Imagens Do São Francisco

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    147sala do artista popularMUSEU DE FOLCLORE EDISON CARNEIROS A P

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    Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular

    Iphan / Ministrio da Cultura

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    MINISTRO DA CULTURAJuca Ferreira

    INSTITUTO DO PATRIMNIO HISTRICO EARTSTICO NACIONALPresidente | Luiz Fernando de Almeida

    DEPARTAMENTO DE PATRIMNIO IMATERIALDiretora | Mrcia SantAnna

    CENTRO NACIONAL DE FOLCLORE E CULTURAPOPULAR/CNFCPDiretora | Claudia Marcia Ferreira

    apoio

    Emater | MG

    Prefeitura de Cnego Marinho

    Associao de Amigos da Cultura da Regio de Januria

    realizao

    apoio institucional

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    Sala do Artista Popular

    RESPONSVELRicardo Gomes Lima

    EQUIPE DE PROMOO E COMERCIALIZAOCsar Baa, Marylia Dias e Sandra Pires

    PESQUISA E TEXTORicardo Gomes Lima

    EDIO E REVISO DE TEXTOSLucila Silva TellesAna Clara das Veste s (estag iria)

    DIAGRAMAOMaria Rita Horta e Lgia Melges

    FOTOGRAFIASFrancisco Moreira da Costa

    Marcel Gautherot (acervo CNFCP) p. 9

    PROJETO DE MONTAGEM EPRODUO DA MOSTRALuiz Carlos Ferreira

    PRODUO DE TRILHA SONORAAlexandre Coelho

    147sala do artista popularMUSEU DE FOLCLORE EDISON CARNEIROS A P

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    A Sala do Artista Popular, do Centro Nacional de Folclore e

    Cultura Popular/CNFCP, criada em maio de 1983, tem por objetivo

    constituir-se como espao para a difuso da arte popular, trazendo

    ao pblico objetos que, por seu significado simblico, tecnologia de

    confeco ou matria-prima empregada, so testemunho do viver e

    fazer das camadas populares. Nela, os ar tistas expem seus trabalhos,

    estipulando livremente o preo e explicando as tcnicas envolvidas na

    confeco. Toda exposio precedida de pesquisa que situa o artesoem seu meio sociocultural, mostrando as relaes de sua produo

    com o grupo no qual se insere.

    Os artistas apresentam temticas diversas, trabalhando mat-

    rias-primas e tcnicas distintas. A exposio propicia ao pblico no

    apenas a oportunidade de adquirir objetos, mas, principalmente,

    a de entrar em contato com realidades muitas vezes pouco familiares

    ou desconhecidas.

    Em decorrncia dessa divulgao e do contato direto com o

    pblico, criam-se oportunidades de expanso de mercado para os

    artistas, participando estes mais efetivamente do processo de valorizao

    e comercializao de sua produo.

    O CNFCP, alm da realizao da pesquisa etnogrfica e de

    documentao fotogrfica, coloca disposio dos interessados

    o espao da exposio e produz convites e catlogos, providenciando,

    ainda, divulgao na imprensa e pr-labore aos artistas no caso de

    demonstrao de tcnicas e atendimento ao pblico.

    So realizadas entre oito e dez exposies por ano, cabendo

    a cada mostra um perodo de cerca de um ms de durao.

    A SAP procura tambm alcanar abrangncia nacional, rece-bendo artistas das vrias unidades da Federao. Nesse sentido, ciente

    do importante papel das entidades culturais estaduais, municipais e

    particulares, o CNFCP busca com elas maior integrao, partilhando,

    em cada mostra, as tarefas necessrias a sua realizao.

    Uma comisso de tcnicos, responsvel pelo projeto, recebe e sele-

    ciona as solicitaes encaminhadas Sala do Artista Popular, por parte

    dos artesos ou instituies interessadas em participar das mostras.

    I31 Imagens do So Francisco / pesquisa e texto de

    Ricardo Gomes Lima. Rio de Janeiro :

    IPHAN, CNFCP, 2008.

    32 p. : il. (Sala do Artista Popular ; n. 147).

    ISSN 1414-3755

    Catlogo da exposio realizada no perodo de

    23 de outubro a 23 de novembro de 2008.

    1. Arte popular Minas Gerais. 2. Artistas populares

    Minas Gerais. I. Lima, Ricardo Gomes, org. II. Srie.

    CDU 7.067.26(815.1)

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    RICARDO GOMES LIMA

    O norte de Minas Gerais constitui uma regio quenas duas ltimas dcadas tem estado presente com certaregularidade na Sala do Artista Popular. A cermica emespecial potes, pratos, panelas e moringas do Candeal,localidade rural do municpio de Cnego Marinho (SAP76); os cestos de bambu tranados pelos irmos Valdivinoe Valdomiro Campos (SAP 110)e os objetos em flandres

    confeccionados por Seu Irnio, nico flandreiro em atividadena regiode Januria (SAP 122); as violas, rabecas e caixas instrumentos musica is de So Francisco (SAP 124); a ima-ginria sacra esc ulpida por mestre Manoel Silvio Fonseca, deBuritizeiro (SAP 133); os bordados da famlia Dumont,dePirapora (SAP 130); e os piles, gamelas e colheres de paudos gameleiros1do Bom Sucesso, no municpio de Pedrasde Maria da Cruz (SAP 104), so expresses dessa presenae atestam o diversificado repertrio dos fazeres que resultamda riqueza da inventiva popular na regio.

    Esta exposio vem se somar unidade das demaismostras, posto que todas so expresses vivas de culturas

    singulares. Nesse sentido, cada uma reflete uma realidadeparticular, expressa uma verdade que nica e prpriado grupo social que lhe d forma, seja esse grupo formadopor ceramistas, carpinteiros, cesteiros, flandreiros, mestresdo tranado, da escultura em madeira ou dos bordados.

    Ao mesmo tempo so exposi es de objetos forteme ntemarcados pela tinta regional, que lhes confere coloridoparticular, que nos permite falar em identidades, j queos objetos podem ser identificados como originrios daquelaregio, distintos de outros produzidos em diferentes pontosdo pas ou mesmo no estado de Minas Gerais.

    A regio guarda expresses de grande relevncia do quese convencionou chamar arte popular.2Danadores de SoGonalo, folias-de-reis, folias do Divino, grupos de pastori-nhas, cavalhadas e reisados, restringindo-nos sperformancescoletivas, so algumas das chamadas manifestaes folclri-cas cuja presena evocada sempre que se quer dar nfase tradio e capacidade de resistir importao de modelosde comportamento e formas culturais externos regio.

    Assim tam bm ocorre no campo da produo plstica.Diversos so os artistas que, utilizando materiais distintos,mais comumente o barro e a madeira, do expresso a cria-es plsticas definidoras de um fazer artstico caracterstico.Re

    zaparaSoGonalo,

    GalpodoCandeal.CnegoMarinho,ago/2008

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    processo de criao desses indivduos, servindo-lhes dematria-prima para o imaginrio, de fonte inspiradora paraa constituio de seus sonhos e de suas obras.

    A i mportnci a do rio da integra o n acional parao desenvolvimento socioeconmico da regio, e mesmo paraa economia do pas, ponto por demais conhecido de todos.No cabe a ns, portanto, nos determos no tema aqui, dadasua abrangncia e as questes que suscita. Para nossos prop-sitos, no entanto, pertinente o reconhecimento da relaoparticular existente entre o rio e os processos artsticos em

    Nesta oportunidade, a Sala do Artista Popular apresentaao pblico freqentador de seu espao no Rio de Janeiro,enquanto registra para um pblico e um tempo outros, pormeio deste catlogo, a obra de sete artistas residentes nosmunicpios de Januria e Cnego Marinho.

    Para alm da singularidade das obras que realizam, dese notar a unidade dessa produo. Na madeira, na pasta for-mada pela mistura de papel e barro, nas pinturas leo sobretela e nas aquarelas, todos eles se voltam para o registro daregio, preocupados em fixar os aspectos de uma realidadeque tende a se tra nsformar, ou nela se inspiram, reproduzindo

    a paisagem fsica e cultural, seus tipos humanos, os costumessociais que marcam as maneiras de viver das populaeslocais. O que nos leva a pensar em uma arte regional.

    No regionalismo que domina a produo desses artis-tas, um fator se destaca: a referncia ao rio So Franciscoe sua importncia tanto para a vida social, para as cidadesribeirinha s e para o desenvolvimento da regio, quanto parao imaginrio de todos a populao em geral e os prpriosartistas. Isso patente nos depoimentos colhidos, nos quaisa referncia ao rio uma constante, marcando a realidadesocial, as histrias de vida de cada um, projees e deva neios.Sem dvida, o So Francisco componente primordial do

    geral, uma vez que a referncia se apresenta no discurso e naobra dos artistas aqui enfocados.

    A relevnc ia do So Francisco no univers o da produ-o artstica nacional no vem de hoje. O rio refernciaem Guimares Rosa e em muitos outros escritores, poetas,msicos, pintores, escultores, fotgrafos. Inmeros so osartistas que nele se inspiraram para criar suas obras, ouque as criaram em relao direta com ele. Para nos ater aocampo especfico das artes plsticas populares, basta quenos recordemos de Francisco Biqiba de Lafuente Guarany(1884-1987), o grande mestre Guarany, exmio escultor de

    figuras de proa. Essas peas, mais tardebatizadas como carrancas, esculpidasem troncos de madeira macios, deforte impacto visual, no passado, eramcolocadas frente das embarcaes quecruzavam o mdio So Francisco tendopor funo proteg-las contra a aomalfica dos sobrenaturais que habita-vam as profundezas das guas, comoo minhoco e o caboclo dgua, e iden-tificar a embarcao que se aproximavados portos de cada cidade ribeirinha.3

    Desaparecidas dos barcos em mea-dos do sculo 20, data que c oincide coma introduo do motor na navegaoregional inovao a que a populaonativa atribui responsabilidade no de-saparecimento dos sobrenaturais do rio,devido ao barulho que os afugentava, as carrancas foram destitudas docarter protetor que at ento as definia,muito embora permaneam como umdos temas mais recorrentes na obra dos

    artistas regionais. Desenhada, pintada,modelada, moldada, esculpida, empapel, tinta, massas plsticas diver-sas, barro ou madeira, atualmente,a carranca tema quase que mera-mente decorativo ao se converter emobjeto para compor ambientes, para secarregar em chaveiro, m de geladeirae suvenir para turistas que viajam pelaregio, ou item com que a populaolocal presenteia amigos e parentesquando em viagem a outros centros.Ca

    rrancadeGuarany

    CarrancadeJosFrancisco

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    E a irm, Lindaura, comquem mora, junto a maisum irmo, confirma: Parair a Januria tinha que ira cavalo e era muitas horas.Chegava tudo duro, o cor-po doendo. Assim s e criouLucindo, no meio rural,distante dos progressosda civilizao.

    Ali, certo dia, o garo-

    to, que j tinha uns oitoou dez anos, brincava com

    seus boizinhos no terreiro quando ouviu ao longe uma zo-ada. Era um som estranho, at ento desconhecido. O somfoi crescendo, crescendo e o menino, apavorado, deixandopelo caminho os sabugos, aos pedaos, pisados, destrudos,fugiu para dentro da casa. Foi com pavor que, pela janelaentreaberta, viu passar, jogando poeira para todos os lados,um ser nunca antes imaginado. Assim Lucindo narra seuprimeiro contato com um caminho.

    Foi tambm por aquela mesma poca que Lucindocomeou a dar vazo a seu universo imaginrio, externando-o

    por meio de grafismos riscados no cho de terra batida.As riscaduras, feitas com graveto, reproduziam elementosda realidade ou mesmo imagens idealizadas, retiradas daimaginao.

    Por volta dos 12 anos fez sua primeira escultura: a imagemde um santo esculpida num pedao de barriguda, madeiracomum na regio, macia, gentil, que no ops resistnciaao corte da faquinha cega que o garoto usava pela primeiravez. Pintou-a de preto e, orgulhoso, saiu a mostrar seu feito vizinhana. A madrinha, que o viu c hegar, admirou a imagem

    Entretanto, essa arte regional no se faz apenas de rios ecarrancas, mas abarca muitas outras expresses presentes emtodo o vale do So Francisco. o que revelam as obras emexposio, resultado da criatividade dos artistas selecionados,nascidos na regio no decurso de 30 anos e aqui apresentadoscronologicamente.

    Sete indivduos. Pessoas comuns como tantas outrastambm nascidas na regio. Mas, a despeito das diferenas,histrias de vida, vises de mundo particulares, caracters-ticas de personalidade que os tornam indivduos, nicos,inconfundveis, so artista s que fizeram da regio, da geogra-

    fia cultural, das paisagens e tipos humanos e sociais o foco deseus interesses. Nesse sentido se irmanam, se confundem.

    LUCINDO, PARA QUEM O SONHO UM DESEJO OPRIMIDO

    Lucindo Barbosa dos Santos nasceu em 31 de outubrode 1951, na localidade de L apa do Tejuco, no municpio de

    Januria. Filho de pescador, ficou rfo nos primeiros anosda infncia; com cinco irmos, foi criado pela me. Naqueletempo, isso aqui no tinha nada . O brinquedo de menino deantigamente era brincar de chiqueirinho, de curralzinho desabugo, fazer aqueles boizinhos de s abugo de milho,4diz ele.

    do santo e, segundo o costume, benzeu-se. Em seg uida, parasurpresa de Lucindo, presenteou-o com um ovo de galinha.

    Acreditara que o menino sara a pedir esmola. Voltando casa,o ovo foi comido e o santo no mais saiu; ficou o incentivo paraque outras figuras fossem esc ulpidas, alm da lembrana queLucindo revive com meio sorriso permeado pela saudade.

    Lucindo atribui o princpio de seu trabalho, a origemda arte que cria ao esculpir figuras em madeira, em parte,ao acaso. Como tantos outros artistas populares deste pas,relaciona a um difuso dom a inclinao para a arte, que,no incio, no foi assumida como tal. Era mero fazer, pas-

    satempo de criana.5

    As peas, eu fazia, deixava em casa,pra brincar. A o povo chegava, via e gostava. Era boizinho,cavalinho, carrinho de bois. Da uns queria comprar.E assim comeou.

    A primeira pea que vendeu foi esculpida num tronco decaj. Foi um galo. Dos muitos que desde ento tem criado.Galos, galinhas, rodeados de pintinhos. Tudo pintado comtinta de madeira, procurando reproduzir com fidelidadeas cores reais dessas aves e constituindo peas que, revela,so uma de suas temticas preferidas.

    Atualmente e st fazendo ma is forr pois o povo achamais importante. Tambm gosta de esculpir casais de

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    lavradores, carrinhos de boi,figuras de velhas as pessoasolham e vem a aparncia daav. A compram. So velhasde boa aparnci a.

    Sua predileo mesmoa madeira. Das diferentesespcies da regio, imburanareserva lugar especial porque

    macia e responde bem ao corte e lixa. Suas peas soesculpidas com auxlio de formo, faquinhas e furadeira.

    Toda a produo comerciali-zada por intermdio do Centrode Artesanato de Januria.

    Alm de esculpir, Luci ndotambm pinta painis e car-tazes para escolas e igrejas daregio. Aproveitando faixas depropaganda j utilizadas, reco-bre-as com tinta branca paraencorpar mais, tornando-asmais resistentes. Uma vez secas,repinta-as, especialmente com

    imagens de santos. ofcio associado crena religiosa, poiso artista catlico e grande devoto dos santos de sua relig io.Eu gosto das coisas de Deus, afirma. A escola, freqentouat a terceira srie primr ia na prpria localidade do Tejuco.Muito embora saiba ler e escrever, no assina as peas quecria. E nem v razo para tal.

    Indagado acerca do processo de criao, assim seexpressa:

    A gente pensa mui to, imagina muito e o sonho um de -sejo oprimido. noite, eu sonho que estou trabalhando,

    fazend o um a pea . O que a gente pensa, o que a gen teimagina, a a gente sonha. Eu j sonhei em pintar qua-dro em floco de algodo. E nunca tentei pintar. Forraro quadro todo de floco de algodo e pintar, formando asnuvens, as rvores...

    O artista tambm exmio msico. Sanfoneiro, acom-panha o terno de reis da localidade, em apresentaes deporta em porta por ocasio do ciclo natalino.

    Eu tinha muita invocao. A eu pegava uma nota, pen-sando que no... eu conseguia acertar. A a influncia foi

    crescendo na gente. Eu tinhauns 20 anos. Aqui tinhao Batistinha que tocava napoca. A eu ficava olhan-do. Tinha um irmo quetocava tambm. A depoisele parou e passou a sanfona

    pra mim.

    Seu repertrio incluitanto peas do c ancionei-

    ro tradicional da regio como as msicas deSo Gonalo e de reis ,

    quanto as canes de Luiz Gonzaga, de quem se revelagrande admirador.

    Alm das artes de pintar e esculpir, de tocar e cantar,Lucindo tambm agricultor. Alterna os fazeres do mundoartstico com a lida da roa, em terras que herdou da me.Diariamente, janta s quatro horas e se deita por volta dasseis da tarde para se levantar cerca de quatro da manh.Vspera de festa, deita-se ainda mais cedo, preparando-separa a noite seguinte, pois, diz, no tem sono que me barra.

    Numa ocasio, pegoua sanfona e tocou 36rodas de So Gona-l o , co n t i nu a ment e ,por algumas horas.

    Na roa, que aven-tura porque tem anoque chove mais mas temano que chove menos,planta milho, feijo, ab-bora, mandioca, produtos

    tradicionais e base da ali-mentao familiar. Como que colhe, al imentatambm as gal inhas eum ou outro porco mantido pela famlia para o consumodomstico. O excedente da produo, em ano prdigo, vendido. Mais recentemente, passou a plantar mamona,cuja semente comercializada em Januria. O dinheiro,assegura, lhe permite que viva no cantinho da gente.

    A gente vive fel iz.

    Arcos de S o Gonalo. Localida de deOlhos d'gua, Cnego Marinho

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    VALDIR E O REGIS TRO DOS TIPOS HUMANOS

    Valdir Rodrigues daSilva nasceu em 12 deagosto de 1961. Trabalhana portaria de uma em-presa estadual de serviosurbanos, no centro de

    Januri a. Seu dia-a-d ia,no entanto, no se resume rotina do emprego; se

    completa no quintal dacasa em que mora coma esposa e filhos, onde,ouvindo o cantar inces-sante dos galos criados

    por um vizinho no quintal ao lado, modela figuras que retra-tam principalmente o mundo rural da regio em que vive.

    Mulher descascando pequi, debulhando milho, ralandomandioca, socando no pilo, dando comida para criana,amamentando, grvida, vov tricotando, pes cador, lavrador,lenhador, carro de boi, carroa de burro compem a tem-tica desenvolvida pelo artista. Em parte porque completa

    sua alma, como afirma. Em parte porque esta a demandados turistas que, em busca do produto tpico da regio,visitam o Centro de Artesanato de Januria, local ondeo artista comercializa toda a produo.

    Os objetos so feitos de uma pasta resultante da misturade barro, papel e cola. Os primeiros trabalhos eram feitoscom um tipo de papel grosso, at que resolveu troc-lo porpapel higinico, facilitando a modelagem e a secagem daspeas, que no so levadas ao forno para queima. Feitasa mo com auxlio de ferramentas simples, como faquinhas,

    furador e chave de fenda, as peas, quando seca s, so pintadascom tinta acrlica para parede, de origem industrial.

    Diferente de outros artistas populare s, sua arte no vemda infncia e sequer foi herdada dos pais, conforme o tradi-cional repasse de gerao a gera o. Sua me era originriade Carinhanha e o pai nasceu no municpio baiano de Nazardas Farinhas, sem que tenham participado de qualquer uni-dade de produo artesanal que lhes possibilitasse transmitiraos filhos os conhecimentos aprendidos.

    Indagado acerca de sua produo, que identifica como universo artstico, o artista assim se expressa:

    Eu no tenho palavra pra e xplicar o que arte, no. Muitasvezes eu vou l no Centro de Ar tesanato, fico olhando aquilotudo l e no sei explicar. Fico pensando: alguma coisada alma. uma coisa espiritual. No tenho palavra paraexplicar. o mesmo que a gente querer e xplicar a f da gente.

    A f religiosa. alguma coisa que a gente sente. No coisapra ser explicada. No se explica esse tipo de coisa. Explicararte a mesma coisa que querer explicar uma pedra. Po rquea pedra tem muito detalhe, muita coisinha. Eu no tenho

    palavra pra expl icar o que arte para mim.

    Religio e arte se constituem emdois universos de grande importnciapara o artista. H algun s anos, tornou-se evanglico e hoje di cono da igrejaque freqenta. Talvez esteja a a expli-cao para ter tomado a religio comoparmetro de comparao com a arte,realidade que, confessa, ser de buscaconstante. Tendo iniciado a produode figuras h pouco mais de cinco anos,Valdir revela continuar procura da pea perfeita, aquela

    que ir completar plenamente seus anseios de artista.

    Eu tenho na minha mente o desejo de fazer uma coisaindita porque eu nunca estou satisfeito com o trabalhoque fao. Quando termino de fazer um trabalho, olhoe acho que est bonito, mas sempre falta alguma coisa.No sei o que mas sinto que sempre falta alguma coisa.O pessoal diz: moo, t lindo!, mas no meu ntimo mes-mo, nunca fico satisfeito. Falta alguma coisa.

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    CARLOS: MORENO NA COR, MORENO NO NOME, MORENO NA ARTE

    Carlos Roberto Gon-alves filho de PedroLuz Lisboa e de TerezinhaGonalves Lisboa, temtrs irmos e nasceu em8 de agosto de 1965, nazona rural conhecida porLimoeiro, na localidadede Levinpolis, municpio

    de Januria.Carlos revela ter lem-brana de que por voltados quatro anos de idadefez seus primeiros dese-

    nhos e conta: aos sete comecei a entender um pouco o queera desenho. E aos dez foi quando me defini como desenhista,desenhando personagens de revista em quadrinhos comoZorro e Fantasma.

    A de sp ei to de um a de f in i o t o pr ec oc e,o desenho no se configura como nico experimento vividopelo artista no decorrer de sua vida.

    Fui vaqueiro, capinador na roa, cortador de cana, vigiade arroz, zelador, faxineiro, balconista, empacotador,entregador, motorista, almoxarife, auxiliar de administra-o, faturista, auxiliar de contabilidade, administrador,

    gerente, vendedor, comprador, cartazista, letrista, pintor deparede, professor, escritor e poeta nas horas vagas, locutor derdio, promoter, mestre de cerimnias, jornalista, redator,editor de vdeo, fotgrafo, cabo-man, cinegrafista, designer

    grfico, art e-finalis ta.

    Muitas ocupaes, andanas, experincias. No entanto,

    a proximidade com as linguagens artstic as constante, ondequer que esteja. Acho que j nasci artista, declara.Em 1985 realizou sua primeira exposio, na Praa

    Getlio Vargas, em Januria. Na poca no vivia da arte e tra-balhava numa cooperativa. Eu no tinha uma linha definidado que queria. Via nos livros expressionismo, surrealismo,abstrato, paisagismo. No sabia o que era isso tudo. Notinha especificidade de arte. A comecei estudando.

    No final dos anos 1980 estava morando em Pirapora,empregado em uma grande empresa nacional que realizouum concurso de arte entre os funcionrios das muitas unida-des distribudas pe lo pas, do qual Carlos saiu vitorioso com

    o desenho que havia preparado. Foi assim que v iajou ao Riode Janeiro e, pela primeira vez, vislumbrou a possibilidadede viver da arte.

    Do Rio, Carlos foi para So Paulo, onde trabalhou nodepartamento de arte de uma grfica, dedicando-se arte-final para montagem de clichs. Retornando a Januria nadcada de 1990, comeou a fotografar Candeal, Peruau,Pandeiros, beira do rio So Francisco. Queria um olhardiferenciado dos demais fotgrafos, na busca de um tipoparticular de fotografia que captasse imagens e expressasseseus anseios de artista.

    Hoje possui um acervode 5 mil fotos, resultado deseus registros pela regio. Foia partir dessas imagens quechegou aos cartes-postaisilustrados com aquarelas, quereproduzem paisagens, cenase tipos humanos da regio de

    Januria.A re sp ei to do nom e,

    Carlos adotou o designativo

    Moreno no final dos anos1990 por necessidade detrabalho. Naquela poca,pouco depois de retornar para Januria, comeou a tra-balhar numa rdio comunitria, onde havia mais quatroCarlos. A coincidncia de nome criava muitos problemas convivncia diria. Foi-lhe sugerido ento que adotasseo codinome Carlos Nego, que achou muito pesado, davauma conotao muito racista; depois desse, Carlos Moreno,nome que adotou.

    Embora tenha gostado do nome escolhido, continuou,no entanto, a sentir que ainda faltava um componente que

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    lhe desse identidade como artista. Em 2002, iniciante emdesenho de humor, participou do I Salo de Humor deMontes Claros, onde conheceu o cart unista Ziraldo, que comele concordou: o nome Carlos Moreno era bom mas, comomarca artstica, fa ltava algo. A seguir, o amigo, Marcio Leite,tambm artista, sugeriu que reduzisse seu nome para More-no, simplesmente. Assim fez. Mudou para Moreno, apenas,e o nome pegou, embora tenha permanecido a sensaode incompletude por ainda no ser este um nome artstico.Eu pensava: moreno no uma cor. Eu vou ter que trans-

    formar isso em cor. Minha vida essa cor. Cor morena.Foi ento que, retornando s lembranas da inf ncia, do

    local onde nascera e vivera seus primeiros anos, prximo aovale do rio Peruau, lembrou-se de que ali perto havia umpovo ceramista cuja identidade era dada pelos desenhos comque guarneciam seus potes. Eram as mulheres do pote, quepouco mais tarde passariam a ser c onhecidas como mulheresdo Candeal6.

    Tradicionais produtoras de loua de barro, essas mulhe-res adornavam as peas que produziam, ao mesmo tempoque lhes atribuam identidade particular, com volutas e

    arabescos desenhados c om tau, espcie de pigmento naturalde origem mineral constitudo por dixido de ferro. Espe-cialmente um arabesco, no formato de espiral em sentidocontrrio ao movimento do relgio, chamou a ateno doartista, que o incorporou a seu nome, em substituio letraO, consagrando-se assim sua assinatura.

    CARLOS ROBERTO: O POVO, OS VAPORES E O RIO

    Carlos Roberto Barbosade Souza nasceu em 24 deagosto de 1966, em Januria,de onde jamais saiu, seguin-do os passos de seus pais quetambm nunca deixaramo municpio.

    Carlos se recorda quetinha entre 12 e 14 anos quan-

    do, pela primeira vez, tomoude um pedao de madeirapara com ele criar uma pea.Primeiro, procurou construiruma embarcao. Daquelas

    que, desde menino, via descer e subir o So Francisco, comoo vapor que ao longe apitava avisando a populao de suaaproximao, fazendo o garoto deixar todo brinquedo e c orrerao porto para v-lo atracar. Foi no mato, cortou um galhoainda verde de imburana e ps-se a calcular como faria paratransformar aquele tosco pedao de pau no belo vapor, dediversos andares, que tanto admirava. Fiquei imaginando...

    tem aquela parte de cima... tem a parte de baixo... tem umandar... tem uma escadinha...

    Numa das primeiras peas que fez, serviu-se de lascasde madeira compensada do guarda-loua da me parafazer os andares e detalhes do vapor. Tambm, justifica,o mvel j estava meio desgastado mesmo. A me tinhao hbito da sesta e era e sse o momento escolhido por elepara ir extraindo os pedaos de que necessitava para suaobra. A me ouvia o estalar da madeira sendo partida e,do quarto, perguntava:

    Bancadacomp

    easeferramentasnaoficinadoartis

    ta

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    Que barulho esse a, menino?Eu falava: Nada. No nada no, me. E corria. Eu

    puxava uma tabuinha e corria para o quintal. A eu ficaval fazendo.Minha me vinha: Moo, o que voc est fazendo? Nada no, me. Estou fazendo um barquinho aqui. Moo, voc est acabando com o fundo do meu guarda-loua?E me pegava de cascudo. Mas eu continuava. E minhame falou: Ah! Pode pegar e acabar com o armrio. Voc j quebrou

    tudo mesmo!E jogou l no quintal. A eu aproveitei. Assim eu fuiaprendendo. E para mim estava bonito.

    O gesto da me, aparentemente rude, pode tambm serentendido como um incentivo para que Carlos prosseguisseem seu propsito de fazer objetos de madeira. Revelandodeterminao, enfrentava a crtica dos irmos que volta emeia diziam: Moo, por que voc no arruma um servio?Deixa disso de mexer com pau.

    E assim o tempo foi passando e Carlos, j rapaz, comseus 18 anos, fazia objetos variados, tais como porta-ovos,

    porta-leo e saleiro. Utilitrios que levava para vender naCasa da Memria de Januria. Foi l que conheceu, almde dona Maura, gestora da instituio, o casal Waldeci eMrcia, artistas que, congregando diversas pessoas, cria-ram o grupo Arte e Mo, que lutava pelo apoio s artes e oartesanato na cidade.

    Foi tambm na Casa da Memria que Carlos viu pelaprimeira vez uma pea feita por Lico, um dos escultores de ma-deira mais consagrados da c idade. Tratava-se de um vapor:

    Eu fiquei doido. Eu vi a pea de le

    e admirei. No era inveja, no.Que trabalho bonito! Que caraque trabalha bem!Uma vez eu falei: Um dia euainda fao um barco desse.Tinha um tio dele que ouviu eriu: , isso a s pra quemtem mesmo memria.

    A bus ca pela expr es so emmadeira que se iniciara no meninode 12 anos encontrou seu caminho

    na obra do grande artista.O primeiro grande vaporque Carlos construiu media1,60m e foi todo feito emimburana. Ficou perfeito.O casco dele ficou perfeito,s a gabina [cabine] que fi-cou pequena. Aquela parte

    de cima ficou pequena. So dessa mesma poca, por voltade 1984, os primeiros boizinhos, carros de boi, canoas eembarcaes em geral.

    Os boizinhos saam meio buchudos. As canoas, eu no tinhamuita base, via as canoas dos pescadores mas no tinhabase na hora de cortar na madeira. No sabia como eraa bitola, e as propores, largura, altura. Eu fazia umascanoas que pareciam uma gamela. Mas achava que estavabonito demais e levava pra Casa da Memria.

    Na Casa da Memria Carlos encontrou as primeirasorientaes tcnicas para o trabalho que viria a executar,destacando a importante contribuio que Waldeci Guima-res teve em sua obra:

    Ele chegava e falava: Olha, pra voc ver. Vou te daruma idia: estreita mais uma canoa dessas e veja quediferena.Eu olhava pra canoa e achava que a mais la rga estava maisbonita pra mim e a estreita estava muito sequinha: Istoest muito feio demais, moo!Mas a Waldeci falava pra mim: No, Carlos. Voctem que ter a proporo das coisas. De largura. Essa aqui

    ficou mais bonitinha, estreita, e essa aqu i est par ecendouma gamela.Eu falava assim: Esse cara est gozando de mim. E ia

    embora. Passados uns tempos, vi que ele estava certo. A,as primeiras canoinhas que eu fiz mais estreitas, venditudo, e as canoas mais largas, no vendia quase nada.E a eu fui indo. O Waldeci me ajudou muito. Hoje, aVnia, a Teresa, o pessoal do Centro de Artesanato, meajudam tambm.

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    SILVIO: O MUNDO EM MINIATURA

    Silvio de Almeida Lisboanasceu em Januria, em 14 desetembro de 1967. O mundoda madeira est presente emseu grupo familiar h, pelo me-nos, trs geraes. O av faziaservio rstico, como afirma,pois entalhava colheres de pau,piles, gamelas. O pai seguiu

    seus passos fazendo os mesmosobjetos utilitrios para atender demanda do mercado regional.

    Criado nesse meio, Silvio tambm se dedic ou ao entalhedesse tipo de objetos at descobrir que toda sua predileose voltava para a confeco de peas midas, redues domundo real que executa na madeira procurando observardetalhes mnimos. So vapores, barcos, canoas, carrancas,colheres de pau, gamelas, piles. Em muitos deles, vendidosprincipalmente no Centro de Artesanato e em boxes doMercado Municipal mediante pedido, escreve Lembranade Januria, constituindo-os suvenires da cidade.

    Gosta de fazer pea pequena,explica, porque recebe a encomendade um tanto de coisa. A, traba-lhando de modo seriado, executao pedido com maior rapidez. Pri-meiro prepara todas as partes, umaa uma, reservando-as para, a seg uir,pregar e colar, finalizando as peas;fazendo uma sozinha parece quedemora mais e a gente enjoa.

    Suas primeiras minia-

    turas, gamelinhas, foramvendidas para um bar dalocalidade de Brejo do Am-paro, onde reside com o pai.Era ainda bastante jovem,tendo iniciado a mexer commadeira por volta dos noveanos de idade.

    Eu tinha nove anos quando saiua primeira pea minha. Pegavaa faca e comeava a cortar. Meu

    pai via e brigava comigo: Menino, larga isso. Voc vai se cortar.Eu largava. Quando ele no estava perto, depois que ele davaas costas, eu pegava de novo e assim fui aprendendo.

    Os anos se passaram e, atualmente, com pouco maisde quarenta anos, Silvio tem o pai como referncia paraseu trabalho. Alm de atuarem juntos diariamente, o pai uma espcie de balizador do que o filho realiza. Se hoje jno mais o agente de comercializao da produo filial,continua a auxili-lo, aconselhando sobre a melhor maneira

    de executar um trabalho, julgando o resultado daquilo queSilvio constri.

    A pr imeira pecinha que eu fiz pra v ender mesmo, foradaqui, foi um vaporzinho, sem a portinha e janela. Meu

    pai levou pra um moo que comprava as coisas da mo delel no mercado. Quando chegou l, ele mostrou para o mooe a pea passou no teste. A eu falei que era professor e fui

    fazendo out ras. Mas at hoje, l em casa, quando eu esto ufazendo uma pea , eu pergunto a ele se o lugar d e col ar ali mesmo, se tem aquilo mesmo. Porque eu tenho que

    fazer do jeit o que a pea foi. D o jeito que .

    Silvio trabalha com ti-pos variados de madeira:imburana-vermelha, im-burana-de-cheiro, cedro,pinho. Na realidade, cons-tri suas peas com qualquertipo de madeira que se sujei-te, sem partir ou esgarar,ao corte do serrote, da plai-na, da faquinha afiada. Suas peas podem ser envernizadas,de acordo com a prefernc ia do comprador, dado que muita

    gente gosta natural, outra gente gosta com verniz. Dependeda pessoa. Quando ocorrem encomendas, trabalha diaria-mente, em horrio integral. Por vezes, at mesmo noite,quando costuma colar as partes que, uma vez unidas, for-mam as peas. Embora dirio, o trabalho tem, geralmente,ritmo intermitente, com vrias paradas durante o dia.A arte fora muito a gente. Voc tem que parar um pouqui-nho, deixar pra l, depois tornar a pegar. Voc tem que estarcom muita calma, no estressar no. Tem pea que muitodelicada, tem que botar calma seno quebra tudo.

    Silvio estudou at a stima srie do curso primrio.O colgio foi abandonado porque teve que ajudar o pai,

    PraadoBrejodoAmparo

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    pre em busca do mercado detrabalho. Da primeira vez,a viagem durou dois anos, ten-do retornado a pedido do pai,que, eleito festeiro de SantosReis, solicitou seu auxlio paraconduzir o ano de preparao dafesta. Meu pai botava roa e folio de Santos Reis. J cantoumuito por a. A profisso dele essa, cantar em folia.

    Da segunda vez em que esteve em So Paulo, trabalhoucomo segurana num estacionamento de carros. Voltoua Cnego Marinho para visitar a famlia e acabou ficandona cidade. Nunca mais retornou capital paulista. Casou-s ecom Terezinha e tem uma filha de nove anos de idade, denome Luana.

    A primeira pea que fez, re corda-se, esculpiu em raizde ju. Foi a figura de um homem, boneco sem perna comuma cobrinha pregada nas costas. A partir dessa pea foicriando muitas outras. Dali pra c fui difere nciando as coi-sas, fazendo um tatu, um cgado, uma tartaruga, um peixe,um barquinho, uma carranca, um bonequinho.

    cgados, jabutis que, esculpidos, especialmente em imburana,preservam caractersticas que remetem a mundos distantes,aos tempos jurssicos, pr-humanos.

    Comecei pegando uma raiz e fazendo umas coisinhas, umacobrinha, um bicho. Botava dentro de uma caixa e guar-dava. S depois que apareceu esse negcio de artesanato.

    Apareceu u ma mulher a e ind agou se tinha algu m quefazia essas co isas. A falaram: Oh! Tem um rapaz l que faz. Ele tem uma poro l,

    guardado.

    E eu j ia jogar fora porque no tinha valor. A ela falou: Pois eu vou mandar o pessoal l ver essas peas.A a Iraci, da Secreta ria de Educao , e o Mauro, daEmater, comearam a pegar as peas, levavam. As quetavam boas passavam. As que no tavam, voltavam.Eu consertava ou jogava fora e fazia outra.

    Por essa poca, JosFrancisco estava prximoaos 30 anos. Acabara devoltar de So Paulo, ondemorou por duas vezes, sem-

    de famlia extensa, dividindo o nus da manuteno daunidade domstica quando a me adoeceu.

    Tinha um tanto de coisa pra fazer. Pai no davaconta. Me tava doente e meus irmos tudo peque-no, tudo pra cuidar. O mais experiente l era eu.Eu ia pra escola, a parece que no encaixava nada as-sim. A gente j ia dormir estressado. O mais velho eraeu e pai tinha encomenda uma atrs da outra. Eu falei:'Eu vou parar um pouco aqui e vou ajudar meu pai.'E nunca mais voltei pra escola.

    Desse modo, Silvio deixou para trs o colgio, de ondesaiu com nota boa, no foi nota ruim, no, e mergulhounesse mundo do trabalho artesanal em madeira de ondenunca mais saiu. No se queixa. Como diz, d pra viver.Nesse mundo que tambm da arte; que rea liza seus desejos,completando seus dias.

    A arte, a gente no tem e xplicao pra ar te. Voc tem quegostar da coisa. Ach o que todo t rabalho q ue a pe ssoa fazele tem que gostar, gostar mesmo daquela pea. Ele temque jogar o amor naquela pea que ele est fazendo. Mas

    o que eu gosto mesmo de fazer o vapor. O vapor tem trsandares. Eu mesmo no vi a no rio. Eu vi chegar barcabem bonita a, mas no era vapor. O Benjamim, o Cote-

    gipe, o So Francisco, s vi em retrat o. A eu tiro e fao namadeira, do mesmo jeito.

    JOS FRANCISCO: O MUNDO POVOADO POR SERES FANTSTICOS

    Jos Fran cis co Lope sFigueiredo mora na sedede Cnego Marinho, onde

    nasceu em 16 de maro de1969. Ali tambm nasceramseus pais e cinco irmos, dosquais trs faleceram.

    Escultor, Jos Franciscose revela pessoa de ima-ginrio inusitado, que dforma na madeira a criaturasfantsticas que povoam suaimaginao. So hbridos de

    seres humanos e toda sorte de outros animai s, como pssarose peixes. Especial ateno dada aos quelnios: tartarugas,

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    idia. Eu meto a mo e fao. Seu trabalho min iaturizado.Pea grande eu no sou treinado pra fazer. Tem diferenaem fazer uma coisa grande ou uma coisa pequena. Peasde dimenses reduzidas que, nem por isso, se tornam umaarte menor. So grandes obras, resultado de uma imaginaofrtil e criativa.

    Eu j vendi muito. J comprei muita coisa pra dentro decasa, as pessoas dando essa fora pra mim. Eu tendo fora,

    fazendo , as pes soas est o compran do e ajudando a gente.Ento a gente tem que fazer esse esforo, ter essa fonte derenda porque o dia que eu estiver a, sem fora para oservio de roa, j tendo minhas 20 ou 30 peas a, vendoe j tenho meus cem, cento e cinqenta reais na mo. melhor do que ficar pra cima e pra baixo a, caando coisaque no interessa.

    Artis ta, Jos Francisc o t ambm trabalhador rural.Volta-se para o cultivo da terra quando consegue uma reapara plantar, quando um fazendeiro querendo amansar umterreno cede-lhe o espao para cultivo, muito embora digaque a produo da roa j no tem mais fora. Depende dachuva e tem ano que no d nada.

    Assim de scrita, a obra de Jos Francisco soa naturalis -ta, sem algo que a distinga da reproduo de imagens domundo real. No entanto, suas peas so sempre marcadaspela presena do inslito, do incomum, do extraordinrio.

    O cgado pode trazer sobre ocasco a figura de uma ave, mis-to de tucano e gavio. O barcotransporta imenso revlver,que ocupa toda sua extenso.Grande parte das peas que es-culpe sequer se refere a seres darealidade palpvel, so figurasque habitam um outro mundo,fruto da imaginao do artista,que d livre forma ao pensa-mento. Eu sou assim: tudoque vem na idia eu fao.

    Jos Francisco no artista de prefigurar o que pretenderealizar. No cria esboos no papel. As image ns vo surgindodiretamente do corte. Muito raramente risca com lpis a ma-deira, desenhando linhas gerais que orientam o corte, antesde comear a entalhar com auxlio de uma pequena faca.J vou direto na madeira. Parece que o desenho j est na

    Pessoa especial? Sim. Podemos afirmar ser Jos Franciscoum daqueles indivduos que conseguem ver formas que po-voam um mundo desconhecido de muitos. Isso, no entanto,no o faz se sentir diferente dos demais seres humanos pois,como afirma, tem gente que vem a e gosta do meu trabalho.Outros dizem que eu tenho inteligncia e por isso eu fao.Eu digo que inteligncia todos tm. O neg cio querer fazer.O negcio aproveitar a inteligncia e fazer.

    Inteligncia e motivao que guiam seu fazer artstico,sempre continuado, renovado:

    Eu quero fazer uma mistura. Quero aprender a fazerum leo, um cachorro porque a pessoa chega e fala: 'Tem

    jeito de voc fazer um leo ?' Eu digo: 'Agora tem.' Porquetem muita gente que quer uma coisa diferente. A a genteembola tudo.

    E com essas criaes fantsticas que no se encerram,o artista vai povoando o mundo.

    Quando em casa, iniciao trabalho de escultura aindapela manh cedo. Dada adimenso reduzida do queesculpe, no h um espao es-pecfico para tal. No quintal,na varanda de frente da casaou mesmo na sala, em frente televiso, o artista d forma ao

    pensamento esculpindo as figura s de seu mundo imaginado.Quando pega servio de roado, s mesmo nos finais desemana. noite, quando o olho pesa, no costuma tra-balhar. o tempo de assistir televiso.

    A madeira que traba lha conseguida nos c ampos daregio, a despeito dos problemas relacionados ao seu usono autorizado.

    s vezes, a gente v em com um pedao de mad eira e o caraquer multar a gente. A eu provo que estou trabalhandona coisa certa, no estou derrubando a madeira. Ento euestou pegando essa madeira, reciclando ela, transformandoem outra coisa. Eu no derrubo el a. J apanho essa madeiravelha que, se ficar l no mato, bicho vai comer.

    Frentedacas

    adoartista

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    A pintura a le o a maisclssica de todas. Com-

    prov ado por quase todo sos artistas que o melhormaterial de se trabalhar

    porque tem um acabamentomelhor, o efeito dela depoisde pronto excelente e tam-bm o tempo de secagem.Demora a secar, ento,se o artista quiser mudaralguma coisa depois de doisdias, ele pode porque a tintaainda est molhada.

    A tinta, o artista adquire no comrcio local de Januria,e revela seu desejo de vir, um dia, a trabalhar com tintas demelhor qualidade, importadas, tintas que no amarelamcom o tempo. A busca de qualidade para realizar sua obrao leva tambm a confeccionar as telas que utiliza como basepara a pintura. Embora pudesse adquirir telas no comrcio de

    Januria, prefere fa z-las utiliza ndo lona mais resistente.Em relao temtica que explora, diz Ricardo:

    de peas artesanais diversas, como objetos em bambu, biju-terias, molduras e velas decorativas, um pouco por hobby,inclusive a pintura, feita esporadicamente nos fins de semana,quando dispunha de maior tempo livre. Alm disso, tambmexecutava desenhos para trabalhos escolares. Porm, semprelidando com material de baixa qualidade, como tinta guacheescolar, adquirida no comrcio local. Tudo feito, conformegosta de explicar, praticamente apenas com as mos e ferra-mentas simples, sem emprego de maquinaria pesada.

    Contudo, foi em Januria que deu um grande passo nocaminho da arte, ao descobrir novas tcnicas de pintura,em especial, a tinta a leo. Autodidata, seu aprendizado sedeu a partir de revistas em livros, cujo estudo lhe permitiuaprimorar o conhecimento, distinguir tipos de material edesenvolver o dom queestava guardado.

    Ricardo explica quea adoo da tinta a leosobre tela na realizaode seu trabalho se deveao reconhecimento de sereste o material que melhorqualidade apresenta.

    RICARDO ALVES: REGISTROS DO MUNDO RURAL EM LEO

    SOBRE TELA

    Ricardo Pereira Alvesnasceu em Pirapora, em 19de janeiro de 1982. Che-gou em Januria h cincoanos, levado por parentesda moa que h dois setornou sua esposa. Foi embusca de oportunidade detrabalho, empregando-se num mercadinho. O

    emprego no deu certo mas, integrando-se vida local, alipermaneceu, graas, em especial, pintura, atividade queabraou e, hoje, ensina em oficinas do projeto Ensinando a

    pescar, do SESC local, que se realiza no Centro de Artesanatode Januria.

    nesse espao que normalmente encontrado, juntoa aprendizes de diferentes idades, unidos pela nsia deaprender os segredos da pintura a leo.

    O encontro com as artes comeou a acontecer quandoainda morava em Pirapora, onde se voltou para a confeco

    Eu pinto um pouco de tudo, mas o que me identifico mais o regional mesmo. A cultura popular, o interior, o folclore,o cotidiano, os costumes regionais , o povo simples do campo,o homem que trabalha e vive da terra, sua cultura, seu

    jeitinho al i de viver na roa, suas paisagens inte rioranas,o rio e o serto mineiro.

    A inspirao para o desenvolvimento da temtica bus-cada em diferentes fontes. Uma fotografia ou uma cena deteleviso so suficientes para faz-lo de imediato rascunhar

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    num papel a imagemvista, guardando-apara posteriormentefix-la em tela.

    Raramente viajapela zona rural, masa viso de pessoas nasruas da cidade, a ma-neira de caminhar, osmodos de se vestir,de ser, indicam-lhe a procedncia rural. A, pego aquilo edesloco para o contexto da roa. o mesmo jeitinho.

    As imag ens formad as apartir das fotografias, da tele-viso e das cenas do cotidianourbano se somam s lem-branas que o artista guardana memria, quando, aindacriana, morou, at os seteanos de idade, com os avs,na zona rural de Pirapora.Do conjunto dessas vivnciase memrias vo surgindo

    as telas do vapor Benjamin Guimares, os carros de boi,a moagem da cana, os alambiques de produo de cachaa,a feitura da rapadura. Imagens do So Francisco que seconservam em telas.

    NOTAS

    1. Termo local que designa aqueles que trabalha m de modo arte-sanal, produzindo objetos de madeira, especialmente utilitrios,

    como gamelas e piles.

    2. Sobre o conceito de arte popular, ver Lima e Ferreira (1999) eFrota (2005).

    3. Sobre as carrancas e a obra de Mestre Guarany, ver Pardal, 1981.

    4. Todos os depoimentos foram gravados em agosto de 2008.

    5. Ver, por exemplo, Vitalino Pereira dos Santos (1908/1964),ceramista do Alto do Moura, Caruaru, PE, considerado um dos

    expoentes da arte nacional, citado em Frota, 1986.

    6. Acerca das ceramistas do Candeal, ver Lima, 1998 e 2006.

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