Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ... resumo A globalização e os recursos tecnológicos...

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018 1 Um olhar retrô nas produções cinematográficas 1 Carla Lima Massolla Aragão da CRUZ 2 Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, SP RESUMO A globalização e os recursos tecnológicos estimulam uma coesão social fundamentada no cultivo do imaginário, como uma alavanca que garante nossa visão do real. Na nova busca pelo real, paralelos entre tempos passados e situações atuais são traçados e atualizados para o discurso contemporâneo. É o reencantamento do mundo, que reflete nas diferentes produções cinematográficas, impulsionando a construção de um estilo múltiplo, que alicerçado pelos recursos digitais, resgata os melhores títulos, conceitos e gêneros. Diante deste cenário, a animação digital potencializa a produção do gênero retrô, já que proporciona maior veracidade nas cenas, agilidade na produção e facilidade na representação de conceitos mais abstratos. Para ilustrar discorreremos, principalmente, nas peculiaridades de três produções: “The Jungle book” (2016), “Inside out” (2015) e “Rango” (2011). PALAVRAS-CHAVE: Estilo retrô; Tecnologia digital; Cinema; Audiovisuais. ESTILO RETRÔ Diferente do século XX, marcado de tempo em tempo pela predominância de determinados gêneros cinematográficos, o século XXI já nasceu na globalização, aceita a diversidade de gêneros, como também compartilha diferentes características culturais. Contudo, se por um lado a aldeia global estabelece uma integração entre países e pessoas do mundo todo, quebrando barreiras geográficas e temporais, por outro revela tendências que se espalham nos aspectos culturais dos quatro cantos do planeta. As mudanças comportamentais, culturais e comunicacionais que permeiam o cotidiano social são irreversíveis, e, ao mesmo tempo em que o culto ao indivíduo se destaca no comportamento dos sujeitos, há uma necessidade cada vez maior das pessoas se agregarem em comunidades, é uma busca pela socialização por meio da identificação 1 Trabalho apresentado no GP Cinema, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Doutoranda em Comunicação da UAM-SP, e-mail: [email protected]

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

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Um olhar retrô nas produções cinematográficas1

Carla Lima Massolla Aragão da CRUZ2

Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, SP

RESUMO

A globalização e os recursos tecnológicos estimulam uma coesão social fundamentada

no cultivo do imaginário, como uma alavanca que garante nossa visão do real. Na nova

busca pelo real, paralelos entre tempos passados e situações atuais são traçados e

atualizados para o discurso contemporâneo. É o reencantamento do mundo, que reflete

nas diferentes produções cinematográficas, impulsionando a construção de um estilo

múltiplo, que alicerçado pelos recursos digitais, resgata os melhores títulos, conceitos e

gêneros. Diante deste cenário, a animação digital potencializa a produção do gênero

retrô, já que proporciona maior veracidade nas cenas, agilidade na produção e facilidade

na representação de conceitos mais abstratos. Para ilustrar discorreremos,

principalmente, nas peculiaridades de três produções: “The Jungle book” (2016), “Inside

out” (2015) e “Rango” (2011).

PALAVRAS-CHAVE: Estilo retrô; Tecnologia digital; Cinema; Audiovisuais.

ESTILO RETRÔ

Diferente do século XX, marcado de tempo em tempo pela predominância de

determinados gêneros cinematográficos, o século XXI já nasceu na globalização, aceita a

diversidade de gêneros, como também compartilha diferentes características culturais.

Contudo, se por um lado a aldeia global estabelece uma integração entre países e pessoas

do mundo todo, quebrando barreiras geográficas e temporais, por outro revela tendências

que se espalham nos aspectos culturais dos quatro cantos do planeta.

As mudanças comportamentais, culturais e comunicacionais que permeiam o

cotidiano social são irreversíveis, e, ao mesmo tempo em que o culto ao indivíduo se

destaca no comportamento dos sujeitos, há uma necessidade cada vez maior das pessoas

se agregarem em comunidades, é uma busca pela socialização por meio da identificação

1 Trabalho apresentado no GP Cinema, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente

do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Doutoranda em Comunicação da UAM-SP, e-mail: [email protected]

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com os integrantes das diversas tribos, como se o estabelecimento de laços compensasse

o desgaste do individualismo.

Segundo Maffesoli3, a pós-modernidade é marcada pela predominância de dois

elementos: o cotidiano, que é a forma das coisas realmente serem, e o imaginário, um céu

de ideais que garantem a coesão social. Neste contexto, “o imaginário é uma espécie de

alavanca metodológica que garante inclusive que possamos enxergar o que é real”

(MAFFESOLI, 2012, p.106). E, nesta jornada da procura do que é real, os sujeitos traçam

paralelos entre tempos passados e situação atual, é a retomada do que já passou atualizada

para o discurso contemporâneo, como ilustra o título do livro de Maffesoli “O tempo

retorna”.

É ao lado disso que, graças ao desenvolvimento tecnológico, vemos renascer,

uma fênix de suas cinzas, o imaginário sob a forma de um realismo mágico.

Realismo, pois impregna todas as coisas da vida cotidiana; mágico, pois

reveste essas mesmas coisas com uma aura imaterial, com um suplemento

espiritual, com um brilho específico, contribuindo para fazê-las desempenhar

o papel que tinha o totem para as tribos primitivas. Percebe-se, aqui, o eco do

poeta: ‘Objetos inanimados, vocês têm uma alma’? (MAFFESOLI, 2012,

p.107).

A sociedade pós-moderna, por meio dos aspectos tecnológicos, emerge como a

soma do tribalismo arcaico e o reencantamento do mundo, e reflete nas diferentes

produções cinematográficas, impulsionando a construção de um gênero múltiplo, isto é,

que não está limitado a ficção, aventura, western, chanchada, terror, ou qualquer outro

gênero4. Trata-se de um gênero maior, que, alicerçado pelos recursos digitais, pode ser

identificado como retrô, uma vez que resgata os melhores títulos, conceitos e

características de gêneros que marcaram épocas, e, mesmo garantindo os aspectos de pré-

produção, produção e pós-produção da versão original, introduz traços ideológicos

contemporâneos5 e a intergenericidade, ou seja, a fusão de gêneros diferentes, para

cumprir um determinado propósito comunicativo.

Certamente a retomada de títulos, gêneros e temas é um grande desafio para uma

produção, pois a necessidade de superação é latente e condicionante na expectativa de

conquista de público. Diante deste cenário, a animação digital se tornou uma ferramenta

3 Michel Maffesoli é filósofo que propõe, na sua obra “O tempo retorna – formas elementares da pós-

modernidade” (2012, Editora Forense), abordar comportamentos e características cotidianas que nos

encaminham à sociedade pós-moderna. 4 Conforme Altman,“Hasta ahora, las teorias de los géneros elaborados en el passado han impusto

silenciosamente algunos de sus critérios, y éstos continuían ejerciendo uma influencia tácita em los intentos

más recientes de hacer teoria de los géneros” (ALTMAN, 2000, p.17) 5 Para Agamben (2009, p.59), a contemporaneidade é “uma singular relação com o próprio tempo”, sem

que se mantenha sobre a época um olhar fixo, mas sempre à distância, para poder sobre ela se verter, embora

já numa dissociação anacrônica, entrevendo sua “íntima obscuridade” (AGAMBEN, 2009, p.64).

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fundamental na produção do gênero retrô, já que proporciona maior veracidade nas cenas,

agilidade na produção e a representação de conceitos mais abstratos.

Como há grande eficácia na produção do imaterial e a magia é incorporada dentro

da existência cotidiana, as animações digitais, as produções live-actions e os efeitos da

computação gráfica nos filmes incorporam as maiores produções cinematográficas da

atualidade.

Eis o que é fantasia pós-moderna. Ela não é destacada da existência cotidiana,

mas, é, no mais alto ponto, o coração que bate. Filmes, livros, ciberculturas,

videoesferas, tudo isso traz uma marca profunda de eficácia do imaterial. Essa

magia contemporânea, que encontra sua origem nos fairy tales dos diversos

reinos das fadas, de todos os contos e lendas, exprime bem a volta do

sentimento trágico da existência. Não mais uma existência que podemos

dominar em sua totalidade, mas que deve ajustar-se, bem ou mal, as forças que

a ultrapassam (MAFFESOLI, 2012, p.107-108).

Neste texto, para ilustrar o olhar retrô nas produções cinematográficas, com ênfase

na contribuição da animação digital, discorreremos, principalmente, nas peculiaridades

de três produções: “The Jungle book” (Mogli: O Menino Lobo, 2016), que reproduz e

atualiza a animação de “The Jungle book”, 1967, agora em filme live-action; “Rango”

(2011), que resgata para uma animação contemporânea o gênero western; e “Inside out”

(Divertidamente, 2015), uma animação melodramática que retoma a

ciência comportamental que teve seu ápice na sociedade e nos filmes do século XX.

“MOGLI”: A ANIMAÇÃO QUE VIROU FILME

“The Jungle book” (“Mogli: O Menino Lobo” no Brasil e “O Livro da

Selva” em Portugal) é um filme contemporâneo de 2016, que sob a direção de Jon

Favreau, resgata a ambiência e os personagens da clássica animação de 1967, com o

mesmo nome, baseada no conto do historiador Rudyard Kipling, ambos produzidos pela

Walt Disney Pictures. O filme teve grande aceitação pela crítica e de um orçamento de

U$ 175 milhões, arrecadou U$ 966 milhões em bilheterias (incluindo versão 3D e Imax).

“Mogli” é um filme live-action que apresenta a combinação da atuação do jovem

ator Neel Sethi, o menino criado pelos lobos, com a comunidade de animais da floresta,

na qual é identificado como o “filhote de homem”.

A criança representa a figura humana na selva, o que naturalmente causa

preocupação para alguns animais que conhecem o poder destrutivo humano, em especial

ao tigre Shere Khan, cuja narrativa destaca que em circunstâncias anteriores foi ferido

pelo homem.

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Como no filme “Who Framed Roger Rabbit”, 1988, a interação de Mogli com os

animais da floresta, criados por meio de animações, é muito convincente e a veracidade

dos animais é tão notável como a do tigre em “As Aventuras de PI”, 2013. Estes, entre

outros fatores, contribuíram para que “Mogli: O Menino Lobo” alcançasse a terceira

maior bilheteria de 2016, com a arrecadação de mais de 910 milhões, e a satisfação da

crítica e do público.

As produções live-actions conseguiram imprimir mais veracidade à representação

do imaginário, principalmente nas produções fantásticas que influenciaram as narrativas

do século XX, na qual a Disney teve grande destaque, agora potencializadas pela

tecnologia digital.

Não é nenhum exagero afirmar que o século XX não teria as feições culturais

que o caracterizaram sem a influência do imaginário do mundo da fantasia

criado a partir dos desenhos animados de Walt Disney. E esse sucesso se deve,

inicialmente, ao enfrentamento dos problemas então existentes para a

formulação de uma linguagem que verdadeiramente dotasse a animação de

características artísticas próprias – a correta equação envolvendo imagem

desenhada e seu movimento no espaço/tempo. A mais pura conquista da arte

sobre a tecnologia que lhe permitia existir. Em outras palavras, ao sujeito que

possuía o lápis (a tecnologia) foi oferecido um alfabeto (a arte), para que ele

pudesse expressar-se (LUCENA JÚNIOR, 2002, p. 97).

Entre as principais diferenças do remake da animação, que retornou como filme,

além da hibridação das gravações dos personagens humanos com a animação, verificamos

que a articulação dos recursos digitais, garantem a fantasia e a sensação de realidade nos

processos interativos. Como também, a recontextualização do universo da antiga

animação ao momento atual da sociedade.

A perspectiva imagética e o universo criativo da narrativa, foram mantidos, mas a

relação do protagonista, como personagem humano na selva, foi modificada. Houve

atualização da animação de 1967, na qual as características do estilo pastelão foram

substituídas pelo suspense e por argumentos configurados à uma percepção das relações

sociais mais crítica e madura, regada por situações de interesse, ambição, medo, violência,

suspense e um pouco de terror.

A ideia da perseguição do “filhote de homem” pelos predadores da selva ganha uma

dinâmica mais intensa de cortes na edição, como também maior velocidade dos planos

durante as cenas, mas o figurino, o conceito central, a concepção da selva e a visão do

homem como predador da natureza permanecem.

Entre as novidades, observamos que o filme insere conceitos mais técnicos, como

a noção de que a debilidade das árvores pode ser identificada pela presença de trepadeiras

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e que a elaboração de objetos é uma habilidade natural do homem, conforme demonstra

Mogli com a criação de diversos artefatos.

Na animação, mesmo que contrariado, Mogli é conduzido pelos outros animais, que

se articulam para tirá-lo da floresta. Contudo no filme, o próprio menino é quem decide

que deixar a floresta seria a opção mais adequada. Tal qual a animação, o filme demonstra

o comportamento adulto assumido pelos animais, sob as vozes dos atores Bill Murray (o

urso Balu), Ben Kingsley (a pantera Baguera), Idris Elba (o tigre Shere Khan), Scarlett

Johansson (a cobra Kaa), Lupita Nyong'o (a mãe loba Raksha), Giancarlo Esposito (o

lobo Akela, líder da alcateia) e Christopher Walken (o macaco rei Louis), entre outros.

Na narrativa, Mogli assume o papel de herói, cuja jornada, semelhante a um

videogame, apresenta constantes desafios e benefícios. Assim, o menino, sozinho na

floresta encontra um animal perigoso, mas consegue se salvar, depois outro e mais outro,

e como recompensas, conta com a ajuda dos animais aliados, que encontra na floresta. De

fato, o filme já apresenta a necessidade de conquistas desde a primeira cena, quando

Mogli passa por uma simulação de perseguição na floresta, realizada pela pantera

Baguera, animal aliado que exerce o papel de tutor do menino e se empenha em treiná-lo

para possíveis situações de perigo. No decorrer da narrativa, a história remete,

frequentemente, a necessidade de Mogli se preparar para superar as investidas de um vilão

para, progressivamente, passar para o próximo.

Enquanto o Mogli da animação é dependente e totalmente conduzido pelas

circunstâncias, o do filme demonstra um senso crítico aguçado na pró-atividade do

personagem, revelada nas tomadas de decisões estratégicas e na elaboração de artefatos6

para facilitação da realização de suas atividades.

O clímax da narrativa está na fulga de Mogli dos ataques de Shere Khan. Todavia,

o personagem, além de garantir sua sobrevivência, consegue também resgatar os animas

da floresta da violência imposta pelo tigre vilão. Dentre as realizações socorre um filhote

de elefante, prepara estratégias para coletar o mel das colmeias e aprende a fazer uso do

fogo. E, para completar o quadro heroico, Mogli lidera os animais na restauração da

floresta abatida pelo fogo. Assim, fica caracterizado que o desenvolvimento da

maturação do protagonista na narrativa é progressivo, da condição de vítima passa à

6 No filme aparecem artefatos criados por Mogli, denominados de truques pelos demais animais da

floresta. A elaboração e utilização dos objetos são exclusivas do menino.

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posição de líder, como uma versão jovem de Tarzan,7 ele se comunica e coordena ações

dos animais. O amadurecimento também é ilustrado no comportamento dos animais, que

a princípio não aceitam as invenções de Mogli e procuram fazer com que ele haja segundo

as competências similares a deles, entretanto, durante a narrativa, é crescente a

demonstração de que os melhores resultados são alcançados quando as espécies se

utilizam das habilidades e atitudes que lhe são inerentes. Desta forma, Mogli consegue,

com suas competências humanas, garantir a própria sobrevivência e contribuir com a

proteção da floresta e dos animais.

Além da condição passiva do perfil da criança da animação, ela retrata outros

valores sociais e culturais dos anos sessenta, dando destaque ao jazz, a formação de uma

tropa militar8 na encenação dos elefantes e a submissão social do gênero feminino, que

só ganha destaque no discurso da elefanta Godofreda, cuja necessidade de manutenção

de seus princípios maternais de proteção a levam a ameaçar assumir a liderança da

companhia. A manifestação da elefanta é abafada pela voz do líder dos elefantes, que

retoma o controle com a observação de que “seria absurdo uma fêmea no comando”. Já,

no final da animação, o menino lobo é conduzido pelo único motivo justificável na época,

os encantos e astúcia femininos da jovem nativa humana.

Da versão de 1967 para a de 2016 (filme), a infraestrutura da casa do macaco rei

Louis também sofreu mudanças, das frutas, que preenchiam o cenário na animação, o

filme incorporara pilhas de produtos fabricados por humanos. A dimensão do macaco

supera bastante a da animação, o que era um gorila, agora apresenta tamanho mais

próximo a de um “King Kong” (2005), e, o desejo do macaco pelo domínio do fogo

(chamada “flor vermelha”) é muito maior, coadunando com as manifestações ilustradas

na trilha sonora, que reflete os interesses dos babuínos em conquistar o lugar do homem9.

O filme também atualiza a narrativa aos valores sociais e culturais contemporâneos.

Não há uma preocupação em apontar um pai lobo para criação de Mogli (assumido por

Rama na animação), o destaque fica para Akela, líder e ícone da alcateia de lobos,

7 Há três situações do filme Mogli semelhantes ao filme “A lenda de Tarzan”, 2016: Mogli e Tarzan montam

em búfalos africanos no meio da manada, os dois protagonistas se locomovem em cipós na floresta e ambos

concluem a narrativa mobilizando os animais para realização de ações que beneficiam a comunidade. 8 O exército era uma vertente muito forte entre as nações na década de 60, pois várias guerras e conflitos

marcaram a história do mundo nesse período, tais como: a Guerra Fria, a construção do Muro de Berlim, a

Guerra do Vietname e a Guerra Colonial. 9 Os interesses dos babuínos em assumir a posição dos humanos retoma a narrativa do filme “Planeta dos

Macacos: a origem” (em inglês Rise of the Planet of the Apes, 2011, sob a direção de Rupert Wyatt).

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simboliza a referência para Mogli e para comunidade local. Agregada a referência de

Akela o filme destaca a pantera Baguela, como tutor do menino e o urso Baloo, no papel

de pai amigo. Assim, as características de liderança paterna ficam dividas em três

personagens: a autoridade com Akela, a disciplina com Baguera e a amizade com Baloo.

A posição do gênero feminino também ganha grande significação no filme, pela

voz da mãe loba Raksha (Lupita Nyong'o), fortes laços afetivos ganham espaço na mãe

loba, que assume funções de orientadora, protetora e sucessora de Akela na relação com

os filhotes.

O fator ambiental e o respeito pela diversidade religiosa também são preservados

no filme, diferente da animação, os elefantes são tratados com o respeito inerente as

crenças dos nativos africanos e as árvores da floresta não são acidentalmente destruídas,

mas preservadas sob a orientação de Mogli. Já, no cenário, a dimensão e veracidade dos

animais causam certo terror na narrativa, constituída por pântanos com neblina e a voz

sussurrante da cobra, que mais parece uma anaconda. O humor pastelão dos abutres da

animação foi suprimido pelo retorno do menino à alcateia de lobos, pois agora, Mogli,

como protagonista da história dele, decide que ao invés de fugir deve ficar e lutar pela

sobrevivência dele e da justiça na floresta.

Na conclusão do filme se dá ênfase a essência maniqueísta, trabalhada também, mas

em menor escala, ao longo da narrativa. É a sobreposição de impacto do bem contra o

mal, ilustradas nas cenas da morte do tigre Shere Khan, que de certa maneira, relembra à

morte de Iscar (leão vilão da animação “O Rei Leão”, 1994), que da mesma forma que

Shere Khan, foi responsável pela morte do líder da comunidade de animais. Tanto Shere

Khan, quanto Iscar, morrem consumidos pelo fogo, representando a supressão do mundo

das sombras pela luz dos líderes emergentes, Simba (leão jovem da animação “O Rei

Leão”, 1994) e Mogli, (líder jovem do filme “Mogli, o menino lobo”, 2016).

“RANGO”, DA EPIFANIA AO MUNDO WESTERN

Os westerns, que expressam a excelência do cinema americano, e marcaram o final

do século XIX e século XX, também são resgatados pelo gênero retrô, embora as três

maiores bilheterias de cinema neste gênero tenha ocorrido apenas no século XX, o século

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XXI é palco de alguns títulos de sucesso, entre os quatro maiores10 estão: “A

proposta”(2005); “Onde os fracos não têm vez” (2007); “Rango” (2011); e “Django

Livre” (2012).

Como terceiro título de maior bilheteria (US$ 245 milhões de um orçamento de U$

135 milhões, segundo o IMDb) temos “Rango”, 2011, uma hibridação de gêneros

clássicos, animação-comédia-wertern, que sob a direção de Gore Verbinski, traz na voz

de Johnny Depp a história de um camaleão que se liberta do cativeiro e torna-se um

pistoleiro em uma pequena cidade do Velho Oeste. O sucesso já começou na estreia, nos

EUA alcançou o primeiro lugar da bilheteria no seu primeiro final de semana, com a

arrecadação de U$ 38 milhões. E, entre outras premiações, “Rango” conquistou o Óscar

de melhor filme de animação em 2012.

Rango11 representa o típico personagem fílmico do faroeste, solitário e em busca de

mudança de vida. Mediante uma crise de identidade, ele deseja passar por um momento

de epifania e, num discurso pseudo-metalinguístico,12 comum nos títulos

contemporâneos, declara:

[...]- The stage is waiting.

- The audience thirsts for adventure.

- I could be anyone.

- Who I am? [...]

- People. I´ve had an epiphany.

- The hero cannot exist in a vacum!

- What our story needs is an ironic, unexpected event.[...]

(Fonte: Animação “Rango”, 2015, diálogo do personagem Rango)

Esta fala soa como uma antecipação dos fatos, já que precede a destruição de seu

antigo lar, um aquário, e o lançamento dele à arenosa e conflituosa Vila Poeira, típica

cidade do Velho Oeste, sem lei, com moradores desconfiados e extravagantes, mas com

o potencial para transformar a vida do protagonista e concretizar os sonhos dele de uma

vida heroica. E, como era de se esperar, mesmo dentro de uma nova visualidade, pela

10AMARAL, Fernanda Censi, 2009. Os 10 melhores filmes de faroeste do século 21. Portal de Cinema,

dez/2013. Disponível no site; <http://portaldecinema.com.br/news/2013/07/09/os-10-melhores-filmes-de-

faroeste-do-seculo-21/> Acesso em 12/09/2016. 11 Rango é um lagarto do tipo camaleão, mas na estrutura física que lhe atribuíram, revela um perfil

esguio e uma barriga saliente. Esses atributos não se assemelham às características da espécie, mas nos

remete ao desenho do personagem Rango, do cartunista gaúcho Edgar Vasques. Desde sua primeira tira,

publicada em 1970, anuncia em quadrinhos críticos, bem ou mal-humorados, uma reflexão sobre a

situação política e a ideologia capitalista. Disponível no site: <

http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/fome-de-rango>. Acesso em 21 de setembro de

2016. 12 Rango interrompe sua encenação para dialogar com o expectador sobre o que necessário para que uma

narrativa seja interessante, dado a circunstância de que não se trata de uma gravação de cinema, mas a

simulação de uma cena, com os recursos de animação, o prefixo ”pseudo” foi acrescido.

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tradição da ambiência wertern, a cidade é composta de apenas uma avenida principal

onde se destacam um saloon (com jogatina, bebidas e prostituta), a delegacia e o banco.

[...] os contos clássicos foram ganhando outra visualidade, a partir de criações

e releituras de narrativas previamente divulgadas, podendo ser enriquecidos

nos aspectos lúdico, onírico e fantasioso, transportando o espectador a mundos

mágicos e encantados (FOSSATTI, 2010, p.11).

Na jornada de herói, Rango reflete alegoricamente, as características de adaptação

ao meio, inerente a sua natureza de camaleão. Ora é bicho de estimação, ora assume o

papel de cowboy, depois, acidentalmente, se torna o xerife da Vila Poeira, e, por fim,

conquista o lugar de herói. Na própria narrativa o protagonista, sob a voz e persona de

Depp13, sua condição de assumir múltiplos papéis.

Outro aspecto significativo na realização dos sonhos de Rango é a representação da

conquista por meio da liberdade, isto é, o camaleão cativo da cidade grande se torna

autoridade da cidade do Velho Oeste. Ainda que a passagem ocorra mediante a

manutenção de diversas faces: covarde e herói, transformador, mas ainda vítima da sorte.

Conforme menciona Hutcheon, a modernidade, em termos de não-identidade, “produz a

multiplicidade, a heterogenicidade e a pluralidade, e não a oposição e exclusão binárias”

(HUTCHEON, 1991, p.89).

Como última esperança da Vila Poeira, o novo xerife se depara com personagens

perigosos, que de certa forma contribuem para que ele se torne o herói que desejava.

Rango representa um protagonista no formato novo da versão da história clássica de

faroeste, na qual o forasteiro salva a cidade e a si mesmo durante o processo. E para

sublinhar o gênero western, não falta a mocinha (o lagarto fêmea Feijão), o revólver, as

esporas, o “cavalo” (improvisado por aves) e um grupo de corujas, que no estilo musical

mexicano, celebram a morte14 do herói, provocando suspense e humor ao longo da

narrativa.

13 Johnny Depp atribui ao personagem Rango um ethos semelhante ao da sua atuação como Capitão Jack

Sparrow, em “Piratas do Caribe”, 2003, também dirigido por Gore Verbinski. Trata-se de um herói que

não esconde o medo e sai beneficiado, acidentalmente, em diversas circunstâncias da história. 14 A morte é celebrada no México [...]a diferença está na forma como se vê se enfrenta e se vive a passagem

deste mundo para o outro, a maneira festiva como são lembrados e recordados os falecidos, com um jeito

próprio de brincar com a morte de forma festiva, original e irônica. Nesse país, todas as pessoas vivem o

sentimento de homenagear aos mortos, mesmo que grande parte da população não conheça as origens da

celebração, mesmo assim, passou a ser uma das festas mais tradicionais e populares do calendário

mexicano. Não é por acaso, que a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência

e a Cultura) em 2003, reconheceu a celebração do dia dos mortos na cultura mexicana, como Patrimônio

Cultural e Imaterial da Humanidade. Disponível no site: http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/

wp-ontent/uploads/downloads2015/11/art1_interface_da_morte_no_imaginario_da_cultura_popular_

mexicana.pdf. Acesso em 10/09/2016.

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Para alcançar um futuro de glória e sua autoafirmação, Rango busca, defendendo a

comunidade de Vila Poeira, a justiça social. Como qualquer herói do faroeste, passa por

confrontos dramáticos de duelos e perseguições, sublinhando o gênero wertern com o

estigma de que a violência parece ser a única forma de garantir a segurança.

A atualização do gênero pode ser notada na demonstração da vestimenta inicial de

Rango, nos veículos da estrada, na ilustração da cidade moderna, no aquário e seus

acessórios, como também, na institucionalização da água e não do ouro ou do dinheiro

como recurso de maior valor15. Logo, a relação capitalista é expressa no controle da água,

e como a própria narrativa declara, quem controla a água, controla tudo”.

No filme, para atender os interesses capitalistas do prefeito, a água de Vila Poeira

é racionada e os moradores são explorados, ironicamente, o socorro da população não

está na ação de nenhum personagem da região, mas em um camaleão que era domesticado

na cidade grande, Rango. O réptil, que antes vivia nos limites das dimensões de um

aquário, depois de um acidente, lança-se no deserto do Mojave e inicia sua jornada de

herói, interpretando, inicialmente, um pistoleiro do Oeste. Ou seja, de uma hora para

outra, a rotina do animal de estimação muda radicalmente, passa da busca de uma

identidade nova, para um personagem do Oeste, e só depois que descontrói a camuflagem

da dramatização, vivência a experiência de se tornar um herói.

Temos o resgate de um gênero antigo, que retorna com personagens e história as

vezes ambíguas, a vítima se torna herói e o recurso de maior valor é o que hoje expressa

maior fonte de desperdício na sociedade, a água.

Enfim, a narrativa incorpora diversas ideias de fundo por trás de sua aparência

teoricamente clichê, revivenciando o western, se atualiza com algumas informações

conceituais contemporâneas, o que de fato retrata a essência do gênero do Cinema Retrô.

“INSIDE OUT”: A PERSONIFICAÇÃO DA MENTE

“Você já olhou para uma pessoa e pensou o que se passava na cabeça dela?” Esta

é a frase que introduz a narrativa da animação “Inside Out” (2015, em português

Divertidamente) e que nos remete imediatamente a percepção da complexidade da

produção: para definição da ambiência, construção dos personagens e desenvolvimento

de um tema de natureza abstrata.

15 Entre títulos que defendem a água como instrumento de maior valor temos “Waterworld” (Waterworld -

O Segredo das Águas, no Brasil), dirigido por Kevin Reynolds, 1995).

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Vencedor do Oscar de 2016, como melhor filme de animação, embora tenha

concorrido também como filme de melhor roteiro, a animação, de um orçamento de US$

175 milhões, despontou como a segunda maior animação de 2015 e arrecadou mais de

842 milhões de dólares. Foi a terceira maior bilheteria da Pixar e o nono filme de maior

bilheteria lançado pela Disney.

Na animação, os recursos da tecnologia digital são de grande valia, uma vez que se

resgatam conceitos da psique, atualizados pelo acréscimo de novos estudos, junto com a

demonstração cinematográfica dos fluxos das emoções comportamentais. A história

começa com imagens da infância da pequena Riley, que sob a voz de Kaitlyn Dias, retrata

as primeiras imagens do nascimento da menina e seus respectivos reflexos emocionais.

Como no filme “Look Who's Talking” (“Olha quem está falando” em português,

1989), os sentimentos da mente de um bebê são expressos, mas não por uma única voz e

sim pela personificação das cinco principais emoções: Alegria, Tristeza, Nojo, Raiva e

Medo16.

Para construção do ethos da Riley as cinco emoções que conduzem seu caráter dela

foram personificadas. Enquanto a Raiva é a personagem vermelha e menor, a Alegria é a

maior das personagens e a condutora da narrativa. O medo se apresenta como a segunda

maior personagem, porém de estrutura frágil e ganha pouco espaço nas cenas, pois a

intenção inicial da narrativa é o de defender a ideia de que o equilíbrio da Riley só pode

ocorrer se a Alegria for priorizada.

Riley, é uma menina da classe média americana, que tem como maestrina de suas

emoções a Alegria, que de fato é a protagonista da história, e busca incessantemente

proporcionar momentos alegres nos acontecimentos e sonhos da menina. A narrativa

propõe uma linearidade temporal, que permite ao espectador acompanhar o crescimento

dela, mediante as inúmeras emoções que a cercam, a começar pelos vínculos familiares

formados desde as cenas do nascimento até o alcance dos onze anos de idade.

16 A redução das emoções em apenas cinco revela um dos recursos de simplificação da contemporaneidade.

Como recurso para agregar o tema comportamental, o filme recebeu a consultoria de um dos psicólogos

mais importantes e reconhecidos no campo do estudo das emoções, Paul Ekman, responsável por ter

decodificado as expressões faciais das emoções, tendo viajado até as áreas mais remotas e pouco civilizadas

do mundo, para identificar entre as 23 emoções, seis básicas universais, aquelas que compartilhamos com

todos os seres humanos, independente da cultura. E assim, ele chegou a 6 emoções básicas, que são

facialmente expressas da mesma maneira, em qualquer lugar do mundo: alegria, medo, tristeza, aversão,

raiva e surpresa. Pete optou por juntar a surpresa com o medo e 5 foram as emoções trabalhadas e para

proporcionar a compreensão do espectador a simplificação é necessária (característica na elaboração de

melodramas), da mesma forma que a corporificação das emoções como personagens possíveis de ação.

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Temos também a emoção Nojo, representada por uma personagem verde, que busca

adequar a menina aos padrões sociais aceitos para sua idade. Nojo, na versão brasileira

representa a repulsa de Riley por brócolis, mas no Japão em que brócolis é um alimento

comum, a simbologia é substituída por ervas verdes.

A segunda personagem mais impactante da narrativa é apresentada como a emoção

Tristeza, cuja melancolia, também expressa na sua cor azul, procura interferir

constantemente na reação da menina.

Diferente das características das personagens Raiva, Medo e Tristeza, a produção

buscou na elaboração do visual da Alegria e Nojo uma ênfase no recurso do Baby

Schema,17 ampliando a dimensão dos olhos das personagens e das cabeças, que além de

aiores são mais arredondadas, delineando expressões faciais18 mais agradáveis, que por

assim ser, conquistam mais os espectadores.

As emoções, personificadas, enfatizam suas missões na “sala de controle”, isto é, a

mente de Riley. A Raiva se revela contra todo tipo de injustiças, enquanto a Nojo se

esforça por evitar o consumo de coisas estranhas e/ou situações constrangedoras. Já o

Medo se empenha em proteger a vida de Riley, e a Alegria sempre defende um olhar

otimista e declara: “- o que vai mal sempre pode ser melhorado, é só fazer uma força”.

Enquanto a Tristeza, por sua vez, aconselha o choro, pois segundo ela: “- faz acalmar e

suportar o peso dos problemas”.

O melodrama, que conduz a narrativa, começa quando Riley enfrenta conflitos do

processo de mudança de residência19 e de escola, juntamente com as emoções advindas

da construção de novos valores, pertinentes ao período de transição da fase infantil à

adolescência da menina. Para fundamentar o desenvolvimento da animação foi utilizada

a teoria psicanalítica do pós-modernismo, a descentralização do sujeito e sua busca no

sentido da individualidade e da autenticidade, que teve importante repercussão e

17 O baby schema, conceito criado por Lorenz em 1943, é um conjunto de traços faciais e corporais que

caracterizam a criança humana e os filhotes de outras espécies. Esses traços geram um forte comportamento

de cuidado e atenção por parte dos adultos. Esse conceito pode ser aplicado não somente na biologia, mas

em estudos comportamentais que afetam áreas sociais com a comunicação, o design e o cinema.

(FURTADO e AQUINO, 2015) 18 Ralph Eggleston, o desenhista de produção, trabalhou durante cinco anos e meio neste filme. Foi o

tempo mais longo que ele dedicou para uma produção – ele considerou também o processo mais difícil de

sua carreira. 19 A inspiração de Pete Docter para Inside Out veio da junção da experiência pessoal e da sua filha, pois

ambos passaram por conflitos ao mudarem de Minessota, com a idade de 11 anos.

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sobretudo retoma o conceito de racionalidade de Linda Hutcheon (HUTCHEON,1991,

p.85).

Portanto, o pós-moderno realiza dois movimentos simultâneos. Ele reinsere os

contextos históricos como sendo significantes, e até determinantes, mas ao

fazê-lo, problematiza toda a noção de conhecimento histórico. Esse é mais um

dos paradoxos que caracterizam todos os atuais discursos pós-modernos.

(HUTCHEON, 1991, p.122).

As características que norteiam a narrativa reproduzem os traços dos filmes

clássicos hollywoodianos, mas neste caso, a ênfase não está nos conflitos entre pessoas

ou circunstâncias, mas nas emoções personificadas da mente da adolescente. É a luta

pessoal pelo sucesso.

O filme hollywoodiano clássico apresenta indivíduos definidos, empenhados

em resolver um problema evidente ou atingir objetivos específicos. Nessa sua

busca, os personagens entram em conflito com outros personagens ou com

circunstâncias externas. A história finaliza com uma vitória ou derrota

decisivas, a resolução do problema e a clara consecução ou não-consecução

dos objetivos. O principal agente causal é, portanto, o personagem, um

indivíduo distinto dotado de um conjunto evidente e consistente de traços,

qualidades e comportamentos. Embora o cinema tenha herdado muitas das

convenções de caracterização do teatro e da literatura, os tipos de personagens

do melodrama e da ficção popular são compostos por motivos, traços e

maneirismos únicos (BORDWELL, 2005, p.278-279).

No desenvolvimento da animação, as emoções se utilizam das memórias bases

adquiridas por Riley nos momentos mais emocionantes da vida, essas emoções são

responsáveis pela formação do caráter dela. Na mente da Riley as memórias bases, são

representadas por cinco ilhas: família, amizade, honestidade, bobeira e rock. Por serem

os pilares do comportamento da personagem, o clímax da narrativa ocorre durante o

processo de abalo e/ou destruição dessas memórias bases, elas definem os aspectos da

identidade, o ethos da personagem.

A representação ocorre pelas variações na ambiência e na presença dos

personagens, lembrando o conceito de “materialidades da comunicação”, que segundo

Gumbrecht “são todos os fenômenos e condições que contribuem para produção de

sentido, sem serem, eles mesmos, sentidos” (GUMBRECHT, 2010, p.28).

À noite, as memórias vão para o longo prazo, lugar que também transita os amigos

imaginários de Riley (como o Bing Bong), e, no período do sono, os pensamentos e as

regiões abstratas da mente se manifestam. Outro aspecto importante são as considerações

feitas ao subconsciente, lugar para onde são levadas as memórias que causam problemas.

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Michael Giacchin20, compositor, conduz com a trilha musical toda a sensibilidade

proposta nos eventos da narrativa, que também resgata nas lembranças da Riley, outras

produções de Pete Docter (“Procurando Nemo”/2003 e “Up”/2009) e imagens de ovos de

páscoa, balas, algodão doce, cartas e jogos completam as lembranças propostas para a

mente infantil de Riley na narrativa.

Para a finalização da narrativa, as ações da personagem Tristeza assumem o

controle, pois é ela quem resgata a falibilidade humana da personagem. A Tristeza propõe

o choro para compensação dos erros e produção do renovo, ensina que perder faz parte

do jogo. A mensagem de fundo da narrativa é que a predominância plena da Alegria é

utópica, pois as dificuldades são reais é só podem ser superadas com uma dose de

Tristeza. O equilíbrio entre a Alegria e a Tristeza é proposta como base de um

fortalecimento necessário à construção da maturidade emocional, porque na tristeza a

personagem se compreende, e assim, tem maiores possibilidades de identificar e buscar

aquilo que possibilita a felicidade. Assim, a relação equilibrada da Alegria com a Tristeza

promove o amadurecimento de Riley. Então, novas ilhas são construídas (discussão

amigável, vampiros românticos, fashion), o painel de controle da personagem (cérebro) é

ampliado e repaginado e surge também o botão de puberdade.

A narrativa encerra com a visão contemporânea de como se alcança o equilíbrio

emocional, ou seja, a responsabilidade pelos desfortúnios da vida de Riley não é atribuída

a Deus, nem tão pouco a sociedade, mas advém das escolhas pessoais dela, é uma

conquista individual. E como protagonista da sua história, Riley deve articular as próprias

emoções para superar os conflitos sociais, o que progressivamente contribuirá no

amadurecimento pessoal e estabilização social dela.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O gênero retrô tem alcançado espaços cada vez maiores nos longas metragens do

século XXI, é o resgate e atualização de ícones do imaginário, marcados pela ação de

sujeitos que traçam paralelos entre tempos passados e situações atuais, certamente

beneficiados pela diversidade de recursos tecnológicos e a intergenericidade. E, nesta

20 Michael Giacchino nasceu em 10 de outubro de 1967 em Riverside, New Jersey, EUA. Ele é um

compositor, conhecido por Ratatouille (2007), Perdido (2004) e Carros 2(2011). É o primeiro compositor

de videogame indicado e premiado ao Oscar (ganhou em 2009 com sua trilha do aclamado Up: Altas

Aventuras). Disponível no site: http://www.imdb.com/name/nm0315974/. Acesso em 05 de junho de

2016.

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revisitação do passado, os novos títulos são mais complexos e carregados de certa dose

de ironia, um tom de humor-crítico.

Cada tom percebido é, claro, uma forma de realidade física (ainda que

invisível) mas que é ’acontece’ aos nossos corpos e que, ‘ao mesmo

tempo’, os ‘envolve’[...] Outra dimensão da realidade que acontece aos

nossos corpos de modo semelhante é o clima atmosférico.

(GUMBRECHT, 2014, p.11-13)

Podemos notar, ainda, que no resgate de títulos, gêneros e conceitos que tiveram

grande impacto social, a tecnologia digital tem sido uma ferramenta de alavancagem nas

produções, já que contribui na criação e modificação de cenários e personagens históricos,

como também proporciona grande eficácia na produção do imaterial e na incorporação

da magia, quer seja nas animações digitais, produções live-actions ou nos efeitos da

computação gráfica que, aplicadas aos filmes, respondem pelas maiores produções

cinematográficas da atualidade. São títulos que também apostam na produção do humor,

incorporam questionamentos contemporâneos, mas guardam o universo fantástico.

REFERÊNCIAS

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Argos, 2009.

ALTMAN, Rick, Los Generos Cinematograficos Barcelona: Paidós, 2000.

BORDWELL, David. O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos.

In: RAMOS, Fernão Pessoa. (Org.). Teoria Contemporânea do Cinema: documentário e

narratividade ficcional. São Paulo: SENAC: São Paulo, 2005, p. 278-279. vol. II.

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dos valores éticos de Aristóteles segundo Edgar Morin. 2010.p.11. Disponível no site

http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo. php?codArquivo=3040. Acesso em 18 de junho

de 2015.

FURTADO, E. J; AQUINO, D.V. O Baby Schema nos filmes de animação: análise

dos traços neotênicos na representação dos personagens infantis. Intercom- XXXVIII

Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2015. Disponível no site:

http://portalintercom.org.br/anais/nacional2015/busca.htm?query=baby. Acesso em 20

de abril de 2016.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença – o que o sentido não consegue

transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2010.

_____. Atmosfera, ambiência, stimmung: sobre um potencial oculto da literatura. Rio

de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2014.

HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século

XX. Trad. Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1985.

LUCENA JR, A. A arte da animação: técnica e estética através da história. Senac, São

Paulo, 2002, p.61.

MAFFESOLI, Michel. O tempo retorna: formas elementares da pós-modernidade. Rio

de Janeiro: Forense Universitária, 2012.