Imprensa feminista x ativismo midiático: uma análise do jornal Fêmea

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - DCOS IMPRENSA FEMINISTA E ATIVISMO MIDIÁTICO: UMA ANÁLISE DO JORNAL FÊMEA SÓSTINA SILVA SANTOS SÃO CRISTÓVÃO 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - DCOS

IMPRENSA FEMINISTA E ATIVISMO MIDIÁTICO: UMA ANÁLISE DO JORNAL FÊMEA

SÓSTINA SILVA SANTOS

SÃO CRISTÓVÃO 2014

SÓSTINA SILVA SANTOS

IMPRENSA FEMINISTA E ATIVISMO MIDIÁTICO: UMA ANÁLISE DO JORNAL FÊMEA

Monografia apresentada como recurso parcial para obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social com Habilitação Jornalismo.

ORIENTADORA: Profª. Drª. Sonia Aguiar Lopes

AGOSTO - 2014

SÃO CRISTÓVÃO - SERGIPE

SÓSTINA SILVA SANTOS

IMPRENSA FEMINISTA E ATIVISMO MIDIÁTICO: UMA ANÁLISE DO JORNAL FÊMEA

Monografia apresentada como recurso parcial para obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social com Habilitação Jornalismo.

Aprovada em / /

BANCA EXAMINADORA:

ORIENTADORA: Profª. Drª..Sonia Aguiar Lopes

Universidade Federal de Sergipe

EXAMINADOR: Prof. Dr. Luiz Gustavo Pereira de Souza Correia Universidade Federal de Sergipe

EXAMINADORA: Profª. Msc. Erna Raisa Lima Rodrigues de Barros Universidade Federal de Sergipe

Aos meus pais Osmária de Lima e Manoel Silva pelo sonho construído juntos e que

aqui encontra materialidade.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, por ser minha primeira fonte de força, amor, luz e sabedoria.

Agradeço aos meus pais Osmária de Lima e Manoel Silva que desde cedo me

incentivaram aos estudos de todas as maneiras que estiveram ao alcance deles. De

maneira especial à minha mãe, que me ensinou a ler e a escrever, antes mesmo que

eu frequentasse o ambiente escolar.

Aos meus irmãos, que acreditaram em mim, me apoiaram e não me deixaram dar-se

por vencida em momentos que considerei o fardo pesado.

A todos os meus professores, que me ajudaram a construir diferentes saberes e não

enxergar somente sombras na “caverna de Platão”.

À professora Sonia Aguiar, por ter me aceitado há alguns anos, enquanto

participante de seu projeto de iniciação científica, e a partir de então ter me

concedido uma grande oportunidade de aprendizado o qual levo em minha bagagem

para o resto de minha vida.

Ao meu amigo e irmão por laços de amor Erivaldo Júnior, cujo nosso encontro foi um

presente também proporcionado pela iniciação científica. Obrigada pela amizade,

pelo amor de irmão, pela força e incentivo de sempre.

À minha amiga Alizete, pela inspiração enquanto história de vida e por me encorajar

sempre em minha trajetória acadêmica.

À minha amiga Ju, pela fraternidade e paciência quando busquei seu contato muitas

vezes desesperançosa.

A todos que contribuíram de maneira direta ou indireta nesse percurso.

Principalmente nos dias que precisei renunciar à vida lá fora, para me dedicar a esta

pesquisa. Mesmo perto ou distantes geograficamente, muitos estiveram bastante

presente. Meu muito Obrigada!

RESUMO

Este estudo tem como objetivo analisar o conteúdo do jornal Fêmea, produzido e veiculado pela ONG CFEMEA, de Brasília, e verificar o uso do jornalismo como uma estratégia de ação política para as questões de gênero. Para isso, foram selecionadas as edições publicadas de janeiro de 2011 até dezembro de 2013. A escolha desse recorte temporal se deve ao fato de o ano de 2011 representar a volta da Marcha das Margaridas e o surgimento da Marcha das Vadias, com participação ativa do gênero feminino, individualmente, e de grupos organizados de mulheres. Desde então, outros atos públicos de mulheres têm sido organizados todos os anos para reivindicar respeito e autonomia. Nesse sentido, discute-se a imprensa feminista como uma modalidade da comunicação alternativa e a produção jornalística da organização feminista responsável pelos jornais analisados, na perspectiva do agendamento do debate público sobre as lutas das mulheres.

PALAVRAS-CHAVE: Feminismo, Imprensa Feminista, Comunicação Alternativa, CFMEA, Jornal Fêmea. .

ABSTRACT

This study aims to analyze the contents of female newspaper, produced and aired by NGOs CFEMEA, from Brasilia, and verify the use of journalism as a strategy of political action for gender issues. For this, we selected the editions published from January 2011 until December 2013. Choosing this time frame is due to the fact that the year 2011 represents the March of Daisies back and the emergence of the March of Bitches, with active participation of the genus Ladies, individually, and organized groups of women. Since then, other public acts of women have been organized every year to demand respect and autonomy. Accordingly, we discuss the feminist press as an alternative mode of communication and journalistic production of feminist organization responsible for newspapers analyzed from the perspective of scheduling the public debate about women's struggles.

KEYWORDS: Feminism, Feminist Press, Alternative Communication, CFMEA, Femea Journal.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO …………………………………………………………………. 9

2. METODOLOGIA ........................................................................................ 12

3. MOVIMENTOS SOCIAIS E IDENTIDADE ................................................. 17

3.1 Identidades em rede .............................................................................. 21

3.2 Cidadania e instrumentos de luta ......................................................... 23

3.3 O movimento de mulheres .....................................................................26

3.4 A ONG CFMEA ........................................................................................ 30

4. COMUNICAÇÃO ALTERNATIVA ..............................................................33

4.1 Imprensa Feminista ................................................................................ 38

4.2 Comunicação do CFMEA ........................................................................42

5. ANÁLISE DE CONTEÚDO NO JORNAL FÊMEA .....................................44

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................50

7. REFERÊNCIAS ...........................................................................................51

8. ANEXOS ..................................................................................................... 54

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1. INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem como objetivo analisar o conteúdo do jornal feminista Fêmea

e verificar nesse contexto o uso do jornalismo como uma estratégia de ação política.

Para isso, foram selecionadas as edições publicadas de janeiro de 2011 até

dezembro de 2013. A escolha desse recorte temporal se deve ao fato de o ano de

2011 representar a volta das grandes marchas às ruas, com participação ativa do

gênero feminino, individualmente, e de grupos organizados de mulheres. A primeira

“marcha das vadias” no Brasil, por exemplo, ocorreu em São Paulo, em junho de

2011.

Desde então, outros atos públicos de mulheres têm sido organizados todos os

anos para reivindicar respeito e autonomia. Nesse sentido, discute-se a imprensa

feminista como uma modalidade da comunicação alternativa e a produção

jornalística da organização feminista responsável pelo periódico analisado, na

perspectiva do agendamento do debate público sobre as lutas das mulheres. Além

disso, o estudo também se propõe a entrelaçar os estudos de gênero e feminismo

com o campo na comunicação, uma combinação ainda pouco explorada.

A escolha desse tema tem origem, em primeiro lugar, na simpatia da

pesquisadora pelo feminismo enquanto postura ideológica e social. Segundo, do

conhecimento gerado sobre os chamados „novos movimentos sociais‟ bem como

redes de movimentos sociais, durante um projeto de iniciação científica, do qual

participou.

Durante o processo de desenvolvimento deste estudo, uma busca nas bases

de dados da Biblioteca Central (BICEN) da Universidade Federal de Sergipe, pelas

palavras-chaves “comunicação alternativa,“ “imprensa alternativa”, “feminismo” e

“movimento feminista”, demonstrou pouco acervo e pouca produção sergipana sobre

essas questões.

A análise parte do pressuposto de que o movimento feminista, desde sua

consolidação, reconheceu o papel da mídia na produção de estereótipos de gênero

e que a partir da visão crítica sobre os meios de comunicação, começou a se

organizar midiaticamente, criando a sua „comunicação alternativa‟.

A escolha do jornal Fêmea é justificada por pertencer a uma ONG feminista, o

Centro Feminista de Estudos e Assessoria, que quase sempre é consultada pela

imprensa tradicional como fonte jornalística, apesar de ter como base pontos de vista

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políticos e sociais que se contrapõem aos valores mediados nos grandes veículos.

Outros fatores também influenciaram na escolha, como a disponibilização do jornal

na íntegra para download, sem necessitar assinatura.

A pesquisa visa contribuir não só para o conhecimento acadêmico mas também

para o CFMEA, no sentido de que os resultados encontrados aqui sirvam como

ferramenta, ou espelho, de suas articulações e possíveis auto avaliações que

repercutam direta ou indiretamente nas ações.

Por fim, o presente trabalho busca discutir a experiência lançada por uma

organização feminista na perspectiva da comunicação alternativa. Nesse sentido, o

referencial teórico que dá suporte a esta pesquisa engloba movimentos sociais;

movimento feminista; comunicação alternativa e imprensa feminista.

O primeiro capítulo desse estudo trata da metodologia usada, que é a análise

de conteúdo. Autores como Bardin, Herscovitz e Fonseca Júnior foram utilizados

com a finalidade de contextualizar o método sócio-historicamente no campo da

comunicação, bem como a sua aplicabilidade nas investigações científicas.

No segundo capítulo, buscou-se levantar um traçado sócio-histórico dos

movimentos sociais no Brasil, a partir da década de 1970, relacionando-os com os

aspectos de identidade e cidadania, que marcaram essa trajetória. Para isso,

trabalhou-se com autores como Maria da Glória Gohn, Manuel Castells, Alberto

Melucci, Ruth Cardoso, entre outros. Neste capítulo também foi trabalhado, de

maneira específica, o movimento feminista, por meio de Céli Pinto, Cythia Sarti,

Maria da Glória Gohn, entre outros. Nesse mesmo capítulo, foi contada a história do

CFMEA enquanto organização de cunho feminista. A trajetória, objetivos, desafios e

eixos de ação pelos quais atua foram destacados.

Já no terceiro capítulo aborda-se a comunicação alternativa e a imprensa

feminista. Ambos contextualizados no cenário político-social em que se

desenvolveram os movimentos sociais, e observadas as diferenças ideológicas que

separava a imprensa feminista e o feminismo, dos demais veículos alternativos.

Autores como John Downing, Regina Festa, Máximo Simpson Grinberg, entre outros,

ancoraram a construção desse capítulo. Ainda nesse capítulo foi feita a análise do

jornal Fêmea, periódico produzido pelo CFMEA, que reflete as características dos

movimentos que se desenvolveram nos anos 1990, como apontam os autores aqui

estudados.

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Durante a investigação do jornal Fêmea aspectos técnicos e editoriais foram

observados em menor ênfase, uma vez que o enfoque foi sobre o conteúdo editorial,

a orientação editorial das publicações, os atores político-sociais e as temáticas

predominantes. :Trata-se, portanto, de uma leitura sobre o viés político e as

estratégias midiáticas da organização feminista, de modo a reconhecer o jornalismo

alternativo como espaço de construção de seu próprio discurso.

Nesse processo de análise, foi encontrado um outro trabalho realizado em

2004, cujo objetivo também era analisar o conteúdo do jornal Fêmea. Entretanto,

essa análise tinha como recorte temporal de 1992 a 2002. Em decorrência disso, os

dados dessa pesquisa são apontados neste trabalho e comparados com os aqui

encontrados.

Dessa forma, a partir do levantamento bibliográfico pertinente a toda temática

da pesquisa, feito em conjunto com a orientadora, foi possível proceder à análise,

com embasamento teórico, conteúdo analisado e por fim, possíveis conclusões.

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2. METODOLOGIA : ANÁLISE DE CONTEÚDO

O corpus desta pesquisa é constituído pelas oito edições do jornal Fêmea

publicadas entre janeiro de 2011 e dezembro de 2013. A escolha desse recorte

temporal é justificada pela volta das manifestações sociais nas ruas em 2011, a

exemplo da “marcha da maconha”, o surgimento da “marcha das vadias” e a

“marcha da liberdade”. Desde então, atos públicos de mulheres têm sido

organizados para reivindicar respeito e autonomia. O jornal Fêmea tem periodicidade

trimestral e é produzido pelo Centro de Estudos Feministas e Assessoria (CFemea),

uma ONG cuja sede fica em Brasília. Para responder os questionamentos deste

trabalho optou-se pela Análise de Conteúdo como metodologia de coleta e análise

de dados.

Em seu prefácio, Laurence Bardin (2011, p. 15) define a Análise de Conteúdo

como “um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez mais sutis em

constante aperfeiçoamento, que se aplicam a “discursos” (conteúdos e continentes)

extremamente diversificados.” Herscovitz (2010, p.123) complementa ao afirmar que

o procedimento da análise do conteúdo pode ser utilizado de modo específico no

jornalismo, com o intuito de detectar tendências e modelos na análise de critérios de

noticiabilidade, enquadramentos, agendamentos, bem como para descrever e

classificar produtos, gêneros e formatos jornalísticos, determinar características da

produção de indivíduos, grupos e organizações para identificar elementos típicos,

exemplos representativos e disparidades e também para paragonar o conteúdo

jornalístico de veículos distintos em diferentes culturas.

Os pesquisadores que utilizam a análise de conteúdo são como detetives em busca de pistas que desvendem os significados aparentes e\ou implícitos dos signos e das narrativas jornalísticas, expondo tendências, conflitos, interesses, ambiguidades ou ideologias presentes nos materiais examinados. (HERSCOVITZ, 2010, p.127)

Bardin (2011, p.21) destaca que o primeiro teórico a apresentar a análise de

conteúdo foi Harold Lasswell, cientista político estadunidense que se dedicou a

estudos sobre imprensa e propaganda desde 1915. Para Herscovitz (2010, p. 124),

foi Lasswell quem, ao lado de Paul Lazarsfeld, definiu a base teórica dessa

ferramenta, que, em meados das décadas 1920 e 30 enfatizava, sobretudo,

procedimentos sistemáticos e quantitativos, os quais buscavam investigavar da

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mídia conteúdos, formatos, tamanhos, símbolos bem como padrões sintáticos e

semânticos.

Tais aspectos configuram a herança do positivismo de Augusto Comte e do

neopositivismo dos intelectuais que integravam o Círculo de Viena. Para Fonseca

Junior (2012, p. 281), essa tendência à quantificação, característica das ciências

exatas, se dá em decorrência, sobretudo, da consolidação da análise de conteúdo

nos Estados Unidos, na primeira metade do século XX, como forma de contestação

à antiga análise de texto, que tinha a subjetividade como essência da técnica

(KIentz, 1973, p.10 apud Fonseca Júnior, 2012, p. 282). De acordo com este autor,

os primeiros trabalhos da análise de conteúdo estão ligados ao desenvolvimento do

sensacionalismo midiático, nos Estados Unidos, século XIX. As principais

inquietações a serem respondidas pelo método nesse campo de conhecimento, até

o século XX, eram relativas à opinião pública e à propaganda política.

A Escola de Jornalismo de Colúmbia dá o pontapé de saída e multiplicam-se assim os estudos quantitativos dos jornais. É feito um inventário das rubricas, segue-se a evolução de um órgão de imprensa, mede-se a o grau de “sensacionalismo” dos seus artigos, comparam-se os semanários rurais e os diários citadinos. Desencandeia-se um fascínio pela contagem e pela medida (superficie dos artigos, tamanho dos títulos, localização na página). (BARDIN, 2011, p. 21)

No entanto, foi durante a segunda guerra mundial que a técnica de análise de

conteúdo alcançou seu apogeu. Conforme Bardin, 1988; Kientz, 1973 apud Fonseca

Júnior (2012, p. 283), nesse período, 25% das pesquisas com esse método

estiveram a serviço do governo americano com o objetivo de descobrir agências de

notícias e periódicos que estariam fazendo propaganda subversiva, bem como para

monitorar transmissões radiofônicas internas de nazistas.

Na década de 1950, a análise de conteúdo da mídia se popularizou e passou a

examinar temas como racismo, violência e preconceito contra as mulheres.

(MacNAMARA, 2003 apud Herscovitz 2010, p.124). Nesse mesmo período,

conforme Herscovitz (2010, p. 125), a análise de conteúdo se consagrou como

método eficaz para investigar a mídia, por meio de “palavras, frases, parágrafos,

imagens ou sons”, e inferências sobre tais itens. No entanto, é nesse mesmo período

que recebe críticas relacionadas ao viés quantitativo dessa ferramenta e pela ênfase

dada aos conteúdos explícitos.

Bardin (2011, p.144) acrescenta que nesse período também se iniciou uma

discussão que questionava e comparava os procedimentos quantitativos e os

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qualitativos, e se estes últimos seriam aplicáveis na análise de conteúdo. Na visão

de Bardin (2011, p.144), o fato de ser usada como método de diagnóstico sobre

determinado fato não faz da análise de conteúdo um procedimento obrigatoriamente

quantitativo.

A abordagem quantitativa, como explica Bardin (2011, p. 145), constitui- se na

obtenção de dados descritivos por meio de métodos estatísticos, sendo, segundo a

autora, útil nas fases de verificação de hipóteses por ser exata e rígida. Por outro

lado, a análise qualitativa funciona, sobretudo, sobre um corpus de pesquisa mais

limitado, dentro de categorias mais restritas. O problema da abordagem quantitativa

reside na possibilidade de as hipóteses serem influenciadas pela visão particular do

pesquisador, “por aquilo que o analista compreende da significação da mensagem”.

Nesse sentido, Herscovitz (2010, p.126) assinala que a tendência do contexto

atual da análise de conteúdo é a hibridez, ou seja, é a integração entre a perspectiva

quantitativa e a qualitativa, de maneira que sejam observados tanto os conteúdos

manifestos (visível) como os latentes, “para que se compreenda não somente o

significado aparente de um texto, mas também o significado implícito, o contexto

onde ele ocorre, o meio de comunicação que o produz e o público ao qual ele é

dirigido” (HERSCOVITZ, 2010, p. 126). Essa visão parte da ideia de que os textos

são polissêmicos e por isso produzem múltiplas interpretações, por diferentes

públicos. No entanto, Fonseca Júnior (2012, p.284) alerta que a depender do

pesquisador, suas ideologias e interesses, um desses aspectos (qualitativo e

quantitativo) pode ser mais contemplado que outro numa pesquisa.

A perspectiva qualitativa adquiriu espaço dentro da análise de conteúdo,

sobretudo, com a introdução da “inferência”, que consiste numa “operação lógica

destinada a extrair conhecimentos sobre os aspectos latentes da mensagem

analisada” (Fonseca Júnior, 2012, p. 284). Dessa maneira, ao se debruçar sobre os

mecanismos ocultos na mensagem, a inferência acabou contribuindo para amenizar

as características do positivismo. Herscovitz (2010, p. 127), destaca que melhores

resultados de análise de conteúdo em jornalismo são obtidos quando a análise tem

simultaneamente características quantitativas e qualitativas, observando ao mesmo

tempo “o contexto onde aparece, os meios que o veiculam e os públicos aos quais

se destina”.

Dessa forma, ao contextualizar esse hibridismo, Herscovitz (2010, p. 127)

afirma que o paradigma da análise de conteúdo elaborado por Harold Lasswell -

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quem diz o que para quem em que medida e com que efeito?- pode ser adaptado ao

conteúdo midiático da seguinte maneira: o que diz a mídia, para quem, em que

medida e com que efeito? Contudo, é possível dar ênfase a apenas uma ou mais

questões desse modelo. Dessa forma, o procedimento também pode ser utilizado

em estudos exploratórios, descritivos e explanatórios.

Fonseca Júnior (2012, p. 288) explica que o desenvolvimento e a aplicabilidade

deste método teve a contribuição de diversos autores, entre eles a pesquisadora

francesa Laurence Bardin, cuja proposta de análise é uma das mais consolidadas no

âmbito da Comunicação. O delineamento metodológico sugerido por Bardin consiste

em cinco etapas: a organização da análise, a codificação, a categorização, a

inferência e o tratamento informático.

A organização da análise é a base para a aplicabilidade do método em uma

pesquisa. Na visão de Bardin (2011, p.125 - 126), esta etapa constitui a

sistematização das ideias iniciais a partir da escolha de documentos a serem

analisados; as primeiras leituras deste, permitindo a formação de impressões e

ideias iniciais; a elaboração de objetivos e hipóteses para o objeto de pesquisa; a

exploração do material com a finalidade de encontrar respostas para as perguntas

da pesquisa; bem como a aplicação de procedimentos estatísticos manualmente ou

por meio do computador. Por fim, o estabelecimento de resultados e inferências

lógicas sobre o material investigado.

Depois de definido o que analisar e onde analisar, é preciso estabelecer “como

analisar” o objeto de pesquisa. Para isso, Herscovitz (2010, p.132) sugere que sejam

criados indicadores, a exemplo de presença ou ausência de determinados aspectos,

a proporção desses aspectos, e o caráter de certas características, como favorável

ou desfavorável, por exemplo. Segundo a autora, pode-se ainda criar categorias

nominais, a exemplo de “contra ou a favor”, bem como utilizar categorias ordinais,

que teriam a seguinte variação: totalmente a favor, um tanto a favor, um tanto contra,

totalmente contra. Esse processo é chamado de codificação.

A codificação, nessa trajetória da análise de conteúdo, “é o processo pelo qual

os dados brutos são transformados sistematicamente e agregados em unidades, as

quais permitem uma descrição exata das características pertinentes do conteúdo.”

(BARDIN, 2011, p.133). Ou seja, a codificação está associada à criação de

indicadores onde serão alocados os dados brutos. Esse processo de alocação,

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classificação e alocamento é chamado de categorização. Por último, são feitas

inferências, isto é, deduções lógicas sobre o conteúdo latente no objeto investigado.

O tratamento informático, segundo Herscovitz (2010, p.135) é a utilização de

programas de computador para o processo de codificação. A vantagem é que por

meio dos softwares é possível codificar uma quantidade maior de texto, se

comparado ao “lápis e papel”. Em contrapartida, Herscovitz (2010, p.135) alerta que

há o risco de produzir estudos limitados a contagens de palavras, frases, parágrafos,

textos, sem considerar os aspectos qualitativos.

Herscovitz (2010, p. 136) cita Bauer (2002) para ressaltar que a validade da

análise de conteúdo pode sofrer interferência de julgamentos particulares ou

compreensões provindas somente do texto, uma vez que os textos são polissêmicos,

passíveis a diferentes significados, conforme o leitor. Os resultados não estariam

associados a uma determinada objetividade, mas sim à intersubjetividade, ou seja, à

concordância entre intérpretes.

O primeiro passo para a análise de conteúdo das oito edições do jornal Fêmea

foi uma leitura “flutuante” do periódico, com a finalidade de criar primeiras

impressões. Buscou-se, nesse contato, indicadores para o objetivo deste estudo,

que é o de verificar o uso do jornalismo como uma estratégia de ação política para

as questões de gênero. O corpus da pesquisa foi composto apenas por notícias,

reportagens, manchetes e entrevistas. Textos opinativos foram excluídos. Em

seguida, foram criadas categorias para mapear os temas abordados pelas

publicações, os assuntos a que o jornal dá destaque como manchete, e as fontes de

notícias (atores sociais) que são consultadas. Para esse mapeamento foram criadas

as seguintes categorias: “manchetes”, “quem fala”, “sobre o que fala”. Os dados

foram agrupados em tabelas e interpretados com base na fundamentação teórica, na

contextualização sóciohistórica dos movimentos de mulheres e nos objetivos

propostos, associando as temáticas encontradas às relações de identidade e a ideia

de cidadania, como será melhor detalhado nos capítulos seguintes.

.

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3. MOVIMENTOS SOCIAIS E IDENTIDADE

Conforme os objetivos explicitados anteriormente, parte-se de uma noção mais

abrangente dos movimentos situados a partir da década de 1970 até a

contemporaneidade, visto que o movimento feminista, do qual derivou o objetivo

deste estudo, tornou-se eminente no Brasil, assim como na Europa e nos Estados

Unidos, a partir dessa década.

Como aponta Tarrow (1983) apud Melucci (1989), é difícil conceituar o campo

dos movimentos sociais, uma vez que há várias abordagens para uma vasta gama

de movimentos. Os autores que os definem fazem isso isolando determinados

aspectos empíricos e enfatizando outros. No entanto, Tarrow (1983) apud

Melucci(1989) afirma que é árduo o trabalho de comparar analiticamente os

diferentes conceitos, em função desse seu caráter empírico.

Nesta perspectiva, Melucci (1989) define movimento social como um modo de

ação coletiva que desenvolve conflitos com o sistema político dominante, tendo

como base a solidariedade e a ruptura com os limites do sistema em que ocorre a

ação.

Estas dimensões permitem que os movimentos sociais sejam separados dos outros fenômenos coletivos (delinquência, comportamento agregado de massa) que são, com muita frequência, empiricamente associados com "movimentos" e "protesto" (MELUCCI, 1989).

Não obstante, os mais variados tipos de movimentos podem ser analisados de

acordo com o sistema de referência da ação. O que é denominado “movimento

social” quase sempre contém uma pluralidade desses elementos, nunca constituindo

uma massa homogênea de preceitos e atores sociais (MELUCCI, 1989).

Na concepção de Downing (2004, p. 55), os movimentos sociais consistem em

uma das formas mais eficazes de resistência, quando comparados a instituições

como partidos políticos e sindicatos. A ascensão desses movimentos está

intimamente ligada ao que o autor denomina “mídia radical”, para referir-se a uma

modalidade de comunicação alternativa confrontadora dos sistemas de poder

dominantes. Dessa forma, comunicação alternativa e movimentos sociais

constituem-se por meio de uma “forte interdependência dialética”. Quando a

comunicação alternativa perde força, os movimentos tendem a refluir.

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Downing (2004, p. 56) destaca que é importante esclarecer a ideia de

movimento social, apesar da aparente obviedade. Para isso, apresenta três

conceitos diferentes. O primeiro e mais antigo define como rebelião de massas,

multidões em tumulto sem ideais, apenas movidas por emoções sem controle. Em

oposição a essa ideia, o segundo modelo enxerga os atores sociais que compõem

os movimentos como seres pensantes, que se articulam racionalmente. Com

finalidade de influenciar as decisões políticas e conseguir visibilidade, esses se

organizam de modo coletivo em greves, passeatas, ocupações e bloqueios de

trânsito.

Já o terceiro modelo, cujo desenvolvimento se deu na década de 1970, são os

chamados “novos movimentos sociais” (NMSs), representados pelo movimento

feminista, ecológico, pacifista. Segundo Downig (2004, p. 57), tais movimentos são

constituídos por aspectos que os diferenciam completamente de movimentos sociais

clássicos, como o operário. Uma dessas características é a política de identidade.

De acordo com Lages (2011), os chamados novos movimentos sociais da

década de 1970 constituem-se desta forma por serem formados a partir de laços

identitários que vão além da questão étnica. Sobre identidade, Da Silva (2008, p.73),

afirma que esta é construída no âmbito das relações culturais e sociais, e “sujeita a

vetores de força, a relações de poder” por meio da representação. Representação,

na obra de Manuel Castells (2008, p.22), é equivalente a significado. Este, segundo o

autor, é a identificação simbólica, que tem como base a identidade primária (uma

identidade que estrutura as demais). Na visão de Castells, identidade é definida

como:

[...] o processo de construção de significado com base em algum atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre outras formas de significado. Para um determinado individuo ou ainda um ator coletivo, pode haver identidades múltiplas (CASTELLS, 2008, p. 22).

Visto que as identidades são constituídas no âmbito de relações de poder,

Castells (2008, p. 24) faz as seguintes categorizações: a) Identidade legitimadora,

instituída pelas organizações dominantes da sociedade, como a grande mídia e seu

poder de construção do imaginário dos habitantes do nordeste; b) Identidade de

resistência, representada por grupos de indivíduos marginalizados/ estigmatizados

socialmente; c) Identidade de projeto, em que os atores buscam redefinir sua

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posição na sociedade a partir da construção de nova identidade para,

consequentemente, transformar a estrutura social vigente.

Castells exemplifica esta última categoria (identidade de projeto) por meio do

movimento feminista, cuja essência ideológica busca a redefinição dos valores sobre

sexualidade, reprodução, fazendo frente ao patriarcalismo.

Neste caso, a construção da identidade consiste em projeto de vida diferente, talvez com base numa identidade oprimida, porém expandindo-se no sentido de transformação da sociedade como prolongamento desse projeto de identidade [...] resultando na liberação das mulheres, dos homens e das crianças por meio da realização da identidade das mulheres. (CASTELLS, 2008, p. 26).

Dessa forma, pode-se dizer que ser mulher é uma identidade cuja

representação simbólica (significado) na sociedade, é construída por meio de

aspectos culturais e sociais, bem como por forças dominantes de poder. O

significado/representação do que é ser mulher está ligado a características de sua

identidade primária construída (definida pelas instituições e organizações da

sociedade), como ser mãe, esposa, frágil, dócil, etc.

Com base nessa relação entre movimentos e identidade aqui apresentada,

pode-se afirmar que os ditos novos movimentos sociais da década de 1970

questionavam, sobretudo, os sistemas de representação da identidade, pois,

conforme Da Silva (2008, p. 75), por trás das indagações sobre a identidade está a

crítica aos seus modos de representação.

Segundo Downing (2004, p. 57-58), o objetivo desses movimentos da década

de 1970 não era pressionar governantes a tomar decisões políticas nem obter

ganhos econômicos, como o movimento operário. De acordo com autor, para os

teóricos que estudavam os novos movimentos sociais, os intuitos estavam

associados à ideia de “conscientização” da sociedade sobre temas como violência

contra mulher, racismo, homoafetividade, meio ambiente etc. No entanto, Oliveira;

Silva (2011) contestam essa ideia por considerarem que tal interpretação foi

universalizada, sem levar em conta o contexto político desse período (autoritário e

excludente).

A ocidentalidade é outra característica apontada por Downing nos novos

movimentos sociais, que costumavam se afastar de movimentos que fugiam de sua

dinâmica, como o apartheid ou a intifada palestina. De acordo com Silva; Oliveira

(2011), esses outros movimentos eram tratados como desvios frente a um modelo

teórico-normativo que estabelecia não apenas o "ser", mas também o "dever ser"

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(transformadores, autônomos, conscientizadores da sociedade) dos novos

movimentos sociais.

Além disso, na corrente dos NMSs tinha uma tendência a não enxergar nenhum aspecto de “seus” movimentos que não se enquadrasse em sua moldura conceitual. Assim, os aspectos dos movimentos feministas que visavam melhorar as instalações em creches, as pensões das viúvas ou obter maior proteção legal para as vítimas de estupro - isto é, resultados concretos de fontes governamentais - pareciam estar excluídos do mapa analítico dos NMSs (DOWNING, 2004, p. 57-58).

Já nos anos 1980, o cenário político do Brasil passa por modificações que

também incidem diretamente na dinâmica de articulação dos movimentos sociais. O

processo de ruptura com o regime militar e a gradual instauração da democracia nos

movimentos fazem com que, conforme Cardoso (2004, p. 82-83), saiam da esfera da

autonomia em relação às instâncias políticas para uma institucionalização em torno

delas. A autora considera os novos movimentos sociais da década de 1970 como

“emergência heroica”, por terem como característica a quebra com o sistema político

vigente da época (ditadura militar), e os contrasta com os movimentos dos anos

1980, os “institucionalizados”.

Essa denominação corresponde à relação direta com o novo sistema político

que emergia, à participação em conselhos criados durante o processo de

redemocratização, a exemplo dos conselhos da mulher, do negro, da criança etc.

Além disso, esses movimentos também participaram da criação da Carta

Constitucional, que posteriormente integraria a Constituição de 1988. Essa

“institucionalização” foi interpretada, como afirma Cardoso (2004, p.82), como um

momento de retrocesso dos movimentos. A relação com partidos políticos e agências

públicas foi vista como uma estratégia de cooptação por parte destes últimos, “como

se os movimentos estivessem um pouco congelados”.

A autora sinaliza que, na década de 1970, o Estado não ouvia nem atendia o

que os movimentos reivindicavam. Algumas dessas reivindicações urgiam de

mudanças nas legislações para que fossem contempladas. Já nos anos 1980/90

esse processo foi inverso. Multiplicaram-se os partidos políticos e o sistema político

deu brechas para que os movimentos pudessem participar da redemocratização do

país. Não abriu exatamente todas as portas para o diálogo, mas redefiniu esse elo de

comunicação, diferente do sistema político anterior (regime militar), não porque os

novos governantes fossem “bonzinhos”, mas sim porque naquele momento seria

21

melhor ter os movimentos como aliados, e para os movimentos era uma

oportunidade para lutar por suas pautas.

Os movimentos que, de repente [...] foram os mediadores dessa redefinição do espaço público e do espaço privado trouxeram a questão da esfera privada como uma questão política e de politização. Trouxeram a questão das carências que atingiam as populações pobres, as mulheres, os negros, enfim, a questão da politização da esfera privada [...] (CARDOSO, 2004, p. 88).

Ainda segundo Cardoso (2004, p. 89), o refluxo dos movimentos dos anos 1980

e 90 deu-se a partir da atuação dentro dos conselhos, uma vez que houve muitas

experiências mal sucedidas. Alguns conselhos acabaram esvaziados, outros

extintos, como foi o Conselho da Mulher, e essa participação política dos

movimentos sociais durante o período da redemocratização do Brasil acabou

mobilizando menos do que o esperado. Na avaliação de Gohn (2003, p. 8), esses

fluxos e refluxos são inerentes à dinâmica dos movimentos sociais. Contudo, essas

entidades sociais perderam visibilidade política e midiática nas duas últimas décadas

do século XX em decorrência de suas práticas terem perdido o teor reivindicativo,

dando lugar ao propositivo (GOHN, 2003, p. 191).

3.1. Identidades em rede De acordo com Scherer-Warren (2005), no final da década de 1990, os

movimentos se reorientam e passaram a se organizar através de redes de

movimentos para ampliar o alcance das suas ações políticas. Para a autora, essa

articulação em rede entre organizações e atores políticos constitui-se como uma

nova forma de articulação por parte dos movimentos sociais, pois as ações coletivas

vão além da defesa dos interesses particulares e buscam intervir na construção de

políticas públicas mais universalizantes (SCHERER-WARREN, 2005).

Gohn (2003, p. 13) compartilha dessa mesma ideia ao afirmar que essas

entidades sociais incorporam outras formas de agir, “por meio de redes sociais,

locais, regionais, nacionais e internacionais, e utilizam-se muito dos novos meios de

comunicação e informação, como a internet” (GOHN, 2003, p. 13). Isso não exclui as

outras táticas, a exemplo de manifestações, marchas, negociações etc. De acordo

com Gohn (2003, p. 30) as políticas neoliberais adotadas pelo Estado, tinham como

objetivo enfraquecer e desorganizar os movimentos dos anos 1980 e início de 1990.

Em decorrência disso, passaram a se organizar em rede e a atuar com outros atores

22

sociais, tornando a relação com o sistema político um tanto semelhante ao contexto

de 1970: menos voltada para o governo e mais voltada para a sociedade civil.

As redes sociais a que a autora se refere constituem um modo de relação

social que se articula com objetivos estratégicos relacionados à conquista de direitos

e agem com a finalidade de obter resultados relevantes para os movimentos e para

a sociedade (GOHN, 2003, p.15). Aguiar (2007) complementa esse raciocínio ao

afirmar que redes sociais de ONGs e movimentos sociais trabalham a partir de um

ideal coletivo, guiadas por uma racionalidade estratégica, a partir de uma articulação

descentralizada de atores sociais, buscando intervir nas decisões de políticas

públicas, nos mais variados temas. Diferenciam-se, assim, das relações

interpessoais, intergrupais e das redes de relacionamentos na internet, que são

conhecidas popularmente como “redes sociais”.

Esse novo modo de agir dos movimentos contemporâneos também é

composto fundamentalmente pela identidade. De acordo com Gohn (2003, p. 15),

mediante os discursos e a atuação dessas entidades sociais são construídas

representações simbólicas. Laços identitários foram criados com grupos que antes

dispersos e desorganizados. Para Gohn (2003, p. 170), fazem parte dessa nova fase

os movimentos de gênero, compostos pelos movimentos de mulheres e os

movimentos homossexuais (mais recentemente chamados de LGBTTTs), os

movimentos afro-brasileiros, o movimento indígena, todos marcados por traços

identitários e culturais.

Com base nesses atributos citados anteriormente, Gohn (2003, p.16),

enumera quatro particularidades dos movimentos contemporâneos: a) lutas em

defesa das culturas locais; b) vigilância sobre o trabalho do Estado, exigindo ética e

buscando orientar a população acerca de seus direitos; c) atuação em áreas cujo

acesso de outras instituições, a exemplo de partidos políticos e igrejas, seja difícil; d)

a redefinição do conceito de autonomia dentro do movimento, incorporando-o ao à

luta por cidadania.

Downing (2004, p. 58) pontua que os movimentos sociais da

contemporaneidade são fundamentais para a política de grande parte das nações,

sobretudo para aquelas cujo cenário governamental é definido por um sistema

eleitoral em que vence aquele que obtém maior espaço na mídia mediante

campanhas com custos elevados. Nesse contexto, a maioria dos partidos políticos

“são cada vez mais menos sensíveis às necessidades mais profundas do público” e

23

a população cada vez mais descrente em relação aos partidos. São os movimentos

sociais que dão dinamismo a esse cenário político, mesmo alguns deles mantendo

determinada relação com partidos (idem).

Segundo Downing, os partidos podem até ter ligações ideológicas com as

lutas sociais, mas em geral não iniciam nem lideram movimentos de grande respaldo

na sociedade. É dentro da esfera dos movimentos sociais que os dilemas mais

críticos da sociedade são debatidos e pensados com mais energia, não nas

instituições oficiais da democracia. É em torno da agenda desses movimentos que

acontecem o debate público, o diálogo, a conversa. (DOWNING, 2004, p.58-59).

3.2. Cidadania e instrumentos de luta Como visto acima, diferente do que aconteceu nos final dos anos 1980 e início

dos 90, os movimentos contemporâneos rejeitaram o congelamento causado pela

institucionalização e reposicionaram sua dinâmica de atuação, reforçando a

autonomia. Não se tornando radicais frente ao governo, como pontua Gohn (2003,

p.17), mas propondo soluções para os conflitos nos quais estão inseridos. Nesse

novo âmbito, a autonomia está básica e diretamente associada à luta por cidadania

política, que parte da ideia de humanização e inserção social a partir da participação

política da população (GOHN 2003, p.176).

Segundo Evelina Dagnino (2004), a noção de cidadania surge em meados dos

anos 1980 e desde então vem sendo apropriada por diferentes grupos, com

diferentes finalidades.

Nesse sentido, evidentemente as apropriações e a crescente banalização desse termo não só abrigam projetos diferentes no interior da sociedade, mas também certamente tentativas de esvaziamento do seu sentido original e inovador. Há uma disputa histórica pela fixação do seu significativo e, portanto, de seus limites. (DAGNINO, 2004, p. 104)

Face a essa situação, a autora pontua que tornou-se necessário delimitar o

sentido de “cidadania”. Nesse trajeto, ela aponta que o surgimento desse conceito

está intimamente ligado à atuação dos movimentos sociais, tanto os urbanos – com

pautas ligadas a melhorias da cidade, como transporte, violência, desemprego –

como os de gênero, a exemplo do movimento de mulheres, homossexuais.

Na organização desses movimentos sociais, a luta por direitos - tanto o direito à igualdade como o direito à diferença - constituiu a base fundamental para a emergência de uma nova noção de cidadania. (DAGNINO, 2004, p. 106).

24

Além disso, segundo Dagnino (2004, p. 106), o emergir desse conceito por

meio dos movimentos trouxe aprofundamento teórico e prático para o processo de

construção da democracia. Dessa maneira, a noção de cidadania acaba criando uma

espécie de estatuto “teórico e político” não só no cerne da democracia, mas também

na execução desta, em âmbito universal.

Desde então, todos os países foram aos poucos incorporando a cidadania em suas Constituições. No Brasil ela aparece como um dos fundamentos do Estado Democrático, na Constituição de 1988, a que está em vigência (VIEIRA, 2003, p. 18).

Roberto Vieira (2003, p. 18) destaca que a partir daí o conceito de cidadania

incorporou-se também a um viés jurídico.

Cidadania é um status jurídico e político que concede ao cidadão direitos e deveres. Direitos nas esferas civil, jurídica e social, e deveres, no âmbito, por exemplo, da prestação do serviço militar, do recolhimento de impostos, da denúncia por malversação da coisa pública, etc. (VIEIRA, 2003, p. 18).

Dagnino (2004, p. 107) aponta que, consequentemente, esses fatores acabam

por contribuir para que a cidadania seja encarada, sobretudo pelos movimentos,

como um instrumento de transformação social, inscrito nas dimensões da cultura e

da política, bem como no âmbito de relações e interações entre os sujeitos,

incorporando novos direitos e subjetividades próprios da contemporaneidade.

No contexto específico do Brasil, a sociedade marcada por desigualdades de

ordem social e econômica e problemas como fome e miséria, ainda não

solucionados, acarretam na constituição de uma hierarquia desigual no campo das

relações sociais, o que Dagnino (2004, p. 109) denomina de autoritarismo social.

Esse dilema, segundo a autora, encontra-se enraizado de tal forma na cultura

brasileira que reflete nas categorias de raça, gênero, classe, etc.

[...] esse autoritarismo social se expressa num sistema de classificações que estabelece diferentes categorias de pessoas, dispostas nos seus respectivos lugares na sociedade. [...] É visível no nosso cotidiano até fisicamente: é o elevador de serviço, a cozinha que é o lugar da mulher, cada macaco no seu galho etc. etc. (DAGNINO, 2004, p. 110)

Essa alocação e hierarquização entre sujeitos lembra o que o Manuell Castells

(2008, p. 22) denomina de papéis sociais, em que o comportamento das pessoas

(função social) é estruturado por vetores de força dominantes, derivados, como

aponta Dagnino acima, de uma estrutura de sociedade desigual. “Esse autoritarismo

engendra formas de sociabilidade e uma cultura autoritária de exclusão que subjaz

25

ao conjunto das práticas sociais e reproduz a desigualdade nas relações sociais em

todos os seus níveis” (Dagnino, 2004, p. 110).

Em face dessa perspectiva, os movimentos mais recentes veem na cidadania o

caminho para a transformação dessa estrutura discrepante, ou seja, para a conquista

de direitos de ordem civil, política e social. Para isso, os movimentos buscaram

incorporar novos sujeitos sociais nessa luta, a fim de constituir na sociedade uma

consciência política de seus direitos. Nesse processo, a mídia tornou-se um

instrumento de luta, sobretudo a imprensa alternativa. Uma vez que, de acordo com

Lahni (2005), para reivindicar, proteger, exerce direitos e busca ampliá-los, quem

está informado.

Conquistar uma cidadania plena em uma sociedade altamente desigual e segregadora, na qual o acesso aos bens econômicos está concentrado numa minoria da população, enquanto milhões de pessoas encontram-se excluídas do usufruto dos direitos mais fundamentais, torna-se um enorme desafio. Por isso, a ampliação e os avanços da cidadania estão intrinsecamente relacionados com as reivindicações, as lutas e as manifestações sociais (PINSKY, 2003).

É válido pontuar aqui, para aprofundamento posterior, que nesse processo de

luta por cidadania, os movimentos também passam a analisar dentro da

comunicação como os diferentes grupos humanos são representados e os

significados que lhes é atribuído nesses veículos (CAPELINI; VICENTE, 2010).

Dessa forma, os movimentos concentram-se na cidadania com ênfase nos direitos

(coletivos e individuais) da população. Como pontua Peruzzo (2001, p. 114 -115), os

direitos ligados à cidadania são aqueles relativos a conforto econômico-social, no

sentido de igualdade, ter direito a poderes políticos, e à liberdade de expressão

identitária.

Para este trabalho, vale destacar, entre esses movimentos contemporâneos

que se redefiniram a partir do final da década de 1990, adquirindo uma “roupagem”

mais centralizada na conquista e consciência dos direitos, o movimento de mulheres.

Este reivindica e contesta os direitos femininos violados dentro das estruturas de

poder vigentes. Conforme Ávila (2001), o reconhecimento do sistema de dominação

e o conhecimento acerca dos mecanismos que propiciam a sua reprodução fazem

com que esse movimento, em sua contemporaneidade, contribua de maneira

importante para a luta dos direitos de diferentes grupos humanos.

26

3.3. O movimento de mulheres Para a problemática que guia este estudo, é fundamental traçar sócio-

historicamente o “movimento de mulheres” no Brasil. O uso dessa expressão nesta

pesquisa está relacionado à proposta de atribuir maior atenção aos movimentos

contemporâneos relacionados a questões de gênero, uma vez que o termo

“movimento feminista” diz respeito, mais diretamente, à dinâmica dos movimentos

sociais das décadas de 70 e 80 do século passado, de caráter mais “urbano”,

formado por mulheres que viviam nas cidades.

A partir da metade dos anos 1990, como visto anteriormente, os movimentos se

resignificam e, então, o movimento feminista passa a reivindicar pautas para

diferentes grupos de mulheres, como camponesas, lésbicas, transexuais, etc. Nesse

sentido, o termo “movimento de mulheres” está basicamente ligado à luta pelos

direitos de diferentes grupos humanos, sobretudo de mulheres.

O movimento feminista, ao contrário do que possa parecer, não é um

movimento homogêneo com reivindicações estáticas ao longo do tempo. Como

Gohn pontua no livro Movimentos Sociais no século XXI (2013), o aspecto de

construção e desconstrução é próprio da natureza dos movimentos sociais. Pinto

(2003) ressalta a existência de múltiplas identidades dentro do movimento, que é

refletido nas diferentes vertentes filosóficas que o compõem, a exemplo do

ecofeminismo, do cyberfeminismo, do feminismo anarquista, entre outros.

Na avaliação de Castells (2008, p. 229), a força e vitalidade para renovação

desse movimento residem exatamente nessa multiplicidade. Contudo, para esta

pesquisa, a rica trajetória do movimento será descrita no singular, em virtude da

compreensão de que todas as correntes ideológicas que formam o feminismo

provêm de uma mesma raiz sócio-histórica.

Autoras como Alves; Pintanguy (1991) e Pinto (2003, p. 10) sinalizam a

existência de manifestações femininas em diferentes períodos históricos. No entanto,

chamam a atenção para o inicio de uma manifestação um tanto politizada a partir do

século XIX, com o surgimento do movimento sufragista. Conforme Alves; Pintanguy

(1991) este movimento iniciou mais precisamente em 1848, nos Estados Unidos, e

tinha como objetivo a eliminação do voto por renda e a extensão do direito de voto

às mulheres. Estas autoras relatam que as mulheres reivindicavam o direito do voto,

defendido pelos ideais liberais, e recusado, contraditoriamente, pelo próprio partido

liberal. O movimento se articulava através de campanhas de mobilização da opinião

27

pública, passeatas, abaixo-assinados e busca de apoio de parlamentares, os quais

costumeiramente encaravam essa luta com indiferença.

O movimento sufragista perdurou por décadas, se espalhou pela Europa e

atingiu também o Brasil. Os objetivos só foram alcançados 40 anos após a

promulgação da Constituição de 1891, após mobilizar, nos momentos de ápice das

campanhas, até 2 milhões de mulheres, o que torna esta luta um dos movimentos

políticos de massa de maior significação no século XX” (ALVES; PINTANGUY, 1991).

Contudo, por considerá-lo conservador, Céli Pinto (2003, p. 16) classifica o

sufragismo como uma tendência de movimento feminista “bem comportado”, visto

que as manifestantes não questionavam o sistema de opressão que as enredava por

trás da negação do voto feminino. Para ela, (idem, p. 18), o movimento sufragista

não tinha como raiz a luta contra a discriminação às mulheres, com base no desejo

de reconstruir as relações de gênero, mas sim como atributo para melhor

funcionamento da mesma estrutura de sociedade vigente.

No Brasil, diferente do aconteceu na Europa e nos Estados Unidos, o

movimento pelo voto feminino não teve participação de mulheres de todas as

classes sociais. De início tardio, se comparado às nações onde nasceu, o

sufragismo surgiu no âmbito brasileiro em 1910 e se consolidou cerca de 10 anos

depois, com a criação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. As

estratégias de ação da entidade incluíam a pressão a membros do Congresso e a

divulgação do trabalho da Federação por meio da imprensa, para mobilizar a opinião

pública. A luta somente alcança o objetivo em 1932, através da promulgação de um

decreto-lei pelo então presidente Getúlio Vargas. (ALVES; PINTANGUY, 1991).

Se o movimento sufragista não se confunde com o feminismo ele foi, no entanto, um movimento feminista, por denunciar, por a exclusão da mulher da possibilidade de participação nas decisões políticas. Uma vez atingido seu objetivo – o direito ao voto – esta prática de luta de massas estava fadada a desaparecer. Há assim uma desmobilização das mulheres. Entretanto, o questionamento da sua discriminação prossegue, incorporando outros aspectos que configuram a condição social da mulher. (ALVES; PINTANGUY, 1991).

A partir desse período, o movimento sofre um retrocesso que é causado,

segundo Alves; Pintaguy (1991), não somente por ter alcançado o objetivo das

sufragistas – o voto feminino -, mas também pelo cenário político instaurado em

1937, com o Estado Novo e a Ditadura Vargas, que coíbe qualquer tipo de

manifestação social. De maneira pouco enérgica e sem cunho feminista, as

mulheres só voltam a se manifestar no período compreendido entre o fim do Estado

28

Novo e a democratização do país. As pautas dessas movimentações eram relativas

à diminuição do custo de vida, anistia, ao petróleo, à paz após segunda guerra

mundial. (ALVES; PINTANGUY (1991)).

Em 1964, com a instauração do regime militar, a atuação dos movimentos

sociais no Brasil é congelada por meio da repressão violenta. Enquanto isso, na

Europa e nos Estados Unidos, segundo Pinto (2003), o movimento feminista emergia

com vitalidade, assim como outros movimentos de cunho libertário. O movimento

hippie nos Estados Unidos e o episódio doe “maio de 68” na França ilustram esse

cenário político e contracultural em que se desenvolvia o movimento feminista.

Concomitantemente, no Brasil, lutas políticas eram reprimidas e grupos esquerdistas

viviam na clandestinidade.

Como relata Pinto (2003), do contato de intelectuais brasileiras exiladas com os

movimentos feministas que eclodiam, sobretudo no Hemisfério Norte, nasceram as

primeiras organizações de cunho feminista brasileiras, na década de 1970, em São

Paulo e no Rio de Janeiro. Segundo Gohn (2001, p.115), nesse período, o

movimento feminista encontrou espaço para se organizar no país em decorrência de

dois fatores. Primeiro, devido à inserção das mulheres na estrutura de produção do

país, no contexto do governo de Médici e sua política econômica denominada

“milagre econômico”. Segundo, pela legitimidade conquistada nas reivindicações de

mulheres que eram mães de presos políticos ou desaparecidos, uma vez que esse

mesmo governo consistia em um dos mais repressores à liberdade política.

O marco inicial da mobilização de mulheres no Brasil acontece em 1975, em

que, conforme Sarti (1988), a ONU decreta como sendo o ano das mulheres, o que

abre espaço para que grupos se organizem com alguma liberdade política. É nesse

período que são fundadas as duas primeiras entidades sociais feministas: o Centro

de Desenvolvimento da Mulher Brasileira, em São Paulo, e o Centro da Mulher

Brasileira, no Rio de Janeiro., Constituído por intelectuais de classe média, o

movimento feminista brasileiro dessa época começa a questionar a representação

da identidade das mulheres e a exploração e opressão de grupos de pessoas por

parte do sistema político. A proposta do movimento na década 1970 era reconfigurar

a identidade feminina e de gênero imposta pela sociedade vigente, ou seja, uma

transformação a nível ideológico, social, político e econômico. (Zirbel, 2007; Alves;

Pintaguy, 1991).

29

Sarti (2004) destaca a existência de duas tendências diferentes dentro do

movimento de mulheres nessa época:

A primeira, mais voltada para a atuação pública das mulheres, investia em sua organização política, concentrando-se principalmente nas questões relativas ao trabalho, ao direito, à saúde e à redistribuição de poder entre os sexos. Foi a corrente que posteriormente buscou influenciar as políticas públicas, utilizando os canais institucionais criados dentro do próprio Estado, no período da redemocratização dos anos 1980 (SARTI 2004).

A articulação dos grupos nesse período era feita por meio de folhetos acerca

da sexualidade, violência, direitos da mulher, saúde; por grupos de estudos, cinema,

teatro. (Alves; Pintaguy, 1991). Ainda de acordo com Sarti (2004), na década de

1980 o movimento de mulheres no Brasil já era considerado um movimento

consolidado, “com força política e social, e que já se articulava em outras regiões do

país, fora do eixo Rio-São Paulo. Contudo, a tendência dos movimentos sociais

durante o período da redemocratização também refletiu no movimento feminista, de

modo a influenciar mudanças em suas pautas e em seu modo de agir, conferindo

uma roupagem mais “técnica e profissional” ao movimento.

Muitos grupos adquiriram a forma de organizações não-governamentais (ONGs) e buscaram influenciar as políticas públicas em áreas específicas, utilizando-se dos canais institucionais. A institucionalização do movimento implicou, assim, o seu direcionamento para as questões que respondiam às prioridades das agências financiadoras. (SARTI, 2004).

Nessa época, como pontuam Sarti (2004) e Pinto (2003), o movimento tinha

como pautas, sobretudo, o combate à violência contra o gênero feminino e questões

ligadas à sexualidade e à saúde, a exemplo do aborto, do uso de anticoncepcionais

etc. Como resultado dessa atuação política e institucional, surgiram as delegacias

especializadas para mulheres.

A institucionalização dos movimentos sociais nesse período foi alvo de críticas,

em face de um determinado aprisionamento das entidade sociais aos partidos

políticos e governos. No entanto, observa-se que para o movimento de mulheres, a

institucionalização foi uma maneira estratégica de inserir na pauta do debate público

determinados anseios da população feminina, cujo caminho para a resolução era por

meio de decisões políticas.

[...] na década de 1980, como saldo positivo de todo esse processo social, político e cultural, deu-se uma significativa alteração da condição da mulher na Constituição Federal de 1988, que extinguiu a tutela masculina na sociedade conjugal (SARTI, 2004).

30

Por fim, Céli Pinto (2003) aborda a mudança de formas de atuação dos

movimentos de mulheres, que como a maioria dos movimentos sociais da década de

1980, incorporou uma estratégia de ação política com base na cidadania dos

diferentes grupos humanos. A autora também aponta que nesse período houve

destaque à dissociação entre feminismo enquanto postura social e movimento

feminista ou movimento de mulheres enquanto atuação política.

3.4. A ONG CFEMEA

Nessa “virada do milênio”, como se refere Pinto (2003), a atuação das ONGs e

o trabalho em rede mostraram-se como uma nova estratégia para o fortalecimento

do movimento e consequente força para agir na esfera pública. As pautas desse

momento, além de terem os direitos como centro, reivindicam, sobretudo, a

autonomia do corpo. Nessa perspectiva de ONGs com trabalho mais

“profissionalizado”, a autora destaca a atuação de organizações como o Centro

Feminista de Estudos e Assessoria (CFMEA), criado em 1989, com sede em

Brasília.

De acordo com a sessão „quem somos‟ do portal do CFEMEA, trata-se de “uma

organização não-governamental, sem fins lucrativos” para a qual o feminismo, os

direitos humanos, a democracia e a igualdade racial constituem os marcos políticos

e teóricos da entidade.

Sediad@s em Brasília, atuamos nacional e internacionalmente em favor da cidadania plena para as mulheres e de relações de gênero igualitárias e fraternas. Lutamos, de forma autônoma e não partidária, por uma sociedade e um Estado justos e democráticos. (CFEMEA, 2014).

Formado por consultores e colaboradores militantes, o CFMEA busca

“contribuir para o fortalecimento do feminismo e da democracia incidindo nos

Poderes Públicos para a garantia de direitos das mulheres”. Nessa perspectiva, a

atuação da entidade é intimamente ligada “à superação das desigualdades e

discriminações de gênero e de raça/etnia, e a afirmação dos princípios da liberdade,

autonomia, solidariedade e respeito à diversidade.” (CFMEA, 2014).

Como faz parte da geração de movimentos sociais que emergiu nos anos 1990,

o Centro tem como características a articulação em rede junto a outras organizações

feministas internacionais, bem como a fusão com outros movimentos, a exemplo da

incorporação do combate ao racismo, como uma de suas linhas de combate. Além

disso, seu funcionamento ocorre de maneira “técnica e profissional”, dividindo a

31

gestão em órgão de direção, órgão de gestão, órgão de fiscalização e órgão de

assessoramento.

Constituem-se como objetivos e desafios específicos da entidade:

Nossos objetivos

Defender e promover a igualdade de direitos e a equidade de gênero na legislação, no planejamento e na implementação de políticas públicas considerando as desigualdades sociais geradas pela interseção das discriminações de sexo e de raça.

Incidir sobre o processo orçamentário com vistas à sua democratização e transparência, bem como na incorporação da perspectiva de gênero e de raça/etnia nos gastos públicos.

Contribuir para fortalecer os movimentos de mulheres e feministas participando das suas articulações, subsidiando diálogos com outros movimentos sociais e, ampliando canais de interlocução com o Poder Público.

Promover a presença das mulheres e as pautas feministas nos espaços e processos de participação e de representação política.

Desenvolver instrumentos de comunicação política para ampliar a esfera pública de debate sobre as plataformas feministas, possibilitando a articulação em torno da agenda política para a igualdade de gênero.

Nossos desafios

Frente à crise civilizatória, o CFEMEA abraça novos desafios:

Promover enlaces entre as perspectivas feminista, de igualdade racial, de livre expressão sexual, de diversidade etário-geracional e de pluralidade cultural para assim contribuir com a construção de um projeto de humanidade solidária,

que afirme a diversidade;

que promova relações igualitárias, fundadas na autonomia das mulheres, na não exploração nem alienação;

que promova a participação e auto-transformação;

que gere auto-crescimento individual e coletivo; e

que garanta justiça sócio-ambiental e direitos para todas e cada uma das mulheres.

Somar-se às vozes que afirmam que outro mundo melhor é possível, articulando esforços para a sua construção.

Fonte: Portal do CFMEA (www.cfmea.org.br)

As principais linhas de ação do CFMEA são o combate à violência contra as

mulheres; os direitos sexuais e direitos reprodutivos; trabalho e proteção social; e

orçamento mulher, este último associado à fiscalização da gestão pública no sentido

de inclusão das políticas dos direitos das mulheres.

32

Para execução dessas linhas de ação, a entidade trabalha por meio dos

seguintes eixos metodológicos: ações coletivas; públicas e políticas; articulação

política com organizações da sociedade civil; produção de análises e pesquisas no

âmbito do direito das mulheres e do movimento feminista; educação e capacitação

política dos que integram o CFMEA; e comunicação política, esta com a finalidade

de difundir notícias e abrir espaços de intercomunicação “que ampliem a arena

política de debate sobre os direitos das mulheres”.

33

4. COMUNICAÇÃO ALTERNATIVA

A compreensão da comunicação alternativa como um espaço criado face a

ausência de espaços na mídia convencional é fundamental para esta pesquisa. Essa

modalidade de comunicação vem sendo constituída, sobretudo, por grupos

marginalizados pela repressão da ditadura militar nos anos 1970, como veremos a

seguir. Militantes políticos marxistas, feministas, operários grevistas, lésbicas e gays,

favelados, entre outros, compuseram os movimentos e organizações que viram

nessa comunicação uma maneira de criar uma narrativa de si para o mundo.

Alternativa também para os leitores, pois se configura numa outra opção de leitura,

que foge à linha dos grandes veículos.

De acordo com Festa (1986, p.16), na década de 1970, durante o regime

militar, o Brasil tinha o seguinte cenário na comunicação: meios de comunicação de

massa, apesar da censura, modernizando suas instalações com ajuda de incentivos

fiscais e econômicos do governo militar. A TV Globo, por exemplo, teve sucursais

instaladas nos principais estados e utilizava, “através da Rede Nacional de

Microondas, o sistema de transmissão por satélites TELSTAR, atingindo um número

crescente de brasileiros”.

Pouco se comunicava no sentido de manter a sociedade informada sobre os

acontecimentos que ocorriam nas instâncias de poder e no centro da sociedade civil,

bem como no sentido de dar voz a diferentes atores sociais. O objetivo primordial

dos meios de comunicação tradicionais era moderniza-se para se equiparar ao

modelo americano de comunicação (FESTA, 1986, p. 16).

Nessa circunstância, a autora relata que os movimentos sociais da década de

1970, apesar das limitações em decorrência da censura, criaram sua própria mídia

com a finalidade de informar a população sobre o que era silenciado, além de fazer

dessa mídia uma maneira de fortalecer os movimentos.

Na medida em que surgiam polos de resistência social apareciam os meios de comunicação, quer através de intelectual de oposição ou de grupos partidários que, corajosamente, lançavam jornais tabloide (conhecidos no início como imprensa nanica, isto é, pequena); quer através das publicações que surgiam nas [...] Associações de moradores, Sociedade Amigos de Bairro, Movimento do Custo de Vida, Favelados[...] (FESTA, 1986, p. 16).

Downing, ao tratar de “mídia radical”, esclarece que as mídias “nanicas” e com

alcance pequeno não tem menor relevância quando se constata as inúmeras

34

publicações alternativas que compuseram a história dos movimentos sociais.

Segundo o autor, a mídia radical é aquela que expressa “uma visão alternativa às

políticas, prioridades e perspectivas hegemônicas”, que se apresenta sob uma

enorme variedade de formatos e exerce múltiplos impactos, em diferentes níveis,

apresentando-se de forma mais democrática do que a mídia hegemônica.

Segundo Festa (1986, p. 16), no Brasil a expressão “imprensa alternativa”

refere-se comumente a um tipo de jornal ou revista de oposição, cuja venda nos

anos de 1970 era feita em bancas de revistas ou de “mão em mão”. O conteúdo,

conforme a autora, tinha caráter cultural e político, e o público-alvo era formado por

trabalhadores, classe média e pequena burguesia. Como define Peruzzo (2006),

tratava-se de um tipo de imprensa não-alinhada à proposta da mídia tradicional.

“Eram espaços nos quais grupos de oposição ou frentes políticas emitiam uma

corajosa condenação ao regime político” (FESTA, 1986, P. 16).

Já Peruzzo (2006) destaca que a expressão “comunicação alternativa”,

bastante utilizada dos anos 1960 aos 1980, surgiu para designar tanto a

comunicação popular, que emerge de grupos, movimentos e organizações

populares, a exemplo de jornais de associação de moradores, como para

caracterizar o tipo de imprensa não alinhada ideologicamente à linha editorial da

mídia convencional.

Segundo a autora, a maioria dos grandes jornais vivia sob a égide da ditadura

militar no Brasil, alinhando-se à visão oficial do governo, seja por opção político-

ideológica ou pela força coercitiva da censura. A imprensa alternativa representada

pelos pequenos jornais, em geral com formato tabloide, ousava analisar criticamente

a realidade e contestar um tipo de desenvolvimento.

Mário Kaplún (1985, apud Peruzzo, 2006, p.3) conceitua comunicação

alternativa como “uma comunicação libertadora, transformadora, que tem o povo

como gerador e protagonista”. O autor destaca os aspectos educativos desse tipo de

processo, esclarecendo que as mensagens são produzidas “para que o povo tome

consciência de sua realidade” ou “para suscitar uma reflexão”, ou ainda “para gerar

uma discussão”. Grinberg (1987, apud Ferreira, 2010, p.5) considera alternativo

“todo meio que, num contexto caracterizado pela existência de setores privilegiados

que detêm o poder político, econômico e cultural (...) implica uma opção frente ao

discurso dominante”. Nessa perspectiva, os veículos de comunicação alternativa são

considerados elementos para um processo consciente e transformador.

35

Conforme Kucinski (1991, p.16), o surgimento e o desenvolvimento da

imprensa alternativa é resultado da articulação de duas forças: primeiro, o desejo de

militantes de esquerda por mudanças no sistema político vigente e, segundo, a

busca por uma outra comunicação, por jornalistas e intelectuais, “de espaços

alternativos à grande imprensa e à universidade”. Nesse cenário, a imprensa

alternativa reúne jornalistas, militantes políticos e acadêmicos.

De acordo com Festa (1986, p. 17), desenvolveram-se inúmeras publicações

alternativas, apesar da pressão do regime militar e da falta de verbas provindas de

publicidade. Pasquim, Movimento, Bondinho e o Nós-mulheres constituem-se

exemplos de periódicos dessa época.

A democracia interna, a formação de conselhos editoriais com a participação de representantes dos movimentos sociais foi a tônica dessas experiências, quer fossem de grupos, frentes ou através das cooperativas de jornalistas, como o Coojornal, o Jornacoop e o Coojornat (FESTA, 1986, p. 17).

Os primeiros periódicos da imprensa alternativa procuravam trabalhar com

linguagem diferente da dos veículos de comunicação tradicionais, com outra forma,

outra temática, outras propostas de abordagem de temas cuja base era a denúncia

e a publicização do oculto (FESTA, 1986, p. 16).

No final da década de 1970, a imprensa alternativa brasileira sofreu um

retrocesso, em decorrência da perseguição econômica, por meio de cobranças de

altos impostos, e em razão de atentados às bancas que vendiam os jornais

alternativos depois de o Coojornal ter publicado, em 1979, um documento secreto do

Centro de informações do Exército, para o qual a imprensa alternativa funcionava

como instrumento de contestação da ditadura.

“Ao longo desses anos algumas publicações tiveram edições inteiras

apreendidas, tornando inviável a continuidade econômica do projeto” (FESTA, 1986,

p. 17). Apesar dessa conjuntura, Festa (1986, p. 25) afirma que a imprensa

alternativa de fato não deixou de existir, mas trabalhava clandestinamente, e que

grande parte dela pautava temas associados à cultura e à educação.

Nos anos 1980, com a abertura política e a criação de espaços políticos

institucionalizados para alocar os integrantes dos movimentos sociais, a imprensa

alternativa passa por mudanças. Nesse período, surge a imprensa alternativa

partidária, formada por representantes da esquerda, e a imprensa alternativa

36

especializada, a exemplo do jornal Mulherio, que debatia as questões da mulher no

contexto do Brasil (FESTA, 1986, p.25).

De acordo com Feldmann e Sanchéz (2009), os movimentos sociais

contemporâneos, que se reinventaram na metade dos anos 1990, têm por

característica a utilização de novas tecnologias de comunicação, advindo da

necessidade de criar outros veículos informativos como formas de ação, através do

uso da comunicação alternativa.

As lutas sociais adotam a cada dia novos campos de ação, criam distintos espaços e apontam para outras geografias virtuais. A partir do uso dos meios de comunicação alternativos tais grupos divulgam suas ideias para poder expandir seus objetivos rumo a outros públicos e setores, visando integrar, promover e atingir reconhecimento e legitimidade pública (Felmann; Sanchéz, 2009).

No cenário político em que se inscreve a sociedade contemporânea, não mais

caracterizado pela censura e as forças repressivas e violentas da ditadura militar,

Downing (2004, p. 49) aponta um novo entrave para a comunicação alternativa: a

autocensura da ideologia capitalista que abastece os grandes veículos e é

caracterizada pelo interesse dos grandes veículos midiáticos em manter o status

quo.

No que corresponde à comunicação alternativa, John Downing compreende

não apenas atividades que usam meios tradicionais de fazer comunicação, como o

rádio, a televisão, a mídia impressa e a internet, mas também a arte performática, o

grafite, o vestuário, as canções populares, enfim, um leque de atividades culturais

que engendram a possibilidade de experimentação e busca de outros modos de

comunicação.

Segundo Ferreira (2010), a comunicação alternativa gerenciada pelos

movimentos sociais da contemporaneidade tem como característica, de maneira

geral, um enfoque mais voltado para a dimensão humana. Os objetivos que a

movem – conscientização, direitos coletivos e individuais, luta por melhoria das

condições de vida, entre outros – explicita isso. De acordo com essa visão, a

comunicação alternativa é vista como uma ferramenta de potencialização e apoio

das lutas por direitos coletivos e cidadania nas sociedades atuais.

Nessa nova conjuntura, torna-se missão não somente informar o público a

respeito dos fatos que lhe são negados e criar narrativas de si, mas também

pesquisar novas maneiras de desenvolver um ambiente questionador das

37

instituições dominantes, bem como fomentar a credibilidade com o público-alvo,

como forma de intervir de modo eficaz nas decisões políticas (Downing, 2004, p.49).

Para atender esses objetivos, o conteúdo desses meios alternativos, segundo Motta

(1987, p.43), possui, no contexto atual, componentes político-pedagógicos, os quais

são definidos previamente, conforme as finalidades específicas de cada movimento.

Downing (2004, p. 58) exemplifica, por meio do movimento de mulheres, a

função de conscientização das entidades sociais do novo milênio através das mídias

alternativas, denominadas por ele como mídias radicais. Segundo o autor, o

movimento de mulheres buscou desenvolver sensibilidade às situações cotidianas e

imediatas às quais a mulher é exposta e às nuances de exclusão e controle que lhes

cerca.

Essa consciência feminista representou um ganho não apenas para o próprio movimento de mulheres, mas para todos, e, se tivesse sido mais difundida, teria provavelmente dado mais consistência a muitos projetos políticos. [...] A mídia radical alternativa pode permitir que as pessoas engajadas em movimentos sociais comuniquem esses e outros discernimentos umas às outras. Não com sucesso automático, é claro (DOWNING, 2004, p. 68-69).

Motta (1987, p.47) pontua que as mídias alternativas também têm função de

apoio aos movimentos sociais, no sentido de auxiliar a mobilização e a organização

das entidades sociais.

Todo movimento popular necessita primeiro fazer com que um número maior possível de pessoas tome conhecimento de um determinado problema; segundo, necessita sensibilizar essas pessoas a interessar-se pelo fato; terceiro, precisa motivá-las para a ação; quarto, mobilizá-las; quinto, organizá-las para uma ação consciente e adequada. Como nem os meios de comunicação de massa nem os canais formais de comunicação costumam suprir as necessidades de nenhuma destas etapas, os que lideram os movimentos criam os meios alternativos possíveis para supri-las (MOTTA, 1987, p. 47).

Tal ideia parte, segundo Parafita (2012, p. 50), do objetivo primordial do uso da

comunicação: influenciar. De acordo com o autor, ao comunicar determinada

mensagem, há o propósito, em maior ou menor intensidade, de influenciar os

receptores. Os efeitos dessa comunicação é que dirão se o processo comunicacional

teve sucesso.

Se a audiência não reage, o agente comunicador não tem garantias de que comunicou. E mesmo que reaja, se tal reação não estiver em conformidade com os propósitos que o comunicador estabeleceu, também não houve eficácia na comunicação (PALAFITA, 2012, p. 52).

38

Downing (2004, p. 59-60) pontua que apesar da contribuição da comunicação

alternativa na trajetória dos movimentos sociais, seu poder é mal avaliado em razão

de estar fora dos padrões da mídia convencional. Como avalia Alexandre Parafita

(2012, p.56), apoiado na máxima de Macluhan de que “o meio é a mensagem”, a

avaliação da eficácia da comunicação assim como a própria eficácia estão

diretamente ligadas à escolha do meio usado para influenciar. O autor destaca que a

mesma mensagem pode ter efeitos diferentes sobre a sociedade conforme o tipo de

meio usado no processo comunicativo.

Atualmente, a ideia de mídia alternativa não contempla apenas o aspecto de oposição política, mas também outras expressões – por vezes menos „combativas‟ – de diferentes grupos sociais que buscam manifestar ideias, projetos e lutas por meio da comunicação. O que se mantém, contudo, é o significado que tais produções assumem na defesa da liberdade de expressão das minorias sociais e do direito de comunicar como parte das

lutas pela cidadania (WOITOWICZ, 2009).

O meio de comunicação analisado neste estudo é um periódico impresso ligado

a uma ONG feminista, como já citado antes. A relação entre o movimento feminista e

a comunicação alternativa é de fundamental importância para o desenvolvimento do

movimento feminista, das ONGs de mulheres, e da publicização tanto da postura

ideológica do feminismo dentro no de uma sociedade cujas raízes socioculturais são

advindas do patriarcalismo.

Não obstante, também se articula como espaço de reivindicação, de

construção de cidadania, com caráter de conscientização. Ou seja, ao oferecer

temas e ângulos diferenciados e esclarecer fatos obscuros ou silenciados pelos

grandes veículos de comunicação alinhados a interesses comerciais, como

destacam Downing (2004, p. 49) e Mazetti (2007), a comunicação alternativa

pluraliza vozes e traz diferentes grupos para o debate público.

Nessa perspectiva, Peruzzo (2004, p.50) ressalta que o direito à comunicação

é um direito que integra a constituição da cidadania, destacando que os movimentos

sociais foram agregando às suas lutas cotidianas em prol de direitos sociais e

políticos a busca pelo acesso aos meios de comunicação como modo de exercer a

liberdade de expressão, tanto individual como coletivamente.

4.1 Imprensa Feminista O aprofundamento da fundamentação teórica acerca da imprensa feminista se

fez necessário, primeiro, pela própria proposta à qual este estudo se dedica;

39

segundo, por se perceber no referencial teórico relativo aos movimentos sociais e à

comunicação alternativa, de maneira mais específica, dentro dos grupos e

organizações de esquerda que constituíam os movimentos, como pontua Péret

(2011, p. 72), determinada inferiorização dos temas ligados a gênero, à imagem e

aos direitos da mulher na sociedade.

Nesse sentido, a imprensa feminista foi a saída encontrada pelo movimento de

mulheres para fortalecer o movimento e ter espaço de construção de suas próprias

narrativas. Privilegia-se, aqui, a imprensa feminista pós-74, associada ao feminismo

“mal comportado” e contestador, como denomina Céli Pinto (2003). Tal escolha é

justificada por dois fatores: pela trajetória do movimento de mulheres e sua força a

partir da década de 1970, e também em decorrência de o jornal Fêmea ser

produzido por uma ONG feminista cujo surgimento e atuação estão associados ao

movimento feminista pós-74.

Na década 1970, mulheres da classe média que se organizavam junto com

movimentos de esquerda contra a ditadura militar e propunham outra estrutura

político social para o Brasil perceberam, dentro dos próprios movimentos sociais,

determinado desprezo em relação à questão do combate ao machismo e à

resignificação da imagem da mulher na sociedade (PÉRET, 2011, p.72).

A necessidade de uma imprensa feminista colocou-se, assim, a partir da consciência de que os meios tradicionais de comunicação, esfera de atuação dos donos do poder, e até mesmo alguns setores da imprensa alternativa, ou ignoram a mulher, ou reforçam estereótipos discriminatórios a seu respeito, ou a manipulam enquanto objeto de consumo-consumidora. Ou seja, negam a existência de um falar feminino e, portanto, de uma mulher sujeito de sua fala e de seu desejo (BARSTED, 1983, p.14).

Nesse sentido, conforme Barsted (1983, p. 14 -15), a criação do próprio canal

de comunicação passa a ser meta do movimento feminista, enquanto necessidade

de criar e difundir um discurso feminino enquanto sujeito e cidadã, inserindo-se num

processo de conscientização, educação e reconstrução da representatividade

feminina. Como parte dessa estratégia de transformação da estrutura político-social

vigente, o movimento de mulheres também viu na imprensa feminista um caminho

para atingir os grandes veículos de comunicação, também responsáveis por difundir

a ideologia dominante.

No entanto, Barsted (1983, p.15) relata que esse processo de instauração de

um veículo alternativo e feminista não foi conquistado de maneira fácil. Tanto em

razão das divergências existentes com outros veículos alternativos, como também

40

das dificuldades financeiras para produzir revistas, jornais, boletins de maneira

independente, sem publicidade. Além disso, a autora destaca a “dificuldade de

mulheres jornalistas de assumirem o papel de pregadoras das novas ideias,

intelectuais orgânicas do movimento de mulheres”.

Zirbel (2007) pontua que além de divergências ideológicas, as militantes

feministas eram vistas por outros militantes políticos e pela sociedade em geral, por

meio dos padrões tradicionais de beleza e de orientação sexual. Assim, mulheres

feministas eram comumente apontadas como “mal amadas”, “sapatões”, “gordas”,

“perigosas” e “feias”. Ou seja, como um movimento anti- homem e oposto à

representatividade imposta ao gênero feminino, associada, sobretudo, à

feminilidade, vaidade, beleza, meiguice, delicadeza e submissão ao gênero

masculino.

Exemplo dessa postura por parte da própria imprensa alternativa é a entrevista

que jornalistas do Pasquim fizeram, em 1971, com a feminista norte-americana Betty

Friedan, durante a passagem desta pelo Brasil. A figura de Friedan havia até então

escandalizado o mundo em decorrência da queima de sutiãs em praça pública, nos

Estados Unidos, como forma de protesto à opressão à mulher na sociedade.

Segundo Zirbel (2007), além do descrédito por parte dos entrevistadores para com o

feminismo e as intenções políticas deste, a aparência de Friedan foi usada

posteriormente como motivo de zombaria ao movimento e às feministas.

Debértopolis (2002) associa essa perseguição à primeira fase da imprensa

feminista no Brasil, que foi inaugurada com o surgimento do jornal Brasil Mulher, em

1975, e do Nós, mulheres, em 1976. Ambos considerados por Bernardo Kucinski

(1991, p. 79) como precursores de outros jornais alternativos de cunho feminista.

Segundo Flávia Péret (2011, p.72), os dois veículos tinham o marxismo como

influência ideológica e “defendiam a emancipação social das mulheres”.

Autoras como Debértolis (2002) e Cardoso (2004) situam esse período como a

primeira fase da imprensa alternativa feminista no Brasil, marcada por confrontos de

posicionamentos com outros grupos também ligados à comunicação alternativa.

Entretanto, Elizabeth Cardoso (2004) ressalta que esse traçado histórico-temporal

não é uma linha divisória estática, pois a imprensa feminista “é um fenômeno social,

e como tal, dinâmica”.

Obviamente em alguns momentos essas categorias se misturam, mas o objetivo central [...] é perceber o fenômeno das duras gerações e descrevê-los em linhas gerais, o que não exclui a possibilidade de haver um jornal

41

feminista da década de 90 com as características dos periódicos da década de 70. (CARDOSO, 2004).

Como relata Woitowicz (2008), a imprensa feminista no Brasil, de maneira

geral, tinha características lineares nas publicações. O trabalho era feito com equipe

reduzida, formada por colaboradoras voluntárias, tiragem pequena e recursos e

conteúdo intimamente relacionados às questões feministas. Em 1981, com a

imprensa feminista já mais consolidada, surge o jornal Mulherio, formado por

pesquisadoras da Fundação Getúlio Vargas que davam ênfase a questões

relacionadas a comportamento e sexualidade da mulher (Woitowicz, 2012).

A partir década 1980, as publicações feministas tiveram intensa produção

editorial (Melo, 2003). Livros, revistas, jornais, boletins e produções eletrônicas foram

produzidos como instrumentos de uma ação política direta. A partir dessas

publicações, Jacira Melo destaca que o feminismo conseguiu aos introduzir

perspectivas de gênero, raça/etnia e diversidade sexual em outros movimentos

sociais, quebrando determinadas barreiras encontradas entre o movimento feminista

e outros movimentos como ocorreu na década de 1970.

Segundo Cardoso (2004), desse período, proliferaram dezenas de entidades

feministas ligadas a universidades, ONGs e conselhos estaduais ou municipais da

mulher, constituindo a segunda fase da imprensa alternativa feminista. Desse

momento destaca-se o surgimento do jornal ChanacomChana, primeiro jornal

lésbico-feminista, e o jornal Fêmea, fundado em 1992. Temas que eram tratados

com pouca especificidade, como o caso do racismo e da homossexualidade

feminina, encontraram espaço nesse segundo período da imprensa feminista.

Segundo a autora, o Fêmea, jornal produzido pela ONG Centro de Estudos

Feministas e Assessoria (CFMEA), em Brasília, surgiu com três principais

características dessa segunda fase da imprensa feminista. A primeira é ser editado

por uma ONG; a segunda, ser financiado pelo Estado e por entidades internacionais;

a terceira, tratar o tema gênero a partir de uma perspectiva político-legislativa,

buscando intervir diretamente na formulação de políticas públicas voltadas à mulher.

O conhecimento gerado até aqui sobre movimentos sociais, movimento

feminista e comunicação alternativa, por meio do referencial teórico, possibilitou

compreensão da dinâmica de funcionamento do CFMEA e de sua publicação, o

jornal Fêmea, para posterior aplicação da Análise de Conteúdo, como será visto a

seguir.

42

4.2 Comunicação do CFMEA

A trajetória do movimento feminista, como foi visto até aqui, está associada à

história da mídia alternativa. Desde cedo, o movimento enxergou a necessidade de

ser ouvido por meio de seu próprio espaço, apostando, no inicio, em um discurso de

conscientização e contra a estrutura político-social vigente. Os veículos feministas

denunciaram, informaram e mobilizaram mulheres na luta por direitos.

Dessa forma, da década de 1970 até o contexto atual, a imprensa feminista

tem funcionado como uma importante ferramenta para o fortalecimento do próprio

movimento e de suas pautas reivindicatórias, ao inserir a discussão acerca das mais

variadas questões que circundam os diferentes grupos de mulheres.

O CFMEA, antes mesmo de ser institucionalizado enquanto ONG, teve

atuações marcantes para o movimento de mulheres. Exemplo disso é “a conquista

de direitos importantes para as brasileiras na Constituição Federal de 1988 - dentre

eles, a igualdade de direitos e obrigações entre mulheres e homens (dos Direitos e

Garantias Fundamentais, cap. 1, Art 5º, inciso I CF/88)” (CFMEA, 2014).

Em seus 25 anos de existência, contados oficialmente a partir de 1989, o

CFMEA conseguiu conquistar mais de 100 leis direcionadas aos direitos das

mulheres, além de articular-se na criação da Política Nacional para as Mulheres.

Tais esforços são advindos da estratégia de atuação da ONG, que por meio da

institucionalização, característica dos movimentos dos anos 1990, busca intervir nas

decisões políticas.

A equipe do CFMEA é constituída por 17 pessoas, sendo três responsáveis

pela parte de Comunicação. As responsáveis pela gestão e pela tomada de decisões

no CFMEA estão na militância feminista antes mesmo da ONG ser criada, a exemplo

de Gilda Cabral.

O jornal Fêmea foi criado em fevereiro 1992, e além de se constituir como o

principal periódico impresso da ONG, também funciona como um importante canal

de comunicação entre o movimento feminista e os atores políticos envolvidos. De

acordo com a organização, o informativo “aborda as questões referentes aos direitos

das mulheres no Congresso Nacional e os grandes temas da agenda nacional do

movimento de mulheres”. No site da organização é possível ter acesso à versão

digitalizada do jornal, das edições publicadas a partir 1999 até dezembro de 2013.

43

Segundo o portal do CFEMEA, a tiragem é de 13 mil exemplares e a

periodicidade é trimestral. No entanto, observa-se que a partir de junho de 2012

essa frequência tornou-se irregular, ora sendo trimestral, ora semestral. O

impresso é enviado de maneira gratuita e distribuído, segundo Barbosa (2004), “às

milhares de mulheres de diferentes grupos: movimentos sociais, núcleos de

universidades, organizações não-governamentais, ou secretarias de mulheres dos

sindicatos e dos partidos políticos”. Também são distribuídos exemplares em

seminários, debates e congressos dos quais a ONG participa.

A partir de 2008, o Fêmea passou por uma reformulação de seu projeto gráfico,

que antes, como conta Woitowicz (2010), era produzido de maneira simples, com

poucos recursos de imagem e impresso somente na cor rosa. Com a mudança do

projeto editorial, o jornal adquiriu forma de revista, com fotos mais produzidas e

impressão com mais cores.

44

5. ANÁLISE DE CONTEÚDO NO JORNAL FÊMEA

Como citado no item Metodologia, a análise de conteúdo foi o método

escolhido para ser aplicado nesta pesquisa. A escolha foi procedida em razão dos

objetivos deste estudo estarem associados ao conteúdo e à sua materialidade

linguística.

Com o objetivo de verificar o uso do jornalismo enquanto modo de ativismo no

jornal Fêmea, foram selecionadas as edições publicadas entre janeiro de 2011 e

dezembro de 2013. O acesso ao material foi viabilizado em razão da digitalização do

periódico do site do CFMEA. O período foi escolhido em decorrência de 2011 ter

sido marcado pelo surgimento da marcha das vadias e o retorno da marcha das

margaridas, após 4 anos de latência.

O corpus desta pesquisa foi constituído somente textos jornalísticos. Artigos de

opinião foram excluídos devido à própria proposta deste trabalho, que é a utilização

do jornalismo por meio do Fêmea. Nesse sentido, das oito edições compreendidas

entre 2011 e 2013, foram coletadas 50 notícias e reportagens, e 7 entrevistas,

totalizando 57 conteúdos jornalísticos reunidos.

Em seguida, após a leitura desses conteúdos, buscou-se classificá-los de

acordo com a pertinência dos textos aos eixos de atuação apresentados pelo

CFMEA em seu portal: Orçamento e Mulher; Poder e Política; Enfrentamento à

violência contra as mulheres; Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos; Trabalho e

Proteção Social. Dessa classificação resultou uma tabela quantitativa que revelou a

linha de atuação à qual o jornal mais deu atenção jornalística nesse recorte

temporal.

Logo em seguida, buscou-se destrinchar esses eixos de atuação a partir dos

assuntos tratados nos textos e dos atores sociais usados para falar desses temas.

Nesta etapa foram considerados apenas os textos jornalísticos em que foram

consultadas fontes jornalísticas. Dessa forma, foi gerada uma segunda tabela, de

caráter quali-quantitativo, correspondendo a “de que se fala (assunto)” e a “quem

fala (atores sociais)”.

Tabela 1: Eixos de atuação x quantidade de textos jornalísticos

Categorias Quantidade de textos jornalísticos

45

Poder e Política 21

Trabalho e Proteção Social 16

Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos 9

Orçamento e Mulher 8

Enfrentamento à violência contra as mulheres 3

Por meio da Tabela 1 é possível perceber que os eixos de ação do CFMEA que

mais tiveram produções de conteúdo jornalístico no jornal Fêmea, durante o período

analisado, foram Poder e Política, correspondendo a 36,8% do total de textos

coletados, e Trabalho e Proteção Social, equivalendo a 28%. Esse resultado

confirma, em primeiro lugar, a estratégia de atuação centrada na tentativa de

influenciar decisões políticas relacionadas aos direitos das mulheres. Em segundo

lugar, demonstra a visão da autonomia financeira da mulher, a partir da inserção no

mercado de trabalho, das garantias dos direitos trabalhistas bem como as condições

que permitam que as mulheres sejam incorporadas ao mundo profissional, a

exemplo da criação de creches, como um dos caminhos para outras autonomias.

No que diz respeito às manchetes, das oito analisadas, seis se enquadram na

categoria Poder e Política, duas em Orçamento e Mulher e uma em Direitos Sexuais

e Reprodutivos.

Tabela 2: Mapeamento de assuntos e vozes

Categorias

De que se fala (assunto) Quem fala (atores)

Igualdade racial Luiza Bairros (Ministra e Fundadora do

Movimento Negro Unificado); Ban Ki-Moon (Secretário Geral da ONU);

Legalização do Aborto

Guacira de Oliveira (Socióloga); Fátima Bezerra (Deputada Federal PT/RN); Marta Suplicy

(Senadora - PT); Cleusa Silva (Articulação de Mulheres Negras Brasileiras – AMDB); Jandira Feghali (Deputada Federal PCdoB/RJ); Myllena Calasans (Assessora do CFMEA); Iriny Lopes

(Ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres – SPM); Creuza Maria de Oliveira

(Presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas – FENATRAD);

Reforma Política

Guacira César (Diretora do CFMEA); Luiza Erundina (PSB/SP); José Antônio Moroni

(Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC); Silvia Camurça (Articulação de Mulheres

46

Brasileiras – AMB);

Trabalho Doméstico Eneida Dultra (Advogada e colaboradora do

CFMEA);

Marchas/ Passeatas/Manifestações Carmen Foro (Coordenadora da Marcha das

Margaridas); Maria Paiva Lins (Movimento Passe Livre-DF)

Desemprego Feminino/Economia do Cuidado

José Eustáquio Diniz Alves (Professor do Mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas

Sociais da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE); Alicia Bárcena

(Secretária Executiva da Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe –

CEPAL); Gilda Cabral;

Plano Plurianual (Orçamento do governo federal e estadual para objetivos e metas)

Gilda Cabral (CFMEA); Tatau Godinho (Secretária de Planejamento da Secretaria de

Políticas para Mulheres); Célia Vieira

Violência contra a mulher Gilda Cabral (CFMEA);

Saúde da Mulher Gilda Cabral (CFMEA);

Programa de Agricultura Familiar/Mulheres Rurais

Gilda Cabral (CFMEA);

Programa Bolsa Família/Autonomia Feminina Simone da Silva Ribeiro Gomes (Especialista em

Psicologia Social); Silvana Aparecido Mariana (Socióloga);

Cúpula dos Povos/Justiça Socioambiental Schuma Schumauher (Articulação de Mulheres

Brasileiras - AMB);

Mulheres na Política Domingas de Paula Martins (Ex candidata a vereadora PT/PA); Luci choinacki (Deputada

Federal PT/SC)

Estado Laico/Fundamentalismo Religioso na Política

Noemi Oliveira Silva (Moradora do Paranoá (DF); Letícia Sabatella (Atriz); Luiz Claudio Cunha (Jornalista); Jean Wyllys (Deputado Federal–

PSOL/RJ);

A Tabela 2 desmembra os assuntos acoplados em cada eixo de ação que

constituiu a tabela 1, e os associa a atores sociais considerados respaldados para

falar sobre os temas tratados. Os resultados demonstram a atuação da ONG no

âmbito legislativo, acadêmico e da militância política. De todas as vozes mapeadas,

somente uma corresponde a uma fonte que não se enquadra nesses três contextos,

a da estudante Noemi Oliveira (moradora do DF), em uma matéria sobre

fundamentalismo religioso na política.

Tal cenário demonstra que o jornal Fêmea é usado para a comunicação com

outras instituições do movimento de mulheres, com parlamentares e com

47

acadêmicos. A própria distribuição do impresso confirma essa inferência, uma vez

que o jornal é enviado exatamente para o âmbito dessas três esferas sociais. Das 30

vozes ouvidas, apenas cinco não são mulheres, o que indica uma posição

programática de amplificar a fala feminina sobre as questões que lhe dizem respeito.

No decorrer deste trabalho, foi encontrada uma pesquisa realizada por Barbosa

(2004), cuja proposta foi a análise de conteúdo do Fêmea durante uma década,

desde o surgimento, em 1992, até 2002. O estudo deteve-se na verificação das

manchetes e sua classificação de acordo com as seguintes temáticas: orçamento;

gênero e raça; saúde; violência; trabalho; direitos sexuais e reprodutivos; poder e

política; e outros assuntos.

Este levantamento mostrou que as manchetes do Jornal Fêmea, entre fevereiro de 1992 e dezembro de 2002, estão distribuídas da seguinte maneira: • Poder e política – 94 manchetes; • Saúde – 45 manchetes; • Direitos sexuais e reprodutivos – 86 manchetes; • Trabalho – 58 manchetes; • Violência – 57 manchetes; • Orçamento – 7 manchetes; • Gênero e raça –15 manchetes; • Outros assuntos – 137 manchetes.”

(BARBOSA, 2004)

Os resultados da pesquisa de Barbosa (2004), quando comparados com o que

foi encontrado neste estudo, demostram que a ênfase dada ao âmbito político é uma

característica constante na atuação no CFMEA desde o seu surgimento.

É importante ressaltar que as matérias do jornal Fêmea não se limitam a

apontar problemas a serem solucionados pelos poderes legislativo e executivo, no

que diz respeito à cidadania dos diferentes grupos de mulheres, mas buscam

também mostrar ao público-leitor o que já foi conquistado, em termos de políticas

públicas, pela ação da ONG.

A análise dos temas abordados permitiu a percepção de uma identidade

feminina que se contrapõe às tradicionais representações das mulheres enquanto

mães, esposas, frágeis, submissas, dóceis. A identidade de mulheres percebida no

conteúdo do Fêmea refere-se à mulher enquanto sujeito de si, dona de seu corpo no

que diz respeito à liberdade sexual ou pela escolha do aborto, ativa no mercado de

trabalho e profissionalmente qualificada, e politicamente participativa, consciente de

48

seus direitos, como é possível notar nas matérias que constituem os anexos deste

trabalho.

Essa participação política das mulheres está diretamente associada à

estratégia de luta adotada pelas organizações sociais do “novo milênio”, nas quais a

luta por cidadania é tida como modo de inserção social e humanização da figura da

mulher.

Quantitativamente, as mulheres enquanto fontes jornalísticas ocupam a maior

proporção no Fêmea. As narrativas de ativistas de diferentes causas femininas, a

exemplo das trabalhadoras domésticas, pesquisadoras, mulheres parlamentares

reafirmam o periódico como um espaço alternativo de voz, em que são construídas

suas próprias narrativas e reforçada essa outra identidade feminina, a qual o

movimento de mulheres, neste caso especificamente o CFMEA, se propõe a

reconstruir.

Temáticas como Reforma política e Plano Plurianual são tratadas com

enfoques diferentes da mídia comercial. Esta diferença reside na perspectiva dos

laços identitários baseados na figura das mulheres e da inserção destas nas

discussões políticas. Os assuntos citados (Reforma Política e Plano Plurianual)

foram abordados pelo viés dos direitos femininos, através de um recorte de como

esses temas viriam a influenciar a participação e posição das mulheres e das

organizações feministas no cenário político-social dentro de uma sociedade

hierarquizada.

Tais discursividades são construídas por meio de atores sociais ligados aos

movimentos sociais e/ou especialistas (Ver Figura 1 e 2). Dessa forma, constituindo

uma abordagem diferente da mídia comercial, a qual costuma dar ênfase às fontes

consideradas oficiais. É importante lconsiderar nessas observações que o jornal é

produzido em Brasília, no centro das decisões políticas do país, o que reforça essa

roupagem voltada à intervenção por meio da cidadania.

Nesse sentido, dentro do eixo Poder e Política, os assuntos mais pautados

foram „Presença feminina nos espaços de poder‟ e „Reforma política‟, trabalhados de

maneira isolada ou em conjunto com outros temas. A reforma política é vista como

um caminho para ampliar a presença das mulheres nos centros de decisão de

poder. Exemplo disso é a matéria intitulada “O poder agora tem rosa choque por isso

não provoque”, em que é discutida, de maneira geral, a ocupação, embora pequena,

de mulheres em cargos de representação e decisões políticas, como o parlamento,

49

as conquistas resultantes da presença feminina nestes setores e a urgência de uma

reforma no sistema político eleitoral para garantir mais candidaturas e

consequentemente mais mulheres nos centros de decisão.

De fato uma reforma mais ampla do sistema político eleitoral é imprescindível. A adoção de listas fechadas, preordenadas, com alternância de sexo, financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais e o devido cumprimento de ações afirmativas que já constam da atual legislação são fundamentais para que o déficit democrático na representação das mulheres seja alterado (Jornal Fêmea, edição 168, janeiro-março/2011, p. 7). (Ver anexos, figura 3).

No eixo de Trabalho e Proteção Social, destaca-se a inserção das mulheres no

mercado, sobretudo as que possuem menos condições financeiras, autonomia

econômica e a garantia de sua permanência no mundo profissional por meio da

criação de creches, por exemplo.

Tendo que cuidar dos filhos, as mulheres, especialmente as que não têm condições de pagar escolas ou babás, não conseguem buscar trabalhos remunerados ou têm que optar por alternativas informais, sujeitando-se a condições de trabalho precárias e a remuneração mais baixa (Jornal Fêmea, edição 170, julho –setembro/2011, p. 8). (Ver anexos, figura 4).

Já em Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos os conteúdos temáticos que

mais se destacam relacionam-se ao enfrentamento ao fundamentalismo religioso,

que é visto nas narrativas como um dos principais empecilhos para o

reconhecimento da liberdade sexual e reprodutiva das mulheres.

Mas as semelhanças vão além: nenhum desses casos passou despercebido. Na semana seguinte às agressões homofóbicas, manifestantes se reuniram no parque Água Mineral, para realizar um beijaço - protesto político, onde várias pessoas se beijam, independente do gênero e orientação sexual, para combater os preconceitos.[...] São vozes que se erguem e resistem contra os fundamentalismos religiosos. E não estão sozinhas (Jornal Fêmea, edição 174, janeiro – julho/2013, p.4). (Ver anexos, figura 5).

No eixo Orçamento e Mulher o tema mais discutido pelo Fêmea no período

analisado foi o Plano Plurianual. É por meio deste que o governo organiza uma

planilha de verbas que serão utilizadas nos quatro anos de governo. Para o CFMEA,

informar a sociedade sobre como funciona esse plano orçamentário é uma maneira

de mobilizar as mulheres, alertar os parlamentares e garantir a destinação de verbas

para os direitos das mulheres nos diferentes setores, a exemplo da saúde, da

construção de creches, da geração de empregos, do enfrentamento à violência, etc

(Ver anexos, figura 6).

Na categoria Enfrentamento à violência contra as mulheres, o assunto mais

abordado refere-se à Lei Maria da Penha, sua implementação, dados estatísticos e

desafios (Ver anexos, figura 7).

É importante pontuar que nem todas as matérias analisadas, bem como os

assuntos abordados, são discutidas a partir da perspectiva das fontes jornalísticas. O

50

periódico costuma utilizar fontes nas matérias que obtêm destaque de capa, fato que

é percebido pelo número de atores sociais consultados no recorte temporal

analisado, que foi de 30 fontes em 2 anos.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em termos de considerações finais, este estudo tem como principal

contribuição o apanhado sócio-histórico aqui levantado sobre movimentos sociais,

em especial o movimento feminista, e a potencialização destes por meio do uso da

comunicação alternativa, enquanto espaço de suas próprias narrativas.

Foi possível perceber que na trajetória do movimento feminista não houve um

refluxo expressivo, em razão da institucionalização, quando comparado a outros

movimentos. As entidades feministas se reorganizaram de acordo com as “brechas”

cedidas em decorrência da reinstauração da democracia. Nesse sentido,

organizações, a exemplo do CFMEA, aproveitaram as oportunidades e adotaram um

novo modo de atuação, por meio do qual o movimento de mulheres consegue, no

contexto atual, incidir direta ou indiretamente nas decisões políticas que tangem os

direitos femininos.

Além disso, a comunicação alternativa, como pôde ser percebido aqui, além

de contribuir como veículo de informação e espaço de narração do movimento

também se tornou um campo de construção e resignficação de identidade.

Este estudo poderia ter obtido resultados mais quali-quantitativos. Uma

entrevista semi-estruturada poderia ter sido feita com os que integram o CFMEA, a

fim de extrair informações sobre o trabalho da equipe de comunicação que produz o

periódico Fêmea, de maneira que o estudo não se limitasse a dados quantitativos

mas também a informações qualitativas sobre a produção do jornal. Um estudo

comparativo com outro jornal feminista também poderia, e pode, ser realizado com a

finalidade de descobrir se a atuação com ênfase nos direitos e próximo ao campo

legislativo é uma tendência do movimento de mulheres do “novo milênio”. De

51

qualquer modo, essas possibilidades podem ser realizadas, até mesmo por outros

pesquisadores, em próximas oportunidades.

7. REFERÊNCIAS

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54

8 . ANEXOS

Figura 1

55

Figura 2

56

Figura 3

57

Figura 3 (cont.)

58

Figura 3 (cont.)

59

Figura 4

60

Figura 4 (cont.)

61

Figura 4 (cont.)

62

Figura 5

63

Figura 6

64

Figura 7