dia e a noite.
Neste ponto o raciocínio dialético se torna bastante complicado e exige muita atenção.
Até agora vínhamos pensando naquele diagrama com os dois processos em oposição
dialética como se os dois fossem na mesma direção, e isto realmente é suficiente para nos
ajudar a entender algumas transformações, como a da fruta madura para a fruta podre: os
dialéticos chamam o primeiro processo (no diagrama o processo “A”) de tese e o segundo (no
diagrama o processo “B”) de antítese. A palavra tese, em grego antigo, queria dizer posição,
algo que se põe, que se coloca ou que aparece em um certo momento; a palavra antítese (de
anti-tese) queria dizer contraposição, algo que se põe, que se coloca ou aparece em oposição à
tese, e que só ocorre justamente por causa da tese, como oposição a ela, e não existiria sem
ela. A antítese nasce de dentro da tese, como podemos ver no diagrama. Para começarmos a
entender o próximo passo, precisamos primeiro imaginar que, naquele diagrama, os processos
não vão na mesma direção: são opostos justamente porque cada processo tende a empurrar o
outro no sentido oposto.
O processo “A” tende a se desenvolver até atingir o seu ápice, o seu ponto máximo de
desenvolvimento, mas o processo “B”, que vai emergindo junto com ele, oferece resistência
contra o desenvolvimento dele, porque atua como se fosse a sua negação. Se estivéssemos
raciocinando de maneira abstrata, a negação de “A”, ou seja, o “não-A”, não poderia oferecer
resistência ao processo “A”, porque fora do mundo, onde só existem idéias abstratas, a noção
de resistência não faz sentido, não faz sentido dizer que uma idéia abstrata oferece uma força
de resistência contra a outra.
Mas já dissemos que, quando o dialético pensa em “não-A”, está pensando em algum
processo (“B”) diferente de “A” que na prática desempenha o papel de “não-A”, que é o de
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opor-se a esse processo “A”. A tese, ou seja, o processo “A”, é algo concreto, algo que ocorre
em algum ponto ou lugar no espaço e também em algum momento ou período no tempo. Se é
por exemplo uma idéia, não é uma idéia abstraída da realidade e da vida, mas uma idéia que
alguém tem ou teve, e esse alguém existe ou existiu em algum lugar e em algum tempo, e tem
ou teve essa idéia em meio a todo um contexto no qual essa pessoa está, e nesse contexto há
também uma porção de outras coisas que estão relacionadas direta ou indiretamente com a
vida dessa pessoa, e com as idéias que ela tem ou deixa de ter.
Nessa relação, tudo o que essa pessoa faz ou deixa de fazer interfere de algum modo
no contexto, mesmo que em muitos casos seja uma interferência bem pequena e irrelevante; e
tudo o que ocorre no contexto tende a interferir também, e às vezes muito fortemente, na vida
dessa pessoa e em tudo o que ela faz ou deixa de fazer, inclusive nas idéias que ela tem ou
deixa de ter. Então, os processos que ocorrem em um mesmo contexto muitas vezes
interferem uns sobre os outros, e essa interferência de um processo (por exemplo o processo
“B”) pode ajudar no desenvolvimento de outro processo (por exemplo o processo “A”) ou
pode atrapalhar esse desenvolvimento, e nesse último caso, podemos dizer que o processo
“B” oferece uma resistência contra o desenvolvimento do processo “A”.
Para os dialéticos, mais importante do que entender aquilo que ajuda um processo a se
desenvolver, é entender entender essa força de resistência (a antítese), que sempre aparece
contra um processo qualquer (ou seja, contra a tese), conforme ele vai se desenvolvendo e
tomando forma, ocupando uma posição no contexto durante um período de tempo. E como
vimos, os dialéticos consideram que cada coisa que existe no mundo (ou seja, cada processo)
tem sua antítese, porque a antítese nasce de dentro da própria tese e se desenvolve junto com
ela, é uma pequena resistência interna da própria tese que, conforme a tese se desenvolve, vai
crescendo também e se desenvolvendo contra a tese até ganhar vida própria e se separar dela.
Mas por quê é mais importante entender as antíteses do que os fatores que ajudam a
tese a se desenvolver? Porque sem a antítese, a tese não existe realmente, não passa de uma
abstração. Se raciocinássemos logicamente (e não dialeticamente), como poderíamos explicar
que uma maçã é uma maçã e não outra coisa qualquer? Os lógicos em geral não costumam
pensar nesse tipo de problema, dizem simplesmente que “maçã” é aquilo que está na
intersecção entre vários conjuntos que a caracterizam ao mesmo tempo, ou seja, é aquilo que
faz parte do conjunto das frutas, ao mesmo tempo do conjunto das coisas que são
arredondadas, no das coisas que têm casca vermelha, no das coisas que são brancas por dentro
e assim por diante.
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Mas se pensassem no problema da maneira como o colocamos (“por que uma maçã é
maçã e não outra coisa qualquer”), seria coerente com a lógica considerar que a maçã só é
maçã na presença da não-maçã, ou seja, se existe um “não” traçando uma linha divisória entre
“A” e “B”, como no diagrama
e supondo que “A” seja a maçã, então tudo o que está do lado “B” é não-maçã, mas se
não houvesse essa linha para separar a maçã do resto, ou seja, se não houvesse o “não” para
dizermos o que não é maçã, não teríamos a maçã, ou seja, não conseguiríamos dizer o que é a
maçã. Na verdade, apesar desse raciocínio parecer lógico no sentido tradicional, ele não é.
Essa nossa questão inicial sobre por que uma maçã não é outra coisa seria muito difícil de
engolir para um lógico tradicional. Seria difícil porque estamos desde o inínio considerando
uma contradição (a presença ao mesmo tempo de “A” e “não-A”), mas talvez seja admissível
se observarmos que ao invés de “não-A” estamos falando apenas em “B”.
Um lógico não aceitaria que considerássemos “B” como “não-A”, pois “não-A”, do
ponto de vista da lógica, seria justamente o conjunto de tudo aquilo que não é “A”, e “B”
seria apenas alguma outra coisa diferente de A. Fora isso, um lógico talvez aceitasse esse
percurso de raciocínio, embora torcendo o nariz incomodado e reclamando que o melhor seria
condiderar “A” e “B” como dois conjuntos diferentes, ou seja, o conjunto das coisas que são
maçãs e o conjunto das que não são, para não acabarmos confundindo “elementos” com
“conjuntos”, pois começamos falando em “maçã” e “não-maçã”, e para os lógicos, não se
pode negar um elemento como “uma maçã”, só se pode negar a relação entre um elemento e
um conjunto, dizendo por exemplo que tal elemento não pertence a um determinado conjunto,
digamos o “conjunto das maçãs” e que portanto não é uma maçã. O problema é que isto não
responde a nossa questão: “por que a maçã é maçã e não outra coisa?”. Um lógico diria que
a pergunta está mal formulada.
Podemos dizer que o raciocínio dialético começa por esse tipo de questão e esse tipo
de raciocínio incômodo para os lógicos sobre a necessidade da presença de “não-A” para
podermos definir o que é “A”, mas ao invés de os dialéticos pensarem na linha divisória do
“não”, trabalham com uma passagem gradual de “A” para “B”, considerando que ambos são
processos que ocorrem em sentido contrário, um negando o outro, mas ocorrem
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A B
necessariamente juntos, porque um só ocorre conforme vai sendo negado pelo outro e vice-
versa, porque senão estariam misturados. Assim, em termos dialéticos poderíamos imaginar
essa linha divisória do “não” de outra maneira:
Como estamos falando de processos , que ocorrem em um período de tempo, neste
diagrama as linhas pontilhadas representam diferentes momentos nesse período de tempo em
que ocorre a oposição dialética entre “A” e “B”: os momentos t1, t2, t3 e t4. No momento t1, o
processo “A” está bastante desenvolvido, mas só podemos dizer que está realmente ocorrendo
porque “B” também está ocorrendo para negá-lo, ou melhor, para opor-se dialeticamente a
ele, ainda que com uma força pequena; já no momento t4, observamos que o processo “A”
decaiu, na mesma medida em que o processo “B” (sua antítese) se desenvolveu.
Como, além disso, na dialética trabalhamos com a noção de que o processo “B”
(antítese) nasce de dentro de “A” (tese), podemos imaginar um momento inicial “t0” em que
não existe a linha divisória, porque “B” ainda está completamente dentro de “A” e não tem
autonomia suficiente para ser considerado outro processo, portanto é uma contradição interna
no processo “A”. Isso um lógico já não poderia admitir de maneira nenhuma, porque se já
estamos de certo modo negando o princípio de não-contradiçãp, admitir uma contradição
interna em “A” seria negar além disso e com firmeza o princípio de identidade. Ora, é
exatamente isso o que os dialéticos dizem: a ocorrência do processo “A” depende da
ocorrência de sua antítese “B”, e a antítese ocorre inicialmente dentro de “A” como
contradição interna, para só depois e gradualmente desenvolver-se até ganhar autonomia, e
(“pior”, diriam os lógicos:) além disso nem sempre é possível assinalar claramente o
momento exato da ruptura entre tese e antítese. O resultado desse raciocínio se exprime
melhor no diagrama da tese e da antítese que já apresentamos antes:
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A
B
t1
t3
t3
t4
A B
Se a lógica trabalha com elementos que são unidades estáveis e independentes umas
das outras, agrupando-as em conjuntos, essas relações entre processos mutuamente
contraditórios (tese e antítese) é que são os “elementos” com os quais a dialética trabalha.
Quando olhamos para a realidade à nossa volta e temos a sensação de estarmos em meio a
“coisas” diferentes umas das outras, o que é que nos leva a considerá-las realmente
independentes umas das outras? Por um lado o nome individual que damos a cada uma dessas
coisas, mas para darmos um nome a uma coisa considerando-a como uma unidade
independente, é preciso que de algum modo a diferenciemos das outras coisas ao seu redor (os
esquimós têm um número enorme de nomes diferentes para cores que consideram
completamente diferentes umas das outras, e que para nós são todas uma só: o “branco”,
porque não percebemos, não estamos acostumados a perceber, nenhuma diferença entre elas).
Por outro lado, quando percebemos que uma coisa pode ser deslocada em relação ao resto que
está ao redor dela, sem que o resto se mova necessariamente, então essa coisa parece ser uma
unidade independente.
Quando o macaco pensa em arrancar a banana da árvore, e faz isso, no processo
percebe a banana como algo diferente do resto da árvore, algo que tem uma unidade própria.
Mas para um animal selvagem que não come bananas, essa diferença pode não existir, e
aquilo tudo, arvore, bananas, pode ser uma coisa só. Nós, como seres humanos, usamos o
tempo inteiro nossa capacidade de abstração, dizemos por exemplo que estamos indo até
aquela porta, quando na verdade, se prestarmos atenção ao que estamos vendo realmente
conforme caminhamos para a porta, só poderemos dizer que o conjunto porta-parede, chão
sob a porta, teto sobre a porta parece estar crescendo e se movendo em nossa direção, em um
movimento oscilante (conforme o balanço de cada passo nosso). É por abstração que nos
imaginamos fora desse contexto e divididos em dois, como se uma parte de nós estivesse fora
de nós mesmos, e de fora, essa parte de nós parece olhar para nós mesmos e para a porta, e
então perceber que somos nós que estamos nos movendo para ela, e não o contrário. Em todo
esse contexto em movimento, abstraímos uma coisa que chamamos de “eu”, outra que
chamamos de “porta” e compreendemos a relação entre as duas.
Essa capacidade de abstrair, de separar as coisas umas das outras para compreender
melhor como elas estão relacionadas, é útil e importante para o ser humano, mas geralmente
nos esquecemos de que as abstrações são partes abstraídas imaginariamente da realidade, e
começamos a tratá-la como verdades absolutas que existem cada uma isoladamente, e a
esquecer que é preciso voltar a relacionar as abstrações umas com as outras para
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compreendermos a realidade de onde as abstraímos. Há situações em que por isso as
abstrações já não ajudam mais a compreender a realidade, mas ao contrário acabam
prejudicando nosso senso de realidade, por exemplo quando um jovem pensa que basta se
formar em uma profissão valorizada no mercado que sua vida estará feita, e não se dá conta
de todo o contexto em que esse nosso caminho para o mercado está envolvido e que interfere
nele, que é muito mais complexo, envolvendo a concorrência, o modo de pensar que é
cultivado pelas pessoas da área, seus valores, temores, preconceitos etc., a política econômica
do país e muitos outros fatores. Ele abstraiu de todo esse confuso contexto do qual tem uma
vaga idéia, apenas o seu caminho para o mercado, esquecendo-se de relacioná-lo com outros
fatores importantes que também poderia destacar no contexto (e deveria, para poder fazer uma
avaliação realista das coisas).
A dialética é uma forma de raciocinar que procura forçar nosso pensamento a não se
esquecer dessas relações com o contexto nem se apegar a idéias fixas que não acompanham o
movimento real das coisas. Assim, ao invés de destacar da massa dinâmica da realidade
apenas unidades isoladas umas das outras como o senso comum costuma fazer, ou como os
lógicos fazem para depois agrupá-las livremente em conjuntos como bem entenderem, os
dialéticos procuram, ao invés disso, destacar no contexto as relações de oposição dialética
que conseguirem realmente observar nesse contexto (e não quaisquer relações criadas apenas
mentalmente).
Assim, o primeiro passo do pensamento dialético a respeito de algo é procurar
descrever qual o contexto em que esse algo ocorre, e o segundo passo é buscar nesse
contexto as oposições dialéticas, ou seja, procurar compreender o que é que está em
transformação, e nessa transformação, o que é que está deixando de ser para se transformar
em outra coisa (em outras palavras, qual é a tese), e o que é isso em que está transformando e
que, portanto, está tomando o seu lugar (ou seja, qual é a antítese).
Uma única última complicação precisa ser esclarecida quanto a isto. É que nosso
próprio pensamento também é parte desse mundo em mutação, e portanto nossas idéias a
respeito do mundo, que ocorrem em nosso pensamento, também devem ser consideradas
dialeticamente. Então há pelo menos dois tipos de oposições dialéticas: aquelas que ocorrem
no mundo (e que percebemos quando pensamos dialeticamente sobre o resto do mundo que
existe fora do nosso pensamento), e aquelas que ocorrem entre as nossas idéias (ou seja, na
forma como pensamos sobre o mundo). Então, se digo que o marrom da fruta podre está em
oposição dialética ao amarelo da fruta madura, é uma oposição do primeiro tipo, porque não
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depende só da ação do meu pensamento, depende principalmente de algo que estou
percebendo no mundo, é uma oposição dialética real, em sentido forte, pois o marrom nasce
realmente onde havia o amarelo e em oposição a ele. Mas se digo que, em um casal, existe
uma oposição dialética entre a mulher e o marido em que um é a antítese do outro, estou
falando de uma oposição dialética em sentido “mais fraco”, mais abstrato, ou seja, em estou
falando de uma oposição dialética do segundo tipo: é no meu pensamento que considero a
imagem da mulher e a do marido como tese e antítese respectivamente, pois quando minha
atenção passa da imagem mental que faço dela para a imagem dele, a segunda imagem parece
nascer da primeira em oposição a ela.
Este segundo tipo de oposição dialética nem sempre é bem aceito pelos dialéticos, e
alguns preferem não trabalhar com ela por que consideram muito alto o risco de cairmos em
abstrações, mas há muitos dialéticos (a maioria deles aliás) que trabalham ora com um dos
tipos de oposição ora com outro, infelizmente nem sempre deixando claras as diferenças. De
qualquer modo, as oposições reais continuam a ser sempre, em todos os casos, as preferidas
dos dialéticos. Existe entretanto uma oposição que envolve diretamente os nossos
pensamentos sobre o mundo e que tem um interesse especial para os dialéticos: a oposição
dialética entre pensamento e ação, que Karl Marx (o famoso filósofo comunista) costumava
chamar de praxis, e que o filósofo anarquista Pierre-Joseph Proudhon, antes dele, descreveu
como o processo pelo qual o pensamento nasce da ação em oposição a ela (pois é abstrato,
enquanto a ação é necessariamente uma inter-ação com o contexto), e depois o pensamento
retorna para a ação transformando-se em ação — no primeiro movimento, o a ação é tese e o
pensamento antítese, no segundo as posições se invertem. Naturalemente, não estamos
falando aqui da simples ação de pensar, mas do agir de fato no interagindo com o que está
fora de nós. Proudhon, por exemplo, dava especial atenção a essa ação que chamamos de
trabalho, e que está (ou deveria estar, se o trabalho não fosse tantas vezes alienado, mecânico,
feito de gestos repetitivos e automáticos) intensamente envolvida em uma dialética com os
pensamentos do trabalhador.
Marx leu algumas obras Proudhon e foi fortemente influenciado por ele (chegaram a
se encontrar), mas acabou tomando-o como um adversário (ou antes como um pericogoso
concorrente dentro do socialismo) e fazendo duras críticas. Entre os problemas que Marx via
na dialética de Proudhon, havia o de que não era possível a partir dela pensar no movimento
da História como algo que caminhasse sempre e necessariamente em uma mesma direção,
porque certas oscilações entre tese e antítese podiam ser intermináveis. O mundo
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proudhoniano parecia uma enorme rede de oposições dialéticas que podiam não terminar
nunca, apenas oscilando para lá e para cá. Imagine-se uma rede formada por diagramas como
aquele que apresentamos para as oposições dialéticas...
E de fato, para Proudhon não era possível prever o destino que a História nos
reservava, e isso quer dizer que não era possível fazer uma ciência da História. Não quer dizer
que para Proudhon não existisse História e que as coisas continuassem sempre iguais.
Proudhon era realmente um heracliteano, e defendia a idéia de que tudo flui, tudo muda. As
oscilações dialéticas, para ele, não eram todas necessariamente um eterno vai-e-vem que não
sai disso: só algumas oposições eram consideradas por ele “insolúveis”, e não porque fossem
“eternas”, mas porque só se resolveriam se ocorresse a eliminação dos dois pólos, tese e
antítese.
Mas a maioria das oposições dialéticas nessa grande rede vislumbrada por Proudhon
podia se dissolver com o desaparecimento da tese, a antítese tornando-se tese para nova
antítese que nasceria dela, mas isto acontecia constantemente em diferentes pontos da rede ao
mesmo tempo, ao longo da História, e a História da Humanidade e do Mundo seria, nesse
caso, a sucessão dessas diferentes configurações que a rede de oposições dialéticas iria
assumindo com o passar do tempo, ou seja, a sucessão dos diferentes contextos que fossem
tomando forma a partir da dissolução de oposições ou da formação de novas oposições em
diferentes pontos da rede.
Nessa linha de pensamento, não era possível prever nem mesmo aproximadamente
como seria um novo contexto, a menos que pensássemos em contextos pequenos e
17
A B
específicos. Não era possível prever os desenvolvimentos futuros de um contexto muito
amplo, como por exemplo o de todo um país, e menos ainda, para atentarmos para uma
preocupação muito forte de Marx, os desenvolvimentos do conjunto da classe trabalhadora em
todo o mundo (ou seja, de quase toda a Humanidade, excluindo a ínfima minoria que forma a
classe dos exploradores). Para Marx isso não era suficiente. Era preciso compreender os
mecanismos de desenvolvimento da história para transformá-la em uma ciência que pudesse
nos responder solidamente para onde vamos e assim ajudar a orientar as nossas ações. A
resposta para isso estava no próprio fundador dessa noção atual de “dialética”, antes de
Proudhon: o filósofo Hegel. E Marx conhecia muito bem o pensamento de Hegel, melhor do
que Proudhon. Na verdade Proudhon não aceitava a dialética de Hegel e procurou corrigi-la
construindo a sua própria, e o que recusava em Hegel era justamente a idéia de que havia um
mecanismo de funcionamento da História que tornasse o futuro mais previsível. Proudhon
desconfiava que por detrás desse esforço de construir um mecanismo de previsão feito por
Hegel havia um desejo de dominar e controlar a realidade, incluindo as outras pessoas que
fazem parte dessa realidade, justificando o poder do Estado sobre elas.
Marx não concordava com a crítica de Proudhon, e procurou recuperar esse
mecanismo, ligado à idéia de que havia um terceiro fator dialético além da tese e da antítese,
o elemento chamado “síntese”. Então, para a imensa maioria dos dialéticos hoje, quase todos
herdeiros de Marx ou Hegel, além da tese e da antítese existe uma terceira coisa no esquema
de pensamento da Dialética: a síntese (de sin-tese, as teses em conjunto formando uma coisa
só), que em grego antigo queria dizer composição, ou seja, uma composição que se forma a
partir da tese e da antítese ocorrendo juntas. Primeiro a antítese nasce dentro da tese e se
desenvolve junto com ela até se tornar independente e se separar dela; depois as duas são
religadas uma com a outra através da síntese. E com isto o esquema de pensamento dos
dialéticos está completo:
É dessa maneira que ocorrem, então, as transformações históricas: da oposição entre a
tese e a antítese acaba nascendo uma terceira coisa, diferente delas e que de certa meneira
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xTese Antítese
Síntese
“reconecta” as duas em uma só unidade, que é a síntese. Depois disso, a própria síntese acaba
funcionando como uma nova tese, ou seja, de dentro dessa síntese que ligou a tese e a
antítese, vai nascendo uma outra antítese, que oferece uma resistência crescente contra essa
síntese (que agora podemos dizer que é a tese de um novo “ciclo” dialético, porque a partir
daí todo o esquema se repete como antes, chegando no final a uma nova síntese, e assim por
diante), formando o seguinte esquema:
Mas o que é exatamente essa síntese? Como podemos descrever mais claramente e de
maneira detalhada essa “religação” ou composição entre tese e antítese? A discussão em torno
do conceito de síntese é muito grande, e os próprios dialéticos não costumam concordar
completamente uns com os outros: cada um interpreta a síntese de uma maneira, e isso vai
formando grupos diferentes de dialéticos, cada grupo defendendo suas próprias posições. O
que vou explicar a esse respeito, portanto, é apenas uma idéia geral que se aproxima bastante
daquilo com que os dialéticos costumam concordar, mas se entrássemos muito nos detalhes da
coisa, acabaríamos encontrando muitos pontos de discordância e um grande debate entre eles.
As dificuldades com esse conceito começaram com Hegel, o grande filósofo alemão
que, no século XIX, organizou o modo como compreendemos a dialética hoje, redescobrindo
e reinterpretando de uma maneira mais atualizada o pensamento de Heráclito. Hegel, e depois
dele Marx, são considerados os principais pensadores dialéticos que apareceram desde século
XIX, e hoje podemos dizer que a dialética tem duas versões “clássicas” que são as desses dois
filósofos, e chamar de dialéticos “ordodoxos” aqueles que procuram seguir à risca alguma
dessas duas versões. Mas mesmo nisso, os próprios “ortodoxos” nem sempre chegam a um
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xTese Antítese
Síntese
xTese Antítese
Síntese
...etc.
acordo a respeito de qual é a maneira de seguir Hegel ou Marx mais fielmente. De qualquer
maneira, podemos dizer que todas as outras versões da dialética ou são derivadas dessas duas
ou são dialéticas “alternativas” e “heterodoxas”, que fogem um pouco ao padrão geral do que
se costuma chamar de “dialética”.
Grande parte do problema está no fato de que o próprio Hegel, para explicar a noção
de síntese, usou um termo alemão muito ambíguo e que pode ter diferentes interpretações, e
usou esse termo misturando ao mesmo tempo todos os sentidos que ele podia ter. Marx, por
sua vez, era seguidor de Hegel, e a imensa maioria dos dialéticos segue direta ou
indiretamente algum dos dois (Hegel ou Marx), interpretando a síntese da maneira que acham
a mais correta. Hegel dizia que a síntese “aufheben” a tese e a antítese. Mas, para
compreendermos resumidamente o problema, a palavra alemã “aufheben” pode querer dizer:
a) que a síntese supera a tese e a antítese, e portanto elimina a contradição; b) que ela assimila
e conserva as duas opostas uma à outra; ou c) que ela eleva a tese e a antítese para um nível
superior. Para Hegel, a síntese faz tudo isso ao mesmo tempo, o que é bastante difícil de
entender, mesmo para a maioria dos dialéticos. E os lógicos, quando topam com essa
passagem de Hegel, costumam considerá-la simplesmente absurda, um raciocínio “mal feito”,
porque é cheio de contradições: como a síntese poderia eliminar a contradição e ao mesmo
tempo conservá-la, por exemplo? Além disso “aufheben” é uma palavra difícil de traduzir, e
cada um dos diferentes sentidos que ela tem pode ser interpretado de maneiras diferentes de
uma tradução para outra.
Infelizmente, o melhor meio que conheço para esclarecer a noção de síntese de
maneira bem nítida é apresentar um exemplo de oposição dialética do tipo “fraco”, aquela
oposição que formamos mentalmente entre duas coisas diferentes que não nascem
necessariamente uma como antítese interna à outra, mas que só são antitéticas no nosso
pensamento, porque a idéia que fazemos de uma se forma por oposição à idéia que fazemos
da outra. O exemplo é o da relação entre pessoas cuja união forma algo diferente da soma das
partes, como no caso de um casal. Cada um tem sua própria personalidade, e na relação, suas
personalidades estabelecem uma oposição dialética, um é diferente do outro, e manifesta suas
características na medida em que o diferenciamos do outro. Mas os dois juntos formam uma
unidade — o casal — que também tem suas características próprias, que não são nem as de
um dos dois nem as do outro, mas formam o modo como se relacionam por exemplo com
outras pessoas enquanto casal. O casal como um todo forma uma terceira coisa diferente de
cada um dos dois, que é a síntese dos dois. O filho deles, desde o momento em que nasce e
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conforme vai crescendo e se desenvolvendo, vai formando e manifestando uma personalidade
própria que está em crescente oposição dialética à personalidade da mãe, à do pai e à do casal
como um todo, e com isso forma-se uma rede de oposições dialéticas:
Do conjunto de toda essa rede de oposições, nasce uma síntese que é a “família”.
Para os marxistas em geral, oposições como esta entre “marido” e “mulher” costumam
ser consideradas do tipo “fraco”, pois neste exemplo as únicas oposições dialéticas reais, em
que a antítese efetivamente parece nascer em alguma medida da própria tese, e não apenas do
modo como relacionamos mentalmente tese e antítese usando nossa imaginação, talvez sejam
as que surgem com o desenvolvimento do filho, se considerarmos que sua personalidade
nasce em grande medida das personalidades dos pais e em oposição a elas, ou da
personalidade do casal pai-mãe como um todo com características próprias. As oposições que
os marxistas consideram as mais importantes não estão no campo da psicologia, mas no da
economia política, são as oposições entre a classe trabalhadora e a classe dos que exploram
esse trabalho e enriquecem com ele.
Marx nos mostra de que maneira a revolta com que a classe trabalhadora se opõe à
classe exploradora do trabalho nasceu historicamente como antítese do próprio
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Pai Mãe
Filho
Casal
Pai Mãe
Filho
Casal
Família
comportamento dessa classe burguesa. A burguesia e o proletariado, juntos, como uma só
força, fizeram no século XVIII em todo o mundo uma série de revoluções que acabaram com
a monarquia e com o poder da nobreza, mas nessa força revolucionária que a princípio era
uma só, com interesses e valores claramente burgueses, já havia desde o início uma
contradição interna (ou melhor, uma oposição dialética embrionária), que foi “rachando” essa
força em duas grandes forças, a da minoria burguesa, que se considerava satisfeita com os
resultados do processo revolucionário, e a de sua antítese, a maioria, que foi se caracterizando
cada vez mais como a classe trabalhadora, e que foi se diferenciando cada vez mais nesse
processo na mesma medida em que a burguesia se mostrava “mais burguesa” e exploradora,
ou seja, o desenvolvimento (e enriquecimento) da própria burguesia fez nascer e se
desenvolver de dentro dela, a partir desse “racha”, a força oposta, ao torná-la cada vez mais
pobre e necessitada (e revoltada).
A síntese dessa oposição dialética real, em sentido “forte”, segundo Karl Marx, é a
própria História como um processo de desenvolvimento que tem um sentido determinado e
aponta um fim previsível, sejam quais forem os desvios em relação a esse fim durante o
processo. E o fim para o qual o processo histórico aponta e caminha tortuosamente, com
dolorosos desvios e lentamente, mas infalivelmente, seria uma grande revolução econômica
em que, como resultado, não haveria mais a exploração da maioria por uma minoria e toda a
Humanidade se desenvolveria em regime de igualdade. Portanto, para Marx, o erro de
Proudhon estaria em não enxergar a síntese proposta por Hegel — o que no caso significa não
enxergar o sentido único e revolucionário para o qual a História caminha, sejam quais forem
os desvios provisórios de percurso.
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