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1 Imagens do patrimônio e saberes ambientais no entorno do Parque Estadual do Utinga (PEUt) BRENO AUGUSTO GARCIA SALES 1 Este paper é parte integrante de uma pesquisa mais ampla que procura compreender percepções ambientais e práticas sociais de crianças estudantes de uma escola situada no entorno do Parque Estadual do Utinga (PEUt) - Unidade de Conservação situada na Região Metropolitana de Belém. Trata-se de um exercício etnográfico que enfoca a percepção de paisagens humanas e não humanas e o afloramento de sensibilidades ambientais por parte de crianças que estudam e moram em áreas circunvizinhas ao PEUt. Mais especificamente, pretendo pensar os saberes, imagens e representações criados pelos estudantes sobre esta região, procurando comparar e contrastar os diferentes tipos de socializações que os levam a ter mais ou menos trânsito pelas áreas do Parque e, com efeito, indicar interesses maiores por circular (ou não) em espaços como o lago, a piscina, a mata, as precárias áreas de lazer da rua e os quintais das casas que compõem as paisagens do Parque. Portanto, o que será expresso aqui representa apenas uma etapa de um processo que apresentou atividades prévias e necessárias para poder se chegar nos resultados adiante expostos. Para capturar os dados brutos da pesquisa, lancei mão da promoção de duas atividades e de conversas registradas durante a convivência na escola a partir dos primeiros meses de pesquisa de campo iniciados em Fevereiro de 2011. A primeira atividade foi uma “oficina de mapas” que, em verdade, consistiu no uso de um croqui construído por mim e minha companheira - minha auxiliar na pesquisa - que retratava estabelecimentos e outros traços de paisagem da rua da escola Lúcia Wanderley, que também é a via de onde se originam as passagens onde a maioria dos estudantes reside Na primeira etapa da atividade, pedi aos estudantes que identificassem no croqui suas casas e os locais onde gostam de brincar. Na segunda parte, pedi para que desenhassem ou escrevessem a resposta para três perguntas: 1) o

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Imagens do patrimônio e saberes ambientais no entorno do Parque Estadual do Utinga

(PEUt)

BRENO AUGUSTO GARCIA SALES1

Este paper é parte integrante de uma pesquisa mais ampla que procura compreender

percepções ambientais e práticas sociais de crianças estudantes de uma escola situada no

entorno do Parque Estadual do Utinga (PEUt) - Unidade de Conservação situada na Região

Metropolitana de Belém.

Trata-se de um exercício etnográfico que enfoca a percepção de paisagens humanas e

não humanas e o afloramento de sensibilidades ambientais por parte de crianças que estudam

e moram em áreas circunvizinhas ao PEUt. Mais especificamente, pretendo pensar os

saberes, imagens e representações criados pelos estudantes sobre esta região, procurando

comparar e contrastar os diferentes tipos de socializações que os levam a ter mais ou menos

trânsito pelas áreas do Parque e, com efeito, indicar interesses maiores por circular (ou não)

em espaços como o lago, a piscina, a mata, as precárias áreas de lazer da rua e os quintais das

casas que compõem as paisagens do Parque.

Portanto, o que será expresso aqui representa apenas uma etapa de um processo que

apresentou atividades prévias e necessárias para poder se chegar nos resultados adiante

expostos.

Para capturar os dados brutos da pesquisa, lancei mão da promoção de duas atividades

e de conversas registradas durante a convivência na escola a partir dos primeiros meses de

pesquisa de campo iniciados em Fevereiro de 2011. A primeira atividade foi uma “oficina de

mapas” que, em verdade, consistiu no uso de um croqui construído por mim e minha

companheira - minha auxiliar na pesquisa - que retratava estabelecimentos e outros traços de

paisagem da rua da escola Lúcia Wanderley, que também é a via de onde se originam as

passagens onde a maioria dos estudantes reside Na primeira etapa da atividade, pedi aos

estudantes que identificassem no croqui suas casas e os locais onde gostam de brincar. Na

segunda parte, pedi para que desenhassem ou escrevessem a resposta para três perguntas: 1) o

1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – Universidade Federal do Pará (PPGCS/UFPA). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará (FAPESPA).

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que eu mais gosto do que existe próximo da minha casa; 2) o que eu não gosto dentre o que

existe próximo da minha casa; 3) o que eu gostaria que tivesse próximo da minha casa.

A segunda atividade foi uma oficina de fotografia artesanal utilizando a técnica

pinhole2 com o intuito de apresentar aos estudantes um trabalho manual e um aprendizado da

luz cujos resultados – fotografias temáticas - pudessem me servir como dados para refletir

sobre o vínculo e o conhecimento sensível sobre seus lugares. É o resultado dessa segunda

atividade que quero expor aqui.

É importante frisar que, ao contrário do que foi descrito no resumo, não estou

trabalhando aqui com duas escolas. A segunda escola, de educação infantil e ensino

fundamental chamada Ruth Passarinho, que serviria de base comparativa, entrou em reforma

no início do ano de 2012 e tinha como previsão retomar as atividades no mês de Abril deste

mesmo ano. Lá foi realizado somente a oficina de mapas e a primeira parte da oficina de

fotografia, significando dizer que os estudantes não construíram e nem fizeram o ensaio com

as câmeras pinhole.

É mister ressaltar que para oficina em questão, lancei mão do que os integrantes da

“Associação Fotoativa” convencionaram chamar de “pinlux”, que é um tipo de câmera

fotográfica pinhole produzida com caixas de fósforo da marca “Fiat Lux”, cujas dimensões se

adequam perfeitamente às dimensões de bobinas de filme fotográfico 35mm que são

acopladas à caixa.

Fazendo uma avaliação mais cautelosa sobre o tempo que teria para realizar todas as

etapas da oficina de fotografia pinhole, quais sejam, entre elas me aproximar e adquirir a

confiança dos interlocutores para, aí sim, incursionar pelos ambientes significativos para eles,

me demandaria um tempo que eu não dispunha, haja vista os dados obtidos junto aos

estudantes da Escola Lucia Wanderley estarem esperando para serem sistematizados e

analisados.

O passo a passo da oficina de fotografia

Após sentir o interesse de alguns estudantes na “câmara de furinho”, tive mais certeza

de que a escolha pela pinhole poderia render bons frutos e também me servir como forma de

me aproximar mais das crianças durante o trabalho. Após a oficina de mapas, cheguei a ir até

2 “A fotografia pinhole faz uso de uma câmara fotográfica artesanal, ou câmara de furinho, que nada mais é do que uma câmara fotográfica reduzida a sua expressão mínima (necessária e suficiente): [trata-se] de uma caixa hermética e opaca dotada de um pequeno furo num dos seus lados, que permite registrar em material fotossensível, a imagem luminosa formada espontaneamente em seu interior sobre a parede oposta”. (Pardini apud Sales; Silva Filho; Assis, 2008: 4)

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a escola pelo menos umas duas vezes: a primeira para levar os mapas para aqueles estudantes

que tinham deixado de realizar pelo menos uma das tarefas - 26/10/2011; e a segunda para

marcar os dois dias em que seriam realizadas as oficinas de fotografia - data não registrada no

diário. Nas duas situações, um ou outro estudante me perguntou quando iríamos fazer a

câmera de caixinha de fósforo.

Vejo que a aprendizagem, propriamente dita, da técnica fotográfica pinhole exerce

uma atração sobre os estudantes. Contudo, assim como em outras escolas, existe também uma

forte demanda por atividades que sejam diferentes das atividades escolares rotineiras. As

duas coisas pareceram sempre figurar conjuntamente ao longo do trabalho de campo que

realizei com eles.

Visualizado o caminho a seguir, o próximo passo foi organizar a oficina. Fiz o contato

com meu amigo fotógrafo (e sociólogo) Ionaldo Rodrigues, que ministrou a primeira oficina

de fotografia artesanal que participei, em 2006, como atividade preparatória para o I

Seminário de Ensino de Antropologia da UFPA – evento organizado pela turma de 2003 da

graduação em Ciências Sociais, da qual fiz parte3. Por telefone, ele se mostrou disposto em

auxiliar na construção da atividade. Marcamos uma conversa em um feriado do mês de

Setembro de 2011 e lá pude esclarecer melhor as linhas mestras do projeto. Neste mesmo dia,

projetamos uma data para simularmos a mesma tarefa que iria ser feita nas duas oficinas,

quais sejam, a construção da câmara escura e da câmera pinhole utilizando caixinha de

fósforo. Assim foi feito. Algumas semanas depois, tivemos outro encontro presencial. Desta

vez, tivemos que definir sobre escolhas determinantes para o trabalho.

Uma dessas escolhas era se realmente eu iria trabalhar a técnica pinhole com crianças

com idade entre 10 e 13 anos, haja vista o próprio Ionaldo e o grupo que ele integra – a

“Fotoativa4” – não apresentar no(s) seu histórico(s) experiências com essa faixa etária. O

motivo me pareceu ser, principalmente, a habilidade no trabalho com as mãos, pois a

montagem de uma câmera pinhole não pode ser considerada difícil, mas devem ser seguidos

alguns passos que, se transpostos, podem levar desde a necessidade de refazer o que já tinha

sido feito até então ou até a total inoperância da câmera5.

3 Esta experiência resultou em um paper (Sales; Silva Filho; Assis, 2008) apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, 01-04 Jun. 2008. Porto Seguro – Bahia. Oficina “Experiências bem sucedidas de ensino de Antropologia”, Comissão de Ensino da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). 4 Trata-se de um espaço multiuso fundado pelo fotógrafo e educador Miguel Chikaoka e é destinado ao aprendizado e interações socioeducativas no campo das artes visuais. Sua localização, no momento em que se escreve este trabalho, é o Largo das Mercês, bairro do comércio, em Belém. O espaço oferece cursos, oficinas e abriga eventos relacionados às artes visuais. Também dispõe de uma direção de acervo e documentação, que reúne a memória das produções nos mais diversos eventos e momentos vividos em mais de vinte anos de existência do grupo 5 Em uma das primeiras aulas da disciplina Métodos e Técnicas de Pesquisa em Antropologia, cursada durante o segundo semestre do curso, uma aluna do doutorado me alertou para a dificuldade de realizar oficinas pinhole

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Entre as alternativas pensadas em nossa conversa, estava a possibilidade de se fazer o

mesmo trabalho com câmeras de celulares ou digitais, considerando que seria menos

trabalhoso e talvez mais adequado às novas tecnologias de informação e comunicação e à

cultura visual vivenciadas pelos estudantes interlocutores da pesquisa. Contudo, tinha a

certeza que isso implicaria uma reviravolta na base metodológica do trabalho, haja vista que a

fotografia pinhole não se apresenta aqui somente como uma forma de aproximar pesquisador

e interlocutores por meio de uma interação lúdica, mas também de lançar mão de um

processo barato capaz de desenvolver habilidades e proporcionar estranhamentos úteis à

formação do educando enquanto ser criativo repleto de possibilidades.

Não obstante, fui até a(s) escola(s) e perguntei quantos estudantes dispunham de

celulares com câmera ou câmeras digitais. Na ELW, a minoria dos 25 alunos possuíam tais

equipamentos (e na outra escola?). Considerei que seria inviável desenvolver um trabalho

com um número de câmeras tão reduzido. Dessa forma, entendi que esse levantamento

poderia ser um recado para mim, indicando que lidar com o artesanal seria realmente o

caminho mais acessível diante das condições não somente do pesquisador, mas também dos

interlocutores e, principalmente, do potencial pedagógico que esta forma de fazer fotografia

carrega consigo.

Ainda assim, a proposta de conjugar o artesanal com o digital não se esvaiu. Ao

folhear a dissertação de Biazus (2006), percebi que diversas fotografias pinhole estavam lado

a lado com fotografias digitais. Tratava-se do mesmo enquadramento, porém captados com

câmeras diferentes e, por isso, com texturas distintas. Nesta etapa, não conhecia o trabalho de

Biazus o suficiente para entender o porquê daquela escolha. Entretanto, aquela formatação

ficou guardada em minha memória e, ao propor o ensaio fotográfico aos estudantes, acabei

me apropriando da ideia.

A intenção, naquele momento, era que os estudantes relatassem as suas impressões

acerca da diferença em produzir uma imagem com câmera digital e a “mesma imagem” com

câmera artesanal. Contudo, as poucas crianças que me retornaram as imagens não as

produziram desta forma conjugada, uns talvez por ter esquecido da orientação que eu tinha

dado e outros realmente por não possuir um meio de captura de imagem digital.

A oficina na prática

com crianças, levando em conta a experiência dela em trabalhos pregressos no campo audiovisual.

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Apesar de todas as incertezas, mantive meu desejo de realizar as oficinas de fotografia

artesanal. E assim parti para a organização da oficina, procurando reunir o material

necessário e agendar junto às escolas quais seriam as melhores datas. O máximo que

conseguimos foi dois dias na semana de aulas das crianças. A questão do número de dias a

serem disponibilizados pela escola para realização das oficinas sempre foi o mínimo possível,

pois me pareceu que um dia sem aulas é interpretado como uma grande perda para os alunos,

mesmo que a atividade que estivesse sendo proposta se constituísse em um subsídio

importante para aplicação de conceitos que mais tarde iriam ser ensinados nas disciplinares

escolares como a Física, por exemplo, sem contar na contribuição deste tipo de oficina para

desenvolver habilidades manuais, motoras e perceptivas.

Contudo, um fator que talvez tenha favorecido a cessão de pelo menos dois dias para

a oficina de fotografia foi o fato de as duas turmas pertencerem a séries da primeira fase do

ensino fundamental, significando dizer que todas as disciplinas do currículo são ministradas

por um único professor, exceto arte no caso da ERP e Educação Física nos dois casos. Sendo

assim, o agendamento dos dias aconteceu com as professoras das turmas de cada escola.

Ainda assim, dois dias era pouco, considerando a duração do mesmo curso na

“Fundação Fotoativa” que geralmente é de quatro a cinco dias dependendo do número de

participantes e do ritmo de produção de cada turma.

Os dias que antecederam as oficinas foram bastante trabalhosos. O Ionaldo

recomendou que deixássemos as câmeras pinlux em fase de finalização, ou seja, faltaria

somente acoplar as bobinas dos filmes fotográficos às caixas que, por sua vez, já estariam

pintadas, com as janelas abertas e com os obturadores montados. O motivo de adiantarmos o

serviço foi que não seria possível construirmos as câmeras desde o início, considerando a

relação tempo disponível e destreza motora das crianças. Assim procuramos fazer, ainda que

não tivéssemos concluído todo o trabalho até a véspera do início da oficina.

No dia 9 de Novembro de 2011, aconteceu o primeiro dia de atividades da oficina de

fotografia artesanal. Na ocasião, estavam eu, Ionaldo e a Deylane - minha companheira,

mestranda em Ciências Sociais (Antropologia) e auxiliar na pesquisa. Apesar da segurança

que a presença do Ionaldo me causava, me encontrava em um clima de expectativa. Não

sabia o que estava por vir. Não sabia exatamente qual seria a recepção dos estudantes ao

trabalho, a despeito de alguns terem me procurado para perguntar sobre a construção da

câmera com caixa de fósforos.

Ao chegarmos à sala 4 da ELW, alguns estudantes ficaram eufóricos com a nossa

presença, pois já estavam avisados que aquele dia seria o início dos trabalhos que nos

levariam a tão falada câmera. Comuniquei a todos que naquele dia iniciaríamos a oficina de

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fotografia artesanal, sendo que o primeiro dia estaria dedicado à construção da câmara

escura6 e o segundo dia reservado aos trabalhos com a “pinlux”. Alguns lamentaram o fato da

“construção” da “pinlux” ter ficado para o dia seguinte, mas logo se conformaram quando

demos início aos trabalhos.

Antes de iniciarmos a construção das câmaras escuras, o Ionaldo resolveu realizar

uma dinâmica de apresentação chamada “teia luz”. Basicamente, a tarefa consiste em

organizar o grupo em círculo ao redor do qual todos se encontravam de pé. Com o rolo na

mão, cada participante deveria pronunciar seu próprio nome, idade e, em uma palavra,

resumir o que significa luz em sua opinião. Feito isso, o estudante desenrolaria o novelo em

direção à próxima pessoa a se apresentar. Assim todos deveriam fazer. No final das

apresentações, teríamos uma grande teia que, em uma interpretação possível, significaria os

caminhos que a luz percorre até chegar aos nossos olhos, na forma de luz refletida. A teia

também pode ser vista como o percurso de cada estudante para desvendar os mistérios da luz

e da formação das imagens, trilha esta que envolve um trabalho de ir e vir da memória,

através de fotografias que, antes de existirem fora, existem na forma de reminiscências e de

quadros mentais que vem se desenhando no curso das experiências vividas por cada sujeito.

Esta primeira atividade se desenvolveu em um clima de descontração e surpresa, a

medida que a teia ia se formando. As brincadeiras eram contínuas e uns se empenhavam um

pouco mais para vencer a timidez do que outros. A inclusão da professora na dinâmica deixou

os estudantes mais eufóricos, uma vez que ela estava se colocando como mera expectadora

do trabalho. Quando ela divulgou a idade, algo acima dos 40 anos, as gozações aumentaram.

Naturalmente, nem todos trouxeram palavras inéditas para traduzir o que significava luz para

si. Contudo, senti que ali estava se iniciando um pensar sobre a luz, algo importante para o

que vínhamos desenvolver posteriormente.

Concluída esta etapa, passamos para a construção das câmaras escuras. É válido

ressaltar que a proposta era construir o que se convencionou chamar “caixa mágica”, um tipo

de câmara escura construída com papel cartão preto ou de outra cor escura o suficiente para

termos um ambiente vedado à entrada da luz. No caso de nossa oficina, tratava-se também de

uma câmera pinhole, pois para a entrada da luz utilizávamos um pequeno furo no papel

alumínio colado à extremidade da câmara. Na parede oposta ao furo, composta de papel

vegetal, a imagem refletida do ambiente exterior se forma invertida horizontalmente e

verticalmente, dando uma sensação de estar vendo o mundo ao contrário.

6 “A câmera escura (ou câmara escura; em latim: câmera obscura) é um dispositivo, de qualquer forma e tamanho, vedado à entrada de luz, no interior do qual a imagem de uma cena externa pode se formar quando é permitida a entrada dos raios refletidos por essa cena. A entrada pode se dar através de um pequeno orifício ou

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De maneira geral, essa inversão das imagens é o que causa o espanto em quem

manipula e observa o interior da caixa mágica. Não foi diferente com os estudantes da ELW.

Ao final da atividade, que durou todo o tempo do dia de aula, eles puderam sair da sala e

observar livremente. O que chamo aqui de espanto está necessariamente embebido de

encantamento, pois é essa a sensação que se tem diante do potencial visual e reflexivo que

uma simples caixa feita de papel pode produzir.

Além de ser um instrumento fundamental para iniciarmos um “estudo da luz” através

da observação e de outras experimentações análogas e derivadas, a construção da “caixa

mágica” é basicamente um trabalho de dobradura, corte e colagem. Contudo, trata-se de um

processo que também envolve a medição do tamanho das dobras com os dedos, de modo que

a inserção de um dedo a menos ou a mais pode provocar problemas na hora do

dimensionamento do tamanho de cada caixa. Enquanto uma mão serve de apoio, a outra faz a

dobra. Nesse dobrar, cortar e colar exercitamos a firmeza nas mãos e nos dedos, valorizando

o trabalho manual, tão necessário para o entendimento do processo de aprendizado, conforme

demonstra Ingold (2007), quando propõe aos seus alunos a construção de cestas para

experimentar a produção de cultura material a partir da consideração de variáveis como clima

e paisagem.

Como balanço, pode-se dizer que o primeiro dia de atividades foi positivo e tranquilo,

com exceção da conclusão da oficina, quando tivemos que fazer o furo com a agulha em cada

câmara para poder observar internamente. Nesse momento, os estudantes literalmente

“avançaram” e nós tivemos que atender a todos mantendo o controle.

Contudo, a maioria seguiu passo a passo as instruções demonstradas e conseguiu

construir a câmara sem tantos problemas. Alguns poucos colocaram um dedo a mais ou a

menos na hora de dobrar a folha e, ao final, as caixas ficaram praticamente do mesmo

tamanho ou, em outros casos, uma ficou muito maior do que a outra, de forma que facilitou a

entrada de luz. Entretanto, estamos lhe dando com situações perfeitamente normais, sempre

presentes em um tipo de técnica artesanal cujo motor do aprimoramento é sempre a relação

ensaio-erro.

A oficina foi concluída por volta das 14:30, exatamente o horário correspondente à

saída dos estudantes. Todos estavam livres para levar suas câmeras para casa e assim o

fizeram, exceto alguns poucos que optaram por deixar no armário da sala. Minha expectativa

era que eles mostrassem as câmeras para as pessoas com as quais residiam, assim como para

os amigos mais próximos.

com a ajuda de uma lente”. (OLHOS DE VER BELÉM, 2009: 8)

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Seguimos para casa um pouco exaustos depois da primeira jornada da oficina. Não

obstante, pude trocar impressões com Ionaldo e Deylane acerca do comportamento e da

recepção da turma ao trabalho com a fotografia pinhole. Naturalmente, um aspecto

diferencial era a quantidade de participantes para um número reduzido de “oficineiros”.

Somado a isso estava a ansiedade característica da faixa etária dos estudantes, o que gerava

agitação e nos pedia autocontrole.

Voltando para casa, o tempo de descanso era mínimo, pois tinha que organizar o

material para o dia seguinte, tarefa que tínhamos deixado pendente. Como mencionei

anteriormente, devido ao tempo reduzido, as câmeras pinlux tinham que estar quase prontas,

esperando somente os ajustes finais, que, neste caso, consistia em retirar a “gaveta” onde

ficariam os fósforos, sendo que neste lugar estaria a janela por onde o filme fotográfico novo

iria passar (por trás) em direção à bobina vazia, onde ele seria colado. Além disso, era tarefa

nossa revestir metade das bobinas e metade da caixinha de cada lado com fita isolante, depois

com o elástico preto e, fechando o ciclo, novamente passar as derradeiras tiras de fita

isolante. Para concluir, restava mostrar o funcionamento do conversor, que serve para girar o

filme cheio em direção ao vazio e, por fim, fazer o furo, neste caso com agulha de

acupuntura. Tudo isso foi feito e teria sido feito com cada participante dispondo da sua

câmera se não fosse eu ter pensado que a atividade seria levada a cabo em dupla.

Quando a oficina pinlux iniciou, aproximadamente às 11h30 do dia 10 de Novembro,

o Ionaldo abriu os trabalhos mostrando àqueles que ainda não conheciam, um rolo de filme

fotográfico, explicando sobre o sistema de produção de imagens da câmera que estávamos

prestes a finalizar a construção. Na sequência, antes de organizarmos as cadeiras em círculo

para manipular as câmeras, perguntei para ele – somente para me certificar – se faríamos este

primeiro contato com a pinlux em duplas. Para meu espanto, ele disse que não. Cada um

deveria ter sua câmera. Dispor das câmeras semi-prontas não era o problema. O “nó” era com

os obturadores, eles ainda não estavam colados às câmeras. De imediato, minha sensação foi

de desapontamento, comigo mesmo. A expressão dele parecia compartilhar do mesmo

sentimento. Contudo, sabíamos que a oficina teria que prosseguir, mesmo diante deste

imprevisto.

A oficina transcorreu conforme os recursos que tínhamos no momento. Organizamos

os estudantes em duplas e o trabalho foi iniciado. Formamos três grupos, de modo que cada

um de nós pudesse estar em um deles, atuando como facilitador. No meu grupo, senti as

vantagens e as desvantagens de o trabalho estar sendo desenvolvido em duplas. O ponto

positivo foi que instigou os estudantes a auxiliar uns aos outros, ao passo que em dinâmicas

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dessa natureza uns querem dominar e o respectivo par que não reivindica a participação acaba

sendo gradativamente excluído, mesmo com a intervenção de quem está dirigindo a oficina.

Durante a oficina, uma estudante chamada Nara7 - uma interlocutora importante, não

obstante o esfriamento de nossa relação ao longo da pesquisa - teve um desentendimento com

uma colega e optou por não participar da oficina. Contudo, ela permaneceu circulando pela

sala no decorrer do trabalho, manifestando interesses repentinos em determinadas etapas.

Nesta oficina, tivemos outros atropelos além destes que já foram expostos. Todos

relacionados aos aspectos técnicos de funcionamento da câmera como, por exemplo, o

sentido do giro do conversor que movimenta o rolo da bobina cheia. Estes atropelos não

foram gerados somente pelos estudantes, mas também por mim, que, por falta de

conhecimento sobre determinados mecanismos, passei orientações erradas para os estudantes

que estavam na minha mesa. À isso, somava-se os defeitos no funcionamento de algumas

câmeras, os quais tínhamos que, com calma, realizar o reparo. Novamente, roguei em busca

de paciência.

Antes da conclusão e com a maioria das câmeras prontas, decidimos que iríamos nos

encontrar no dia seguinte, pois naquele dia não seria mais possível realizar o ensaio

fotográfico, que preliminarmente iria ser realizado dentro da escola. Este ensaio iria ser

realizado novamente em dupla, com vistas à troca de experiências diante do primeiro contato

com uma câmera pinhole. O objetivo deste momento seria aprender a manipular a câmera e

exercitar a observação da luz e o tempo de exposição para captação das primeiras imagens.

Ao final do segundo dia de trabalho, todos estávamos tensos e mais exaustos do que

no segundo dia. Lidar com aquela quantidade de estudantes todos ansiosos para serem

atendidos diante dos problemas que surgiram foi extremamente exaustivo. O silêncio que a

ausência dos estudantes causava se não era o suficiente para proporcionar calma, servia para

percebermos mais claramente a tensão na musculatura do pescoço. Confesso que nas horas

subsequentes pensei em desistir de todas as técnicas e arranjos metodológicos que tinha

pensado para o trabalho. Entretanto, o “Senhor Tempo” em conjunto com a troca de

impressões e a conversa com meus parceiros na condução da oficina novamente servia como

um alento.

Levei algumas câmeras para casa, realizei ajustes necessários ao seu pleno

funcionamento e no dia 11 de Novembro, voltei à escola, desta vez sozinho, para realizarmos

o primeiro ensaio fotográfico. Recebi orientações do Ionaldo para desenvolver um exercício

que consistia em realizar a mesma imagem com diferentes tempos de exposição, para poder

7 Nome fictício.

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mostrar posteriormente aos estudantes e auxiliá-los a perceber qual o melhor timing em

determinadas condições de luminosidade. O exercício foi feito e, em algumas semanas, eu

pude retornar para eles as imagens.

O retorno das imagens foi recheado de surpresas, pois muitos deles nem sequer

acreditavam que a câmera era capaz de produzir imagens. Pesa sobre isso o fato de todos eles

já terem nascido na assim chamada era digital, na qual o recrudescimento das câmeras,

especialmente as acopladas em celulares, cujo acesso é mais facilitado a eles, dão o tom de

como se vivencia a fotografia, de tal forma que eu suponho que a maioria conhecia a

captação de imagens não como processo, mas como algo instantâneo e somente a partir dos

novos aparelhos digitais.

Após o retorno das imagens, onde discutimos exclusivamente questões técnicas

relacionadas ao uso da câmera, marcamos o dia 05 de Dezembro para a entrega das câmeras

individuais. Neste dia, todos ganharam a sua câmera e foi combinado que o tema do ensaio

fotográfico com as câmeras individuais seria “o que eu mais gosto entre as coisas que existem

próximas à minha casa”. Com este tema, eles estariam “livres” para fotografar tudo que

chamasse a atenção e que eles considerassem como paisagem circundante às suas residências.

Através deste tema, minha intenção era capturar a relação afetiva que os estudantes vem

desenvolvendo com as paisagens humanas e não humanas do Parque que, como já frisei

anteriormente, se confunde com o terreno e o quintal da moradia de boa parte deles.

Por conta de viagens e outros compromissos, só consegui pegar os primeiros filmes

dos ensaios individuais no período que alguns estudantes estavam no período da recuperação,

já em Janeiro de 2012. O primeiro a me devolver foi o Jonathan e foi com ele que desenvolvi

um diálogo mais profícuo.

Imagens do patrimônio e saberes ambientais: uma introdução

Jonathan tinha 13 anos na época do ensaio e desenvolveu um gosto por fotografar e

uma habilidade interessante ao manipular a câmera pinhole. Ao conversarmos sobre a

imagem que mais chamou a sua atenção no primeiro resultado do ensaio individual, ele

relatou que tratava-se de um lugar que para ele é especial: o quintal de sua tia que, naquele

momento, já tinha sido dado à sua mãe e passou a ser propriedade e morada da família.

Na imagem visualiza-se uma árvore que ele identifica como um limoeiro. A

exposição feita de baixo, parece se tratar de uma espécie de grande porte. A imagem foi

capturada às quatro horas da tarde. Para ele, o que chama a atenção na imagem é a

sobreposição, algo característico das fotografias pinhole, pois no momento da conversão nem

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sempre temos a habilidade de realizar um giro perfeito. Segundo o Jonathan, a imagem que

está sobreposta – ou justaposta dependendo do ângulo de observação – é a mesmo limoeiro.

Os raios de luz que descem do céu também o encantam, parecendo fios coloridos que

perfazem o mistério desse formato de produção de imagens.

Jonathan Luis. Dez. 2011

Em outro diálogo, Jonathan disse ter ficado satisfeito por ter participado das oficinas e

mencionou o fato de nunca ter feito um trabalho parecido em nenhum colégio que estivesse

estudado. Disse que sua mãe teve acesso às fotografias e que pediu as fotos reveladas. Se ela

fosse estudante, gostaria de ganhar uma câmera também. Sobre a próxima fotografia,

Jonathan escolheu o lugar por se tratar de uma sombra, pois do contrário poderia sofrer um

processo alérgico.

Perguntei acerca do cachorro que aparece na imagem, “por que tirou foto dele?”. Aos

risos, ele confessou que “acha bacana tirar foto de cachorro”. Jonathan possui o cão há três

anos e considera-o como um amigo. Falou que gosta de brincar mais no quintal de casa do

que dentro de casa por conta do espaço. Ele costuma receber os amigos no quintal da sua casa

para jogar bola. Ao final da nossa conversa, perguntei se ele não queria que eu ampliasse

mais alguma foto para ele, sem pensar duas vezes, perguntou se se escolhesse a foto da

cachorra, a imagem dela iria aparecer. Respondi que sim, mas iria sair mais ampliada. “Eu

quero uma da minha “cachorra”.

Jonathan Luis. Dez. 2011

Referências

INGOLD, Tim, LUCAS, Ray. The 4 A’S (Anthropology, Archaelogy, Art and Architeture): reflections on a teaching and learning experience. In: HARRIS, Marvin ways of knowing. New approaches in the anthropology of experience and learning. Oxford: Berghahan, 2007. P. 287-305

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SALES, Breno Augusto Garcia; SILVA FILHO, Ionaldo Rodrigues da; ASSIS, Eneida Corrêa de. “Pelo furo da agulha”: a fotografia artesanal como ferramenta para o exercício do “estranhamento” no ensino da Antropologia. Trabalho apresentado na Reunião Brasileira de Antropologia, 26ª, 01-04 Jun. 2008. Oficina “Experiências bem sucedidas de ensino de Antropologia”. Porto Seguro, 7p.