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Introdução à Dialética João Borba A Dialética é uma das principais heranças atuais do pensamento de Heráclito. Como a Filosofia é um grande campo de debates históricos que sempre se reatualizam e numca se acabam, a melhor maneira para começarmos a falar em Dialética talvez seja retomar em linhas gerais o grande debate entre Heráclito e Parmênides, e compará-la com com a Lógica, que é uma das principais heranças atuais de Parmênides. O debate entre lógicos e dialéticos hoje retoma em outros termos e de uma nova maneira o debate entre Parmênides e Heráclito. Podemos dizer que, nesse debate, os parmenidianos levaram grande vantagem ao longo da História, contribuindo para a formação das tradições mais sólidas e antigas da Filosofia, enquanto os heracliteanos perderam terreno e só reapareceram com força a partir de sua retomada pelos dialéticos no século XIX d. C. Isso geralmente torna mais difícil entendermos o raciocínio dialético do que o raciocínio lógico, que segue uma linha de pensamento com a qual estamos mais acostumados. Podemos dizer que a herança parmenidiana que entrou para a história da Filosofia foi basicamente a valorização da unidade, a idéia de uma verdade imutável, e a noção de que essa verdade não pode ser contraditória. Na Lógica isso está presente por um lado no princípio de identidade (que diz que cada coisa é idêntica a si mesma e não algo em transformação) e no princípio de não contradição (que diz que o que é contraditório é falso), e por outro na valorização de um raciocínio tão perfeitamente coerente que todas as idéias estejam de acordo umas com as outras formando uma grande unidade em que nenhuma parte do raciocínio discorde ou contradiga o resto dele. A principal herança heracliteana, ao contrário, foi a idéia de que tudo muda, tudo flui, a valorização da multiplicidade, da pluralidade e a idéia de que nessa multiplicidade de coisas em transformação, tudo está em contradição, tudo está em conflito e nada concorda completamente com nada. Para Heráclito, a verdade seria o conjunto de toda essa multiplicidade de coisas em transformação e contraditórias umas com as outras que forma o mundo. Então, para captá-la, seria preciso o que hoje chamamos de uma visão global ou visão de conjunto (alguns preferem dizer uma visão holística) de tudo isso. Uma visão de conjunto é uma, é um modo de se perceber o conjunto, e portanto também tem uma certa unidade. Mas por isso mesmo, para os heracliteanos, é preciso tomar o cuidado de não supervalorizar a idéia de que é uma visão de conjunto e não acabar

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Introdução à Dialética

João Borba

A Dialética é uma das principais heranças atuais do pensamento de Heráclito. Como a

Filosofia é um grande campo de debates históricos que sempre se reatualizam e numca se

acabam, a melhor maneira para começarmos a falar em Dialética talvez seja retomar em

linhas gerais o grande debate entre Heráclito e Parmênides, e compará-la com com a Lógica,

que é uma das principais heranças atuais de Parmênides. O debate entre lógicos e dialéticos

hoje retoma em outros termos e de uma nova maneira o debate entre Parmênides e Heráclito.

Podemos dizer que, nesse debate, os parmenidianos levaram grande vantagem ao

longo da História, contribuindo para a formação das tradições mais sólidas e antigas da

Filosofia, enquanto os heracliteanos perderam terreno e só reapareceram com força a partir de

sua retomada pelos dialéticos no século XIX d. C. Isso geralmente torna mais difícil

entendermos o raciocínio dialético do que o raciocínio lógico, que segue uma linha de

pensamento com a qual estamos mais acostumados.

Podemos dizer que a herança parmenidiana que entrou para a história da Filosofia foi

basicamente a valorização da unidade, a idéia de uma verdade imutável, e a noção de que essa

verdade não pode ser contraditória. Na Lógica isso está presente por um lado no princípio de

identidade (que diz que cada coisa é idêntica a si mesma e não algo em transformação) e no

princípio de não contradição (que diz que o que é contraditório é falso), e por outro na

valorização de um raciocínio tão perfeitamente coerente que todas as idéias estejam de acordo

umas com as outras formando uma grande unidade em que nenhuma parte do raciocínio

discorde ou contradiga o resto dele.

A principal herança heracliteana, ao contrário, foi a idéia de que tudo muda, tudo flui,

a valorização da multiplicidade, da pluralidade e a idéia de que nessa multiplicidade de coisas

em transformação, tudo está em contradição, tudo está em conflito e nada concorda

completamente com nada. Para Heráclito, a verdade seria o conjunto de toda essa

multiplicidade de coisas em transformação e contraditórias umas com as outras que forma o

mundo. Então, para captá-la, seria preciso o que hoje chamamos de uma visão global ou visão

de conjunto (alguns preferem dizer uma visão holística) de tudo isso.

Uma visão de conjunto é uma, é um modo de se perceber o conjunto, e portanto

também tem uma certa unidade. Mas por isso mesmo, para os heracliteanos, é preciso tomar o

cuidado de não supervalorizar a idéia de que é uma visão de conjunto e não acabar

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desvalorizando a multiplicidade das coisas que existem ou até fazendo-a desaparecer como se

essa “visão de conjunto”, que é algo que ocorre só nos nossos pensamentos, fosse “mais

verdadeira” do que a multiplicidade em sua totalidade, ou seja, do que a própria realidade em

seu conjunto, porque nosso próprio pensamento, no qual estamos formando essa “visão de

conjunto”, é apenas uma pequena parte dessa realidade. Em outras palavras, é preciso tomar

cuidado para não deixar a “idéia” que formamos do conjunto da realidade em sua

multiplicidade, transformar-se em uma unidade no sentido de Parmênides, como se fosse

“absolutamente verdadeira” só por ser uma unidade e justamente por isso.

A visão de conjunto dos heracliteanos é como a visão de um grande campo de batalhas

em que tudo está em luta, ou de um grande jogo com milhões e milhões de competidores.

Para falar dessa visão global que precisamos ter do grande campo de confrontos que é o

mundo, Heráclito, também falava em uma “unidade”, mas dizia que era preciso buscar a

unidade na multiplicidade e a multiplicidade na unidade, sem nunca esquecermos que essa

unidade é feita de múltiplas coisas. Os dialéticos de hoje chamam essa visão do conjunto de

totalidade: a totalidade de todas as coisas em constante transformação e contraditórias umas

com as outras que formam o mundo, ou o resultado total de tudo isso.

Pode-se dizer que a unidade da multiplicidade de que os heracliteanos falam é o ponto

de vista do general diante do mapa onde planeja sua estratégia, e não o do soldado que está no

campo e não vê o conjunto. Por isso é que dizemos que há uma “unidade” nessa

multiplicidade: estamos falando da totalidade dos conflitos envolvidos. É importante notar

que nessa luta ou nesse jogo não existem apenas dois exércitos ou dois “times”: tudo está em

luta contra tudo, como num jogo de futebol onde não existem times e cada um joga por si

mesmo, ou então existem muitos times jogando ao mesmo tempo, e os times mudam, os

jogadores podem começar a “jogar contra” e mudar de time no meio do jogo. Não é à toa que

costuma ser difícil entender a dialética: para os dialéticos, a própria realidade é complicada,

se entendermos bem o sentido dessa palavra... as coisas estão todas co-implicadas, cada uma

implica as outras ao redor e vice-versa, num enorme jogo de teses e antíteses entrelaçadas.

Para entendermos melhor o pensamento dialético, vamos começar pela noção de que

tudo flui, tudo muda constantemente. Heráclito dizia que não é possível a gente se banhar

duas vezes no mesmo rio, porque da segunda vez, as águas passaram e o rio já não é mais o

mesmo. As águas do rio eram uma metáfora muito comum na época para se falar da vida, do

rio da vida que vai passando, com a idéia de que o que passou, já passou e não volta mais, as

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coisas já se transformaram, a situação já mudou. É difícil acompanhar esse fluxo das coisas,

porque nos apegamos a elas do modo como estão agora, e não vemos o tempo passar.

Mas o tempo sempre passa, implacavelmente, e não temos como impedir que as coisas

mudem, a não ser que a gente se iluda imaginando em nossa fantasia que as coisas ainda são

do mesmo modo que eram. Caimos nessa ilusão o tempo todo, tentando “imobilizar” as coisas

do jeito como elas são.

Quando damos um nome para uma coisa e continuamos tratando-a por esse nome

porque reconhecemos que ela continua sendo “a mesma” coisa, na verdade estamos presos a

uma ilusão, porque se a examinarmos direito perceberemos que a coisa está mudando, mesmo

que seja bem lentamente. Embora a gente não se dê conta, quando fazemos isso, quando

tratamos as coisas como se elas fossem sempre as mesmas (e fazemos isso o tempo todo),

estamos pensando abstratamente; em outras palavras, fazer isso é abstrair (extrair, subtrair,

tirar) o nosso pensamento do mundo (imaginariamente, porque na verdade é claro que ele

continua sendo parte do mundo), e ficar parado no tempo, apegado à mesma velha imagem

que estávamos acostumados a fazer das coisas, enquanto o mundo na verdade está mudando

debaixo do nosso nariz (e mesmo que não percebamos, nós mesmos estamos mudando junto,

porque também somos parte do mundo).

Existe uma coisa nessa idéia do fluxo do mundo dos heracliteanos que incomoda

bastante os lógicos: além de ser contrária ao princípio lógico da identidade, parece difícil

explicar aonde o fluxo começa e aonde ele acaba. Se tudo se transforma, se uma coisa está se

transformando na outra, como é que vamos conseguir dizer, no meio desse fluxo de

transformação, que existe uma coisa de um lado e outra coisa de outro? Será que no fundo

tudo é uma coisa só, uma mesma grande massa de transformações, um mesmo grande

processo que não tem começo nem fim? Mas então como é que os heracliteanos podem dizer

ao mesmo tempo que existe uma multiplicidade de coisas, diferentes umas das outras e até

contraditórias umas com as outras?

Para os lógicos, uma coisa não pode ser ao mesmo tempo outra coisa (princípio de

identidade) e duas coisas contraditórias não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo

(princípio de não-contradição). “P e ao mesmo tempo não-P” é uma contradição. Ou “P” é

verdadeiro, ou “não-P” é que é verdadeiro, não é possível as duas coisas serem verdadeiras ao

mesmo tempo, não é possível que uma linha, por exemplo, ao mesmo tempo seja reta e não

seja reta: ou ela é reta ou não é, porque senão o raciocínio vira um “vale tudo” e não é mais

possível ter certeza de nada. O “não” é muito importante para os lógicos, e se eles dizem que

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uma coisa não é outra, que o que é “A” não é “B” por exemplo, podemos imaginar uma linha

divisória bem nítida separando as duas coisas, tudo o que está de um lado faz parte de “A” e

tudo o que está do outro faz parte de “B”, e não existe nada no meio do caminho, se o que é

“A” não é “B” e o que é “B” não é “A”, podemos representar essa relação entre “A” e “B”

(que é uma relação de negação, em que cada um nega o outro), da seguinte maneira:

Existe um corte, uma separação radical entre aquilo que é “A” e aquilo que é “B”.

Acontece que, para os dialéticos, esse corte ou separação radical não existe: para eles,

“A” e “B” não são coisas imóveis, imutáveis: são processos de transformação, uma coisa está

se transformando na outra, e vice-versa, “A” está se transformando em “B” e “B” está se

transformando em “A”. Ou seja, cada coisa está se transformando em uma outra que não é ela

e que por isso a contradiz, e isso quer dizer que cada coisa está se transformando no seu

contrário. Os dialéticos chamam isso de oposição dialética entre as coisas que estão em jogo.

No caso, dizem que “A” e “B” estão em oposição dialética um com o outro, e que essa

oposição ao mesmo tempo é um processo de transformação de um no outro. Que absurdo! —

diriam os lógicos — o que é fruta não é pedra e o que é pedra não é fruta, não importa o tipo

de fruta ou o tipo de pedra, não há nada no meio do caminho entre os dois, e mesmo que

houvesse, não poderíamos dizer que as frutas estão se transformando em pedras e as pedras

em frutas! Do mesmo modo, o que é amarelo não é branco e o que é branco não é amarelo, e

mesmo que existam cores intermediárias entre amarelo e branco, não podemos dizer que o

amarelo está se transformando em branco e o branco está se transformando em amarelo!

Claro que não — responderiam os dialéticos — mas a própria lógica (e qualquer

lógico concordaria plenamente com isso) diz que fruta e pedra assim como amarelo e branco,

não são coisas contraditórias uma com a outra, são apenas diferentes uma da outra, e segundo

os lógicos elas são diferentes justamente porque não se misturam, cada uma é igual a si

mesma. O contrário de “fruta” não é “pedra”, o contrário de “fruta” é não-fruta, e o mesmo

vale para qualquer outro exemplo. O contrário de “branco” não é “amarelo”, e na verdade

também não é “preto”, como as pessoas costumam pensar: o contrário de “branco” é não-

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A B

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branco. É assim que os lógicos raciocinam, e quando os dialéticos dizem que as coisas estão

sempre se tranformando em seus contrários, não estão raciocinando de uma maneira tão

diferente assim.

Então o que os dialéticos estão dizendo? Não estão dizendo de maneira nenhuma que

as frutas podem estar se transformando em pedras, ou qualquer absurdo do gênero. A

dialética não está interessada em usar um esquema de raciocínio que possa funcionar para

qualquer coisa independentemente da observação, como o raciocínio dos lógicos. Pelo

contrário, para os dialéticos não é qualquer coisa que pode ser colocada em oposição

dialética com qualquer outra coisa, porque não é o raciocínio do próprio dialético quem

coloca as coisas em oposição: cada coisa no mundo está em oposição com alguma outra, mas

para saber com qual, os dialéticos precisam observar como as coisas ocorrem no mundo e

perceber o que está se transformando em quê.

O que estão dizendo, é que as frutas estão se transformando em não-frutas! E é

realmente isso que os dialéticos dizem: se observarmos as frutas como realmente existem, no

mundo, veremos que com o tempo (não importa se lenta ou rapidamente) elas se desfazem e

deixam de ser frutas, e é neste sentido que podemos dizer que viram não-frutas. Quanto a

isto, única diferença em relação à maneira de pensar dos lógicos é que os dialéticos procuram

sempre se lembrar de que no mundo não conseguimos observar realmente nada que seja um

“não-branco” ou uma “não-fruta”, uma “não-coisa”: existe sempre alguma coisa fazendo o

papel de “não-branco” ou de “não-fruta” ou de não-seja-lá-o-que-for. E se temos uma coisa

“P” qualquer, não podemos adivinhar só pelo uso do raciocínio o que é que está fazendo o

papel de “não-P”. Então, para os dialéticos, é preciso observar no mundo o que é que está

fazendo esse papel, o que é que está negando “P”.

No caso do amarelo, por exemplo, um dialético diria que não existe o amarelo em

estado puro fora do mundo (esse amarelo em estado puro seria só uma abstração lógica), o

que observamos realmente é alguma coisa que é amarela, por exemplo uma fruta, e o amarelo

dessa coisa, do modo como podemos observá-lo na realidade, quando deixa de ser amarelo e

passa a ser outra coisa, ou seja, quando é negado por alguma outra coisa na qual ele se

transforma, que coisa é essa? Se estamos falando de uma fruta, podemos imaginar que será o

marrom ou talvez o preto, conforme a fruta for apodrecendo. Neste caso específico, o não-

amarelo no qual o amarelo se transforma e que portanto nega o amarelo, e que os dialéticos

dizem que é contraditório com ele, é o marrom ou o preto da fruta apodrecida. Então os

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dialéticos dizem que este amarelo (da fruta que estamos observando) está em “oposição

dialética” com este marrom ou preto (da fruta quando ela apodrece).

E isto acontece gradualmente, se estamos falando da contradição entre o que é “A” e o

que é “B”, isso não pode ser representado por uma linha que simplesmente separa “A” e “B”.

Do ponto de vista dialético, “A” e “B” são dois processos que se interpenetram, formando

duas “ondas” no mesmo fluxo geral de transformações das coisas do mundo umas nas outras.

Isso quer dizer que há uma multiplicidade de processos diferentes uns dos outros (na verdade

opostos uns aos outros) formando esse grande fluxo que forma o conjunto de todos eles.

Confrome um lado da oposição vai se desenvolvendo, o outro vai deixando de existir,

e poderíamos representar melhor a coisa da seguinte maneira:

Podemos raciocinar então que, quando o processo “A” (por exemplo o

desenvolvimento da cor amarela em uma fruta), representado no diagrama pelas linhas

pontilhadas, se inicia, já traz implicado nele necessariamente a sua negação, que é o processo

“B” (no caso, o surgimento da cor marrom ou preta). Não porque já existam pigmentos de cor

marrom ou preta ali (na verdade não importa se esses pigmentos da outra cor já estão

presentes ou não), e sim porque o amarelo da fruta madura só é o que é, e só conseguimos

entender realmente o que ele é, na medida em que existe também na própria idéia do que esse

amarelo significa, a idéia do marrom ou preto em que ele vai se transformar quando a fruta já

estiver apodrecida. O processo “A” só existe necessariamente interpenetrado por “B”. Então,

se o processo “A” vai se desenvolver por inteiro até o fim, o processo “B” que o nega vai

necessariamente se desenvolver junto com ele, porque um não existe sem o outro, cada etapa

do desenvolvimento de um envolve necessariamente alguma etapa de desenvolvimento do

outro, e quando o processo “A” estiver entrando em declínio, o processo “B” vai estar

avançando para o seu ápice.

No caso do exemplo de que estávamos falando, esse amarelo do processo “A”

significa para nós que a fruta não está apodrecida, ou seja, que o processo de apodrecimento

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A B

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(“B”) não está presente, que a fruta está madura e pode ser comida. Mas na verdade, como

podemos ver pelo segundo diagrama, ela não está imóvel no estado de “madura”, como nosso

pensamento lógico e abstrato tende a imaginar: ela está sempre e ao tempo todo em um

processo de transformação (que pode ser mais rápido ou mais lento) que vai passando do

maduro ao apodrecido, e isso quer dizer que o apodrecimento já está a caminho, assim como

o envelhecimento já está a caminho desde o momento em que somos recém-nascidos, e

embora essa possa ser uma imagem desagradável para algumas pessoas, esse é o fluxo natural

das coisas, é assim que o mundo se manifesta para nós, quando o observamos com a devida

atenção. Poderíamos pensar da mesma maneira, aliás, no processo de passagem da fruta verde

para a fruta madura, ou seja, pensá-lo como dois processos opostos que se interpenetram.

Nada impede que cada um desses processos seja composto por outros processos

menores, por explo: a passagem do amarelo para o marrom ou preto é só uma oposição

dialética menor dentro de uma outra maior, que é a oposição dialética entre o processo de

amadurecimento da fruta como um todo e o seu processo de apodrecimento. A mudança de

cor é só uma parte de uma transformação maior. O apodrecimento de uma fruta não é só uma

questão de mudança de cor, há muitos outros aspectos envolvidos além da cor, que também

precisariam ser examinados para entendermos o conjunto dessas transformações da fruta

madura em fruta podre; e para os dialéticos, o que importa é justamente tentarmos

compreender as coisas de uma maneira mais abrangente, considerando tudo o que está

envolvido no assunto, e não só abstrairmos um aspecto dessas transformações separando-o do

contexto para o pensarmos isoladamente, como fazem os lógicos.

Os dialéticos criticam insistentemente o pensamento abstrato, que para raciocinar

pensa as coisas isoladamente e quase sempre se esquece que elas estão ocorrendo em um

contexto maior, envolvendo uma porção de outras coisas. E os lógicos criticam

insistentemente o raciocínio dialético justamente porque quando raciocinamos abstratamente

ele parece contraditório e absurdo. É que o interesse dos lógicos não é o mesmo interesse dos

dialéticos, estão interessados em questões diferentes, mas cada grupo insiste em criticar o

outro a partir de seu próprio ponto de vista.

O que interessa aos lógicos é desenvolver leis ou regras que tornem o raciocínio

abstrato mais eficaz, para que possamos raciocinar com clareza e chegando a certezas

independentemente de qualquer necessidade de observar ou descrever como são as coisas

fora do raciocínio, quanto mais independentemente melhor, por isso se aproximam cada vez

mais da matemática. O que interessa aos dialéticos, ao contrário, é compreender como as

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coisas ocorrem concretamente no mundo, e da maneira mais abrangente e menos abstrata

que for possível, ou seja, levando em consideração tudo o que for possível e de alguma

maneira puder ser considerado relevante. São duas propostas diferentes.

Um professor com tendência logicista, em uma sala de aula, poderia preocupar-se em

explicar uma frase como “esta parede é toda amarela”, e mostrar que ela é contraditória com a

frase “esta parede é toda azul”, e que não podemos dizer “esta parede é toda amarela e é toda

azul” porque isso seria um absurdo (e, por mais que isso pareça óbvio, muitos alunos sempre

acabam dizendo esse mesmo tipo de absurdo em suas provas ou trabalhos sem nem se darem

conta). Aprender o raciocínio lógico pode ser muito importante por exemplo para

percebermos contradições e absurdos por detrás das coisas que políticos e economistas nos

dizem na televisão, e para muitas outras coisas na vida, mas isso já não é uma questão de

lógica, um professor pode preocupar-se com isso, mas não é o seu lado lógico que se

preocupa com isso, porque a maneira como a lógica vai ser aplicada na nossa vida, para

entendermos melhor as coisas, já não é um problema da Lógica. A Lógica só está preocupada

em desenvolver os raciocínios lógicos, e não com aquilo que podemos fazer com eles na vida.

Um professor com tendência para a dialética, por outro lado, estaria mais preocupado

em pensar no seguinte tipo de questões: Qual é o sentido de uma frase como “a parede é toda

azul”? Que parede é essa, afinal? Quem sou eu (quem é essa pessoa que está dizendo essa

frase)? Quem são as pessoas para quem estou dizendo isso? Por que estou dizendo isso? Qual

o sentido de ensinar essas coisas que estou ensinando? Se ensino que é absurdo dizer que

“esta parede é toda azul e é toda amarela”, qual é o sentido de ensinar isso? Qual vai ser o

resultado prático quando essas pessoas utilizarem isto na sua vida?

Existe todo um mundo ao nosso redor, em que medida e de que maneira esse

raciocínio lógico que estou ensinando para essas pessoas pode interferir nesse contexto

maior? Existe uma pessoa (eu, professor, com toda a minha história de vida) dizendo essas

frases para um grupo alunos (que são pessoas com suas histórias de vida fora desta sala de

aula) e ensinando a eles algo a respeito do raciocínio lógico (que é uma forma de raciocinar

que nos últimos séculos se desenvolveu muito ao se aproximar da matemática), e isto está

sendo feito dentro desta sala de aula, neste prédio, nesta instituição, nesta cidade, neste país, e

cada uma dessas coisas também tem uma história e existe neste mundo dentro de um contexto

maior, que envolve questões sociais, psicológicas, econômicas, políticas etc.

Em que medida e de que maneira, então, todo esse contexto também não interfere

naquilo que estou ensinando neste momento para estas pessoas? Em que medida e de que

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maneira, por exemplo, esse contexto histórico mai amplo, que envolve questões sociais,

psicológicas, políticas, econômicas etc., não interfere no próprio raciocínio lógico que me diz

que é absurdo dizer “esta parede é toda azul e é toda amarela”? Será que existe, por exemplo,

alguma relação entre esse modo abstrato de raciocinar e o modo como funciona a vida nas

sociedades capitalistas em geral?

Assim, não basta considerarmos só alguma coisa em particular, como por exemplo a

fruta amarela que estávamos analisando: ela está em um contexto maior e faz parte de todo

um ciclo da natureza e das relações entre os homens e a natureza (e na medida em que é

vendida como mercadoria e consumida como alimento, também está envolvida nas relações

entre os próprios homens uns com os outros). Se examinarmos como um todo pelo menos o

ciclo natural dessa fruta, perceberemos, a respeito do assunto, ainda mais uma coisa que é

considerada muito interessante pelos dialéticos: o próprio fato de ser um ciclo, portanto um

movimento com uma certa circularidade.

A fruta desaparece, mas suas sementes vão dar lugar a novas frutas, então podemos

dizer que, depois da passagem do processo do que é fruta para o processo de toda uma porção

de coisas que são não-fruta, em algum momento temos de novo fruta (e depois de novo coisas

que são não-fruta, e assim por diante). Existe um vai-e-vem entre a situação em que existe

fruta e a situação em que não existe fruta. Heráclito dizia que as trasformações do mundo

podiam ser simbolizadas pelo fogo, que se acende e se apaga — e parecia estar se referindo

especialmente àquele fogo do céu que chamamos de “Sol”, e que parece acender-se com o

raiar do dia e apagar-se com o anoitecer, num movimento que sempre se repete. É essa idéia

de uma oscilação entre uma situação e a situação contrária o que vai ajudar os dialéticos a

explicarem mais claramente como é que nesse grande fluxo de transformações das coisas do

mundo, as coisas não acabam se misturando umas com as outras, ou seja, como é que

podemos ainda dizer que existe uma multiplicidade ou pluralidade de coisas no mundo.

Já havíamos dito que esta é uma questão que incomoda os lógicos, na maneira de

pensar dos dialéticos: se tudo se transforma, como é que vamos conseguir dizer, no meio

desse fluxo de transformação, que existe uma coisa de um lado e outra coisa de outro? Se os

dois processos opostos se interpenetram, como é que podemos distinguir um do outro? Como

é que podemos dizer o que faz parte de um dos processos e o que faz parte do processo

“contrário”? Será que no fundo tudo é uma coisa só, uma mesma grande massa de

transformações, um mesmo grande processo que não tem começo nem fim? E nesse caso, por

que os dialéticos insistem tanto em falar de “oposições” dialéticas entre as coisas?

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No final das contas, as coisas não caminham todas na mesma direção, de “A” para

“B” naquele diagrama, mesmo que uma se desfazendo e a outra se desenvolvendo? Não é

possível dizer que são apenas as duas etapas de um processo só? E nesse caso como é que os

dialéticos podem justificar a idéia heraliteana de que existe uma multiplicidade de coisas?

Essa multiplicidade ou pluralidade não é afinal só uma questão de “nome”? — Aí é que

está: a resposta dos dialéticos é não.

Mas por que, afinal de contas, temos que dizer que são dois processos e não duas

etapas do mesmo processo? A resposta está naquela oscilação entre uma coisa e o que não é

essa coisa, e que emerge na medida em que essa coisa vai se “apagando”, ou seja, a resposta

está naquela oscilação que Heráclito simboliza com o fogo do Sol, com a eterna oscilação

entre o dia e a noite.

Neste ponto o raciocínio dialético se torna bastante complicado e exige muita atenção.

Até agora vínhamos pensando naquele diagrama com os dois processos em oposição

dialética como se os dois fossem na mesma direção, e isto realmente é suficiente para nos

ajudar a entender algumas transformações, como a da fruta madura para a fruta podre: os

dialéticos chamam o primeiro processo (no diagrama o processo “A”) de tese e o segundo (no

diagrama o processo “B”) de antítese. A palavra tese, em grego antigo, queria dizer posição,

algo que se põe, que se coloca ou que aparece em um certo momento; a palavra antítese (de

anti-tese) queria dizer contraposição, algo que se põe, que se coloca ou aparece em oposição à

tese, e que só ocorre justamente por causa da tese, como oposição a ela, e não existiria sem

ela. A antítese nasce de dentro da tese, como podemos ver no diagrama. Para começarmos a

entender o próximo passo, precisamos primeiro imaginar que, naquele diagrama, os processos

não vão na mesma direção: são opostos justamente porque cada processo tende a empurrar o

outro no sentido oposto.

O processo “A” tende a se desenvolver até atingir o seu ápice, o seu ponto máximo de

desenvolvimento, mas o processo “B”, que vai emergindo junto com ele, oferece resistência

contra o desenvolvimento dele, porque atua como se fosse a sua negação. Se estivéssemos

raciocinando de maneira abstrata, a negação de “A”, ou seja, o “não-A”, não poderia oferecer

resistência ao processo “A”, porque fora do mundo, onde só existem idéias abstratas, a noção

de resistência não faz sentido, não faz sentido dizer que uma idéia abstrata oferece uma força

de resistência contra a outra.

Mas já dissemos que, quando o dialético pensa em “não-A”, está pensando em algum

processo (“B”) diferente de “A” que na prática desempenha o papel de “não-A”, que é o de

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opor-se a esse processo “A”. A tese, ou seja, o processo “A”, é algo concreto, algo que ocorre

em algum ponto ou lugar no espaço e também em algum momento ou período no tempo. Se é

por exemplo uma idéia, não é uma idéia abstraída da realidade e da vida, mas uma idéia que

alguém tem ou teve, e esse alguém existe ou existiu em algum lugar e em algum tempo, e tem

ou teve essa idéia em meio a todo um contexto no qual essa pessoa está, e nesse contexto há

também uma porção de outras coisas que estão relacionadas direta ou indiretamente com a

vida dessa pessoa, e com as idéias que ela tem ou deixa de ter.

Nessa relação, tudo o que essa pessoa faz ou deixa de fazer interfere de algum modo

no contexto, mesmo que em muitos casos seja uma interferência bem pequena e irrelevante; e

tudo o que ocorre no contexto tende a interferir também, e às vezes muito fortemente, na vida

dessa pessoa e em tudo o que ela faz ou deixa de fazer, inclusive nas idéias que ela tem ou

deixa de ter. Então, os processos que ocorrem em um mesmo contexto muitas vezes

interferem uns sobre os outros, e essa interferência de um processo (por exemplo o processo

“B”) pode ajudar no desenvolvimento de outro processo (por exemplo o processo “A”) ou

pode atrapalhar esse desenvolvimento, e nesse último caso, podemos dizer que o processo

“B” oferece uma resistência contra o desenvolvimento do processo “A”.

Para os dialéticos, mais importante do que entender aquilo que ajuda um processo a se

desenvolver, é entender entender essa força de resistência (a antítese), que sempre aparece

contra um processo qualquer (ou seja, contra a tese), conforme ele vai se desenvolvendo e

tomando forma, ocupando uma posição no contexto durante um período de tempo. E como

vimos, os dialéticos consideram que cada coisa que existe no mundo (ou seja, cada processo)

tem sua antítese, porque a antítese nasce de dentro da própria tese e se desenvolve junto com

ela, é uma pequena resistência interna da própria tese que, conforme a tese se desenvolve, vai

crescendo também e se desenvolvendo contra a tese até ganhar vida própria e se separar dela.

Mas por quê é mais importante entender as antíteses do que os fatores que ajudam a

tese a se desenvolver? Porque sem a antítese, a tese não existe realmente, não passa de uma

abstração. Se raciocinássemos logicamente (e não dialeticamente), como poderíamos explicar

que uma maçã é uma maçã e não outra coisa qualquer? Os lógicos em geral não costumam

pensar nesse tipo de problema, dizem simplesmente que “maçã” é aquilo que está na

intersecção entre vários conjuntos que a caracterizam ao mesmo tempo, ou seja, é aquilo que

faz parte do conjunto das frutas, ao mesmo tempo do conjunto das coisas que são

arredondadas, no das coisas que têm casca vermelha, no das coisas que são brancas por dentro

e assim por diante.

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Mas se pensassem no problema da maneira como o colocamos (“por que uma maçã é

maçã e não outra coisa qualquer”), seria coerente com a lógica considerar que a maçã só é

maçã na presença da não-maçã, ou seja, se existe um “não” traçando uma linha divisória entre

“A” e “B”, como no diagrama

e supondo que “A” seja a maçã, então tudo o que está do lado “B” é não-maçã, mas se

não houvesse essa linha para separar a maçã do resto, ou seja, se não houvesse o “não” para

dizermos o que não é maçã, não teríamos a maçã, ou seja, não conseguiríamos dizer o que é a

maçã. Na verdade, apesar desse raciocínio parecer lógico no sentido tradicional, ele não é.

Essa nossa questão inicial sobre por que uma maçã não é outra coisa seria muito difícil de

engolir para um lógico tradicional. Seria difícil porque estamos desde o inínio considerando

uma contradição (a presença ao mesmo tempo de “A” e “não-A”), mas talvez seja admissível

se observarmos que ao invés de “não-A” estamos falando apenas em “B”.

Um lógico não aceitaria que considerássemos “B” como “não-A”, pois “não-A”, do

ponto de vista da lógica, seria justamente o conjunto de tudo aquilo que não é “A”, e “B”

seria apenas alguma outra coisa diferente de A. Fora isso, um lógico talvez aceitasse esse

percurso de raciocínio, embora torcendo o nariz incomodado e reclamando que o melhor seria

condiderar “A” e “B” como dois conjuntos diferentes, ou seja, o conjunto das coisas que são

maçãs e o conjunto das que não são, para não acabarmos confundindo “elementos” com

“conjuntos”, pois começamos falando em “maçã” e “não-maçã”, e para os lógicos, não se

pode negar um elemento como “uma maçã”, só se pode negar a relação entre um elemento e

um conjunto, dizendo por exemplo que tal elemento não pertence a um determinado conjunto,

digamos o “conjunto das maçãs” e que portanto não é uma maçã. O problema é que isto não

responde a nossa questão: “por que a maçã é maçã e não outra coisa?”. Um lógico diria que

a pergunta está mal formulada.

Podemos dizer que o raciocínio dialético começa por esse tipo de questão e esse tipo

de raciocínio incômodo para os lógicos sobre a necessidade da presença de “não-A” para

podermos definir o que é “A”, mas ao invés de os dialéticos pensarem na linha divisória do

“não”, trabalham com uma passagem gradual de “A” para “B”, considerando que ambos são

processos que ocorrem em sentido contrário, um negando o outro, mas ocorrem

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A B

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necessariamente juntos, porque um só ocorre conforme vai sendo negado pelo outro e vice-

versa, porque senão estariam misturados. Assim, em termos dialéticos poderíamos imaginar

essa linha divisória do “não” de outra maneira:

Como estamos falando de processos , que ocorrem em um período de tempo, neste

diagrama as linhas pontilhadas representam diferentes momentos nesse período de tempo em

que ocorre a oposição dialética entre “A” e “B”: os momentos t1, t2, t3 e t4. No momento t1, o

processo “A” está bastante desenvolvido, mas só podemos dizer que está realmente ocorrendo

porque “B” também está ocorrendo para negá-lo, ou melhor, para opor-se dialeticamente a

ele, ainda que com uma força pequena; já no momento t4, observamos que o processo “A”

decaiu, na mesma medida em que o processo “B” (sua antítese) se desenvolveu.

Como, além disso, na dialética trabalhamos com a noção de que o processo “B”

(antítese) nasce de dentro de “A” (tese), podemos imaginar um momento inicial “t0” em que

não existe a linha divisória, porque “B” ainda está completamente dentro de “A” e não tem

autonomia suficiente para ser considerado outro processo, portanto é uma contradição interna

no processo “A”. Isso um lógico já não poderia admitir de maneira nenhuma, porque se já

estamos de certo modo negando o princípio de não-contradiçãp, admitir uma contradição

interna em “A” seria negar além disso e com firmeza o princípio de identidade. Ora, é

exatamente isso o que os dialéticos dizem: a ocorrência do processo “A” depende da

ocorrência de sua antítese “B”, e a antítese ocorre inicialmente dentro de “A” como

contradição interna, para só depois e gradualmente desenvolver-se até ganhar autonomia, e

(“pior”, diriam os lógicos:) além disso nem sempre é possível assinalar claramente o

momento exato da ruptura entre tese e antítese. O resultado desse raciocínio se exprime

melhor no diagrama da tese e da antítese que já apresentamos antes:

13

A

B

t1

t3

t3

t4

A B

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Se a lógica trabalha com elementos que são unidades estáveis e independentes umas

das outras, agrupando-as em conjuntos, essas relações entre processos mutuamente

contraditórios (tese e antítese) é que são os “elementos” com os quais a dialética trabalha.

Quando olhamos para a realidade à nossa volta e temos a sensação de estarmos em meio a

“coisas” diferentes umas das outras, o que é que nos leva a considerá-las realmente

independentes umas das outras? Por um lado o nome individual que damos a cada uma dessas

coisas, mas para darmos um nome a uma coisa considerando-a como uma unidade

independente, é preciso que de algum modo a diferenciemos das outras coisas ao seu redor (os

esquimós têm um número enorme de nomes diferentes para cores que consideram

completamente diferentes umas das outras, e que para nós são todas uma só: o “branco”,

porque não percebemos, não estamos acostumados a perceber, nenhuma diferença entre elas).

Por outro lado, quando percebemos que uma coisa pode ser deslocada em relação ao resto que

está ao redor dela, sem que o resto se mova necessariamente, então essa coisa parece ser uma

unidade independente.

Quando o macaco pensa em arrancar a banana da árvore, e faz isso, no processo

percebe a banana como algo diferente do resto da árvore, algo que tem uma unidade própria.

Mas para um animal selvagem que não come bananas, essa diferença pode não existir, e

aquilo tudo, arvore, bananas, pode ser uma coisa só. Nós, como seres humanos, usamos o

tempo inteiro nossa capacidade de abstração, dizemos por exemplo que estamos indo até

aquela porta, quando na verdade, se prestarmos atenção ao que estamos vendo realmente

conforme caminhamos para a porta, só poderemos dizer que o conjunto porta-parede, chão

sob a porta, teto sobre a porta parece estar crescendo e se movendo em nossa direção, em um

movimento oscilante (conforme o balanço de cada passo nosso). É por abstração que nos

imaginamos fora desse contexto e divididos em dois, como se uma parte de nós estivesse fora

de nós mesmos, e de fora, essa parte de nós parece olhar para nós mesmos e para a porta, e

então perceber que somos nós que estamos nos movendo para ela, e não o contrário. Em todo

esse contexto em movimento, abstraímos uma coisa que chamamos de “eu”, outra que

chamamos de “porta” e compreendemos a relação entre as duas.

Essa capacidade de abstrair, de separar as coisas umas das outras para compreender

melhor como elas estão relacionadas, é útil e importante para o ser humano, mas geralmente

nos esquecemos de que as abstrações são partes abstraídas imaginariamente da realidade, e

começamos a tratá-la como verdades absolutas que existem cada uma isoladamente, e a

esquecer que é preciso voltar a relacionar as abstrações umas com as outras para

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compreendermos a realidade de onde as abstraímos. Há situações em que por isso as

abstrações já não ajudam mais a compreender a realidade, mas ao contrário acabam

prejudicando nosso senso de realidade, por exemplo quando um jovem pensa que basta se

formar em uma profissão valorizada no mercado que sua vida estará feita, e não se dá conta

de todo o contexto em que esse nosso caminho para o mercado está envolvido e que interfere

nele, que é muito mais complexo, envolvendo a concorrência, o modo de pensar que é

cultivado pelas pessoas da área, seus valores, temores, preconceitos etc., a política econômica

do país e muitos outros fatores. Ele abstraiu de todo esse confuso contexto do qual tem uma

vaga idéia, apenas o seu caminho para o mercado, esquecendo-se de relacioná-lo com outros

fatores importantes que também poderia destacar no contexto (e deveria, para poder fazer uma

avaliação realista das coisas).

A dialética é uma forma de raciocinar que procura forçar nosso pensamento a não se

esquecer dessas relações com o contexto nem se apegar a idéias fixas que não acompanham o

movimento real das coisas. Assim, ao invés de destacar da massa dinâmica da realidade

apenas unidades isoladas umas das outras como o senso comum costuma fazer, ou como os

lógicos fazem para depois agrupá-las livremente em conjuntos como bem entenderem, os

dialéticos procuram, ao invés disso, destacar no contexto as relações de oposição dialética

que conseguirem realmente observar nesse contexto (e não quaisquer relações criadas apenas

mentalmente).

Assim, o primeiro passo do pensamento dialético a respeito de algo é procurar

descrever qual o contexto em que esse algo ocorre, e o segundo passo é buscar nesse

contexto as oposições dialéticas, ou seja, procurar compreender o que é que está em

transformação, e nessa transformação, o que é que está deixando de ser para se transformar

em outra coisa (em outras palavras, qual é a tese), e o que é isso em que está transformando e

que, portanto, está tomando o seu lugar (ou seja, qual é a antítese).

Uma única última complicação precisa ser esclarecida quanto a isto. É que nosso

próprio pensamento também é parte desse mundo em mutação, e portanto nossas idéias a

respeito do mundo, que ocorrem em nosso pensamento, também devem ser consideradas

dialeticamente. Então há pelo menos dois tipos de oposições dialéticas: aquelas que ocorrem

no mundo (e que percebemos quando pensamos dialeticamente sobre o resto do mundo que

existe fora do nosso pensamento), e aquelas que ocorrem entre as nossas idéias (ou seja, na

forma como pensamos sobre o mundo). Então, se digo que o marrom da fruta podre está em

oposição dialética ao amarelo da fruta madura, é uma oposição do primeiro tipo, porque não

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depende só da ação do meu pensamento, depende principalmente de algo que estou

percebendo no mundo, é uma oposição dialética real, em sentido forte, pois o marrom nasce

realmente onde havia o amarelo e em oposição a ele. Mas se digo que, em um casal, existe

uma oposição dialética entre a mulher e o marido em que um é a antítese do outro, estou

falando de uma oposição dialética em sentido “mais fraco”, mais abstrato, ou seja, em estou

falando de uma oposição dialética do segundo tipo: é no meu pensamento que considero a

imagem da mulher e a do marido como tese e antítese respectivamente, pois quando minha

atenção passa da imagem mental que faço dela para a imagem dele, a segunda imagem parece

nascer da primeira em oposição a ela.

Este segundo tipo de oposição dialética nem sempre é bem aceito pelos dialéticos, e

alguns preferem não trabalhar com ela por que consideram muito alto o risco de cairmos em

abstrações, mas há muitos dialéticos (a maioria deles aliás) que trabalham ora com um dos

tipos de oposição ora com outro, infelizmente nem sempre deixando claras as diferenças. De

qualquer modo, as oposições reais continuam a ser sempre, em todos os casos, as preferidas

dos dialéticos. Existe entretanto uma oposição que envolve diretamente os nossos

pensamentos sobre o mundo e que tem um interesse especial para os dialéticos: a oposição

dialética entre pensamento e ação, que Karl Marx (o famoso filósofo comunista) costumava

chamar de praxis, e que o filósofo anarquista Pierre-Joseph Proudhon, antes dele, descreveu

como o processo pelo qual o pensamento nasce da ação em oposição a ela (pois é abstrato,

enquanto a ação é necessariamente uma inter-ação com o contexto), e depois o pensamento

retorna para a ação transformando-se em ação — no primeiro movimento, o a ação é tese e o

pensamento antítese, no segundo as posições se invertem. Naturalemente, não estamos

falando aqui da simples ação de pensar, mas do agir de fato no interagindo com o que está

fora de nós. Proudhon, por exemplo, dava especial atenção a essa ação que chamamos de

trabalho, e que está (ou deveria estar, se o trabalho não fosse tantas vezes alienado, mecânico,

feito de gestos repetitivos e automáticos) intensamente envolvida em uma dialética com os

pensamentos do trabalhador.

Marx leu algumas obras Proudhon e foi fortemente influenciado por ele (chegaram a

se encontrar), mas acabou tomando-o como um adversário (ou antes como um pericogoso

concorrente dentro do socialismo) e fazendo duras críticas. Entre os problemas que Marx via

na dialética de Proudhon, havia o de que não era possível a partir dela pensar no movimento

da História como algo que caminhasse sempre e necessariamente em uma mesma direção,

porque certas oscilações entre tese e antítese podiam ser intermináveis. O mundo

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proudhoniano parecia uma enorme rede de oposições dialéticas que podiam não terminar

nunca, apenas oscilando para lá e para cá. Imagine-se uma rede formada por diagramas como

aquele que apresentamos para as oposições dialéticas...

E de fato, para Proudhon não era possível prever o destino que a História nos

reservava, e isso quer dizer que não era possível fazer uma ciência da História. Não quer dizer

que para Proudhon não existisse História e que as coisas continuassem sempre iguais.

Proudhon era realmente um heracliteano, e defendia a idéia de que tudo flui, tudo muda. As

oscilações dialéticas, para ele, não eram todas necessariamente um eterno vai-e-vem que não

sai disso: só algumas oposições eram consideradas por ele “insolúveis”, e não porque fossem

“eternas”, mas porque só se resolveriam se ocorresse a eliminação dos dois pólos, tese e

antítese.

Mas a maioria das oposições dialéticas nessa grande rede vislumbrada por Proudhon

podia se dissolver com o desaparecimento da tese, a antítese tornando-se tese para nova

antítese que nasceria dela, mas isto acontecia constantemente em diferentes pontos da rede ao

mesmo tempo, ao longo da História, e a História da Humanidade e do Mundo seria, nesse

caso, a sucessão dessas diferentes configurações que a rede de oposições dialéticas iria

assumindo com o passar do tempo, ou seja, a sucessão dos diferentes contextos que fossem

tomando forma a partir da dissolução de oposições ou da formação de novas oposições em

diferentes pontos da rede.

Nessa linha de pensamento, não era possível prever nem mesmo aproximadamente

como seria um novo contexto, a menos que pensássemos em contextos pequenos e

17

A B

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específicos. Não era possível prever os desenvolvimentos futuros de um contexto muito

amplo, como por exemplo o de todo um país, e menos ainda, para atentarmos para uma

preocupação muito forte de Marx, os desenvolvimentos do conjunto da classe trabalhadora em

todo o mundo (ou seja, de quase toda a Humanidade, excluindo a ínfima minoria que forma a

classe dos exploradores). Para Marx isso não era suficiente. Era preciso compreender os

mecanismos de desenvolvimento da história para transformá-la em uma ciência que pudesse

nos responder solidamente para onde vamos e assim ajudar a orientar as nossas ações. A

resposta para isso estava no próprio fundador dessa noção atual de “dialética”, antes de

Proudhon: o filósofo Hegel. E Marx conhecia muito bem o pensamento de Hegel, melhor do

que Proudhon. Na verdade Proudhon não aceitava a dialética de Hegel e procurou corrigi-la

construindo a sua própria, e o que recusava em Hegel era justamente a idéia de que havia um

mecanismo de funcionamento da História que tornasse o futuro mais previsível. Proudhon

desconfiava que por detrás desse esforço de construir um mecanismo de previsão feito por

Hegel havia um desejo de dominar e controlar a realidade, incluindo as outras pessoas que

fazem parte dessa realidade, justificando o poder do Estado sobre elas.

Marx não concordava com a crítica de Proudhon, e procurou recuperar esse

mecanismo, ligado à idéia de que havia um terceiro fator dialético além da tese e da antítese,

o elemento chamado “síntese”. Então, para a imensa maioria dos dialéticos hoje, quase todos

herdeiros de Marx ou Hegel, além da tese e da antítese existe uma terceira coisa no esquema

de pensamento da Dialética: a síntese (de sin-tese, as teses em conjunto formando uma coisa

só), que em grego antigo queria dizer composição, ou seja, uma composição que se forma a

partir da tese e da antítese ocorrendo juntas. Primeiro a antítese nasce dentro da tese e se

desenvolve junto com ela até se tornar independente e se separar dela; depois as duas são

religadas uma com a outra através da síntese. E com isto o esquema de pensamento dos

dialéticos está completo:

É dessa maneira que ocorrem, então, as transformações históricas: da oposição entre a

tese e a antítese acaba nascendo uma terceira coisa, diferente delas e que de certa meneira

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xTese Antítese

Síntese

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“reconecta” as duas em uma só unidade, que é a síntese. Depois disso, a própria síntese acaba

funcionando como uma nova tese, ou seja, de dentro dessa síntese que ligou a tese e a

antítese, vai nascendo uma outra antítese, que oferece uma resistência crescente contra essa

síntese (que agora podemos dizer que é a tese de um novo “ciclo” dialético, porque a partir

daí todo o esquema se repete como antes, chegando no final a uma nova síntese, e assim por

diante), formando o seguinte esquema:

Mas o que é exatamente essa síntese? Como podemos descrever mais claramente e de

maneira detalhada essa “religação” ou composição entre tese e antítese? A discussão em torno

do conceito de síntese é muito grande, e os próprios dialéticos não costumam concordar

completamente uns com os outros: cada um interpreta a síntese de uma maneira, e isso vai

formando grupos diferentes de dialéticos, cada grupo defendendo suas próprias posições. O

que vou explicar a esse respeito, portanto, é apenas uma idéia geral que se aproxima bastante

daquilo com que os dialéticos costumam concordar, mas se entrássemos muito nos detalhes da

coisa, acabaríamos encontrando muitos pontos de discordância e um grande debate entre eles.

As dificuldades com esse conceito começaram com Hegel, o grande filósofo alemão

que, no século XIX, organizou o modo como compreendemos a dialética hoje, redescobrindo

e reinterpretando de uma maneira mais atualizada o pensamento de Heráclito. Hegel, e depois

dele Marx, são considerados os principais pensadores dialéticos que apareceram desde século

XIX, e hoje podemos dizer que a dialética tem duas versões “clássicas” que são as desses dois

filósofos, e chamar de dialéticos “ordodoxos” aqueles que procuram seguir à risca alguma

dessas duas versões. Mas mesmo nisso, os próprios “ortodoxos” nem sempre chegam a um

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xTese Antítese

Síntese

xTese Antítese

Síntese

...etc.

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acordo a respeito de qual é a maneira de seguir Hegel ou Marx mais fielmente. De qualquer

maneira, podemos dizer que todas as outras versões da dialética ou são derivadas dessas duas

ou são dialéticas “alternativas” e “heterodoxas”, que fogem um pouco ao padrão geral do que

se costuma chamar de “dialética”.

Grande parte do problema está no fato de que o próprio Hegel, para explicar a noção

de síntese, usou um termo alemão muito ambíguo e que pode ter diferentes interpretações, e

usou esse termo misturando ao mesmo tempo todos os sentidos que ele podia ter. Marx, por

sua vez, era seguidor de Hegel, e a imensa maioria dos dialéticos segue direta ou

indiretamente algum dos dois (Hegel ou Marx), interpretando a síntese da maneira que acham

a mais correta. Hegel dizia que a síntese “aufheben” a tese e a antítese. Mas, para

compreendermos resumidamente o problema, a palavra alemã “aufheben” pode querer dizer:

a) que a síntese supera a tese e a antítese, e portanto elimina a contradição; b) que ela assimila

e conserva as duas opostas uma à outra; ou c) que ela eleva a tese e a antítese para um nível

superior. Para Hegel, a síntese faz tudo isso ao mesmo tempo, o que é bastante difícil de

entender, mesmo para a maioria dos dialéticos. E os lógicos, quando topam com essa

passagem de Hegel, costumam considerá-la simplesmente absurda, um raciocínio “mal feito”,

porque é cheio de contradições: como a síntese poderia eliminar a contradição e ao mesmo

tempo conservá-la, por exemplo? Além disso “aufheben” é uma palavra difícil de traduzir, e

cada um dos diferentes sentidos que ela tem pode ser interpretado de maneiras diferentes de

uma tradução para outra.

Infelizmente, o melhor meio que conheço para esclarecer a noção de síntese de

maneira bem nítida é apresentar um exemplo de oposição dialética do tipo “fraco”, aquela

oposição que formamos mentalmente entre duas coisas diferentes que não nascem

necessariamente uma como antítese interna à outra, mas que só são antitéticas no nosso

pensamento, porque a idéia que fazemos de uma se forma por oposição à idéia que fazemos

da outra. O exemplo é o da relação entre pessoas cuja união forma algo diferente da soma das

partes, como no caso de um casal. Cada um tem sua própria personalidade, e na relação, suas

personalidades estabelecem uma oposição dialética, um é diferente do outro, e manifesta suas

características na medida em que o diferenciamos do outro. Mas os dois juntos formam uma

unidade — o casal — que também tem suas características próprias, que não são nem as de

um dos dois nem as do outro, mas formam o modo como se relacionam por exemplo com

outras pessoas enquanto casal. O casal como um todo forma uma terceira coisa diferente de

cada um dos dois, que é a síntese dos dois. O filho deles, desde o momento em que nasce e

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conforme vai crescendo e se desenvolvendo, vai formando e manifestando uma personalidade

própria que está em crescente oposição dialética à personalidade da mãe, à do pai e à do casal

como um todo, e com isso forma-se uma rede de oposições dialéticas:

Do conjunto de toda essa rede de oposições, nasce uma síntese que é a “família”.

Para os marxistas em geral, oposições como esta entre “marido” e “mulher” costumam

ser consideradas do tipo “fraco”, pois neste exemplo as únicas oposições dialéticas reais, em

que a antítese efetivamente parece nascer em alguma medida da própria tese, e não apenas do

modo como relacionamos mentalmente tese e antítese usando nossa imaginação, talvez sejam

as que surgem com o desenvolvimento do filho, se considerarmos que sua personalidade

nasce em grande medida das personalidades dos pais e em oposição a elas, ou da

personalidade do casal pai-mãe como um todo com características próprias. As oposições que

os marxistas consideram as mais importantes não estão no campo da psicologia, mas no da

economia política, são as oposições entre a classe trabalhadora e a classe dos que exploram

esse trabalho e enriquecem com ele.

Marx nos mostra de que maneira a revolta com que a classe trabalhadora se opõe à

classe exploradora do trabalho nasceu historicamente como antítese do próprio

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Pai Mãe

Filho

Casal

Pai Mãe

Filho

Casal

Família

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comportamento dessa classe burguesa. A burguesia e o proletariado, juntos, como uma só

força, fizeram no século XVIII em todo o mundo uma série de revoluções que acabaram com

a monarquia e com o poder da nobreza, mas nessa força revolucionária que a princípio era

uma só, com interesses e valores claramente burgueses, já havia desde o início uma

contradição interna (ou melhor, uma oposição dialética embrionária), que foi “rachando” essa

força em duas grandes forças, a da minoria burguesa, que se considerava satisfeita com os

resultados do processo revolucionário, e a de sua antítese, a maioria, que foi se caracterizando

cada vez mais como a classe trabalhadora, e que foi se diferenciando cada vez mais nesse

processo na mesma medida em que a burguesia se mostrava “mais burguesa” e exploradora,

ou seja, o desenvolvimento (e enriquecimento) da própria burguesia fez nascer e se

desenvolver de dentro dela, a partir desse “racha”, a força oposta, ao torná-la cada vez mais

pobre e necessitada (e revoltada).

A síntese dessa oposição dialética real, em sentido “forte”, segundo Karl Marx, é a

própria História como um processo de desenvolvimento que tem um sentido determinado e

aponta um fim previsível, sejam quais forem os desvios em relação a esse fim durante o

processo. E o fim para o qual o processo histórico aponta e caminha tortuosamente, com

dolorosos desvios e lentamente, mas infalivelmente, seria uma grande revolução econômica

em que, como resultado, não haveria mais a exploração da maioria por uma minoria e toda a

Humanidade se desenvolveria em regime de igualdade. Portanto, para Marx, o erro de

Proudhon estaria em não enxergar a síntese proposta por Hegel — o que no caso significa não

enxergar o sentido único e revolucionário para o qual a História caminha, sejam quais forem

os desvios provisórios de percurso.

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