IED - Aula 1 - Teoria Das Fontes III - Constituição

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Teoria das Fontes: Constituição. Há uma insuficiência na forma como a teoria das fontes vem classicamente tratada. Insuficiência que é reflexo da cultura liberal positivista que marcou a formação do próprio discurso da teoria geral do direito. Então, a principal fonte do direito é a lei; a lei absolutiza o ambiente das fontes do direito e lateraliza todas as demais fontes. Por isso, os costumes perdem relevância; os princípios não são nem discutidos; uma série de questões que têm uma forte ênfase hoje, inclusive como questões práticas, que ajudam os juízes a resolver problemas concretos, são tornados, pela teoria tradicional das fontes, questões de menos importância. Por isso, corriqueiramente, o desprezo a algumas temáticas que nós vamos encontrar nesse debate. Por exemplo, o desprezo dado à idéia de eqüidade e ao papel criativo da jurisprudência na formação da cultura do direito. Nós sabemos que muita coisa que não é solucionada pela norma em abstrato é fruto da criação jurisprudencial, que avança no sentido da dinâmica social, pois o juiz está mais próximo que o legislador das necessidades e das aflições da sociedade que recorre aos tribunais diante de lesões ou ameaça de lesão a direitos. Essa foi a primeira reflexão que nós fizemos a respeito da teoria das fontes: a constatação de sua insuficiência e a necessidade de avançarmos em direção a um modelo que encampe algo mais que a mera ideologia positivista. Em segundo lugar, nós analisamos fonte por fonte: lei, constituição, jurisprudência, eqüidade, princípios, e assim por diante. E ao passar pelo tema das normas, das leis, trabalhamos a idéia de constituição muito rapidamente, uma noção que não pode ser trabalhada rapidamente, na medida em que é fundamental para a arquitetura do ordenamento jurídico, tema que vai ser objeto das nossas reflexões: tentar entender o sistema jurídico com um todo... e não há, na dimensão do Estado democrático de direito contemporâneo, como pensar o sistema jurídico sem pensar a significação da

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Introdução ao Estudo do Direito - aula da USP

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Teoria das Fontes: Constituio

Teoria das Fontes: Constituio.

H uma insuficincia na forma como a teoria das fontes vem classicamente tratada. Insuficincia que reflexo da cultura liberal positivista que marcou a formao do prprio discurso da teoria geral do direito. Ento, a principal fonte do direito a lei; a lei absolutiza o ambiente das fontes do direito e lateraliza todas as demais fontes. Por isso, os costumes perdem relevncia; os princpios no so nem discutidos; uma srie de questes que tm uma forte nfase hoje, inclusive como questes prticas, que ajudam os juzes a resolver problemas concretos, so tornados, pela teoria tradicional das fontes, questes de menos importncia. Por isso, corriqueiramente, o desprezo a algumas temticas que ns vamos encontrar nesse debate. Por exemplo, o desprezo dado idia de eqidade e ao papel criativo da jurisprudncia na formao da cultura do direito. Ns sabemos que muita coisa que no solucionada pela norma em abstrato fruto da criao jurisprudencial, que avana no sentido da dinmica social, pois o juiz est mais prximo que o legislador das necessidades e das aflies da sociedade que recorre aos tribunais diante de leses ou ameaa de leso a direitos. Essa foi a primeira reflexo que ns fizemos a respeito da teoria das fontes: a constatao de sua insuficincia e a necessidade de avanarmos em direo a um modelo que encampe algo mais que a mera ideologia positivista.

Em segundo lugar, ns analisamos fonte por fonte: lei, constituio, jurisprudncia, eqidade, princpios, e assim por diante. E ao passar pelo tema das normas, das leis, trabalhamos a idia de constituio muito rapidamente, uma noo que no pode ser trabalhada rapidamente, na medida em que fundamental para a arquitetura do ordenamento jurdico, tema que vai ser objeto das nossas reflexes: tentar entender o sistema jurdico com um todo... e no h, na dimenso do Estado democrtico de direito contemporneo, como pensar o sistema jurdico sem pensar a significao da constituio para a ordem jurdica contempornea. Por isso, o tema da aula de hoje se vincula exatamente a esse propsito: pensar a significao da constituio no interior da cultura do direito contemporneo.

Existem muitas formas de se entender uma constituio. Se ns recorrermos doutrina especializada, no mbito do direito constitucional, vamos perceber uma srie de tendncias diversas, a apresentar modelos, os mais diversos, sobre o que seria uma constituio. No h harmonia entre os doutrinadores, nem com relao a algo que parece ser mnimo: o conceito de constituio. As diversas disputas existentes envolvem, em primeiro lugar, o debate sobre qual seja o contedo mnimo de uma constituio: digamos assim, aquilo que minimamente uma constituio deve estampar em seu interior, para ser uma constituio. Ns tambm vamos encontrar, no interior das divergncias entre os doutrinadores, uma disputa pela conformao ideolgica de modelo poltico subjacente ao conceito de constituio. Em terceiro lugar, vamos encontrar, atrs desses debates, a luta pela definio do prprio modelo de Estado que se quer, a partir da constituio.

Independente de qualquer coisa, o que vamos perceber que, a partir do constitucionalismo moderno, a idia de constituio de incorporou s noes do direito moderno. E ao se incorporar, vem sendo tratada como documento fundamental da vida poltica e jurdica dos Estados modernos. A constituio, nesse sentido, assume a perspectiva de significao de um elemento essencial para a definio das relaes de poder e, principalmente, para a sobre-determinao da significao das demais normas. Pela posio hierrquica que a constituio ocupa, em primeiro lugar, vai significar uma espcie de histrica conquista da era liberal, respondendo ao impulso, tambm de conquista, da classe burguesa, em direo ao exerccio do controle do poder do Estado absolutista. Por isso, a constituio marca a transio do fim do feudalismo em direo ao capitalismo. a partir do final do sc. XVIII, incio do XIX, que a cultura do constitucionalismo invade, impregnada pela tradio das declaraes liberais (a declarao norte americana, a declarao francesa, que vo esculpir o processo de criao da cultura constitucional no esprito dos prprios direitos humanos). Por isso, a constituio vai aparecer, no incio da era moderna, como uma herana da cultura liberal. Apesar de se tornar uma histrica herana dessa cultura liberal, a constituio, e sua histria, bem como o constitucionalismo e sua histria, no vo permanecer atrelados cultura liberal, da qual surgiram. O prprio constitucionalismo vai passar por uma srie de idias dos modelos tericos surgidos posteriormente, das lutas sociais surgidas posteriormente. Por exemplo, as lutas socialistas, a tentativa de construo de uma constituio que encampe no mais o modelo de um Estado liberal, mas agora de um Estado de bem estar social, e assim por diante. Portanto, a prpria histria do constitucionalismo a historia desse diversos movimentos, que oscilam entre a mera concesso de poder classe dominante e a tentativa de emancipao pelas classes dominadas. Por isso, a constituio, desde seu nascimento histrico, na modernidade, vai aparecer como um documento que significa a forma do prprio Estado, pois um mecanismo de controle do poder pela sociedade marcada pelo absolutismo. Conquista liberal significa o atrelamento do compromisso do Estado preservao de liberdades individuais, que eram exigncias e caractersticas da sociedade burguesa, reivindicaes do indivduo da burguesia. Por isso, a cultura constitucional, no seu nascimento, vem fortemente marcada por uma cultura individualista, no plano dos direitos humanos. A constituio nasce como a expresso desse processo: um controle do poder absoluto, que significava, na linguagem de Montesquieu, a tripartio do poder, as funes do poder atribudas a rgos distintos, o veto concentrao do poder em um nico organismo, e, alm disso, a diminuio do (???), respondendo, portanto, ao intento da cultura liberal.

A constituio nasce representando uma espcie de limitao ao exerccio do poder. Por isso, expressa direito, um direito que deve limitar a poltica, na forma como ela entendida no perodo. No por outro motivo, o constitucionalismo do sc. XX vai encampar essa idia e preserv-la no interior do prprio conceito de constituio. Se formos a um dos maiores constitucionalistas contemporneos, o portugus Canotilho (?), ele afirma que, no fundo, a constituio nada mais que o estatuto jurdico do poltico, a forma que o direito tem de conter o poder; o prof. Gofredo da Silva Telles, dizia que a constituio era o estatuto do governo; o prof. Trcio Sampaio Ferraz Jr., no deixa de encampar essa idia, aproximando outras a desses juristas: lei fundamental do pas, que contm normas respeitantes organizao do Estado, garantia de direitos fundamentais, aos limites e competncias do exerccio do poder. Portanto, constituio significa limitao do poder e garantia de liberdade. Esses dois traos so legados imediatos da era liberal. No fora da histria do liberalismo que vamos encontrar esses conceitos, esses traos j esto l presentes, em sua origem histrica. claro que se formos fazer uma historiografia mais larga, vamos tentar encontrar ecos dessa idia do constitucionalismo, por exemplo, entre os gregos, que conheceram a idia de politea (?), que traduzimos hoje como constituio. Mas muito impropriamente que vamos chamar a politea (?) dos gregos como sendo constituio, na medida em que uma constituio, em primeiro lugar, pressupe a existncia de um Estado, pressupe a unidade do poder, coisa que nem mesmo os gregos nem mesmo conheceram na forma como lidaram com a sua organizao poltica. Sabemos que, fora alguns momentos (Liga do Peloponeso, por exemplo), no a formao de um Estado grego. Em segundo lugar, no h nenhum registro que nos permita retomar a significao desta politea (?) com relao s demais normas aplicadas na vida cvica pelos gregos, se essa norma era considerada um fundamento de validade das outras normas. Em Aristteles, na constituio dos atenienses, h estudos curiosos sobre como se observa a cidadania no interior da politea. Mas isso no significa que possamos remontar a Antigidade e sobre ela colar uma concepo que fruto da evoluo histrica dos sc. XVII e XVIII. Sc. XVII com o surgimento do Estado moderno, e o XVIII com o surgimento da constituio como limitao ao exerccio do poder soberano, outra idia que falta na cidade-estado grega, a idia de soberania. Claro que os gregos lidavam com a idia de soberania de uma outra forma: auto-suficincia, autarquia. Mas a idia de autarquia no significa soberania, pois esta pressupe uma relao de poder entre Estados-nao, coisa que vai marcar a histria moderna e, portanto, mais recente.

Considerando, portanto, esses marcos histricos, a idia de constituio como um legado moderno, vai aparecer, principalmente no final do sc. XVIII, se aprimorar ao longo do sc. XIX, e se disseminar em escala mundial ao longo do sc. XX. Essa parece ser uma experincia da modernidade com xito, no sentido de regulao da vida social, por um documento que parece ser da mais fundamental relevncia para o trato dos problemas sociais. Tamanhamente exitosa, que a idia de constituio hoje, no s no pode ser abolida do interior do Estado democrtico de direito, como tem sido pensada como uma espcie de arqutipo, a informar mesmo o modo como haveremos de lidar, no futuro, com a aglomerao dos Estados, como acontece no interior da Unio Europia, do NAFTA, ou do Mercosul. Lidar, portanto, no mais atravs da idia de um constitucionalismo atrelado idia de um Estado soberano e de nacionalismo, transplantar a conquista que a modernidade concedeu aos Estados-nao para o mbito do processo de globalizao, e, com isso, criar uma cultura constitucionalista ps-nacional: a idia de que possvel, por exemplo, culturas diferentes, Estados diferentes, identidades nacionais diferentes, se regerem por uma mesma unidade conceitual e principiolgica, cuja experincia e prottipo preliminar parece nascer da declarao de 1948, com um documento bsico de direitos humanos, a informar todo um eixo de articulao da ordem internacional, nmero um, e, nmero dois, a partir da tentativa de edio de uma constituio para a Unio Europia, que, apesar de ter sido malograda em uma primeira tentativa, em uma primeira rodada de votao entre os Estados da Unio Europia, com o peso poltico da Frana, negando a sua absoro cultura jurdica europia, mas, em um segundo momento, me parece que, inevitavelmente, essa idia vai tornar-se o nico meio possvel da integrao dos Estados que caminham cada vez mais abolio da idia de soberania. Por isso, a idia de constituio parece servir como um modelo a renovar a forma como se lida com o mecanismo de interligao das normas entre si, especialmente quando essas normas tm origens muito diversas, culturais, sociais e econmicas.

A constituio, olhando para dentro dos Estados Nao, e olhando um pouco historicamente para o que o positivismo projetou sobre ela, geralmente entendida como a matriz de validade de todas as normas jurdicas de um determinado sistema, normalmente considerada o ponto de culminncia do sistema de regras positivas do Estado. Em Kelsen, a constituio no o ltimo fundamento de validade de todas as normas: o ltimo fundamento de validade de todas as normas o que ele chama de norma fundamental (que no existe, ns vamos voltar a estudar isso mais para frente), mas a idia de norma fundamental [o prof. utilizou a expresso em alemo, algo como grundnorm] de Kelsen uma idia meramente lgica, especulativa, de pensamento. A norma fundamental no existe concretamente. Mas se formos considerar as normas que esto efetivamente postas, em um determinado sistema jurdico, as cadeias de validade das diversas normas existentes no ordenamento remontam a ela, constituio, em ltimo grau, a norma fundamental. Portanto, o que a constituio no pensamento de Kelsen? A matriz de validade, considerada a ascendncia que a constituio tem, como norma positiva, com relao s demais normas positivas.

Em Teoria Geral do Direito do Estado, Kelsen afirma: a constituio do Estado geralmente caracterizada como sendo a sua lei fundamental, portanto a base da ordem jurdica nacional. Nesse sentido, para o pensamento positivista, a constituio um documento chave para a auto-organizao do Estado, to importante que parece que, no pensamento de Kelsen, o Estado se confunde com a sua prpria constituio. Ento, o conceito de constituio absorve o prprio conceito de Estado, na medida em que Estado para Kelsen um conjunto das relaes formais entre as normas. A constituio nada mais que o prprio Estado, na medida em que este se resume ao direito que ele mesmo pe. Ento, h esta sinonmia, Estado, direito, constituio. Mais do que isso, na tradio positivista, se costuma ver a constituio de um ponto de vista exclusivamente formal. O que a constituio? , segundo Kelsen, a fundamentao de validade de todas as validades, a norma que d sentido de validade s demais normas. A pergunta qual o contedo da constituio? no encontra, efetivamente, amparo no pensamento Kelseniano. No h a preocupao de externar uma reflexo que identifique quais so os traos de contedo que ns vamos encontrar como sendo a matria prima da constituio. No, em Kelsen a constituio significa um ato primordial de poder que cria a ordem jurdica de um Estado, e por ser emanao do poder do Estado, , por esse Estado, tornado documento constitucional. Ento, a viso do positivismo formal sobre a constituio, afasta a idia de constituio de uma srie de traos que a crtica ps-positivista vai detectar atrs da leitura que Kelsen faz do problema da ordem constitucional. Por exemplo, Kelsen no vai dar abrigo idia de que constituio seja algo que fundamentalmente : o lugar onde se projetam as contradies do mundo social.

Uma constituio no o todo lgico, fechado, simplesmente coerente, e exatamente por isso capaz de conviver norma com norma harmonicamente, dentro de um sistema coeso. Acima de tudo, uma constituio um documento histrico, e por ser histrico revela uma histria, a histria de certos conflitos sociais revelados em uma determinada sociedade. A constituio se forma pela oposio de interesses entre diversos blocos e presses polticas. E so esses blocos e presso poltica que tero maior ou menor capacidade de, presentemente no discurso constitucional, marcar lugar no seu interior. Por isso uma constituio no consegue, ainda que haja hegemonia partidria no interior de um dado Estado, revelar um estado de pureza absoluta, de pura forma, a determinar como devem ser validadas as demais normas do sistema jurdico. O que vamos, pelo contrrio, encontrar uma constituio que, revelando uma interao muito forte com o mundo da vida, onde esto a personalidade dos indivduos, a cultura, que fruto da forma como os indivduos constroem sua identidade no conjunto, e a sociedade com seus traos polmicos e conflituosos, suas oposies, isso que vamos encontrar sendo espelhado no interior de uma constituio, que vai abraar este princpio, aquele, mas que vai dar, por exemplo, a este maior ascendncia, quele menor ascendncia. O que significa que h uma avaliao e uma valorao dos valores. Toda constituio revela valores, mas o importante a perceber que, diante dos conflitos sociais, alguns valores valem mais que outros. Por isso uma constituio, necessariamente, vai ser a retroao de uma certa dialtica histrica, que coloca interesses e conflitos. Uma constituio historicamente vista, jogada portanto no mundo da vida, revela essas contradies. Elas so, portanto, inabolveis do sentido que se queira ter do prprio texto constitucional. Por isso, o conceito de constituio meramente formal tira dela o que efetivamente : um documento que revela profundos traos de ligao e dependncia com relao ao mundo da vida.

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Uma outra limitao do pensamento positivista a idia que est por trs da fora depositada por Kelsen na idia de que a constituio totaliza a vida social, que a busca de unidade, algo que orienta em grande parte toda a dinmica do pensamento positivista. Em Teoria Geral do Direito do Estado, Kelsen afirma: a busca de unidade uma parte inseparvel de todos os esforos [...]. Por isso, fazer cincia, para o positivismo, buscar unidade, e a constituio vai representar exatamente isso: um documento que unifica o ordenamento jurdico. Da a sua simplificao, para Kelsen, como um fundamento de validade, como uma matriz de validade para a regncia de todas as demais normas do sistema jurdico. A limitao portanto, de Kelsen, se encontra no fato de, como pensador positivista, tentar produzir uma sntese a priore das possibilidades de criao de outras regras a partir do texto constitucional, e ali encontrar uma espcie de unidade formal, fundamental, que fosse suficiente para definir a prpria idia de constituio. Basta dizer que unidade e matriz de validade para eu entender o que uma constituio; ento, o conceito de constituio no precisa ter mais nada alm disso: a idia de que uma unidade e matriz de validade das normas positivas do sistema. Na verdade, o que ns encontramos so muitas dificuldades ao tentarmos trabalhar sobre esse tipo de conceito, na medida em que a idia de unidade responde quela utopia do positivismo de que possvel, pelo direito, totalizar as relaes sociais, sem que o direito seja marcado por uma forte presso das foras sociais; criar esse escudo de proteo, que me permita falar de um direito puro e independente de contedo.

Essa pretenso do positivismo de criar cincia a partir de um mtodo que isola o direito dos demais fatores sociais o que torna problemtica a discusso da fundamentao da constituio no pensamento de Kelsen. Por exemplo, se formos pensar a partir de tericos contemporneos, como ????, ns vamos perceber que no interior de uma constituio teremos fortes contradies, que so a revelao do quanto uma constituio carece de um trato que envolve poltica e moral, e que, portanto, o direito no se constri de modo alheio a uma compreenso poltico moral das relaes sociais. Basta examinarmos isso a partir do confronto, na nossa CF de 88, entre dois incisos do artigo 5o: o nono e o dcimo. O nono afirma: livre a expresso da atividade intelectual, artstica, cientfica e de comunicao, independente de censura ou licena. Ento, o contedo dessa norma uma liberdade, que, em tese no encontra limitao. O inciso 10o tambm garante que so inviolveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito indenizao pelo dano material ou moral decorrente de sua violao. Em tese, a prpria constituio est regulamentando duas hipteses que se contrastam: a idia de uma liberdade ilimitada do exerccio do pensamento, a idia de um uso criativo, produtivo, da razo, que no encontra limitaes, e de outro lado tambm garante, alm dessa liberdade, um direito honra, dignidade, prpria imagem, auto-identidade que temos de ns mesmos. Portanto, so duas normas que, em tese, oferecem um potencial conflitivo que s pode ser resolvido em situaes concretas, quando perceberemos se houve ou no leso, pelo exerccio da liberdade intelectual, a um determinado dado da esfera ntima, da honra, ou da dignidade do sujeito. Nesses casos em que duas liberdades ou direitos fundamentais se chocam, no h quem, abstratamente, diga qual vale mais e qual vale menos: a constituio garante os dois. Ento, a questo no se resolve no interior da constituio, mas ela devolvida dinmica do intrprete, e o guardador da constituio no nosso regime o STF. esse intrprete, que lidando com um caso em que duas normas constitucionais igualmente vlidas, hierarquicamente da mesma condio, se chocam entre si, uma revelando a identidade de um sujeito que quer falar e pensar livremente, e de um outro lado um sujeito que sente violada a sua intimidade, sua identidade moral, sua honra, pela liberdade intelectual do outro. Essas normas, em tese, convidam contradio, pois a liberdade absoluta de um restrita dimenso do exerccio do direito do outro. Por isso, determinadas situaes que no se resolvem no interior do prprio texto constitucional levam o intrprete, aplicado do direito, a presenciar o debate de casos difceis, chamados hard cases, situaes onde a criao do direito reclama uma espcie de percepo, de aproximao entre moral, poltica e direito. No h nesse sentido, no pensamento ps-positivista, como afastar o direito da proteo das pretenses morais dos indivduos, e muito menos afast-lo da sua forte presena no mundo da dinmica poltica. Por isso, a concepo, que positivista, de que existe um direito alheio moral e poltica, cede em direo a uma concepo mais relativizante. A solidez do direito cede, no sentido de se perceber que o direito, em ltima instncia, se revela uma ponte entre moral e poltica. [...] O debate constitucional se torna a o debate sobre a capacidade argumentativa que os indivduos tm de comprovar as suas teses judicialmente. O direito normado se torna, nesse caso concreto, um direito argumentado, e a argumentao que escoa dentro dos procedimentos jurdicos formais, que realizam o acesso ao direito constitucional, fundamentalmente veicula interesses sociais, posies conflitivas, argumentos morais e assim por diante. Com isso tudo, possvel dizer que a posio de Kelsen, com relao simplificao da constituio, uma posio unilateralista, que reduz a constituio condio de mera matriz de validade das outras normas do ordenamento jurdico. Ento, bastaria uma norma ser matriz de validade para ser uma constituio. Essa uma questo que incomoda o pensamento ps kelseniano.

A pergunta sobre o sentido da constituio deve revelar uma perplexidade mais profunda, a preocupao de encontrar, por trs da constituio, no fundo um conceito de direito. Se falo de uma constituio como espelho de uma cultura do direito, tenho de falar de uma constituio como espelho de uma certa identidade do direito. Por isso, atrs da pergunta que sentido tem a constituio? est essa outra que sentido tem o prprio direito que ela pretende abraar?. Portanto, no fundo, a pergunta sobre o conceito de constituio envolve, em parte, a pergunta que ns fizemos no incio do semestre passado sobre o prprio conceito de direito, na medida em que inevitvel que toda constituio tome partido, ou assuma uma determinada posio do que chama de direito.

Se enxergarmos no direito o papel de um sistema emprico, de coordenao de aes, nesse ardor, portanto, do convvio entre as liberdades dos indivduos, deixa de ser verdade, de imediato, que a constituio seja um mero ato de poder, que pode, por exemplo, receber qualquer contedo, como acontece, em tese, no pensamento de Hans Kelsen. Se um ato de poder que institui a cadeia de validade de todas as demais normas jurdicas do sistema, uma constituio degradante do ponto de vista humano, por abraar normas absolutamente arbitrrias, no deixaria de ser constituio se pensada pela idia kelseniana. Ento, pensar a constituio por sua forma limitado demais para evitar o retorno barbrie, a legitimao da barbrie. Ao considerar, por exemplo, que a ordem totalitria pode ter uma constituio e a mesma se reveladora da identidade de um direito que se legitima apenas pela sua forma. [...] Se atrs de uma constituio temos certa opo, que no s ideolgica, leva em conta certo conceito de direito, a marca de um conceito de direito, impressa sobre a dinmica ??? da constituio, vai significar a forma que se d s exigncias mnimas de sustentao da legitimao da forma com a qual se constri a idia de constituio. Se o direito salvaguarda da liberdade, minimamente falando, como no sistema emprico de coordenao e convvio entre os arbtrios individuais, o direito existncia, em primeiro lugar, imprescindvel para a regulao da vida na sociedade moderna. Aqui estamos diferindo claramente das posies marxistas ortodoxas, que pensam na concepo de mera expresso de ideologia, e portanto a constituio , ela mesma, opressiva, e deve ser abolida pelo processo revolucionrio, em direo a uma sociedade onde a regncia no se d pelo direito, mas se d pelo convvio de uma tica revolucionria, uma revoluo antropolgica que nos permite viver independentemente das presses e coeres do sistema jurdico. Pelo contrrio, a idia de direito reclama a idia da organizao de constituio da sociedade moderna exatamente porque a coeso social se tornou impossvel a partir da modernidade se pensada exclusivamente na base ou da religio, ou dos costumes sociais. A complexidade das relaes sociais, polticas e econmicas, e os interesses em luta, reclamam, muito pelo contrrio, a interveno pujante por parte do direito, no sentido da proteo de garantias mnimas para o exerccio da dignidade e da liberdade, algo sem o que se torna impensvel a sustentao da sociedade complexa moderna.

Assim como o direito tem uma funo imprescindvel para a sociedade moderna, a constituio passa a ter o mesmo papel de relevncia, na medida em que ela d uma certa conformao existncia do prprio Estado de direito, e atravs deste, legitimamente constitudo, que se exerce, no s a par do poder poltico do Estado, mas tambm, a par do poder econmico que alguns agentes sociais exercem em contraste existncia meramente de outros indivduos, onde a explorao social aparece como um fator a se tornar ilimitado, e, exatamente por isso, cobrar do direito a posio de um acordo fundamental no processo de limitao dos arbtrios no convvio social.

Se, portanto, o direito se expressa pela legalidade, e a legalidade da constituio uma parte da legalidade do Estado de direito, uma parte fundamental, o direito no tira a legitimidade dessa legalidade, como quer o positivista. Para o positivista a legalidade a expresso da legitimidade. Muito pelo contrrio das concepes ps-positivistas, a legalidade vai extrair a sua legitimidade de algum outro processo social. E que processo social esse, seno a politizao da vida pblica, o sempre incrementado processo de debate em torno dos interesses comuns e, com isso, a criao de uma cidadania ativa que seja capaz de realizar os intentos por justia social e representao equnime da vontade geral comum. Por isso, quando pensamos a constituio, no pensamos a constituio isoladamente como a norma de dever ser que se afasta ou que mero ato de concesso do poder, ou o governante sociedade. Esse tipo de concepo incrementa ainda mais a idia de que, se o poder que d a constituio sociedade, no a sociedade o autor ou a criadora do processo emancipatrio, e de controle e auto-regulao de seus prprios direitos. Pensar, portanto, o tema da constituio pensar esta tenso existente entre a necessidade de legitim-la por uma fora de argumentao, que capaz de impor a opinio geral pblica e os interesses em torno de justia social, sobre os demais interesses que so ineliminveis das relaes sociais. No h como pensar a constituio fora dessa tenso entre ser e dever ser, ou em uma outra linguagem, entre faticidade e validade. Essa oposio est o tempo todo dinamicamente funcionando no interior do sentido da prpria constituio.

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Quando olhamos para nossa constituio e percebemos que ela se encontra distante da nossa realidade social, por a ns temos um termmetro daquilo que a prpria sociedade brasileira. Sentimos a constituio como sendo algo distante da nossa realidade. E no para menos: muito raramente tropeamos com o cumprimento efetivo e espontneo dos atores sociais do contedo impresso na constituio. Ela parece ser um documento que mora em um mundo paralelo ao da realidade social e, principalmente, econmica do pas. So milhes de pessoas que se encontram muito distante da relao com a constituio. Isso faz com que, ao olharmos como especialistas [...] o texto constitucional, percebamos uma coisa estranha. Olhar para a constituio e perceber que ela no se parece com um retrato da nossa realidade social no parece ser algo que ?????. Veja, h uma revelao do quanto a constituio e o trabalho de discusso da constituio se tornou algo raro na cultura social, na cultura popular. algo raro, na cultura social, na cultura popular. essa sensao de que no somos proprietrios da constituio, mas de que a recebemos delegadamente, a revelao histrica de que fomos acostumados a uma tradio profundamente autoritria, a perceber pelo nmero de constituio que ns tivemos, e perceber quantas delas foram efetivamente constituies outorgadas, dadas pelo poder, autocriadas pelo prprio poder, emanao do prprio poder.

No entanto, a CF de 88 significa um refluxo desse processo. Ela de redemocratizao. Ela ampliou o debate em torno de seu sentido. Exatamente por isso ela consegue hoje refletir as grandes ambies que seriam fundamentais para a criao de uma sociedade mais justa e equilibrada. Exatamente porque a presena dos lobbies, da diversidade, do pluralismo dos atores sociais revelou, pela primeira vez na histria do Brasil, um constitucionalismo genuno, fruto de presses as mais diversas, de confrontos os mais diversos, que por vezes fazem o texto constitucional profundamente contraditrio, mas ainda sim progressista, ainda sim com uma significao histrica inabolvel para a nossa cultura, ainda sim um documento que pressiona em direo a algo mais, como por exemplo, se formos olhar em seus princpios a idia de erradicao da pobreza, a idia do cumprimento de uma srie de normas que se tornam fundamentais para a fixao de uma sociedade justa e equilibrada. No entanto, apesar de termos uma constituio que deu esses passos adiante, fundamentais, que consolidou essas normas que se petrificaram, que se consolidaram, fundamentais, ns ainda sentimos que a constituio se encontra muito distante da realidade social.

Por isso, o constitucionalismo contemporneo pensa o dilema constitucional, em primeiro lugar, cobrando que a constituio seja tornada parte do debate pblico, na medida em que nada mais ela significa do que um conjunto de smbolos que ecoam e espelham as ambies sociais. Dois: que a constituio seja tornada objeto de debate permanente na esfera pblica, poltica, a movimentar o interesse da cidadania ativa, no sentido da incrementao rigorosa do sustento da prpria constituio. Em terceiro lugar, a criao do ambiente no direito de uma cultura com nfase publicista, que se coloque em confronto com a tradio que o direito brasileiro tem de privatismo.

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Por exemplo, se costuma colocar a constituio como sendo objeto de um ramo especializado, o direito constitucional. Portanto, vocs vo ver a disciplina direito constitucional, vo discutir a significao da constituio l e esse debate morre l. Isso fruto de uma mentalidade cartesiana: recorta-se o conhecimento, especializa-se, e cada especialista fica confinado a uma rea especfica. Essa a mentalidade cartesiana, positivista, enquanto que a massa das disciplinas da faculdade permanece sempre estaticamente a mesma [...]. Pensar, portanto, em uma cultura que publicize o prprio direito, pensar, antes de tudo, na fora que a constituio tem ao orientar todas as disciplinas da faculdade de direito, do primeiro ao quinto ano, por se tratar de um documento que esboa uma srie de compromissos fundamentais para a manuteno de sociedade compromissada com a justia social. Isso parece ser absolutamente fundamental.

Em grande parte, as tendncias existentes hoje incorporam, por exemplo, a idia de que impossvel pensar a noo de propriedade, e portanto o direito civil, fora de um debate sobre o sentido que a constituio deu noo de propriedade. Ento, os civilistas tm que partir do direito constitucional para depois chegar ao Cdigo Civil de 2002. Essa idia de sempre recorrer constituio que nos permite, de certa forma, ampliar o debate sobre o sentido da constituio, e incorpor-la crescentemente mais no debate que o direito tem no compromisso com princpios, valores, e regras contidos na constituio, em especial, no nosso caso, a constituio progressista que obtivemos em 1988.

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No nos basta uma concepo formal de constituio, que uma concepo que nos afasta da sua dinmica interna. Toda constituio tem um compromisso com a liberdade, e um instrumento de coordenao racional a permitir, pela dinmica dos seus smbolos, o convvio e o debate em torno de como se d a esfera de relao da minha liberdade com relao liberdade do outro, portanto, do convvio entre interesses, entre choques culturais, e arbtrios dos indivduos. um instrumento disposto a garantir a coexistncia social sem que o excesso de liberdade de um sufoque o dficit de liberdade do outro. Por isso a tarefa da constituio sopesar, por princpios racionais, o convvio de diversas idias. o caminho para a autonomia dos indivduos e para a autopedagogia da sociedade a partir de seus prprios dilemas. No existe um ator, informado por uma razo superior, ele detentor de uma deciso boa. Essa sociedade deve se espelhar permanentemente em seus dilemas, para pensar os seus quereres, as suas vontades, os seus interesses, a sua dinmica, a forma com a qual se aproxima da implementao de seus prprios valores primordiais.

O jurista Herman Heller (?), na Teoria do Estado, escreve que, no fundo, a constituio do Estado uma forma aberta atravs da qual passa a prpria vida, vida em forma e forma nascida da prpria vida (???). Por isso, quando nos distanciamos da realidade trazida por um texto constitucional, nos distanciamos da prpria vida que se pode encontrar atrs do problema da discusso da cidadania poltica, a implementar as formas pelas quais o Estado deve reger a sociedade pela cultura do direito. No privilgio, portanto, do Estado oferecer uma constituio sociedade: a constituio deve ser um claro espelho da vivacidade da esfera pblica. nesse sentido que se pode falar que a dinmica do dever-ser se aproxima um pouco mais da dinmica do ser. Uma sociedade que se apropria da sua prpria constituio, acima de tudo no v nela um documento meramente formal, mas v um documento que, herdado da modernidade, torna-se um eixo principal de defesa de direitos humanos, na medida em que, por exemplo, se torna inabolvel da concepo de constituio que em seu interior tenhamos efetivamente a proteo da dignidade da pessoa humana. Quando Kelsen, por exemplo, olha a constituio como mera matriz de validade, e enxerga na constituio apenas um documento de validao de outras normas, ele, no fundo, menospreza o marcante legado moderno e desistoriciza a conquista do constitucionalismo moderno, que a idia de tornar, pela constituio, os direito fundamentais garantias petrificadas da prpria cidadania, ?? algo sem o que no se pode mais pensar o direito. Ns temos uma srie de legados trazidos da modernidade que, encampados pelo conceito de constituio, do uma certa conformao, um certo contedo que se torna, ele mesmo, imprescindvel para a regncia da vida social.

O grande problema da CF 88 no Brasil que seu texto, apesar de belo, vem sendo corrodo por baixo, por um processo que se convencionou chamar, na teoria constitucional, de desconstitucionalizao ftica. So fatos econmicos, emendas constitucionais sorrateiras, conchavos polticos posteriores ao texto constitucional, que vm deformando o sentido dessa constituio, uma constituio que em 1988 nasce com um claro aspecto compromissrio, estabelecer no Brasil um Estado de Bem Estar Social, com preocupaes previdencirias, sociais, de proteo, destinada ampla garantia de trs geraes de direitos humanos, sendo tornada, cada vez mais, com 50 emendas constitucionais com apenas 19 anos de vigncia, uma constituio que tem um vis claramente neoliberal, e que, portanto, devolve sociedade o dever de implementar os seus prprios direitos, s suas prprias custas.E quando ns devolvemos sociedade a responsabilidade da sua auto-gesto, sabemos qual o resultado disso: uns podem mais, outros podem menos. A justia que se distribui pela lgica meramente liberal de mercado, uma justia que nos entrega aos sabores das foras economicamente predominantes. Os fracos economicamente, claramente, vo estar totalmente desprovidos, enquanto os fortes economicamente... bom, esses nem precisam do direito.

O direito, no fundo, funciona como uma forma de tutela e garantia de que o poder no esmagar a diferena na relao entre o dficit de liberdade de um e o excesso de liberdade do outro. Por isso, uma ordem constitucional legtima prioriza, pela racionalidade, pelo dilogo em torno dela, a discusso de seus valores como parte de um processo de incrementao da cidadania, que visa a implementar e incrementar as formas pelas quais ela mesma, constituio, realiza-se pragmaticamente. Uma constituio com esse teor, claramente deve, em primeiro lugar, garantir o direito livre expresso, o direito comunicao, e, acima de tudo, o direito pluralidade para que, desse convvio, e na esfera pblica, seja possvel um incremento das formas pelas quais o direito supera a fora poltica e o interesse econmico para se aproximar, cada vez mais, de um ideal social tambm, ele mesmo, inabolvel, a idia de justia, algo sem o que impensvel falar na prpria figura do direito. Por isso, o conceito de constituio que reclama o conceito de direito se destina a pensar a constituio no pela mera forma ou legalidade, mas pela luta por sua legitimidade a aproximao ao tema da justia social.