IJ 08 - Isabel Vieira Lopes

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    O sucesso do animal de rebanho no trabalho e a fico da realidade1

    Isabel Vieira LOPES2Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP)

    RESUMO

    A partir da profuso de guias que circulam na mdia e que se propem a mostrar os passospara se alcanar o sucesso profissional, os sujeitos se inserem em uma lgica imperativa emque o sucesso e a felicidade podem e devem ser alcanados. Nessa jornada, eles so

    passivos, alienados e verdadeiros animais de rebanho, pois tanto no parecem conseguir sairdessa lgica e no percebem que suas realidades so, na verdade, pura fico, e que osucesso apenas uma de suas narrativas, quanto sofrem com a auto explorao a que se

    submetem para sustent-la. Neste artigo, trabalharemos com essa reflexo a partir de umaanlise semitica da revista Voc S/A e de autores como Nietzsche, Flusser, Freire Filho,Chul Han, Landowski, Laclau e Mouffe.

    PALAVRAS-CHAVE:trabalho; fico; sucesso; Voc S/A; Nietzsche; Flusser

    TEXTO DO TRABALHO

    Vivemos hoje em uma demanda imperativa da felicidade, em que todos querem ser felizes

    acima de tudo. Isso se deve principalmente [...] democratizao do espao social, que

    concedeu inicialmente a todos a pretenso igualdade (Freire Filho, 2010, p.28),

    caracterstica do hiperconsumismo ps-moderno, fazendo o direito felicidade ser inscrito

    na cena contempornea. Ser feliz, afinal, faz bem, nos torna benquistos, nos estimula a

    praticar o bem e nos ajuda a sermos bem-sucedidos; um verdadeiro capital psicolgico

    positivo que precisa ser acumulado e investido, conforme nos aponta Freire Filho.

    Em seu livro Ser feliz hoje(2010), o autor aponta a expanso da indstria do bem-

    estar e do aprimoramento pessoal, sustentada por palestras, livros motivacionais,

    documentrios, workshops, coaching, terapias, revistas e artigos na internet, que agora so

    escritos no apenas por gurus como tambm por qualquer indivduo que se julgue um. Em

    uma reportagem da revista Super Interessante3 em 2016, a seo de livros de autoajuda

    1 Trabalho apresentado no IJ 08 Estudos Interdisciplinares XXI Congresso de Cincias da Comunicao na RegioSudeste realizado de 17 a 19 de junho de 2016.

    2 Mestranda do Curso de Comunicao e Semitica da PUC-SP, e graduada em Comunicao Social pela ESPM.

    Email: [email protected]

    3Disponvel em http://super.abril.com.br/comportamento/ajude-se. Acesso em 10/05/2016.

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    surgiu oficialmente em 1983 pelo The New York Times, que os batizou de livros de

    aconselhamento, e no Brasil este mercado editorial cresceu 700% na ltima dcada.

    Os exemplos no param por a. Propagandas como a da Coca-Cola que incentivam a

    felicidade, polticos que lanam instrumentos como a Felicidade Interna Bruta (FIB) noButo, profissionais de recursos humanos que criam novas tcnicas de engajamento de seus

    funcionrios, cmeras que nos impelem a sorrir porque estamos sendo filmados, e

    profissionais voltados ao segmento esttico e de sade que figuram na televiso, mostrando

    como comer melhor, fazer exerccios melhor e, enfim, ser uma pessoa melhor, recheiam a

    vida de narrativas estticas, como se nos dissessem seja voc mesmo, mas desse e daquele

    jeito.

    No universo do trabalho essa lgica no diferente e ganha a roupagem dosucesso.Seja galgar cargos rapidamente e ter uma carreira astronmica, seja ser diretor de uma das

    empresas mais desejadas ou melhores para se trabalhar, seja criar seu prprio negcio e ser

    reconhecido por ele, o sucesso nos impele a continuar em movimento e, acima de tudo, a

    trabalhar pela performance da felicidade, em que fingir ser feliz pode realmente torna-lo

    assim.

    Esse comportamento se acirrou com a passagem do trabalho material para o

    imaterial no ps-fordismo, em que os trabalhadores entram com toda a sua bagagem

    cultural e capital humano no processo produtivo, como a inteligncia, a imaginao, a

    motivao e o saber, fazendo com que no possam mais ser mensurados exclusivamente

    pelo volume produzido e passem a ser avaliados por mtricas cada vez mais intangveis

    atravs de um modelo de gesto que [...] fixa objetivos aos assalariados, cabendo a eles

    desdobrar-se para cumpri-los (Gorz, 2005, p.19) ao longo de um perodo de tempo.

    Com essa estratgia, as empresas consideram o capital humano um recurso gratuito,

    que se produz sozinho e que elas apenas captam e canalizam para seus objetivos de

    negcio. Nesse sentido, o sujeito agora deve estar em constante produo de si e se torna

    auto empreendedor do prprio sucesso, em que a pessoa deve, para si mesma, tornar-se

    uma empresa (Gorz, 2005, p.23). Essa viso leva as capacidades humanas a um novo grau

    de desenvolvimento, que no envolve apenas o trabalho e que se expande para outras

    esferas da vida pessoal, como sade, beleza, ideias e relaes.

    As convocaes dos dispositivos comunicacionais, que chamam os sujeitos a se

    ajustarem a essas prescries do sucesso da vida corporativa, se d em diferentes meios e

    veculos, como o caso das listas de melhores empresas para se trabalhar, que so

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    divulgadas anualmente em diversas revistas e portais na internet, dos j citados livros de

    autoajuda que agora ganham a performance e o sucesso no trabalho como temas, da

    construo de narrativas de sucesso criadas pelos prprios trabalhadores em redes sociais

    como o Linkedin, em que destacam seus empregos e cargos novos, e compartilham suasprprias dicas de carreira, dentre outros exemplos.

    nesse contexto surge, em 1998, a Voc S/A, uma das revistas da Editora Caras.

    Com tiragem mensal e circulao mdia de 135 mil tiragens em 20144, ela se declara a

    revista para quem quer trabalhar e viver melhor. Com um portal online, ela divide seu

    contedo em quatro sesses: carreira, mercado, dinheiro e acervo, respectivamente. A

    hierarquia mostra que carreira o carro-chefe da revista, algo que pode ser comprovado

    tanto nas capas das revistas fsicas, em que cerca de 90% entre 2013 e 2015 mostramcontedo relacionado ao auto empreendimento na carreira, tais quais Como encantar as

    empresas, seja os lderes que as empresas querem, os lugares mais legais para

    trabalhar, sua carreira parou? voc tem medo do sucesso? e como comear bem,

    como tambm nos artigos publicados no site da revista, que trazem listas com 6 dicas para

    aumentar a sua produtividade, testes para testar o seu nvel de estresse, histrias de

    empreendedores e executivos que alcanara o sucesso em seus negcios, dicas de como

    trabalhar nas melhores e mais desejadas empresas no mundo e quais so elas, e como se

    preparar para entrevistas de emprego.

    Nestes textos, como analisa Barros e Medeiros (2011), a Voc S/A adota a posio

    discursiva de patro, [...] como se este fosse uma instituio autnoma, independente dos

    sujeitos que delem fazem parte (Barros e Medeiros, 2011, p.5). O enunciador Voc S/A

    possui uma linguagem prxima ao pblico, fazendo referncia frequentemente alteridades

    reconhecidas no mercado como estratgia de reforo da verdade de seus discursos. Por

    meio de narrativas, a revista fala sobre coisas e temas do mundo do negcio e realiza uma

    manipulao identitria por provocao e seduo, doando as competncias do querer-sere

    saber-fazerser bem sucedido com suas dicas, guias e mapas modalizadores dos sujeitos.

    interessante notar tambm como, das 10 ltimas publicaes (entre Abril e Maio

    de 2016) realizadas no portal da revista, 9 fazem uso de palavras negativas como cuidado,

    medo, fracasso, limite, temporrios, divergncias, desvantagens, sobreviver,

    estresse e erros. possvel inferir que essas palavras aludem no s negatividade de

    ser fracassado e falhar, como tambm ao imperativo de contornar essa situao e se tornar

    4Circulao mdia Jan-Set 2014. Dado da ANER, disponvel em http://aner.org.br/dados-de-mercado/circulacao/. Acesso em 09/05/2016.

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    bem sucedido, j que estas palavras esto inseridas em artigos que transformam a

    negatividade do fracasso em guias para o sucesso, como 7 erros para evitar no currculo,

    cuidado com a ambio e empreender sem medo do fracasso.

    Essa transformao faz com que os enunciatrios adotem a postura de funcionriosaprendizes, que ainda no alcanaram o sucesso que devem obter em suas carreiras e

    precisam dos segredos para consegui-lo. Seus fracassos tambm so ressignificados, pois

    todas as suas inseguranas e imperfeies podem ser transformadas em ao positiva,

    deslocando-se de uma formao discursiva de derrota para a de uma vitria.

    A adoo dessa postura muito coerente com o auto empreendimento do trabalho

    imaterial, mas esconde alguns furos que so pouco comentados: o do sofrimento. Ele surge,

    em primeiro lugar, de como o [...] o homem no aquilo que , sendo aquilo que no (Sartre apud Lipovetsky, 1944 p.5), isto , do fato de que os trabalhadores esto em um

    constante devir que far com que eles nunca alcancem a autoimagem idealizada que

    desejam para si e para o reconhecimento dos outros (Zizek, 2010).

    No trabalho, esse processo contnuo de construo do sujeito est ligado ambio

    de novas conquistas, que sempre se multiplicaro para manter a insatisfao permanente e

    constante em um cenrio lquido-moderno (Bauman, 2007). Isso acontece porque o medo

    da mudana passa a dar lugar ao medo da estagnao, algo impensvel na liquidez de

    nossos tempos, e tambm porque as prprias narrativas do sucesso so construdas de modo

    que a busca sempre continue.

    A esse cenrio soma-se a disponibilidade 24/7 dos sujeitos ao trabalho, facilitada

    pela globalizao neoliberal e da consolidao dos dispositivos mveis na sociedade, que

    faz com que as fronteiras entre o trabalho e a vida pessoal dos indivduos fiquem cada vez

    mais borradas. Isso acontece porque h uma [...] inscrio da vida humana na durao sem

    descanso, definida por um princpio de funcionamento contnuo (Crary, 2014, p.23), em

    que os sujeito so submetidos disponibilidade absoluta, manuteno perptua e ideia

    plausvel e at normal de trabalhar cada vez sem mais pausas, sem limites.

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    Grfico 01 Quantidade de horas extras que os profissionais fazem por semana

    Fonte: G1/Catho5

    A disponibilidade crescente do trabalhador, suas longas jornadas de trabalho e o

    imperativo da felicidade e do sucesso trazem efeitos nocivos aos sujeitos. Uma pesquisa da

    Catho em 2016, ilustrada pelo grfico 01, revelou que 60% do trabalhadores admitem

    trabalhar aps o fim do expediente e que 50% fazem entre 2 e 5 horas extras por semana,

    enquanto outros 20% acumulam entre 6 e 10 horas a mais de trabalho.

    Esses dados nos ajudam a revelar a posio do sujeito trabalhador em relao a sua

    vida. De acordo com Oltramari, os executivos chegam mais rpido ao topo da carreira

    quando renunciam momentos com a famlia ou os amigos. A manuteno do status

    adquirido e a conquista do sucesso dependem desta renncia, e ao mesmo tempo exigem

    que o executivo tenha uma famlia bem estruturada a fim de manter a sua imagem de

    competncia (Oltramari, 2011, p.109). Assim, entre escolher permanecer mais tempo se

    dedicando atividades pessoais e progredir na carreira, muitos indivduos acabam

    escolhendo a carreira, tanto por medo de perderem seus empregos em vista da competncia

    interna nas empresas, quanto por verem ela como mais desafiante e fascinante.

    Um dos problemas desta escolha a consolidao do que Chul Han vai chamar de

    sociedade do cansao. Para o autor, vivemos a partir do sculo XXI em uma poca

    neuronal, marcada por doenas como depresso, transtorno de dficit de ateno com

    sndrome de hiperatividade (Tdah), transtorno de personalidade limtrofre (TPL), sndrome

    de burnout (SB), enfartos e ataques cardacos, causadas pelo excesso de positividade na

    sociedade, isto , do discurso positivo de que somos capazes de ser e alcanar o que

    5Disponvel em http://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/2016/04/mais-de-60-dos-trabalhadores-fazem-hora-extra-aponta-pesquisa.html. Acesso em 10/06/2016.

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    quisermos sempre mais. Em suas palavras, a violncia da positividade no pressupe

    nenhuma inimizade. Desenvolve-se precisamente numa sociedade permissiva e pacificada

    (CHUL HAN, 2015, p.19).

    Este excesso, segundo o autor, manifestado tambm pelo esgotamento, exausto esufocamento frente profuso de estmulos a que estamos submetidos cotidianamente, o

    que inclui os excessos no trabalho frente a presso de desempenho e o auto

    empreendimento, pois o depressivo no est cheio, no limite, mas est esgotado pelo

    esforo de ter de ser ele mesmo (CHUL HAN, 2015, p.26), tornando o explorador ao

    mesmo tempo o prprio explorado.

    De acordo com uma pesquisa da ONU6 em 2016, por exemplo, a depresso e a

    ansiedade derivados do trabalho custam 1 trilho de dlares economia mundial a cadaano, e seus casos cresceram 50% entre 1990 e 2013, afetando 10% da populao. J a

    sndrome de burnout conhecida como o [...] processo de esgotamento psicolgico

    vivenciado em relao ao trabalho (Carneiro, 2010, p.27), e segundo Carloto e Gobbi

    (1999) ela constituda por trs fatores, que so a despersonalizao do sujeito, a sua

    exausto emocional e baixa realizao profissional.

    Todas essas patologias da contemporaneidade nos permitem inserir o sujeito

    trabalhador em uma condio passiva, pois est inserido em uma liberdade de

    empreendimento de si em um certo sentido ilusria, j que est submetido s prticas do

    capitalismo neoliberal e aos regimes de visibilidade e sancionamento da sociedade. neste

    sentido que podemos interpretar este trabalhador como o animal de rebanhode Nietzsche.

    Sabemos que o filsofo no foi um crtico da modernidade e que h discordncias de

    opinies sobre seu trabalho, mas nos parece legtima a aproximao entre os conceitos aqui

    apresentados, haja visto suas reflexes sobre os sentidos da vida.

    O animal de rebanho, para o filsofo, simboliza a moral dos escravos e o homem

    moderno, inserido em uma sociedade em que vigora uma forte pretenso de igualdade. Ele

    marcado por seu carter passivo, sem pensamentos prprios, no ofensivo, por vezes

    inseguro e com medo. Tambm aquele que, por ser passivo, no consegue estabelecer

    valores por si mesmo e os busca na sociedade a qual pertence. O homem comum espera,

    precisa da opinio dos outros para determinar o que pensa de si mesmo (Kuskoski, 2011,

    p.142).

    6Disponvel em https://nacoesunidas.org/depressao-e-ansiedade-custam-us1-tri-por-ano-a-economia-global-diz-oms/. Acesso em 10/05/2016.

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    Nietzsche acredita que h na sociedade uma imposio totalitria de valores e

    morais no problematizados, aos quais o ser humano deve apenas se adequar. Em suas

    palavras,

    O europeu disfara-se com o capote da moral porque se tornou numanimal doente, numa besta enferma e mutilada que tem excelentes razes

    para se mostrar domesticada: as razes do quase aborto, do canhestro, dofraco. Um animal de presa no julga necessrio disfarar sua ferocidade, a besta do rebanho que tem necessidade de dissimular a sua mediocridade,o medo, o aborrecimento que causa a ela prpria. A moral, confessemo-lo,faz todos os esforos para nos fazer parecer mais nobres, maisimportantes, mais reluzentes, mais divinos (Nietzsche, 2012, p.219).

    O homem de rebanho, ento, pode ser transportado para a figura do trabalhador ps-

    moderno porque ele passivo diante de valores que so pontos nodais no trabalho, comosucesso, performance e reconhecimento, desdobrando-se em escolhas que se dizem

    libertadoras, mas que seguem essas mesmas narrativas.

    O trabalhador no reflete sobre estes valores e morais a que submetido no seu

    cotidiano, e sente-se inseguro e com medo de deixar de existir para a sociedade ao

    desaparecer por trs do fracasso e da mediocridade de seus esforos. o trabalhador, aqui,

    que espera a opinio dos outros para determinar o que pensa sobre si e sua imagem e

    posio na sociedade. Como pode acrescentar Bauman,

    Numa sociedade de indivduos, cada um deve ser um indivduo. A esserespeito, pelo menos, os membros dessa sociedade so tudo, menosindivduos diferentes ou nicos. So, pelo contrrio, estritamentesemelhantes a todos os outros pelo fato de terem de seguir a mesmaestratgia de vida (Bauman, 2009, p.26).

    Inseridos em uma mesma misso de se tornarem indivduos nicos e especiais,

    acabam realizando uma [...] negao sistemtica da vida realizada em nome de uma

    pretensa f, anunciada num discurso descomprometido com as inesgotveis possibilidadesde vida (Matos, 2012, p.146). Essa negao fica clara, por exemplo, quando vemos os

    sujeitos escolhendo entre tempos de lazer com a famlia e o progresso na carreira, com a

    profuso de sndromes que declaram o esgotamento do sujeito na pretensa luta pelo sucesso

    e reconhecimento, e com o crescimento da indstria de autoajuda e do sucesso de revistas

    como a Voc S/A, que sustenta as narrativas imperativas da felicidade atravs de seus

    mapas modalizadores que mostram os passos para alcana-la no trabalho.

    Se constituindo verdadeiras narrativas, podemos fazer uma aproximao dessareflexo com o conceito de fico para Flusser, que declara a fico como a nica realidade.

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    O autor traz o exemplo da mesa para explicar seu conceito. Para a fsica, ela considerada

    um campo eletromagntico e gravitacional praticamente vazio, enquanto para ns ela

    apenas uma simples tbua slida. Se considerada sob outros aspectos, a mesa produto

    industrial, e smbolo flico, e obra de arte, e outros tipos de fico (que so realidades nosseus respectivos discursos) (Flusser, 1966, p.2). Se nos perguntarmos qual desses

    conceitos o mais verdadeiro, estaramos negando a verdade contida em cada um deles e

    por isso fico que realidade; h uma relatividade e equivalncia dos pontos de vista.

    Em seguida, Flusser se questiona o que resta ao removermos todos esses pontos de

    vista e responde: no resta nada, pois a mesa a soma de todas as fices que a modelam, e

    a realidade o ponto de coincidncia entre elas. Este nada, para Nietzsche, niilismo, e

    deve se transformar em vontade de potncia, de criao de novos valores, morais e fices,ou seja, devemos transformar as vivncias em realidade.

    Flusser vai concluir que tudo isso loucura e fingimento, que nossa poca se finge

    de louca, porque no fundo sabe da realidade do mundo. No universo do trabalho isso

    tambm verdade. A mdia, as empresas e os prprios trabalhadores criam e sustentam

    narrativas ficcionais do sucesso, da performance, da flexibilidade, liberdade e felicidade

    para dar sentido prpria atividade laboral e ao sistema capitalista neoliberal. Afinal, sem

    essa fico, que no dia a dia pura realidade, o que restaria? O sistema se abalaria e as

    pessoas ficariam perdidas. Como reflete Nietzsche,

    [...] vs que levais uma vida de inquietao e de trabalho furioso, noestais cansadssimos da vida? No estais bastante sazonados para a

    pregao da morte? Vs todos que amais o trabalho furioso e tudo que rpido novo, singular, suportai-vos mal a vs mesmos: a vossa atividade fuga e desejo de esquecerdes de vs mesmos (Nietzsche, 2005, p.72)

    Neste trecho, podemos aproximar o trabalho furioso apontado por Nietzsche aos excessos

    de trabalho e a auto explorao do sujeito nos dias de hoje. O filsofo parece tambm seadiantar sobre a sociedade lquida da ps modernidade ao citar a velocidade acelerada com

    que as coisas se do.

    Esse carter cada vez mais gil da nossa sociedade, em combinao com a auto

    explorao do sujeito pelo empreendimento de si e as consequentes patologias do trabalho,

    causam o que Nietzsche aponta como um mal-estar que temos conosco, certamente porque

    no somos a melhor verso que poderamos alcanar. As convocaes das narrativas

    miditicas nos do a certeza disso ao mostrarem erros que cometemos, sujeitos que sotidos como mais bem sucedidos que ns e empresas admiradas em que no trabalhamos.

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    Neste sentido, podemos concluir que narrativas ficcionais so criadas pela mdia,

    pelas empresas e pelos prprios sujeitos para modalizar e cristalizar a realidade em torno de

    pontos nodais do trabalho, como o sucesso e a performance, exemplificados pela anlise da

    revista Voc S/A. Nessa dinmica, os trabalhadores so verdadeiros animais de rebanho,pois no questionam os valores que lhe so submetidos e se submetem a excessos no

    trabalho oriundos do auto empreendimento e da auto explorao que foram possibilitados

    com o advento do trabalho imaterial, lhes causando uma srie de patologias como a

    sndrome de burnout, os frequentes ataques cardacos e enfartos, e a ansiedade

    generalizada. Presos essas narrativas ficcionais que foram tornadas realidade pela

    conjuno dos sujeitos aos seus valores, eles deixam de enxergar a possibilidade que se

    esconde por trs desse discurso: a de que a realidade fico e que, justamente por isso,outros pontos de vista so possveis de serem construdos e passveis de se tornarem uma

    nova realidade.

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    REFERNCIAS

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    BAUMAN, Zygmunt. Vida lquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

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  • 7/26/2019 IJ 08 - Isabel Vieira Lopes

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