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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 1 A Fotografia Maranhense Contemporânea - Estudo de Caso da Série Na Trilha do Cangaço: O Sertão que Lampião pisou, de Márcio Vasconcelos 1 Maria Thereza Gomes de Figueiredo SOARES 2 Prof.ª Dr.ª Márcia Manir Miguel FEITOSA 3 Prof. Dr. José Ferreira JUNIOR 4 Universidade Federal do Maranhão, São Luís, MA Resumo Neste artigo pretende-se investigar a produção fotográfica contemporânea maranhense a partir do estudo de caso das fotografias do livro Na trilha do Cangaço: o sertão que Lampião pisou, realizadas pelo fotógrafo independente Márcio Vasconcelos, inseridas em um panorama de produção fotográfica conceitual do Maranhão quase invisível. A partir da análise do prêmio Marc Ferrez, se faz uma análise estatística da produção nacional da fotografia conceitual brasileira no período 2011-2015, dentro do qual está inclusa essa série. Também será abordada a ligação entre a fotografia documental e a fotografia do imaginário do Cangaço e possíveis clichês sobre o sertão. Palavras-chave Fotografia; Márcio Vasconcelos fotógrafo; Sertão brasileiro; Lampião Cangaço; Clichê fotográfico. 1. Introdução A fotografia maranhense tem se feito presente ao longo das décadas, desde os primórdios desta arte, porém escassamente documentada e salvaguardada. No mapeamento dos fotógrafos atuantes no país, integrantes do Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910), publicação de Boris Kossoy, os fotógrafos localizados no Maranhão, durante este período, somam 23 profissionais entre brasileiros e estrangeiros, incluindo nome do célebre autor das imagens da publicação Maranhão 1908 - Álbum Fotográfico de Gaudêncio Cunha. Portanto, o Maranhão sempre se fez presente na produção fotográfica nacional, de maneira quase 1 Trabalho apresentado no GP Fotografia do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFMA. Fotógrafa. Cineasta formada em Comunicação Social Cinema, pela UFF. É especialista em Artes Visuais: Cultura e Criação pelo Senac. Estudou Imagem na École Nationale Supérieure Louis Lumière (Paris). E-mail: [email protected]. 3 Profa Dra em Literatura Portuguesa pela USP. Profa Associada nível IV da Universidade Federal do Maranhão. Pós- Doutora em Estudos Comparatistas na Universidade de Lisboa. E-mail: [email protected] 4 Mestre e Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Pós-Doutor em Literatura Brasileira (FFLCH-USP). Professor Associado IV do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: [email protected]

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A Fotografia Maranhense Contemporânea - Estudo de Caso da Série Na Trilha do

Cangaço: O Sertão que Lampião pisou, de Márcio Vasconcelos1

Maria Thereza Gomes de Figueiredo SOARES2

Prof.ª Dr.ª Márcia Manir Miguel FEITOSA3

Prof. Dr. José Ferreira JUNIOR4

Universidade Federal do Maranhão, São Luís, MA

Resumo

Neste artigo pretende-se investigar a produção fotográfica contemporânea maranhense a

partir do estudo de caso das fotografias do livro Na trilha do Cangaço: o sertão que

Lampião pisou, realizadas pelo fotógrafo independente Márcio Vasconcelos, inseridas em

um panorama de produção fotográfica conceitual do Maranhão quase invisível. A partir da

análise do prêmio Marc Ferrez, se faz uma análise estatística da produção nacional da

fotografia conceitual brasileira no período 2011-2015, dentro do qual está inclusa essa

série. Também será abordada a ligação entre a fotografia documental e a fotografia do

imaginário do Cangaço e possíveis clichês sobre o sertão.

Palavras-chave

Fotografia; Márcio Vasconcelos – fotógrafo; Sertão brasileiro; Lampião – Cangaço; Clichê

fotográfico.

1. Introdução

A fotografia maranhense tem se feito presente ao longo das décadas, desde os

primórdios desta arte, porém escassamente documentada e salvaguardada. No mapeamento

dos fotógrafos atuantes no país, integrantes do Dicionário Histórico-Fotográfico

Brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910), publicação de Boris

Kossoy, os fotógrafos localizados no Maranhão, durante este período, somam 23

profissionais entre brasileiros e estrangeiros, incluindo nome do célebre autor das imagens

da publicação Maranhão 1908 - Álbum Fotográfico de Gaudêncio Cunha. Portanto, o

Maranhão sempre se fez presente na produção fotográfica nacional, de maneira quase

1 Trabalho apresentado no GP Fotografia do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente

do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFMA. Fotógrafa. Cineasta formada em

Comunicação Social – Cinema, pela UFF. É especialista em Artes Visuais: Cultura e Criação pelo Senac. Estudou Imagem

na École Nationale Supérieure Louis Lumière (Paris). E-mail: [email protected]. 3 Profa Dra em Literatura Portuguesa pela USP. Profa Associada nível IV da Universidade Federal do Maranhão. Pós-

Doutora em Estudos Comparatistas na Universidade de Lisboa. E-mail: [email protected] 4Mestre e Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Pós-Doutor em Literatura Brasileira (FFLCH-USP).

Professor Associado IV do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade

Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: [email protected]

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invisível, com quase nenhum estudo destinado, salvo os dedicados ao fotógrafo citado.

Possivelmente a razão maior reside da perda dos fotogramas dos períodos iniciais. Também

posso apontar como fatores que invisibilizam a história da fotografia maranhense a lacuna

de órgão responsável pelo armazenamento deste suporte artístico em São Luís, não tendo o

pesquisador acesso ao material ou à documentação correspondente.

A importância de se estudar a produção fotográfica maranhense se faz urgente e

necessária para preencher esses vazios, por isso dedico este artigo à análise da fotografia

contemporânea autoral independente do fotógrafo Márcio Vasconcelos, cuja carreira

consolidada e reconhecida se pautou em trabalhos documentais e conceituais há vinte e seis

anos. Para este texto foi escolhida a série Na trilha do Cangaço: o sertão que Lampião

pisou, projeto que iniciou partindo do desejo em realizar esse trajeto, por volta de 2008, e

culminou com a série do lançamento do livro homônimo em 2016.

Algumas das imagens icônicas de Lampião foram registradas em 1938 pelo mascate

sírio-libanês Benjamin Abrahão Botto que fez as vezes de fotógrafo e cineasta. Alguns

fotógrafos registraram os cangaceiros em período de atividade, assim como Lauro Cabral.

Para embasar o trabalho do fotógrafo Abrahão, utilizarei o artigo do pesquisador

Marcos Edílson de Araújo Clemente (2007). Neste artigo o autor fala sobre o cuidado de

Lampião com sua autoimagem e a publicidade em torno de si mesmo. Lampião possibilitou

ser fotografado e filmado em algumas ocasiões. Com a fama de seus feitos, essas imagens

circularam em mídias nacionais, o que despertou a atenção de Getúlio Vargas, que solicitou

a apreensão das imagens. Como resultado, grande parte do acervo fotográfico de Lampião

feito por Abrahão foi destruído por razões políticas.

O Cangaço permanece no imaginário do povo brasileiro, tendo ocorrido na primeira

metade do século XX, no nordeste, cujo fim teve início com a morte, em 1938, de Virgulino

Ferreira da Silva (Lampião), Maria Gomes de Oliveira (Maria Bonita) e 9 cangaceiros, e

findou dois anos mais tarde com a morte de Cristino Gomes da Silva Cleto (Corisco).

Passadas mais de sete décadas do fim do ocorrido, é evidente que o trabalho

idealizado por Márcio Vasconcelos abordou um rastro possível do caminho por onde

passou Lampião e seu bando. Para o artista, o objetivo do trabalho foi fortemente inspirado

pelo legado deixado por Abrahão e pretendeu revistar pontos estratégicos da trajetória

histórica do Cangaço, assim como do imaginário mitológico popular que gira em torna da

figura de Lampião e de outros lendários cangaceiros, como Maria Bonita, Corisco e Dadá,

para citar alguns, e o meio ambiente do sertão que se confunde com a caatinga.

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É necessário compreender que o projeto Na trilha do Cangaço: o sertão que

Lampião pisou trata de múltiplas formas transmidiáticas, que comportam: fotografia

impressa, site, textos, vídeo, livro e performance, no entanto, para este estudo será utilizado

apenas o livro homônimo.

No entanto, observou-se que há divergências de nomenclaturas no projeto, o que

resultou no título do site Na trilha do Cangaço: um ensaio fotográfico pelo sertão que

Lampião pisou, enquanto o do livro Na trilha do Cangaço: o sertão que Lampião pisou,

sendo este o qual as imagens aqui serão analisadas.

Retomando a questão de transmídia, é possível observar que na página do projeto,

Vasconcelos disponibilizou um número limitado de imagens, alguns textos e um vídeo. No

que tange às imagens do site, cujo subtítulo é O ensaio, o autor dividiu-o em categorias,

como veremos adiante. Porém, como forma de polarizar as temáticas, optou-se por uma

análise em duas partes que abrangesse o clichê e o documental de Lampião, pensado desta

forma: A trilha e O Cangaço, para evidenciar a dicotomia existente na percepção das

imagens.

Em A trilha, seguir-se-á pelos indícios do sertão e da caatinga, pelo imaginário que é

proposto pela iconografia acerca do Nordeste a partir da ideia de pertencimento e de

imagens que podem ser consideradas clichês. No que será indicado como O cangaço, serão

separadas as fotografias documentais do cangaço vivo: pessoas, lugares e objetos que

pertenceram ao movimento, como fonte de memória e identidade.

2. Sobre o projeto Na Trilha do Cangaço

Quando se trata de fotografia autoral, os artistas contemporâneos em atividade se

veem diante da variedade de possibilidades de novos territórios criativos. Ao se falar de Na

trilha do Cangaço: o sertão que Lampião pisou, é importante observar que o projeto

utilizou três superfícies fotográficas: o site do projeto (composto por imagens, textos e

vídeo), as imagens impressas expostas e a publicação de livro, o que configura um perfil de

transmídia. Esse conceito de variação do conteúdo associa vários suportes de comunicação

com o intuito de facilitar a divulgação nos meios.

O site serve para este artigo como fonte de dados legítima com vistas a auxiliar na

identificação e análise das imagens do livro Na trilha do Cangaço: o sertão que Lampião

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pisou. O trabalho de Vasconcelos, na criação destas imagens, é de caráter documental

majoritariamente, com algumas ressalvas a serem tratadas posteriormente.

Por se tratar de um projeto de caráter documental, mesmo com possíveis interferências,

KOSSOY (2010, p. 116) afirma:

O registro ou o testemunho fotográfico não é isento e sua verdade é

apenas relativa, icnográfica strictu sensu. Sua materialização sempre se

fez a partir do processo de criação do fotógrafo, um processo, pois,

marcado pela subjetividade. (KOSSOY, 2010, p. 116)

O perfil deste projeto reforça tanto o caráter independente quanto o autoral, marcas

da trajetória de Vasconcelos. A ideia inicial de Márcio Vasconcelos surgiu de um desejo

pessoal de realizar o registro, como o próprio nome já remete. O fotógrafo se refere ao

percurso como trilha imaginária. A pesquisa durou dois anos (2008 e 2009), mas foi

somente no ano seguinte, com o anúncio do XI Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia,

categoria “Documentação fotográfica / Registro das transformações do cotidiano na

sociedade”, que o projeto teve início efetivamente. O fotógrafo percorreu, ao longo de dois

meses, aproximadamente 3.000 km em seu próprio veículo à procura deste rastro possível.

O mapa animado disponibilizado no site traça a rota que passou por sete estados e incluiu as

cidades, em ordem cronológica: partiu do Sítio Passagem das Pedras em Serra Talhada,

seguiu para São José do Belmonte, Juazeiro do Norte, Triunfo, Santa Cruz da Baixa Verde,

Afogados da Ingazeira, São José do Egito, Buíque, Água Branca, Delmiro Gouveia, Olha

d´Água do Casado, Piranhas, Paulo Afonso, Canindé de São Francisco, findando,

simbolicamente, na Grota do Angico, em Poço Redondo.

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FIGURA 1 - Mapa da rota realizada pelo fotógrafo Márcio Vasconcelos

Fonte: http://www.natrilhadocangaco.com.br/mapa.php

2.1 O Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia

O prêmio “Marc Ferrez” governamental é concedido anualmente pela Fundação

Nacional de Artes e é uma das maiores premiações monetárias para produção independente

da fotografia brasileira. O prêmio é constituído de edital público, consistindo em 3

categorias: módulo A - Projeto de livre criação fotográfica (anteriormente nominada

Pesquisa, experimentação e criação em linguagem fotográfica), módulo B - Documentação

Fotográfica do Brasil (anteriormente nominada Documentação fotográfica/ registro das

transformações do cotidiano na sociedade) e módulo C - Produção de reflexão crítica sobre

fotografia (anteriormente nominada Produção de conhecimento por meio de apoio ao

pensamento crítico e teórico no campo da fotografia). Ao comparar cinco anos (2011-

2015), é possível verificar que, mesmo com a política de descentralização da produção

nacional, ainda predomina a produção oriunda do grande eixo do país, ou seja, São Paulo e

Rio de Janeiro.

As estatísticas foram tabuladas a partir da observação dos dados disponibilizados no

site do prêmio, sendo que a cada edição a equidade de prêmios se manteve nas três

categorias, porém a cada ano a quantidade prêmios por categoria variou. Assim, na XI

edição, foram distribuídos 12 prêmios nas 3 categorias, totalizando 36 prêmios. No ano

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seguinte, a quantidade aumentou para 15, resultando em 45 prêmios. Nos dois anos

subsequentes, a quantidade de prêmios por categoria fixou-se em 6, reduzindo-se a 4 na XV

edição.

Num total de 129 prêmios, 64,24% foram para projetos da região sudeste (somente o

estado de São Paulo corresponde à mais da metade desse valor). Para a região nordeste, a

fatia se divide entre os estados, não sendo contemplado, contudo, o estado de Sergipe. A

disparidade da participação nordestina na premiação corresponde a 17,05%. O Maranhão

recebeu 3 prêmios: 2 para projetos de Márcio Vasconcelos (o já citado e Visões de um

poema sujo) e 1 para a Revista Insight Photo.

É possível observar, de acordo com os dados mencionados, que a probabilidade de

trabalhos maranhenses, ou “fora-do-eixo cultural” serem premiados são menores em relação

aos grandes centros de produção artística, tais como os estados do Rio de Janeiro, São

Paulo, Distrito Federal, a região sul e fortes polos fora do eixo: Pará, Pernambuco, Ceará e

Bahia.

2.2 O projeto do site e a publicação do livro

Ao falar do projeto Na trilha do cangaço, trata da ideia geral do projeto, que se

desdobrou em vários produtos: exposição fotográfica física, site (vídeo, textos e

disponibilização de imagens), livro e performance durante o lançamento do livro. Primeiro

a contemplação do prêmio “Marc Ferrez” para a produção da série de fotografias,

posteriormente o projeto de publicação do livro, via lei de incentivo.

Ao se centrar especificamente na fotografia, o site do projeto disponibilizou 60

imagens sob o título “Ensaios”, as subdivisões: “personagens”, “caatinga”, “lugares”, “fé” e

“outras coisas”. Porém, escolheu-se o que classificou-se em diferentes segmentos: A Trilha

e O Cangaço. Para a análise das fotografias do projeto, utilizei aquelas pertencentes ao

livro. Ao todo o livro comporta 2 reproduções do fotógrafo Benjamin Abrahão e 62

imagens de Vasconcelos. É importante ressaltar que várias imagens componentes do site

não foram selecionadas pela curadoria para integrar o livro, assim como a publicação

impressa traz imagens inéditas de publicação.

A escolha das fotografias que compõem o livro fora feita, segundo o fotógrafo, pela

curadoria, levando em consideração a capacidade espacial do livro. A curadoria é um

processo fundamental na edição final de um trabalho artístico, cabendo a ela a narrativa

visual do conceito pensado pelo artista.

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No caso da curadoria do livro de Vasconcelos, coube à fotógrafa Maureen Bisiliat.

Esta foi a primeira experiência de trabalho conjunto dos dois fotógrafos.

2.3 Maureen Bisilliat

Nenhuma arte é isenta de contaminação do seu criador. Todo artista interfere naquilo

que produz. No caso da série, o fotógrafo utiliza métodos próprios de inclusão e exclusão.

Especificamente no caso do livro publicado, o crivo passou pelas mãos da renomada

fotógrafa Maureen Bisilliat.

A fotografia da inglesa naturalizada brasileira, Maureen Bisilliat, ecoa pontualmente

naquela produzida por Vasconcelos. De modo superficial, Bisilliat fez notórios registros da

etnia Xingu, assim como Márcio Vasconcelos registrou a festa do Maqueado, da etnia

Tenetehara ou mesmo registros de bumba-meu-boi. Porém, o elo que se fortalece é o que se

refere à ligação da fotografia com a literatura. A fotógrafa realizou uma série intitulada A

João Guimarães Rosa, fazendo uma leitura pautada na obra Grande Sertão: Veredas. A

ideia surgiu ao manter contato pessoal com o escritor, que culminou na publicação do livro

citado, no ano de 1966, sob apresentação de imagens de Bisilliat e trechos de Rosa. O

acervo desta série foi adquirido pelo Instituto Moreira Sales (IMS).

FIGURA 2 - Imagens da série sobre Grande Sertão: Veredas, de Maureen Bisilliat

Fonte: Acervo do Instituto Moreira Salles

É importante observar que a interferência editorial de Bisilliat só surgiu no momento

do projeto de publicação do livro, portanto, não houve interlocução entre os dois artistas no

decorrer do processo artístico de feitura das imagens e da criação do site de Vasconcelos. O

fotógrafo, contudo, já conhecia o trabalho da fotógrafa inglesa anteriormente.

3. A Trilha e o Cangaço: a trilha imaginária e a real

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Entende-se que é possível dividir o trabalho do fotógrafo em dois campos distintos:

um permeado por imagens atuais que replicam as imagens clichês do sertão e da caatinga

(A Trilha) e outro que registra, na atualidade, o que ainda permanece vivo em relação à

memória direta de Lampião e dos cangaceiros (O Cangaço).

3.1 A Trilha

A Trilha, que aqui vai ser pontuada, se refere ao imaginário dos conceitos que

envolvem Cangaço, sertão, caatinga e seus clichês. Para isso selecionou-se algumas

imagens do livro para serem analisadas a partir da classificação aqui feita.

O clichê da fotografia acerca das terminologias “caatinga nordestina”, “sertão

nordestino”, “Cangaço” e “Lampião” podem ser exemplificadas pelas imagens abaixo:

FIGURA 3 – Pesquisa com o escritor “caatinga nordestina”.

Fonte: Google imagens. Autorias não identificadas.

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FIGURA 4 – Pesquisa com o escritor “sertão nordestino”.

Fonte: Google imagens. Autorias não identificadas.

FIGURA 5 – Pesquisa com o escritor “Cangaço”.

Fonte: Google imagens. Autorias não identificadas.

FIGURA 3 – Pesquisa com o escritor “Lampião”.

Fonte: Google imagens. Autorias não identificadas.

Como é possível observar, as primeiras imagens que aparecem pelo motor de busca

traduzem as imagens que denomino “clichês”. Na ordem e em sequência, é possível

visualizar: vegetação com preponderância de cactos, plantas secas, vaqueiros e bovinos, a

busca pela água com balde, a aridez do solo, fotos do bando de Lampião e retratos de

Lampião e atores com figurinos inspirados no cangaceiro.

É relevante observar que todas as fotografias foram tiradas durante o dia para

enfatizar a luz solar, a sensação de calor reforçada pelas eventuais nuvens esparsas na

paisagem. A opção de Vasconcelos, ao realizar suas imagens, muitas em interiores de

residências, contrapõe esses clichês, assim como imagens noturnas. Outro dado importante

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que necessita um olhar mais apurado vem da opção pessoal do fotógrafo por não utilizar luz

artificial em seus registros, por isso o artista optou por realizar suas imagens com luz

natural ou com a luz ambiente.

FIGURA 7 - Imagens realizadas à noite em ambientes internos.

Fonte: VASCONCELOS, 2016.

Márcio Vasconcelos fez sua própria leitura da trilha do sertão e da caatinga,

conceitos quase simbióticos. Os clichês que se seguem não são possíveis de serem

separados da realidade nordestina no percurso proposto: a representação da seca, a miséria,

a vegetação e o sertanejo.

FIGURA 8 – Imagens clichês do sertão nordestino.

Fonte: VASCONCELOS, 2016.

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Entende-se como clichê algo que é previsivel, muitas vezes visto, óbvio. Ao se

pensar no sertão e/ou na caatinga, como dito anteriormente, são imagens imaginárias que se

confudem, apesar de serem conceitos complexos geograficamente (bioma, climatologia,

vegetação etc), temas que remetem à seca, ao chão árido, à pobreza extrema, ao cacto e ao

próprio sertanejo vestindo roupas de couro para se proteger das vegetações ásperas,

espelhos do meio ambiente. O imaginário se faz presente coletivamente para aqueles

familiarizados com o tema. Vistas deste ponto, as imagens podem se caratcetizar enquanto

óbvias, porém para os não iniciados, não. Outro fator que deve ser apontado é que um

fotógrafo nunca fará exatamente a mesma foto, tal como ocorre com a lembrança/ memória

de cada pessoa – por mais que sejam parecidas, nunca serão exatamente iguais, portanto é

um ponto de vista único.

Na imagem abaixo, o “cangaceiro em ação” é um guia turístico local que veste-se de

forma apenas figurativa (não se trata de um traje original) para simular o tema da série.

FIGURA 9 - Imagem fictícia: cangaceiro em atuação

Fonte: VASCONCELOS, 2016.

A figura 9 se destaca dentre as demais por se tratar de uma fotografia de

representação ficcional de um evento real. Em contraste com a imagem-rastro “verdadeira”

do cangaceiro do bando de Lampião, o simulacro deste personagem ambienta o contexto,

mas pode conter elementos errôneos na leitura aprofundada desta imagem.

Como contraponto à ficção no livro, há imagens de elementos reais que pertenceram ao

movimento, reforçando o caráter documental do projeto.

3.2 O Cangaço

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Umas das evidências fotográficas tidas como artísticas é o poder de impacto que

pode causar, contendo em si um campo de tensões – o que é característico a qualquer obra

de arte. A imagem tem o poder de agência pela sua própria potência.

FIGURA 10 - Imagem não clichê: céu com nuvens de chuvas e crânio de boi pintado

Fonte: VASCONCELOS, 2016.

Segundo Vasconcelos, o fotógrafo indicou que o registro do crânio foi realizada tal

como o objeto foi encontrado. Não houve interferência para adornar o objeto. É importante

observar a importância da repetição do elemento bovino nesta série, como enfatiza o artista,

serviu para mostrar a constante pobreza da região. Acerca de uma das fotografias que

constam no livro, uma queixada de boi sobre a terra, o artista assinalou: “Representa a seca,

a fome, o sol causticante, a terra vermelha e seca” (VASCONCELOS, 2016). Ainda sobre

os registros de boi, o animal aparece em diversas imagens: bezerro morrendo nos braços de

uma garota, a ossada de mandíbula (queixada), crânio pintado, a ossada ainda com couro do

animal morto.

Acerca da sequência de imagens da garota chorando com o bezerro, o fotógrafo

discorreu: “Eu passava de carro e vi esta cena na beira da estrada. Parei e fiquei

fotografando por vários minutos, foi uma triste coincidência, mas que demonstra um fato

comum no sertão” (2016).

É possível associar uso do conceito de memória coletiva, de Maurice Halbwachs,

cuja ideia de que a memória tem relação com o coletivo, afetividade e pertencimento, e o

intuito de Vasconcelos, enquanto nordestino, e a memória por ele reconstruída, ou seja, o

resgate dele, sobre o conceito de Cangaço.

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A fotografia que entende-se como documental é aquela cujo referente é assimilado

pelo leitor de forma clara e objetiva. Segundo Kossoy (2001), existem preconceitos em

relação ao uso da fotografia enquanto fonte histórica. Ele cita:

A informação registrada visualmente configura-se num sério obstáculo

tanto para o pesquisador que trabalha no museu ou arquivo como ao

pesquisador usuário que frequenta essas instituições. O problema reside

justamente na sua resistência em aceitar, analisar e interpretar a

informação quando esta não é transmitida segundo um sistema codificado

de signos em conformidade com os cânones tradicionais da comunicação

escrita. (KOSSOY, 2009, p. 30)

Márcio Vasconcelos foi à busca de pessoas e objetos referentes ao movimento

cangaceiro, dos quais destaco as figuras do cangaceiro conhecido como “Candeeiro” –

Manuel Dantas Loiola (falecido em 2013), a casa onde Maria Bonita residiu, os óculos de

Lampião ou mesmo a emblemática e já ecoada imagem da Grota do Angico, como seguem

abaixo.

FIGURA 11 – Imagens documentais.

Fonte: VASCONCELOS, 2016.

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4. Considerações finais

A fotografia criou, ao longo da história, seus próprios clichês pictóricos, que são

benvindos, afinal, eventualmente são invitáveis em qualquer campo de criação. O que o

trabalho de Vasconcelos propôs foi um registro documental por uma região que está no

imaginário do brasileiro, que compreende a caatinga e o sertão. Porém o que se observou,

pontualmente, foram eventuais repetições de imagens de estereótipos nordestinos

vinculados à miséria, ao sol e à seca.

É possível afirmar que o trabalho de Vasconcelos dialoga intimamente com os já

realizados por Maureen Bisiliiat e cuja curadoria auxiliou a compreender melhor a narrativa

proposta pelo fotógrafo, visto que a fotógrafa inglesa também propôs ponto de vista pessoal

acerca do sertão.

De certo modo, a realidade nordestina foi fortemente assimilada no trabalho do

artista enquanto maranhense, pois o estado do Maranhão possui diversos biomas inclusive o

sertão, além de pontuar entre os estados mais pobres do país, refletindo assim a realidade

dos outros estados.

Outro clichê observado se refere às premiações, em nível nacional, destinadas ao

grande eixo, especificamente Rio de Janeiro e São Paulo. Aos poucos, timidamente, a

fotografia maranhense segue o rumo em busca de seu lugar de projeção no panorama da

fotografia brasileira.

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Referências

CLEMENTE, Marcos Edílson de Araújo. Fotografia e história: imagens fotográficas do cangaço.

Fênix - Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, vol. 4, n. 4, p. 1-18, nov./dez. 2004.

COSTA, Helouise. SILVA, Renato Rodrigues da. A fotografia moderna no Brasil. São Paulo:

Cosac Naify, 2004.

FUNDAÇÃO NACIONAL DE ARTES. Disponível em: < www.funarte.gov.br>. Acesso em 21 jun

2016.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

Instituto Moreira Sales. Disponível em: < www.ims.com.br>. Acesso em 23 jun 2016.

KOSSOY, Boris. Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografia

no Brasil (1833-1910). São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002.

________. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

VASCONCELOS, Márcio. Na trilha do Cangaço: o sertão que Lampião pisou. São Paulo: Vento

Leste, 2016.

VASCONCELOS, Márcio. Na trilha. [mensagem pessoal] Mensagem recebida por:

<[email protected]>. em: 01 jul 2016.. Entrevista concedida a Maria Thereza G. de F.

Soares.

VASCONCELOS, Márcio. A história do cangaço entra em cartaz no Recife. Folha de

Pernambuco, Recife, 1 jun. 2016. Entrevista concedida a Carol Botelho. Disponível em:

<http://www.folhape.com.br/cultura/2016/6/a-historia-do-cangaco-entra-em-cartaz-no-recife-

0452.html>. Acesso em: 2 jun. 2016.