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III Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental IX Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental Universidade Federal Fluminense - UFF Niterói, 4 a 7 de Setembro de 2008 Apetite pelo Sagrado Gisálio Cerqueira Filho 1 Marcelo Neder Cerqueira 2 SUMÁRIO Nosso objetivo é reunir o máximo possível de indícios e pistas que traduzem este lugar de reunião entre a narrativa literária “The child in the house” (1878, 1895), de Walter Pater, e o pensamento político de Thomas Hobbes, especialmente de sua principal obra, “O Leviatã”, à luz da conferência, “Medo, Reverência e Terror: reler Hobbes hoje”, de Carlo Ginzburg, proferida em 2006 na Universidade Federal Fluminense (UFF). Fica também o interesse, diante da influência de Walter Pater na obra de Gilberto Freyre, como sinaliza Patrícia Burke em seu livro “Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos”, de capturar em sua narrativa este comum estético (e político) que, para nós, em muito se apropria da sinestesia, assim como de outros registros da sensibilidade do romantismo vitoriano, fundamental para a compreensão da formação da cultura burguesa, principalmente no que diz respeito às preliminares da constituição da subjetividade. Procuramos reunir no conjunto de palavras, vocábulos e expressões lingüísticas (ideologia) o caldeirão semântico modelável de Walter Pater, mapeando o seu discurso. 1 Professor Titular de Sociologia. Professor Doutor Associado do Departamento de Ciência Política na UFF e Coordenador do Projeto “Vulnerabilidade Psíquica, Poder e Teoria Política”. Membro da AUPPF. 2 Bacharel em Ciências Sociais pelo IFCS-UFRJ. Estudante do Programa de Mestrado em Ciência Política da UFF. Auxiliar de pesquisa no Projeto “Vulnerabilidade Psíquica, Poder e Teoria Política”, LP3F/ HUAP/ UFF, sob orientação do Professor Gisálio Cerqueira Filho. 1

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III Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental

IX Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental

Universidade Federal Fluminense - UFF

Niterói, 4 a 7 de Setembro de 2008

Apetite pelo Sagrado

Gisálio Cerqueira Filho1

Marcelo Neder Cerqueira2

SUMÁRIO

Nosso objetivo é reunir o máximo possível de indícios e pistas que traduzem este

lugar de reunião entre a narrativa literária “The child in the house” (1878, 1895), de Walter

Pater, e o pensamento político de Thomas Hobbes, especialmente de sua principal obra, “O

Leviatã”, à luz da conferência, “Medo, Reverência e Terror: reler Hobbes hoje”, de Carlo

Ginzburg, proferida em 2006 na Universidade Federal Fluminense (UFF). Fica também o

interesse, diante da influência de Walter Pater na obra de Gilberto Freyre, como sinaliza

Patrícia Burke em seu livro “Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos”, de capturar em

sua narrativa este comum estético (e político) que, para nós, em muito se apropria da

sinestesia, assim como de outros registros da sensibilidade do romantismo vitoriano,

fundamental para a compreensão da formação da cultura burguesa, principalmente no que

diz respeito às preliminares da constituição da subjetividade. Procuramos reunir no

conjunto de palavras, vocábulos e expressões lingüísticas (ideologia) o caldeirão semântico

modelável de Walter Pater, mapeando o seu discurso.

1 Professor Titular de Sociologia. Professor Doutor Associado do Departamento de Ciência Política na UFF eCoordenador do Projeto “Vulnerabilidade Psíquica, Poder e Teoria Política”. Membro da AUPPF.2 Bacharel em Ciências Sociais pelo IFCS-UFRJ. Estudante do Programa de Mestrado em Ciência Política daUFF. Auxiliar de pesquisa no Projeto “Vulnerabilidade Psíquica, Poder e Teoria Política”, LP3F/ HUAP/UFF, sob orientação do Professor Gisálio Cerqueira Filho.

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Introdução.

Walter Pater nasceu na Inglaterra 1839 e foi um reconhecido ensaísta e crítico de

arte do século XIX, tendo influenciado vários escritores da época. Tinha quarenta e um

anos quando escreveu “The child in the house”, este pequeno auto-retrato em terceira

pessoa, narrando suas experiências e lembranças de infância. Em 1844, ainda bem criança,

após a morte do pai, a família de Pater se mudou da cidade de Stepney para uma modesta

casa em Einfield, na fronteira-norte de Londres. Esta parece ter sido o modelo de casa tão

carinhosamente relembrada no texto “The child in the House”. Embora não haja nenhuma

referência direta da sua biografia com a infância do personagem Florian Deleal, em muitos

aspectos do texto as circunstâncias da vida de Pater parecem similares com a vida de

Florian. Em ambos, a morte do pai quando ainda crianças parece ter sido muito

significativa. Comparações interessantes também podem ser feitas entre este pequeno

esboço do processo de crescimento e edificação da mente da criança Florian com a

autobiografia ficcional de James Joyce, em o “Retrato de um Artista Quando Jovem”.

Alguns estágios das experiências religiosas de Stephen Dedalus parecem similares às

vivências de Florian e, dada a grande admiração de Joyce pelos escritos de Pater, a

aproximação é apropriada.

Em 1853, Pater foi enviado para a King’s School, em Canterburry, onde, menino,

teria pretendido ser um pastor anglicano. Todavia, seus estudos o levaram para Oxford e o

contato com Darwin e outros escritores o distanciaram da aspiração plenamente cristã. Este

distanciamento, para muito além da mera expressão de qualquer significado de perda de fé,

ou mesmo da elevação do racionalismo como novo paradigma iluminista, seria indicativo

da constituição de um “novo lugar” para o domínio das idéias religiosas. Tal lugar seria

constituído, assim como para o personagem Florian, não mais diretamente pela razão ou

pela fé, mas pelo prazer sensitivo e extasiado das luzes da igreja, dos dias contemplativos,

da beleza da natureza, da aura da memória, “all that belonged to the comely order of the

sanctuary”.

Vai ser nesta mesma “Oxford de Walter Pater”, que Gilberto Freyre inscreve a sua

literatura, tornando-a parte da sua vida e obra, parte mesmo da constituição deste olhar

sobre o Brasil que produziu e ainda hoje produz efeitos ideológicos de grande força e

hegemonia no entendimento da formação da cultura brasileira e sua identidade. Como

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sinaliza Palhares-Burke, “em Pater é plausível supor que Gilberto Freyre tenha

encontrado inspiração para dois aspectos essenciais de sua obra: o gênero ensaio, no qual

expressa suas idéias, e a importância da ‘casa’ na interpretação da cultura brasileira” 3.

Para além desses dois aspectos básicos relevados acima, a aventura da sensibilidade

freyriana nos transporta para um ponto de contato fundamental, uma dobra no tempo: um

buraco negro que possibilita um caldeirão de ideologias, onde a constituição da

sensibilidade e subjetividade através do romantismo conservador vitoriano e sua correlação

indireta com o sentido de razão natural do autoritarismo político hobbesiano atuam como

vias de passagem re-editoras do tomismo na possibilidade vencedora da modernidade, a

cultura burguesa.

1. “Old house” e “The child in the house”:

Casa Antiga / Casa-grande. A influência de Walter Pater em Gilberto Freyre.

Contexto da formação da cultura burguesa (burguesia vitoriana – segunda metade do século

XIX). A casa aparece como espaço de sacralização do mundo e das relações sociais em que

o sujeito (indivíduo) se inscreve. Deslizamento do divino, deslizamento do ambiente sacro

para a relação sensível com o material. O espaço da old house e a “primeira infância”

relacionada a este espaço se constitui na memória enquanto o seu lugar de naturalização

(sujeição). Relação entre casa antiga e memória (o “quarto da memória”).

A sensibilidade sinestésica: desenvolvimento da sensibilidade romântica - mundo

supersensível. Forte relação com “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust

(proximidade literária e narrativa). Voltaremos a esta questão em vários momentos. Fica a

reflexão da sinestesia através da dialética (extasia / anestesia) e a sua relação com a

memória. A sensibilidade tirânica (“tyranny sensible”) como a via do tomismo no bojo da

cultura burguesa. A casa e a família como este espaço supersensível. A expressão tirânica

traz uma forte relação com o pensamento de Hobbes. O medo (da morte / do belo) vai ser o

sentimento-bonde da sujeição, da reverencia e do terror. Cadeia associativa: Pater / Proust /

Freyre / Hobbes. O Hobbes que se esconde por detrás do belo.

3 Maria Lucia Garcia Pallares-Burke. “Gilberto Freyre na Inglaterra: uma história de amor”. Artigo publicadoem janeiro de 1997 na “Biblioteca Virtual Gilberto Freyre”. Ver também: Maria Lucia Garcia Pallares-Burke,“Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos”, Editora Unesp, São Paulo, 2005.

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2. “It was the model of the house so fondly recollected”:

Fondly: “be full of love for; lovingly, in a foolish optimistic manner”. Sentido de

carinho, de intimidade, de ternura; de quem vê de dentro (da própria casa). Gilberto Freyre

vai falar em intimidade.

3. Carta do amigo Keats (um dos escritores favoritos de Pater):

“How astonishingly does the chance of leaving the world impress a sense of its

natural beauties to us”

Astonishingly: estupefação, muita surpresa, atônito.

Sentido de petrificação contemplativa, de estarrecimento (diante do belo / diante da

morte).

4. Auto-retrato na terceira pessoa: a formação do alter-ego. Ver através do outro o

espelho de si mesmo (sentido antropológico / Louis Dumont 4). Referência a um mesmo

mecanismo narrativo em David Copperfield. Registra-se também a influência de Pater para

O Retrato de um Artista Quando Jovem, de James Joyce. Lembrando a introdução da

conferência de Carlo Ginzburg 5: “para entender o presente devemos aprender a olhá-lo de

esguelha. Ou então, recorrendo as uma metáfora diversa: devemos aprender a olhar o

presente à distância, como se o víssemos através de uma luneta invertida.”

5. A influência francesa:

“(…) might explain, together with some other things, a noticeable trimness and

comely whiteness about everything there”.

Trimness: “ in good order”; ordenação.

Comely: “pleasant to look at”; contemplação.

Whiteness: brancura.

O sentido da proximidade francesa como um clamor por ordenação e brancura

contemplativa de todos os objetos da casa. Lembramos outro texto de W. Pater,4 Louis Dumont. “Homo Aequalis: gênese e plenitude da ideologia econômica”, editora da Universidade doSagrado Coração (EDUSC), Bauru, São Paulo, 2000. Importante pensador católico francês muito influente nacontemporânea antropologia brasileira. Louis Dumont muito tem a nos oferecer para a compreensão doprocesso de naturalização da sacralidade política da perspectiva neoliberal de economia de mercado.5 Carlo Ginzburg. Medo, Reverência, Terror: reler Hobbes hoje. Conferência no Departamento de História daUniversidade Federal Fluminense (PPGH/ UFF) em 18/09/2006, mimeo., Niterói.

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“Imaginary Portraits”, (escrito em 1887), sobre o pintor do rococó francês Antoinne

Watteau (1684 – 1721). Imagens dos prazeres cotidianos da burguesia em formação. A

tolerância da casa com a grande árvore (“poplar”) muito comum na França e não muito

comum na Inglaterra como mais um indício desta influência. Podemos interpretar esta

“presença francesa” como uma tradução do clamor afetivo (através do medo) por

obediência e ordem. Se o medo aparece de forma tão explícita no contexto hobbesiano

(Revolução Gloriosa), o que esta em questão como “presença francesa” é o encantamento

supersensível (a brancura contemplativa), como talvez indique a referência ao quadro do

famoso pintor francês do século XVII e suas imagens cotidianas. A brancura ofusca a visão

e “constitui a armação deste amor e camufla com seu texto a prestidigitação de uma pura e

simples imposição de adestramento” (Pierre Legendre)6. Não seria o próprio Proust e o

conservadorismo romântico a influência francesa dentro da casa inglesa? Ou, o que nos

parece mais interessante, não seria Pascal? Aumentamos, assim, o leque associativo: Pater /

Pascal / Proust / Freyre / Hobbes.

6. “Top of the house, above the large attic, where the white mice ran in the twilight

– um infinite, unexplored wonderland of childish treasures (…)”.

Espaço encantado (mítico) da primeira infância. Ratos brancos: quantos filmes

holywoodianos não trazem essa imagem supersticiosa da casa, do sótão, do mundo infantil,

do ratinho branco?

Infinite: infinito

Unexplored: não explorado, virgem.

Wonderland: terra da fantasia, dos sonhos. Terra da fantasia / “Terra do nunca” /

Peter Pan / “Mozart: sociologia de um gênio” (N. Elias). Não se envelhece, não existe

tempo (o relógio está no estômago do crocodilo). A cadeia associativa nos leva para o

sentido da “eterna criança”, cobertura da submissão inscrita naquele que não se independe e

não “cresce” nunca. A fantasia do tudo poder fazer da infância no sentimento de impotência

do sujeito.

6 Ver texto estabelecido pelo Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho a partir do projeto original do historiador,jurista e psicanalista Prof. Dr. Pierre Legendre (Universidade de Paris I), mimeo. Niterói. Destaque paraPierre Legendre. O Amor do Censor. Rio de Janeiro: Forense, 1983.

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7. Desejo de beleza:

“For it is false to suppose that a child’s sense of beauty is dependent on any

choiceness or especial fineness , in the objects witch present themselves to it, though this

indeed comes to be the rule with most of us in later life; earlier, in some degree, we see

inwardly, and the child finds for itself, and with unstinted delight, a difference for the

sense, in those whites and reds through the smoke on very homely buildings, and in the

gold of dandelions at the road-side, just beyond the houses, where not a handful of earth

is virgin and untouched, in the lack of better ministries to its desire of beauty.”

Inwardly: “situated within; inner”. Sentido de um lugar interior, próximo, de dentro, no

íntimo, intimamente.

Unstinted delight: permissivo deleite, prazer sem limites.

Sentido sinestésico e referências ao contato sensível são recorrentes em todo o texto:

Smoke: Fumaça. Sentido inebriado. Fumaça, perfume, luzes, sons e texturas. Não

faltarão metáforas trazendo o mundo dos sentidos. A relação interessante é captar o

encantamento do êxtase que se transforma em passividade anestésica. Trata-se de um

prazer febril. A expressão febre (febril) vai ser utilizada algumas vezes também. Existe

desde já um claro apontamento para o sentido de modernidade dos fármacos (drogas), ou

mesmo para um estado de loucura dos sentidos (como Arthur Schnitzler tanto escreverá em

sua Viena fim-de-século 7). Em Pater o estado talvez ainda seja menos de loucura, e mais

de contemplação estupefante. Fica o link com a música “Confortbly Numb”

(confortavelmente entorpecido), do Pink Floyd, presente no disco “The Wall”. A industria

cultural do rock e da música pop pode trazer algumas considerações interessantes sobre

estas questões para o mundo contemporâneo. Especialmente do rock inglês (a presença

inglesa). Lembrança do “Wonderland”, nome dado à casa de Michael Jackson (maior

exemplo da indústria fonográfica do mundo: maior vendagem de discos).

White and red: as cores e os tons vão ser características da literatura supersensível

de Pater.

7 Como temosmos trabalhando no projeto de pesquisa Projeto “Vulnerabilidade Política, Poder e TeoriaPolítica” (Laboratório Cidade e Poder/ UFF) nos últimos anos, onde observamos o mal-estar da modernidadena literatura de Arthur Schnitzler como espaço fundamental para a compreensão da formação da culturaburguesa. Relacionado a esta pesquisa, apresentamos ensaio no II Congresso Internacional de PsicopatologiaFundamental e VIII Congresso Brasileiro, em Belém do Pará, intitulado “Vulnerabilidade Psíquica e Poder:sobre Arthur Schnitzler ”, 2006.

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Gold of dandelions: uma flor, dente-de-leão.

Earth virgin, unexplored, untouched: virgem, inexplorado, intocado.

Como o texto diz, entre as casas, nem sequer um punhado de terra virgem (sagrada).

A terra vai aparecer várias vezes como o enraizamento sagrado da casa, da cultura

(existência terra). A terra da casa como a mesma terra do cemitério. A campa como a casa:

a terra sagrada da eternidade da vida.

Ministries: palavra muito utilizada no vocabulário protestante (ministro de Deus).

Esta palavra é usada várias vezes ao longo do texto.

8. “This house then stood not far beyond the gloom and rumors of the town, among

high garden wall, bright all summertime with goldenrod, and a brown–and-golden

wallflowers”.

Wall: muro / parede.

Brow-and-golden: as tonalidades de cores serão característica da literatura de Pater,

trazendo este mundo supersensível proustiano.

Registro metafórico: esta casa não fica muito distante dos rumores da cidade. A

idéia de muro (wall) vai aparecer várias vezes no texto. O muro da casa, do quintal, da

memória, do nosso cérebro, da intimidade. O muro traz um sentido político bem hobessiano

(autoritário), por assim dizer. Lembremos o Muro de Berlin, assim como o muro norte-

americano na fronteira com México. “Break all the walls!”

9. “Tracing back the threads of his complex spiritual habit, as he was used in after

years to do, Florian fond that he owed to the place many tones of sentiments afterwards

customary with him, certain inward lights under which things most naturally presented

themselves to him”.

Spiritual habit: hábito spiritual.

Inward lights: luzes íntimas, perspectiva (óculos dos afetos).

Tones of sentiments: tonalidade do sentir.

No deslizamento romântico supersensível a espiritualidade não está em uma razão

diretamente abstrata e sim no hábito (na cultura), no exercício sensível (do prazer) desta

espiritualidade. De princípio, não haveria hábito para o espírito (ele já é determinado). O

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deslocamento reificador e tradutor do tomismo e do autoritarismo situa-se precisamente

neste exercício sensível. Fica a questão importante: exercício sensível marcado

predominantemente pela memória da primeira infância. Permanece um sentido de

imutabilidade e de determinismo.

10. “Coolness of the dark”: “frescor da escuridão”. Mais uma das inúmeras

metáforas que existem na narrativa de Walter Pater, trazendo a reunião contraditória do

prazer (frescor) com o horror (escuridão).

11. “A citadel of piece in the heart of the trouble”: Uma cidadela (uma torre, uma

casa) de paz no coração do turbilhão (“com o diabo na rua no meio do redemoinho”,

Guimarães Rosa - no centro do redemoinho nada acontece).

“A dark espace on the brilliant grass”: um espaço de escuridão rodeado de grama

brilhante. Neste caso, Pater se referia ao pedaço de terra sete palmos abaixo do chão. Fica a

reflexão da similitude do raciocínio destas duas frases. Pois como interpretamos

anteriormente, o lugar de paz no coração do turbilhão é precisamente a morte (a campa). O

turbilhão, ao mesmo tempo, que traz o caos da vida (o problema, trouble), funda neste

mesmo caos o mundo sensível, o turbilhão de prazer, a contemplação do belo, o verde

brilhante da grama. Fica a alusão para o afro-samba de Vinicus de Moraes e Baden Powel:

“ah, mundo enganador, paz não quer mais dizer amor”.

12. “(...) a kind of exquisite satisfaction in the trimness and weel-considered grace

of certains things or persons he afterwards met with, here and there, in his way trought the

world”.

Uma sublime sensação (de prazer) na ordem (obediência) e um agradecimento

(graça divina) no contato com as coisas e pessoas que ele encontra no seu caminho pelo

mundo. Fica mais um registro para a gramática de expressões do caldeirão de Pater:

exquisite satisfaction.

13. “So the child whom I am wtriting (...)”.

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Registro narrativo da construção do alter-ego, falando em terceira pessoa, como

situamos anteriormente. O jeito como ele introduz este parágrafo coloca em evidência que a

criança que ele está falando é muito mais do que um personagem distante. Uma recorrência

ao longo do texto. Para isso podemos usar a expressão que ele mesmo usa para se referir a

aquele que discursa de dentro (da casa), segundo o escopo da intimidade, que discursa de

um lugar de proximidade: inwardly.

14. “(…) the quickness of his memory”.

Neste mesmo parágrafo é colocada uma situação onde mãe e filho lêem juntos,

próximos à janela. Ela deslumbra-se com a velocidade da memória do filho (o filho santo, o

escolhido, o filho precoce, o gênio da mamãe). Uma vez mais nos encontramos no debate

proposto por Mozart (Elias)8. Estamos diante da construção romântica do sentido de gênio.

“(...) while time seemed to move ever more slowly to the murmur of the bees (...)”.

O tempo que parece se andar devagar quase parando (no colo da mãe). O tempo

parado: voltamos ao sentido estático e eternizante da memória da primeira infância. A

memória vai ser este lugar do não perecível, do imortal. A memória vai ser o lugar da casa

antiga. Pois o tempo é mais devagar que o zumbido das abelhas. Ora, não faltam exemplos

na literatura política (inclusive do próprio Hobbes) que buscam incessantemente na

natureza exemplos sobre sociedades de formigas e abelhas que cedem as paixões e a

própria liberdade para a sobrevivência comum da sociedade. Existe uma contingência em

questão. A apreensão da natureza em Pater não se procede buscando qualquer apelo

científico newtoniano (razão) para camuflar o “santuário de sentimentos” (afetos

religiosos), base do próprio olho de quem vê (ou, como diz Pater - we see inwardly -, nós

vemos com os “óculos da intimidade sensível”). A apreensão da natureza em Pater parte da

contemplação do belo e do medo da morte.

15. “How insignificant, at the moment, seem the influences of the sensible things

witch are tossed and fall and lie about us, so, or so, in the environment in early childhood.

How indelibly, as we afterwards discover, they affect us; with what capricious actions and

associations they figure themselves on the white paper, the smooth wax of our ingenuous

8 Norbert Elias. Mozart: Sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

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souls, as ‘with lead in the rock forever’, giving form and feature, and as it were assigned

house-room in our memory, to early experiences of feeling and thought, witch abide with

us ever afterwards, thus, and not otherwise.”

A quantidade de indícios é impressionante: neste momento de eternidade, fica claro

como a sensibilidade torna-se insignificante (justamente no que seria o seu ápice).

Voltamos ao sentido de anestesia (corpo semi-vivo). A expressão “ambiente da primeira

infância” (da mais cedo infância) revive o sentido construtivo (da cultura) da existência. As

expressões White paper (tabula rasa), assim como smooth wax trazem este sentido

construtivo, modelável. A infância na antiga casa pinta na tela branca da existência os

traços que marcaram para sempre o indivíduo, bem como a vida social, da mesma forma

que modela esta existência tão manipulável como a cera (wax), ou mesmo, como se segue,

tal manipulável como uma alma ingênua. A cera modelável (smooth wax) traz um sentido

de plasticidade. Não esqueçamos do conceito de “plasticidade social” de Gilberto Freyre. A

mesma palavra wax pode significar cera, assim como mel de abelha. Mas também esta

mesma palavra vai ser utilizada para embalsamar a face morta. A frase bíblica retirada de

Jó (onde Carlo Ginzburg busca a origem do verbo “to awe”9, usado por Hobbes em seu

Leviatã) traz este sentido: “como o chumbo marcado na pedra para sempre”. O verbo

assigned traz o mesmo sentido de impressão, de algo que marca para sempre (que imprime

sua assinatura); imprime o quarto da casa em nossa memória. A memória mais uma vez

significando este espaço quase atemporal (um sentido quase não histórico, um tempo

sempre perdido). A expressão “early experiences of feelings e thougth” mais uma vez traz

este sentido de experiência (de exercício de construção do pensamento junto com o sentir).

Entretanto não qualquer experiência, mas especialmente as primeiras. Estamos

mergulhados em significações de pureza, origem, virgindade, genialidade e vocação,

sentidos construtores do sujeito e da unicidade, da sua individualidade única. O verbo

abide significa ficar, marcar, deixar. Pois esta experiência do tempo mais antigo (da

infância, ou do “velho livro”?) fica em nós para sempre, sugere Pater. Cabe também

sinalizar a quantidade de vezes que Pater utiliza a palavra afertwards. Bastante indicativo.

A expectativa futura e a sensação de estar sempre atrás do tempo.

9 Carlo Ginzburg. “op it.”.

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16. “(...) and the early habitation thus gradually becomes a sort of material shrine

or sanctuary of sentiment; a system of visible symbolism interweaves itself through all

our thoughts and passions (…)”.

Esta passagem trata explicitamente do sentido sacralizador da casa. A expressão

santuário de sentimentos é gritante. Também a palavra shrine, melhor traduzida como

relíquia, ou melhor, relicário (mais que também traz um sentido de altar) remonta a

reverência, o respeito e a obediência a este santuário. Esta palavra traz mais uma vez este

tempo perdido, o sentido mesmo da perda (da queda) e a nossa obrigação pela sua eterna

reverência e culpa. Encontramos aqui mais uma relação com o texto de Ginzburg e também

no que diz respeito à diferenciação entre secularização e laicização, como discutida em sala

de aula 10 através das idéias de G. Marramao 11. Existiria, pois, uma sacralização da “vida

material”, poderíamos dizer, uma metafísica da apreensão sensível que muito se valeu do

idealismo de plantão. Modernidades... Por isso Pater vai falar dos pequenos objetos da casa,

da cortina balançando, do som da árvore, da maneira como o sol bate de manhã na cama,

das vozes da casa. Existe toda uma ambiência (environment) sacra. Se, todavia, Pater, se

vale de uma expressão tão cara a Charles Darwin, propondo uma compreensão mais

interativa da humanidade, reacende por dentro desta mesma expressão um sentido

sacralizador e naturalizante da vida social. A leitura de Darwin aparece também como

indicativo da intercessão com o pensamento político de Hobbes. Também a “guerra de

todos contra todos” carrega um sentido (mesmo que numa terrível interpretação) de seleção

natural. Também não esqueçamos dos ecos do sentido de adaptação darwinista que a

expressão plasticidade social de Freyre carrega. Competição e adaptação fazem dois lados

de uma mesma moeda: Hobbes e Pater / Hobbes e Freyre. Estamos dialogando com a

matriz da teologia-política moderna. A metáfora “white paper” alude a Locke: Hobbes e

Locke. Os desdobramentos não param. Da mesma forma, o sistema simbólico por onde

passa nossos sentimentos e pensamentos (que podemos chamar de ideologia ou mesmo

cultura) aparece ao fim da citação como este espaço sagrado, de encantamento mítico.

10 Curso intitulado “Teoria Política: novos objetos e paradigmas”, ministrado pelo professor doutor GisálioCerqueira Filho no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP), na Universidade FederalFluminense (UFF), no primeiro semestre de 2008.11 Preferimos o uso do conceito de laicização à secularização para falar da efetiva liberação do sujeito, comosugere G. Marramao. Para o autor, o conceito de secularização está demasiadamente impregnado pelo camporeligioso. Giacomo Marramao. Poder e Secularização. As categorias do tempo, São Paulo: EdUNESP, 1995.

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17. “(...) what all it had determined was a peculiarly strong sense of home – so

forcible a motive for all of us – prompting to us our customary love of the earth, and the

larger part of our fear of death, that revulsion we have from it, as from something strange,

untried, unfriendly (…)”.

A determinação deste poderoso sentido de casa como catalisador do nosso

costumeiro amor pela terra e grande parte do nosso medo da morte, e a repulsa que nós

temos por qualquer coisa estranha, não amiga. Amor pela terra e medo da morte, a terra

mesma eternizada no solo da casa. A morte se figura como saída do próprio medo da morte.

A repulsa do estranho, do não amigo, do não próximo, do não íntimo. Esta questão está

bem em cima da interpretação de Gilberto Freyre e de toda tradição do pensamento social

brasileiro sobre a cordialidade. O que pulula em comum nesta reflexão talvez se encontre

na percepção de uma particular formação do catolicismo, que se Freyre enxergou na relação

Brasil / Portugal, não deixa de ser interessante a evidência de um mesmo em questão na

supersensibilidade conservadora da burguesia vitoriana. A circulação de idéias é

planificada. Estes pensadores circulavam pelos mesmos lugares. Aquilo que soa tão tropical

de repente parece tão inglês (ou francês)...

Na seqüência uma série passagens e expressões interessantes que expressam a

discussão que estamos propondo:

“a mere childish goûter”: madelaine de Proust.

“the final banishment from home”: o sentido de exílio e o medo profundo de ser

banido da própria terra. Banir como excomungar.

“solace”: significa conforto. O sentido profundo da casa como o conforto dos

peregrinos e viajantes.

“thought sleep in the home churchyard”: casa / conforto / cama / descanso / campa /

cemitério.

“dead cheek by dead cheek”: cheek significa face.

“brain-building”: simbólico, ideologia, cultura - alude para a edificação da antiga

casa grande na plasticidade social da alma-cera cérebro, memória da primeira infância.

“house of thought”: lembrando os versos da música felicidade já em nosso

imaginário social “a minha casa fica lá detrás do muro onde eu vou em um segundo quando

começo a pensar”. A terrível idéia de felicidade...

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“like some airy bird’s nest”: a metáfora é preciosa. Esta casa no pensamento, este

quarto da memória, como um arejado ninho de passarinho em nossas cabeças.

18. Neste mundo encantado dos sentidos o personagem Florian um dia se arrisca

para além dos muros e se apaixona por uma bela e vermelha flor que como um coração de

fogo, do meio do tronco torcido da árvore envelhecida e seca, pulsa o seu perfume ardente

agora mais do que nunca, e sempre, voando pelos ventos, atravessando o muro do jardim,

ele que tanto imaginara como deveria ser do outro lado, e agora era permitido encher seus

braços de flores - flores suficientes para encher os velhos e azuis potes chineses que

enfeitavam a sala ao lado da chaminé e fazer uma fête no quarto das crianças. “But the

beauty of the thing struck home to him feverishly; and in dreams all night he loiterd along

a magic roadway of crimsom flowers (…)”.

“A touch of regret or desire mingled all night with the remembered presence of the

red flowers, and their perfume in the darkness about him; and that longing for some

undivined, entire possession of them was the beginning of a revelation to him, growing

ever clearer, with the coming of the gracious summer guise of fields and trees and person

in each succeeding year, of a certain, at times seemingly exclusive, predominance in his

interests, of beautiful physical things, a kind of tyranny of the senses over him. ”

As palavras e as expressões sinalizadas são muito significativas. No inglês, assim

como no francês, diante da ausência da palavra saudade, tanto regret como desolée

expressam uma pluralidade de sentimentos e sensações muito significativas. Neste contexto

regret expressa culpa, pesar, ressentimento, mais, ao mesmo tempo, o campo semântico

desta pequena palavra expressa sentimentos profundos de perda (perda no passado), a perda

mesmo de uma possibilidade de futuro, interrompida e irrealizável no momento. Por isso

tanta desolação. O amor de Florian pela flor surge num misto (mingled) de dor e prazer, de

culpa e desejo. Ele cometeu o pecado do fruto proibido e tombou do paraíso do seu lar e da

sua querida casa quando atravessou pela porta do jardim que estava casualmente aberta e

foi gozar a beleza do conhecimento do mundo sensível. A paixão do garoto pela flor, quase

como um espelho de si mesmo, no interior do cascalho velho e seco do tronco de sua casa,

abriga no coração do seu ninho pétreo a beleza da vida, que no automatismo da sua

divinação absolutista se desfaz em medo da perda, em medo da morte, desfigurando o rosto

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belo de si mesmo que se antes ele contemplava na água parada do jardim, agora via no

reflexo da vidraça do necrotério justaposto sobre a face da morte. O perfume viajando na

escuridão da noite lembrava o seu desejo aterrador que se estendia pelo seu corpo e se

prolongava (longing) no querer de algo não divino, profanando a si mesmo, e revivendo o

sacramento na total possessão (entire possession) do seu objeto de amor. Isso tudo trazia

uma revelação sobre si mesmo, do seu interesse pela beleza física das coisas, um tipo de

“tirania dos sentidos”. Esta expressão reacende o autoritarismo da vida, e no medo da morte

(do belo) a total submissão, obediência e entrega de si para um estado anestesiante de

êxtase, que no impulso de controle do objeto amado é totalmente controlado por ele. A

expressão tirania dos sentidos lembra o filme Império dos Sentidos, de Nagisa Oshima.

Lembra também a submissão irrestrita ao controle absoluto do Leviatã hobbesiano.

19. “For this desire of physical beauty mingled itself early the fear of death – the

fear of death intensified by de desire of beauty.”

Mingled: um misto, misturar, misturado. A expressão “with mingled feelings”

significa exatamente, assim mesmo como está no dicionário Oxford, “pleasure mixed with

regret.” Não deixa de ser interessante observar o sentido (oculto) que esta palavra carrega,

revelado nesta expressão. Assim, retorna incessantemente por dentro do significado de

mistura, onde todos os gatos são pardos, o conflito do desejo com a culpa. Da mesma

forma, como Gilberto Freyre em sua ardorosa tarefa de ocultação e enceramento da

violência no processo de formação social brasileira (em nosso brain-building tupinagô)

representa a miscigenação por mistura, sem perceber que assim faz retornar o seu contrário,

evidenciando justamente a trama autoritária psico-afetiva banhada no sacramento sensível,

reeditando o tomismo no seio da cultura burguesa.

O “mundo mingled” do antropologismo da autobiografia sinestésica da narrativa de

Walter Pater, diferentemente da expressão “viver dois mundos”, como discutido por N.

Elias12, no seu livro sobre Mozart, onde se explicitava a discussão histórica, o sentido de

movimento e conflito (e assim enfatizando a mudança e a transformação da vida social) -

onde se fazia o esforço de compreender o movimento metamórfico da história – revifica na

pintura freyriana da mistura a história no lugar estático da memória, da impressão na cera,

12 Norbert Elias. "op. cit”.

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do chumbo que marca a pedra para sempre e cristaliza a metamorfose como um trauma

quase insuperável, como uma anormalidade, como um ser-tempo inferior e débil, como

uma espécie despreparada para reproduzir-se na guerra de todos contra todos pela vida.

Esta relação entre história e memória é muito interessante. Poderíamos polarizar as

seguintes expressões, caracterizando a narrativa de Walter Pater:

“Mundo Migled”

Casa Banimento do Lar

Beleza sensível Medo da morte

Amor pela terra Amor pela campa

Prazer Pesar / Culpa

Extasia Anestesia

20. Este é o cenário onde, agora sim, adentraremos no ponto de contato fundamental

do pensamento hobbesiano e da interpretação de Carlo Giznburg com este pequeno texto de

Walter Pater. Pois este também se refere à utilização do verbo awe, que significa

precisamente medo e reverência, como discutido no artigo de Carlo Ginzburg. “Sensibility

– the desire of physical beauty – a estrange biblical awe”. O desejo pela beleza física do

mundo sensível espelha o controle ortopédico da alma que deve ser adestrada e reprimida:

na entrega de si ao prazer, a entrega de si para a morte. As academias de ginásticas do

mundo contemporâneo também escondem um cheiro de formol, assim como o retrato de

Dorian Gray eterniza a sua beleza aprisionando na cera-pintura a face da morte.

O garoto que até então nunca havia encarado a face de um morto se via agora em

um necrotério, mirando através das janelas de vidro os cadáveres que repousavam naquele

estado desterrado, ainda antes do funeral, “among the flowers and incenses and holy cadles

- the aged clergy with their sacred ornaments, the young men in their dancing-shoes and

spotless white linen – after which visits, those waxen, resistless faces would always live

with him for many days, making the broadest sunshine sickly”. O idoso clérigo com seus

ornamentos sagrados, os jovens moços com seus sapatos de dança e roupa de linho branco

imaculada. O paralelo é sugestivo. Na imagem do jovem descolado e desprendido, com

seus sapatos esportivos que dançam, correm e circulam, a brancura imaculada do linho

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branco preserva no seu interior o clérigo idoso com seus ornamentos sagrados e sua lerdeza

estática. A representação do “novo” e do “velho” lado a lado diante das janelas de vidro do

necrotério, conectados pelo medo da morte. Como a juventude yeah-yeah-yeah, seus

topetes rock and roll e roupas esportivas - a formação mesmo da cultura burguesa - eles

também tinham seu Rei, e nós também o nosso, e guardavam todos aquela certeza profunda

do medo da morte, a necessidade do sagrado - o rock também possuía algo de

extremamente conservador no seu dogmatismo e nas suas estéricas tietes: John Lennon já

era mais famoso que Jesus Cristo. Aqueles rostos de cera morariam com ele por muitos

dias, fazendo do mais extenso e brilhante sol de entardecer pálido e doente. Permanências...

21. Leviatã: o fantasma do pai

A doença. A febre matara seu pai na Índia quando ainda bastante criança. O

fantasma do pai levitava do túmulo como o terrível monstro marinho, “making the sweet

familiar chambers unfriendly and suspect by its uncertain presence”. Talvez fosse preciso

alguma outra metáfora. O mar talvez já aludisse para Hobbes a fluidez da subjetividade.

Não seria o Behemoth o grande monstro do contrato: seria o medo. O mar da subjetividade.

O monstro emergia do mar, não da terra.

Na seqüência, outras expressões que traduzem o debate em questão:

“(…) the relationship between life an death, had been suggested spontaneously in

the natural course of his mental life growth by a strong and innate sense for the soberer

tones in things, (…) and religious sentiment, that system of biblical ideas (…) light up as

with a ‘lively hope’, a melancholy already deeply settled in him.”

O sentido de curso natural da mente. O sentido de sensibilidade inata. Os

sentimentos religiosos (sistema de idéias bíblicas). O peixe vendido como uma esperança

viva a custo de uma melancolia (pathos) profunda.

“(…) a kind of mystical appetite for sacred things; the more as they came to him

through a saintly person who loved him tenderly, and believed that this early

preoccupation with them already marked the child out for a saint.”

O apetite por coisas sagradas. A criança da casa marcada como o santo, o santo

menino. Fantasia do escolhido, da iluminação divina no interior do indivíduo. Voltamos aos

signos da genialidade, da vocação, do individualismo romântico possessivo.

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22. Fica o sofrimento humano. Neste caso, aquilo Pater designa como “agony of

home-sickness”.

ANEXO

A Gramática de Walter in nomini Pater:

old housethe child in the housefondlyastonishinglytrimnesscomelywhitenesstop of the housewhite miceinfiniteunexploredwonderlandinwardlyunstinted delightsmokewhite and redgold of dandelionsearth virginuntouchedministrieswallbrow-and-goldenspiritual habitinward lightstones of sentimentscoolness of the darka citadel of piece in the heart of the troublea dark space on the brilliant grassexquisite satisfactionso the child whom I am writingthe quickness of his memorywhile time seemed to move ever more slowly to the murmur of the beeswe see inwardlyenvironment in early childhoodwhite paper

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smooth wax ingenuous soulswith lead in the rock foreverassigned house-room in our memoryearly experiences of feeling and thoughtabideever afterwardsearly habitationshrinesanctuary of sentimentsystem of visible symbolism interweaves itself through all our thoughts andpassionsdetermined strong sense of home customary love of the earthfear of deathrevulsionsomething strangeuntriedunfriendly.childish goûter.the final banishment from homesolacesleephome churchyarddead cheekbrain-buildinghouse of thought airy bird’s nestfeverishlyregretdesiremingledperfume in the darkness longing for some undivinedentire possessionrevelationbeautiful physical thingstyranny of the sensesthe child out for a saintlife an deathspontaneouslynatural course of his mental life growthstrong and innate sensesobererreligious sentimentsystem of biblical ideas

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lively hopemelancholy already deeplyagony of home-sickness

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