IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais...

173
DAYANA Z. CORDOVA ALINE IUBEL FABIANO STOIEV LECO DE SOUZA IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOS Paisagens Ferroviárias de Curitiba ISBN 987-85-86107-17-7

Transcript of IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais...

Page 1: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

DAYANA Z. CORDOVA

ALINE IUBEL

FABIANO STOIEV

LECO DE SOUZA

IDEN

TIFI

CAÇÃ

O &

REGI

STRO

PELOS TRILHOSPaisagens Ferroviárias de Curitiba

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 2: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

PELOS TRILHOS Paisagens Ferroviárias de Curitiba

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 3: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 4: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

ALINE IUBEL

DAYANA ZDEBSKY DE CORDOVA

FABIANO STOIEV

LECO DE SOUZA

FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA

CURITIBA

2010

PELOS TRILHOS Paisagens Ferroviárias de Curitiba

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 5: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro

e um site (www.pelostrilhos.net). Embora o site enfatize, num primeiro plano, as

produções imagéticas do projeto (fotografias e vídeos), site e livro foram construídos

em processo de relação quanto às suas estruturas. Ambos caminham pelos mesmos

trajetos, circuitos, conjuntos, lugares e não lugares. Embora com ênfases diferentes,

são complementares. Sugerimos a visita a ambos os materiais. No site é possível

acessar informações detalhadas sobre os elementos mencionados no livro e aquelas

que escapam à mídia impressa.

FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBADADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Elizabeth Wielewski Palhares – CRB 9

C796 Cordova, Dayana Zdebsky de , coord. Pelos trilhos: paisagens ferroviárias de Curitiba / coordenação por Dayana Zdebsky de Cordova. ___ Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2010. 172 p. : il. (Identificação & registro) Projeto aprovado pelo Fundo Municipal de Cultura para o Edital Paisagem Ferroviária da Fundação Cultural de Curitiba.

1. Ferrovias – Ramais - Paisagem cultural Curitiba. 2. Urbanização – Ferrovias – História – Curitiba. 3. Patrimônio Cultural – Ferrovias – Curitiba. I. Título.

CDD (22ª ed.): 363.690981

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 6: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

APRESENTAÇÃO

Em Curitiba, a Lei do Incentivo à Cultura foi desde sua implantação, em 1993,

uma importante ferramenta para a produção cultural na cidade. Nestas duas últimas

décadas, centenas de projetos foram viabilizados, contemplando desde espetáculos

teatrais e musicais, filmes, livros, pesquisas, exposições, dentre outras manifesta-

ções que mostram a diversidade e a riqueza da cultura local.

Na área do Patrimônio Cultural, o Fundo Municipal tem propiciado a realização

de pesquisas e inventários de bens materiais e da cultura imaterial, possibilitando a

difusão e a apropriação do conhecimento. Nesse aspecto, ressalta-se a importância

do primeiro edital de Identificação & Registro, lançado em 2009, destinado a inven-

tariar a Paisagem Ferroviária de Curitiba, temática das mais importantes, pois ao

longo dos trilhos do trem a cidade cresceu desde o final dos Oitocentos, direcionando

técnica e socialmente sua urbanização.

O lançamento deste edital posiciona a Fundação Cultural nas mais recentes

discussões sobre o patrimônio, e reafirma seu papel na proteção, no estudo e na difu-

são do conhecimento da memória e da história curitibana, pois o tema das paisagens

culturais tem sido discutido em congressos, estudos e cartas patrimoniais. Está na

pauta de diversos órgãos de pesquisa e preservação.

O resultado deste edital se encontra nesta publicação, no texto Pelos trilhos:

paisagens ferroviárias de Curitiba, escrito pela equipe que desenvolveu o projeto

selecionado no edital. Durante oito meses, dois ramais ferroviários foram totalmente

esquadrinhados e palmilhados diariamente, resultando em fotografias, entrevistas,

levantamentos arquitetônicos, anotações de leituras e impressões em blog, num site

e no texto aqui publicado. Completam essa publicação dois textos escritos a convite

e em colaboração pelos professores doutores Manoela Rufinoni (Unifesp) e Rafael

Winter Ribeiro (UFRJ). O trabalho da professora Manoela, “Preservação do patri-

mônio arquitetônico industrial na cidade de São Paulo: iniciativas de levantamento,

valorização e tutela”, ao tratar da paisagem fabril de São Paulo adentra num campo

importante e vital para a própria paisagem ferroviária de Curitiba, uma vez que ela

foi a mola propulsora da primeira região fabril da cidade, o Rebouças, bairro que ain-

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 7: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

da hoje resguarda em sua paisagem exemplares remanescentes daqueles tempos. O

texto do professor Rafael, “Paisagem Cultural e Políticas de Patrimônio: tradições e

conflito”, nos levar a pensar mais teoricamente a paisagem como elemento cultural e

na forma como ela foi tratada no Brasil ao longo do século 20.

Este volume é o primeiro de uma nova coleção, a Registro & Identificação, que

a Fundação Cultural de Curitiba lança, por meio do Fundo Municipal de Cultura, pro-

piciando, dessa forma, o acesso e a difusão às informações referentes ao patrimônio

cultural da cidade.

Paulino Viapiana

Presidente da Fundação Cultural de Curitiba

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 8: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

SUMÁRIO GERAl

Pelos trilhos: paisagens ferroviárias de Curitiba

Dayana Zdebsky de Cordova, Aline Iubel, Fabiano Stoiev, Leco de Souza . . . 15

Preservação do patrimônio arquitetônico industrial paulistano: iniciativas de

levantamento, valorização e tutela

Manoela Rossinetti Rufinoni . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149

Paisagem cultural e políticas de patrimônio: tradições conflitos

Rafael Winter Ribeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 9: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 10: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

ALINE IUBEL

DAYANA ZDEBSKY DE CORDOVA

FABIANO STOIEV

LECO DE SOUZA

PELOS TRILHOS Paisagens Ferroviárias de Curitiba

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 11: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

FICHA TÉCNICA (PUBlICAÇÃO)

Produções Textuais: Aline Iubel, Dayana Zdebsky de Cordova, Fabiano Stoiev

Fotografias: Leco de Souza

Edição de Imagens: Dayana Zdebsky de Cordova, Fabiano Stoiev (imagens históri-

cas) e Leco de Souza

Concepção de projeto e pesquisa: Dayana Zdebsky de Cordova (antropologia), Fa-

biano Stoiev (história), Gabriel Gallarza e Maria Baptista (arquitetura e urbanismo),

Leco de Souza (fotografia)

Coordenação do projeto e produção cultural: Dayana Zdebsky de Cordova

Ass. de Pesquisa: Melina Ruosso (história)

Mapas: João Gabriel da Rosa Cordeiro

Revisão de texto: Joana Corona

Capa:

Menino caminhando sobre trilhos: detalhe da pintura de Poty Lazarotto, presente no

que outrora foi o Vagão do Armistício.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 12: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Fundação Cultural de Curitiba por ter incentivado e viabilizado

o projeto que originou o presente trabalho através do Edital Paisagem Ferroviária, em

especial ao Marcelo Sutil pela disponibilidade e generosidade. A todos nossos fami-

liares e amigos pela compreensão frente à nossa imersão nas paisagens ferroviárias

em plenas férias, feriados, fins de semana e madrugadas. Aos funcionários da Casa

da Memória, Museu Ferroviário e demais instituições em que pesquisamos e que

colaboraram com este trabalho. À Agência IMAM, e a Joana Corona, Melina Ruosso,

Guilherme Vianna e João Gabriel da Rosa, pelo empenho. A Gabriel Gallarza e Maria

Baptista: este trabalho lhes pertence. E agradecemos principalmente a todos aqueles

que nos receberam em suas casas. Aos ferroviários, cuja memória e amor pelo ofício

sustentam estruturas, imaginários e histórias das paisagens ferroviárias estudadas.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 13: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 14: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

13

PELO

S T

RIL

HO

S

SUMÁRIO

EMBARQUE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

Impressões passageiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

Paisagem ferroviária, paisagem urbana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

Viajantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

O caminhar e a construção do olhar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

I – RAMAL DONA ISABEL/ESTRADA DE FERRO DO PARANÁ/

RAMAL CURITIBA–PARANAGUÁ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

1ª PAISAGEM – Conjunto Vila Novas Oficinas/Vila Oficinas . . . . . . . . . . . . . . . 26

1.1 Complexo das Oficinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

1.1.1 Escritório das Oficinas/Universidade Corporativa ALL. . . . . . . . . . . . . . . 31

1.1.2 Centro Sul de Treinamento/Instituto Federal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

1.1.3 Escola Ferroviária Coronel Durival de Britto e Silva/Escola Municipal

Coronel Durival de Britto e Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

1.2 Vila das Oficinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34

1.2.1 Casas do Complexo das Oficinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

1.2.2 Outras Casas da Vila Oficinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36

1.3 Desvio para as Oficinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36

2ª PAISAGEM – Trajeto Parada Stresser/km 104 – Parada Cajuru . . . . . . . . . . 38

2.1 Parada Stresser/km 104 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

2.2 Parada Cajuru . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

3ª PAISAGEM – Trajeto Viaduto BR 116/Linha Verde – Viaduto do

Capanema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

II – CENTRO, CAPANEMA, REBOUÇAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

4ª PAISAGEM – Conjunto Pátio km 108 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54

4.1 O Viaduto do Capanema enquanto cruzamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54

4.2 Pátio de Manobras km 108 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 15: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

14

PELO

S T

RIL

HO

S

4.3 Depósito das Locomotivas/Garagens das Litorinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

4.4 Rodoferroviária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60

5ª PAISAGEM – Circuito Desvios Particulares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

6ª PAISAGEM – Circuito Sociedade Ferroviária: serviços, residências e

espaços de lazer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75

6.1 Espaços de assistência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76

6.1.1 Escola de Artes e Ofícios do Cajuru . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76

6.1.2 Hospital Central Ferroviário/Hospital Universitário Cajuru . . . . . . . . . . . 77

6.2 Vila Capanema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

6.3 Espaços de lazer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82

6.3.1 Estádio Durival de Britto e Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82

6.3.2 Vagão do Armistício . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86

7ª PAISAGEM – Conjunto Central da Rede . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88

7.1 Ponte Seca/Ponte Preta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88

7.2 Edifício Teixeira Soares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90

7.3 Antiga Estação/Shopping Estação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94

8ª PAISAGEM: Circuito Prédios e Lugares Públicos e de Serviço . . . . . . . . . . . 102

8.1 Linhas de Bondes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104

8.2 Prédios e Lugares Públicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104

8.3 Casas Comerciais e Hotéis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106

8.4 Largo da Estação/Praça Eufrásio Correia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112

III – ESTRADA DE FERRO NORTE DO PARANÁ/RAMAL CURITIBA–

RIO BRANCO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

9ª PAISAGEM – Trajeto Cristo Rei – Alto da XV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118

10ª PAISAGEM – Trajeto Argelina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121

11ª PAISAGEM – Trajeto Avenida Anita Garibaldi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127

DESEMBARQUE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DOCUMENTAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

Artigos, Livros, Teses e Dissertações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

Mapas e Imagens Aéreas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

Periódico Correios dos Ferroviários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

Relatórios da Rede . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144

Sites . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 16: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

15

PELO

S T

RIL

HO

S

EMBARQUE

A modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente; é

uma metade da arte, sendo a outra o eterno e o imutável.

(Baudelaire, The Painter of Modern Life1)

Impressões passageiras

Nestor Vítor registrou o progresso da cidade de Curitiba em 1912, quando

fazia uma viagem a convite do governo paranaense. Suas impressões foram publica-

das em um livro com título sugestivo: A Terra do Futuro. O cronista ainda guardava

na memória a Curitiba que conhecera pela primeira vez em 1876: uma cidade com

feições de aldeia e atmosfera campesina. Agora, quanta diferença: a cidade ganha-

ra um ar mais solene, suas casas e prédios apresentavam linhas mais modernas e

sua indústria progredia. A vila provinciana dava lugar a urbes cosmopolita, graças à

velocidade das locomotivas que percorriam a estrada de ferro Curitiba-Paranaguá,

inaugurada em 1885.

Torna-se de cada vez mais famosa a linha férrea de Paranaguá a Curitiba, e seu renome crescerá

com o tempo, quanto mais avulte a corrente de touristes que venham de toda parte do mundo

testemunhar a incomparável maravilha panorâmica que ela proporciona e ao mesmo tempo o milagre

de arte que representa. (VITOR, 1996: 55)

Nessa segunda metade do séc. XIX, o país dava seus primeiros passos em

direção à modernização capitalista. O tráfico de escravos fora abolido, a Lei de Ter-

ras, promulgada e a imigração europeia, incentivada. Surgiram bancos, indústrias e

empresas de navegação. Mas nada materializava melhor o “espírito da modernidade”

do que os trens de ferro. No entanto, mesmo o aço mais sólido evapora no ar. O que

um dia foi sinônimo de progresso acabou tornando-se um símbolo do passado.

Curitiba, junho de 2010. Da sua casa, com uma visão privilegiada do estribo

1 HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992, p. 21.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 17: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

16

PELO

S T

RIL

HO

S

Ahú, o Sr. Ivo Ferreira, alfaiate, observa o trem passar há 60 anos. Uma paisagem

familiar, ameaçada por quem reivindica a retirada das linhas para dar mais agilidade

à circulação de veículos: “O trem nunca incomodou. Só umas pessoas aí que acham.

Só que antes de elas nascerem, o trem já existia. O trem, pra nós aqui, é uma cul-

tura”. Com quase 75 anos, lembra com prazer dos “bons tempos” e, solidário com o

trem, conclui, irritado: “Essa modernidade, pra nós, é uma porcaria”2.

As impressões de Nestor Vítor e do Sr. Ivo, tão distantes no tempo, põe em

jogo os elementos que compõem a modernidade, tal como foi enunciada por Baude-

laire: o transitório e o eterno, o contingente e o imutável. E evidenciam as relações

complexas – ora complementares, ora contraditórias – entre os antigos ramais ferro-

viários da cidade e a paisagem urbana que os envolve. Esses ramais são as estradas

de ferro Curitiba-Paranaguá e Curitiba-Rio Branco, os quais são considerados, neste

trabalho, apenas nos trechos circunscritos aos limites do município. Os ramais, bem

como as edificações ligadas direta ou indiretamente a eles, compõem as paisagens

ferroviárias de Curitiba. No entanto, essas paisagens não nos remetem apenas a

tempos idos. Elas imprimiram marcas até hoje presentes nos traçados das ruas e

na disposição das casas. E para além dessa materialidade urbana, e em relação com

ela, alguns aspectos da formação dessas paisagens ainda estão vivos na memória

coletiva daqueles que se utilizaram dos trens como meio de transporte, daqueles que

trabalharam e trabalham na rede ferroviária e daqueles que moram na proximidade

das vias. Essas paisagens ferroviárias vêm sendo construídas e reconstruídas, mate-

rial e simbolicamente ao longo do tempo, ganhando (e perdendo) contornos e signifi-

cados, em uma sobreposição, um palimpsesto de diferentes necessidades, intenções

conflitantes e novas práticas sociais. Esse livro é um registro (e como todo registro,

sempre parcial) dessas paisagens.

Paisagem ferroviária, paisagem urbana

Nos debates que permeiam as políticas sobre patrimônio, a noção de paisagem

tem sido cada vez mais utilizada, sobretudo nos casos em que se constata

2 As citações que correspondem à linguagem oral transcrita foram padronizadas com destaque em itálico.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 18: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

17

PELO

S T

RIL

HO

S

a ocorrência, em uma fração territorial, do convívio singular entre a natureza, os espaços construídos

e ocupados, os modos de produção e as atividades culturais e sociais, numa relação complementar

entre si, capaz de estabelecer uma identidade que não possa ser conferida por qualquer um deles

isoladamente. (RIBEIRO, 2007: 7)

Os ramais ferroviários, com suas edificações características e suas práticas

econômicas e sociais, se ajustam bem à noção de paisagem. Além disso, esse con-

ceito permite superar certos limites presentes nas abordagens mais tradicionais das

políticas de preservação. Conforme Rafael Winter Ribeiro:

a grande vantagem da categoria paisagem cultural reside mesmo no seu caráter relacional e

integrador de diferentes aspectos que as instituições de preservação do patrimônio no Brasil e no

mundo trabalharam historicamente de maneiras apartadas. É na possibilidade de integração entre

material e imaterial, cultural e natural, entre outras, que reside a riqueza da abordagem do patrimônio

através da paisagem cultural e é esse aspecto que merece ser valorizado. (idem: 111)

Em um trabalho pioneiro sobre o patrimônio ferroviário nos ramais que ligam

Santos a Jundiaí, no estado de São Paulo, a pesquisadora Silvia Helena Passareli

contrasta a grande importância da ferrovia na formação de núcleos urbanos com os

limites de uma política de preservação convencional:

à paisagem observada da janela do trem e ao longo das ruas ao redor de muitas estações ferroviárias

de Santos-Jundiaí estamos denominando de ‘paisagem ferroviária’, composta por edifícios industriais

e casario simples ao longo de ruas estreitas e permeadas de poucas áreas livres, e sem apresentar

os destaques de monumentalidade ou excepcionalidade da arte ou da técnica construtiva que

frequentemente têm merecido maior atenção das políticas de patrimônio cultural. (PASSARELLI,

2007: 274)

No entanto, “paisagem ferroviária” é justamente o conjunto dessas casas sim-

ples, desses armazéns e fábricas, situado nas imediações das estações ferroviárias,

a gênese de importantes núcleos urbanos, marcos de memórias e identidades locais

e regionais.

Os vínculos entre os ramais ferroviários e o desenvolvimento da urbes também

são facilmente identificáveis em Curitiba. Nestor Vítor foi um dos primeiros a relatar

a importância da ferrovia na superação daquele acanhamento inicial ao qual a cidade

parecia destinada. Entre 1885 e 1930, no período das concessões (quando as estra-

das eram construídas e controladas por empresas particulares, notadamente estran-

geiras) as transformações no espaço urbano eram evidentes. A Rua da Liberdade

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 19: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

18

PELO

S T

RIL

HO

S

(atual Barão do Rio Branco) ganhou notoriedade ao ligar o núcleo do povoamento ori-

ginal da cidade com a Estação Ferroviária. As imediações da Praça Eufrásio Correia,

de frente para a Estação, foram ocupadas por hotéis e estabelecimentos comerciais.

O Bairro Rebouças, que era atravessado pelo Ramal Curitiba-Ponta Grossa (hoje

extinto), foi ocupado por fábricas e grandes armazéns, tornando-se o centro indus-

trial da cidade. Nas proximidades da Estação e das linhas, os ferroviários ergueram

suas casas, dando origem aos bairros do Cajuru, Capanema e Cristo Rei. No rocio, a

proximidade com a estrada de ferro reforçava a ocupação de núcleos coloniais como

Colônia Argelina, Abranches e Barreirinha.

Entre 1930 e 1957 as ferrovias no Paraná passaram por um processo de en-

campações que colocou a administração das estradas nas mãos do poder público. Em

1942, durante o governo de Getúlio Vargas, foi criada a Rede Viária Paraná-Santa

Catarina (RVPSC). A partir de então, o quadro urbano de Curitiba cresceu e encon-

trou nas linhas dos ramais a sua moldura. O calçamento das ruas e a abertura de

algumas estradas melhoraram o transporte rodoviário, mas a ferrovia seguia seu cur-

so. Nesse período, para adequar o serviço ferroviário às necessidades da economia

paranaense, grandes obras foram implementadas, em especial nas administrações

dos superintendentes Cel. Durival Britto e Silva (1940-1947) e Cel. José Machado

Lopes (1947-1952). Traços da arquitetura art-déco e do racionalismo clássico italia-

no, influentes na época (SUTIL e GNOATO, 2005: 51) podem ser encontrados nas

edificações da rede, como no Edifício Teixeira Soares, no Escritório da Vila Oficinas,

na Escola Profissional Ferroviária e no Hospital Cajuru. O uso do concreto armado

estava presente nos galpões das Oficinas e no Depósito de Locomotivas. A rede era,

ainda, a protagonista de sua própria modernidade.

Em 1957 foi criada a Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA). A RVPSC integrou

essa rede, de caráter nacional, como parte do Sistema Regional Sul, sediado em Por-

to Alegre. Em 1975, em um processo de descentralização administrativa, as ferrovias

do Paraná e Santa Catarina passaram a compor o Sistema Regional 5 (SR-5), agora

com sede em Curitiba, para melhor atender às demandas da produção agrícola e ao

transporte de derivados de petróleo da refinaria de Araucária (RFFSA, 1985: 321).

Mas, para além desses novos arranjos administrativos, as décadas de 1960 e 1970

marcaram um período de crise para as representações das paisagens ferroviárias,

como símbolos da modernidade. Com a emergência do automóvel, a constituição de

um novo Plano Diretor para o município e uma dinâmica urbana acelerada pelo cres-

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 20: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

19

PELO

S T

RIL

HO

S

cimento da população, o trem e sua linha férrea passaram a ser identificados como

uma barreira às novas necessidades de circulação urbana. As paisagens ferroviárias

começaram a sofrer um processo de desterritorialização. Antigas atividades econô-

micas e partes da infraestrutura ligadas ao transporte ferroviário foram desativadas,

perderam seus vínculos com a ferrovia e com as relações nela efetivamente realiza-

das. Elementos que compunham as paisagens foram eliminados, e houve a formação

de alguns vazios urbanos3.

Parafraseando Aldo Rossi (1995: 03), pode-se perceber que nos contextos

urbanos atuais novos elementos marcam visualmente a paisagem: grandes eixos

viários, viadutos e edifícios verticais camuflam referências históricas e ambientais, e

alteram os desenhos das cidades. Prédios e estações foram desativados e substituí-

dos por shopping centers, casas de ferroviários foram escondidas por arranha-céus

e viadutos. E para reencontrar essas linhas de histórias ferroviárias, nada melhor do

que viajar por paisagens urbanas em transformação, com um olhar atento aos seus

vestígios.

Viajantes

Em Tristes Trópicos, o viajante Claude Lévi-Strauss escreve que

concebemos as viagens como um deslocamento no espaço. É pouco. Uma viagem inscreve-se

simultaneamente no espaço, no tempo e na hierarquia social. Cada impressão só é definível se

a relacionarmos de modo solidário com esses três eixos, e, como o espaço possui sozinho três

dimensões, precisaríamos de pelo menos cinco para fazermos da viagem uma representação

adequada. (1996: 81)

Por suas várias dimensões, a apreensão da paisagem se enriquece a partir

de uma multiplicidade de olhares. Diversos pesquisadores, de diferentes áreas do

conhecimento (história, arquitetura e urbanismo, antropologia e fotografia), compu-

seram a equipe de Paisagens Ferroviárias de Curitiba.

O trabalho de varredura realizado pela equipe de arquitetura foi fundamental

para identificar e caracterizar os elementos que fazem parte da paisagem ferroviária

na cidade. A partir desses elementos, essa equipe identificou conjuntos paisagísticos

3 Na década de 1990 iniciou-se o processo de privatização e o governo federal anunciou a ex-tinção da RFFSA (YAMAWAKI e HARDT, 2008: 157).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 21: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

20

PELO

S T

RIL

HO

S

que foram analisados e georreferenciados, resultando em um amplo levantamento

material que serviu de base inicial aos trabalhos subsequentes dos outros pesquisa-

dores.4

A pesquisa de história se concentrou nos arquivos do Museu Ferroviário, da As-

sociação Brasileira de Proteção Ferroviária (ABPF), do Instituto Bandeirantes e da Bi-

blioteca Pública do Paraná5. Em especial, nos relatórios anuais da RVPSC e da RFFSA

e nas coleções da revista Correio dos Ferroviários, encontrados nessas instituições.

Outra fonte importante de informações para a reconstituição da paisagem foram as

crônicas escritas por viajantes e moradores sobre a Curitiba da primeira metade do

século XX. Além dos registros de história oral, colhidos com ferroviários, usuários de

trens e moradores que vivem próximos aos ramais.

A pesquisa de imagens encarregou-se do levantamento e análise de fotografias

históricas e do registro dos elementos encontrados nas paisagens ferroviárias, levan-

tados pelo restante da equipe do projeto, na dupla perspectiva de fotografar “para

descobrir” e “para contar”6.

As antropólogas ligadas ao projeto se dedicaram ao estudo do(s) conceito(s)

de paisagem e alguns exemplos de seu emprego em pesquisas e publicações relati-

vas ao patrimônio cultural. Foram, ainda, responsáveis por articular as informações

produzidas pelas diferentes áreas de conhecimento. A partir desse trabalho teórico

e de imersões no campo de pesquisa, categorias metodológicas propostas durante

4 O trabalho da equipe de arquitetura teve como resultado o Relatório de “Paisagem Material” do projeto. Uma cópia deste relatório foi entregue à Casa da Memória da Fundação Cultural de Curitiba e está disponível para consulta no local. Esse relatório também pode ser encontrado no site www.pelostrilhos.net. 5 Os arquivos da RFFSA não foram acessados porque estavam sendo inventariados pelo Insti-tuto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). A disponibilização desses arquivos, terminado o processo de inventário, será de fundamental importância para o avanço de novas pesquisas. 6 O antropólogo e fotógrafo Milton Guran (2002) trabalha com a possibilidade de utilizar a foto-grafia nas ciências sociais tanto como instrumento para conhecer, coletar dados na pesquisa de campo (“fotografar para descobrir”), quanto como instrumento “narrativo” para versar sobre a pesquisa (“fotografar para contar”). A fotografia ocupou, no projeto Paisagens Ferroviárias de Curitiba, esses dois lugares. Foi entendida não como uma maneira de ilustrar as informações textuais do projeto ou algo anexo a ele, mas como recurso capaz de trazer outras informações para o leitor (tanto do livro como do site), desta vez imagéticas, de natureza diversa da textual. Se a palavra é, neste livro, um recurso narrativo predominante, a imagem é predominante no site do projeto.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 22: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

21

PELO

S T

RIL

HO

S

o levantamento de dados foram tensionadas, repensadas, por vezes reconstruídas,

dando lugar a categorias analíticas sensíveis às informações e leituras oriundas da

primeira etapa de pesquisa.

Ao pensarem as edificações enquanto espaços, lugares e coisas, suas relações

entre si e suas transformações através de diferentes práticas7, as antropólogas no-

taram a possibilidade de trabalhar com as paisagens ferroviárias estudadas a partir

de três agrupamentos: paisagem-conjunto, paisagem-trajeto e paisagem-circuito.

Por paisagem-conjunto, a partir da categoria pedaço8 – concebida pelo antropólo-

go José Cantor Magnani –, compreendeu-se aquela paisagem cujos elementos para

os quais voltamos nossos olhares apresentam uma contiguidade territorial entre si,

uma relação de vizinhança e identitária, e que guardam (ou guardaram) práticas

complementares umas às outras. As categorias circuito e trajeto foram diretamente

apropriadas do livro Festa no Pedaço: Cultura Popular e Lazer na Cidade (1984) e do

texto Quando o Campo é a Cidade: Fazendo Antropologia na Metrópole (2000), am-

bos de Magnani. O circuito (do qual advém o conceito de paisagem-circuito) é aquilo

que “une estabelecimentos, espaços e equipamentos caracterizados pelo exercício

de determinada prática ou oferta de determinado serviço, porém não contíguos na

paisagem urbana, sendo reconhecidos na sua totalidade apenas pelos seus usuários”

(MAGNANI, 2000: 45). E o trajeto é o que une pontos, pedaços, circuitos. É o espaço

de deslocamento e o caminho entre os lugares. Todas essas categorias, assim como

as de lugar e não lugar são relativas e relacionais: dependem da maneira a qual uma

pessoa (ou grupo de pessoas) se relaciona com determinado espaço ou o percebe,

como um conjunto de edificações e paisagens ferroviárias; e dependem também da

distância à qual se olha para as paisagens.

7 Concepção que surge do encontro de ideias, de dois autores, caras a este trabalho: lugar e não lugar, de Marc Augé (2003) e práticas na cidade, de Michel de Certeau (2009)8 A categoria pedaço refere-se, para Magnani, ao “espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos la-ços de relações familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade” (1984: 138). O autor pensou na categoria partindo do contexto do bairro, a vizinhança da casa. Mas deixou claro que outros pontos podem ser utilizados como pedaço: áreas de lazer, lugares de encontro, etc. Em um mesmo pedaço as pessoas não se conhecem, necessariamente, mas “se reconhecem enquanto portadores dos mesmos símbolos que remetem a gostos, orientações, valores, hábitos de consumo, modos de vida semelhantes” (2000: 39).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 23: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

22

PELO

S T

RIL

HO

S

O caminhar e a construção do olhar

Para além de metodologias e conhecimentos específicos de cada área, o “cami-

nhar” foi uma ação comum a todos os pesquisadores do projeto. Caminhando ao lado

e sobre as linhas de trem selecionadas, pudemos construir olhares sobre o “objeto”

de pesquisa, ao mesmo tempo em que o próprio “objeto” foi compreendido enquanto

tal e constituiu o nosso olhar. Caminhar foi um exercício fundamental para “desco-

brir”, entender, interpretar e criar possibilidades analíticas às paisagens ferroviárias.

A narrativa deste trabalho está impregnada desses inúmeros caminhares: são narra-

tivas sobre lugares, não lugares, espaços, paisagens.

Caminhar como forma de apreender e praticar espaços (DE CERTEAU, 2009)

não é uma novidade no universo das ciências humanas. Walter Benjamin, em Paris, a

capital do século XIX (2006), nos chama a atenção para a figura do flâneur na obra de

Baudelaire. O flâneur era aquele que caminhava pela cidade devagar, apreendendo-a,

em plena efervescência da modernidade, na contramão do ritmo cada vez mais ace-

lerado dela. Caminhando, o flâneur lia os sinais e pistas da cidade, criava narrativas

associando impressões fragmentadas, percebia seus fluxos, movimentando-se lenta-

mente por ela, o que lhe permitia observar aquilo que não era visto corriqueiramen-

te por aqueles que estavam dentro do ritmo acelerado da cidade (FEATHERSTONE,

2001).

Assim como o flâneur, é preciso se caminhar contra o fluxo da aceleração

urbana para reconhecer suas paisagens. Este caminhar foi sugerido pelo próprio

objeto estudado, pela maneira com que o patrimônio ferroviário se relaciona com a

cidade: ele a atravessa, se distribui não apenas em concentrações específicas, mas

“ao longo” dos trilhos, formando “circuitos” entre seus elementos, suas paisagens.

As paisagens ferroviárias não se concentram em algumas quadras ou ruas: elas atra-

vessam bairros, zonas, classes sociais e interesses múltiplos. E, por sua amplidão,

ultrapassam qualquer narrativa que se possa construir em alguns meses de trabalho

– muita coisa escapa da percepção dos pesquisadores.

Em uma relação dialética, as paisagens ferroviárias e os olhares dos pesquisa-

dores foram construídos, e se construíram, mutuamente. As informações contidas na

paisagem material foram lidas através de certos pontos de vista, impregnados pelas

experiências de pesquisa, conhecimentos específicos e pelas questões levantadas por

cada pesquisador.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 24: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

23

PELO

S T

RIL

HO

S

A visão […] não é uma questão de reagir mecanicamente a estímulos. […] Só vemos aquilo que

olhamos. Olhar é um ato de escolha. Como resultado dessa escolha, aquilo que vemos é trazido para

o âmbito do nosso alcance – ainda que não necessariamente ao alcance da mão. Tocar alguma coisa

é situar-se em relação a ela. […] Nunca olhamos para uma coisa apenas; estamos sempre olhando

para a relação entre a coisa e nós mesmos. (BERGER, 1999: 11 e 12)

A intenção desse trabalho, então, não é oferecer uma visão fechada das ins-

talações ferroviárias em Curitiba. Mas chamar a atenção para suas permanências e

descontinuidades; revelar algumas práticas sociais relacionadas a essas paisagens;

provocar o leitor para a reconstituição de seus espaços, trajetos e circuitos; ofere-

cer um panorama, um ponto de partida e alguns roteiros para que cada pessoa, ao

percorrer essas páginas, possa reconstruir e ressignificar as paisagens ferroviárias

da cidade. É preciso lembrar que, “apesar de o trem haver sido concebido para o

transporte de cargas, sua invenção – assim como a do navio a vapor – propiciou uma

nova categoria de seres humanos: os passageiros” (BONI, 2005: 257). Então, bilhete

na mão e boa viagem!

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 25: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

24

PELO

S T

RIL

HO

S ISBN 987-85-86107-17-7

Page 26: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

25

PELO

S T

RIL

HO

S

I – RAMAl DONA ISABEl/ESTRADA DE FERRO DO PARANÁ/RAMAl CURITIBA–PARANAGUÁ

O Ramal Curitiba-Paranaguá foi inaugurado com o nome de Dona Isabel em

fevereiro de 1885, construído em regime de concessão pela Compagnie Générale des

Chemins de Fer Brésiliens, empresa controlada pela firma Société Anonyme de Travaux

Dyle et Bacalan, com sede em Louvain, Bélgica (Relatório da RFFSA, 1985). A principal

atividade dessa estrada de ferro era escoar a produção de erva-mate para o litoral pa-

ranaense, de onde seguia pelo mar para os centros consumidores, em especial, para a

Bacia do Prata. No início da República, o governo federal resgatou a concessão dessa

estrada, já conhecida como Estrada de Ferro do Paraná9. Depois de passar pelas mãos

de vários administradores, ela foi finalmente arrendada em 1910 pela poderosa Brasil

Railway Company, que estendeu os braços da ferrovia até São Francisco do Sul (SC),

pelo Ramal Rio Negro, e até São Paulo (SP), pelo Ramal Ponta Grossa.

Mais ramais, mais locomotivas. As oficinas que ficavam na Estação de Curitiba

ficaram acanhadas para o volume de trabalho. Em 1926, engenheiros da Brasil Railway

projetaram uma oficina no pátio 108. Mas o projeto não foi implementado por causa da

grave crise financeira enfrentada pela companhia, que se agravava desde a 1a Guerra

Mundial, e que culminou em sua falência (SCHOPA, 2004: 72).

A tônica nacionalista da Era Vargas e a necessidade de resolver a situação

das ferrovias sob controle da falida Brazil Railway Company levaram ao processo de

encampação dos ramais. Os decretos de desapropriação abriram caminho para um

regime administrativo controlado pelo Estado, que se consolidou com a criação ofi-

cial da Rede Viária Paraná-Santa Catarina (RVPSC) em 194210. Nesse período, teve

9 Para estimular a construção das ferrovias, o governo imperial assegurava o lucro dos empre-endedores, incluindo nas concessões garantias de juros, em caso de resultados adversos. No primeiros anos da República, o peso do pagamento dessas garantias já consumia um terço do orçamento da União, o que levou às expropriações das companhias estrangeiras (SCHOPPA, 2004: 67).10 Na prática, a Rede Viária Paraná-Santa Catarina (RVPSC) já vinha operando desde os anos 1930, quando as estradas de ferro da Brazil Railway sofreram intervenção do Estado.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 27: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

26

PELO

S T

RIL

HO

S

início a construção das atuais Oficinas Ferroviárias de Curitiba, localizadas na região

que hoje conhecemos como Vila Oficinas. É daqui que sai “nosso trem”, que nesta

primeira parte da viagem nos apresenta três paisagens pelas “suas janelas”, cujas

esquadrias são dadas pelo olhar que construímos no decorrer deste projeto: o con-

junto Vila Oficinas, o trajeto entre a Parada Stresser e a Parada Cajuru, e o trajeto

entre o Viaduto da BR 116/Linha Verde até o Viaduto do Capanema.

1 ª PAISAGEM Conjunto Vila Novas Oficinas/Vila Oficinas

Aqui era a oficina das locomotivas da Rede. E o

almoxarifado central da ferrovia do Estado do Paraná

e Santa Catarina [...]. Daqui é que saía o material pro

pessoal, para tudo quanto é lugar. E a sucata era toda

recolhida aqui também. Era bastante material. (Sr. Sidnei

Grossko – segurança da Rede aposentado)

No coração do Bairro Cajuru, região leste da cidade, em um imenso quarteirão,

pulsam as oficinas da antiga RVPSC11. O nome Vila Oficinas é o indício mais evidente

da influência que as instalações da Rede tiveram na região. Mas há outras marcas

suas nas casas, ruas e edificações do entorno. As paisagens que circundam as ofici-

nas são ramificações de sua história.

Comparando a planta de implementação das Oficinas e suas imagens atuais,

percebe-se que a estrutura do complexo permanece semelhante à original, salvo a

construção de algumas edificações pontuais e a demolição de três das quinze casas

que abrigavam funcionários especializados da RVPSC. Hoje existe uma maior autono-

mia da região em relação às Oficinas. Mas o complexo ferroviário, os ruídos e apitos

dos trens e o cheiro de graxa ainda ocupam uma centralidade espacial e identitária

na região.

11 Atualmente, as instalações das Oficinas estão sendo usadas por uma das empresas conces-sionárias da estrada de ferro, a América Latina Logística (ALL).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 28: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

27

PELO

S T

RIL

HO

S

Imagem aérea da década de 1970 da paisagem Vila Oficinas (IPPUC, 1972).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 29: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

28

PELO

S T

RIL

HO

S

Planta Novas Oficinas Ferroviárias. Acervo do Museu Ferroviário de Curitiba (PFC – Relatório Paisagem Ma-

terial).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 30: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

29

PELO

S T

RIL

HO

S

1.1 Complexo das Oficinas

Na década de 1940, quem estava acostumado a cruzar de trem os antigos

descampados desta região iria se surpreender com os serviços de terraplanagem ini-

ciados em 1943. Os terrenos ficavam a seis quilômetros do centro de Curitiba e foram

doados à RVPSC pela Companhia Territorial Cajuru (MELO, 2008: 08). Foram esca-

vados mais de 200 mil metros cúbicos de terra para que tivesse início a construção

das fundações e estruturas de concreto armado das instalações das Oficinas12. Uma

obra fáustica para a Curitiba de então: a Leão, Ribeiro & Cia. Ltda. era a empresa

responsável pela construção do complexo. Em 1949, a maior parte dos galpões já

estava pronta. O gigantismo da obra ainda surpreende.

Nós tínhamos uma grande oficina de equipamentos de via permanente e uma de locomotiva, que era

aqui na Vila Oficinas. Aliás, a oficina de Curitiba é a maior oficina de locomotivas da América Latina

e que foi inaugurada pelo presidente Getúlio Vargas. (Eng. Saulo Ramos)

A obra inovou também em relação às técnicas construtivas, ao utilizar o con-

creto armado na estrutura dos imensos galpões e da enorme caixa-d’água, que, em

seus quase 17 metros de altura, se destaca no conjunto.

A instalação de todo o maquinário necessário ao funcionamento das seções de

ferraria, fundição, modelagem e fabricação de pregos de linha e parafusos levou mais

alguns anos. Essas seções só ficaram prontas em 1953, quando um trem presiden-

cial entrou pelo desvio e seguiu até as Oficinas. Getúlio Vargas, acompanhado pelo

deputado federal João Goulart e outras autoridades, inaugurou as novas instalações

da Rede (Correios dos Ferroviários, jan. 1953). Na ocasião, o Presidente anunciou a

Bento Munhoz da Rocha Neto, governador do Paraná, a intenção de voltar à cidade

em dezembro daquele mesmo ano para participar das comemorações do Centenário

de Emancipação Política do Estado. O governo estadual projetou a construção do

Teatro Guaíra, do Centro Cívico e da Biblioteca Pública do Paraná como parte dessas

comemorações. As grandes edificações iniciadas pela Rede na década de 1940 se an-

teciparam ao canteiro de obras que a cidade iria se transformar na década seguinte.

12 As quais incluíam: caixa-d’água e edificações relacionadas aos setores de força e ar, fabrica-ção e enchimento, modelação, ferraria, rodas e eixos, fundição, calderaria, montagem e mecâ-nica (Relatório da Rede, 1944).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 31: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

30

PELO

S T

RIL

HO

S

“Construção das novas Oficinas de Locomotivas em Curitiba. Estrutura de concreto armado do

edifício do Almoxarifado” (RVPSC, 1944).

Pátio do complexo das Oficinas, vista próxima do terminal de ônibus Vila Oficinas.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 32: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

31

PELO

S T

RIL

HO

S

O complexo das Oficinas contou ainda com uma série de edificações de su-

porte: o prédio para abrigar os escritórios da RVPSC, o restaurante e o vestiário dos

funcionários, a Escola Profissional Ferroviária e, mais recentemente, o centro de trei-

namento profissional da Rede.

1.1.1 Escritório das Oficinas/Universidade Corporativa ALL A atual Universidade Corporativa ALL é um edifício de dois andares que, impo-

nente, se destaca em relação às demais edificações da região devido ao seu tamanho

e estilo. Com entrada pela Rua Emílio Bertolini, a edificação abrigou durante muito

tempo os escritórios da administração, o restaurante e o vestiário dos funcionários

da Rede.

1.1.2 Centro Sul de Treinamento/Instituto Federal No espaço entre a Escola Profissional Ferroviária Durival de Britto e Silva e o

escritório da Rede, uma nova construção surgiu na década de 1960: o Centro Sul de

Treinamento, responsável pelo treinamento de profissionais da Rede não atendidos

pela escola. Trata-se de uma grande construção térrea, composta de núcleos admi-

nistrativos, didático, recreativo e cultural, que se destaca arquitetonicamente por

suas linhas modernas e parte da fachada em vidro. Os jardins à sua frente ainda

guardam a placa com o símbolo da RFFSA.

1.1.3 Escola Profissional Ferroviária Coronel Durival de Britto e Silva/Escola Municipal Coronel Durival de Britto e Silva Hoje separada do conjunto das oficinas por um muro, a atual Escola Municipal

Coronel Durival de Britto e Silva

É uma construção em alvenaria de tijolos, composta por três blocos retangulares dispostos em forma

de “H”. Cada bloco tem o telhado em quatro águas coberto por telhas de fibrocimento que ficam

parcialmente escondidas em uma platibanda. No lote encontram-se três edificações: a da frente e

maior, em forma de “H”, era a sede da Escola Profissional; a do meio, o pavilhão de educação física

(PFC – Relatório Paisagem Material).

Na chamada Escola Profissional Ferroviária Coronel Durival de Britto e Silva

formavam-se caldeireiros, soldadores, serralheiros, ferreiros, marceneiros, eletricis-

tas, operadores, mecânicos e ajustadores. Funcionava como internato para alunos

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 33: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

32

PELO

S T

RIL

HO

S

Antigo escritório das Oficinas, atual Universidade Corporativa ALL, cuja construção foi

finalizada em 1955. Fotógrafo: Gabriel Gallarza (PFC – Relatório Paisagem Material).

Centro Sul de Treinamento (Correio dos Ferroviários, jan. 1968).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 34: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

33

PELO

S T

RIL

HO

S

Escola Municipal Coronel Durival de Britto e Silva, antiga Escola Profissional Ferroviária Coronel Durival de

Britto e Silva, construída entre 1944 e 1945.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 35: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

34

PELO

S T

RIL

HO

S

que vinham de outras regiões do estado, em geral, filhos de funcionários da Rede.

José Carlos Rodrigues, maquinista, estudou na escola antes de entrar para a Rede:

“A escola era integral, quem estudava de manhã fazia um curso à tarde, se formava

eletricista, mecânico, torneiro mecânico: várias profissões”.

A Escola Profissional Ferroviária foi um projeto consoante às novas orientações

educacionais do Governo Vargas e sua aproximação com setores da burguesia indus-

trial. O crescente interesse de Vargas em promover a industrialização do país terminou

por se refletir no campo educacional, com estímulo à organização da educação pro-

fissional (FAUSTO, 2002). Em 1964, a escola começou a dar formação ginasial e em

1970, um acordo entre a RFFSA e o SENAI transformou a instituição em um Colégio

Técnico (Correios dos Ferroviários, mai. 1969). A importância da escola para a forma-

ção dos trabalhadores da Rede é atestada por vários depoimentos. Essa escola, que

fazia parte de uma ação social da empresa junto aos funcionários, possibilitou o apren-

dizado de técnicas e profissões até então desconhecidas ou inacessíveis na cidade.

[…] como a Rede Ferroviária era uma indutora de nova tecnologia […,] ferrovia sempre foi uma coisa

de ponta, como é hoje [,…] a Rede Ferroviária tinha a necessidade de desenvolver o conhecimento

de seus empregados, então [...] punha seus empregados nessas casas, pegava o filho do empregado,

punha em uma escolinha técnica, e ensinava, através de um convênio com o SENAI, e fazia dele um

técnico. A Rede Ferroviária formava por ano 7 mil crianças. […] a Rede precisava dessas escolas, junto

às suas oficinas […] os empregados da Rede eram de altíssima qualificação. (Eng. Saulo Ramos)

1.2 Vila das Oficinas

A implantação das oficinas no Bairro Cajuru impulsionou o desenvolvimento de

núcleos habitacionais em seu entorno. Destinadas a abrigar os funcionários que tra-

balhariam nas novas oficinas, a construção dessas vilas operárias, comum nas em-

presas ferroviárias e que deram origem a vários núcleos urbanos, obedeciam, entre

outras coisas, à necessidade de disciplinarização do trabalhador frente às exigências

das relações capitalistas de produção.

[...] a Rede Ferroviária fornecia casa para seus empregados. E cobrava deles um aluguel simbólico.

Era uma forma de ter os empregados disponíveis a qualquer hora. Porque ferroviário é que nem um

militar. Não tem hora. (Sr. Saulo de Castro Ferreira - engenheiro)

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 36: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

35

PELO

S T

RIL

HO

S

Além da disposição do pessoal, a Vila Ferroviária garantia a gestão da vida

cotidiana dos ferroviários por parte da empresa, os quais “morando nessas casas ti-

nham acesso a um ambiente saneado, higienizado e organizado” (MELO, 2008: 11).

O som da sirene, que convocava os funcionários ao trabalho, era referência para a

organização do tempo dos moradores da vila. Ainda hoje, com um som mais baixo,

a mesma sirene marca a entrada e saída dos alunos da Escola Municipal Coronel

Durival de Britto e Silva. Por outro lado, a construção dessas vilas não obedece ex-

clusivamente às questões de controle e disciplinarização da mão de obra, mas atende

também às reivindicações dos ferroviários por moradia e reforça a formação de uma

identidade de classe.

Quando foi construída, era surpreendente o isolamento da vila em relação à

cidade. Para se chegar ao centro de Curitiba, era preciso caminhar cinco quilômetros

até o ponto de ônibus mais próximo, que saía de hora em hora. Situação bastante

diferente da atual, tendo em vista a intensa movimentação, hoje, de usuários do

sistema de transporte público no terminal de ônibus que foi construído contíguo às

Oficinas. Outra mudança na paisagem da região é que hoje ela está servida por um

comércio diversificado. Naquela época, em que a Vila Novas Oficinas estava um tanto

quanto isolada do restante da cidade, as compras eram feitas na Cooperativa 26 de

Outubro – a qual era administrada pela Rede e ficava no Bairro Rebouças – e levadas

até a casa dos ferroviários na vila. Na década de 1950, um trem começou a trazer

pela manhã os funcionários da Rede que não moravam na vila, fazendo surgir o pro-

tótipo dos trens de subúrbio.

1.2.1 Casas do Complexo das Oficinas O conjunto com 15 casas, construído com recursos da própria Rede e projeta-

das dentro do complexo das Oficinas, destinava-se à moradia de alguns funcionários

especializados, como mestres e contramestres da Rede. Está situado na Rua dos Fer-

roviários, aos fundos e no mesmo quarteirão que as oficinas. Hoje, restam 12 dessas

casas:

A maior parte delas segue o mesmo desenho arquitetônico. São casas térreas de alvenaria com

varanda saliente frontal, e acabamento do vão em arco. Possuem um ornamento no frontão formado

por três círculos e o brasão RPVSC. No fundo do lote aparece uma pequena edificação desligada da

casa, que servia de garagem. Originalmente, as casas tinham uma cerca baixa de madeira nos limites

do lote. (PFC – Relatório Paisagem Material)

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 37: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

36

PELO

S T

RIL

HO

S

A pequena edificação anexa às casas mencionada acima servia também como

depósito. Todas as casas se encontravam em uso na ocasião do término desta pes-

quisa (em julho de 2010) – salvo uma casa abandonada e em estado de conservação

extremamente precário – e algumas delas sofreram alterações significativas no de-

senho arquitetônico.

Entre as casas, em um lote que antigamente servia como entrada para os fun-

cionários das Oficinas, está sediada a Associação Ferroviária UNIFER.

1.2.2 Outras Casas da Vila Oficinas As 96 casas construídas com recursos do Instituto de Aposentadoria e Previ-

dência dos Ferroviários de São Paulo (IAPFSP) foram adquiridas tanto por ferroviários

quanto por funcionários públicos e estão situadas em seis quadras contíguas às Ofi-

cinas.

Em 1969, a RFFSA anunciou um acordo com a Companhia de Habitação Po-

pular (COHAB), permitindo a 500 ferroviários a participação na aquisição de casas

no conjunto residencial que estava sendo construído na Vila Oficinas, no entorno das

quadras desse primeiro conjunto de 96 casas (Relatório da RFFSA, 1969). “A ocupa-

ção do conjunto habitacional se deu por tipologias arquitetônicas diversas e por um

desenho urbano diferenciado, que promovia a ocupação em pequenos quarteirões

com baixo fluxo de veículos, ao redor de praças e escolas no centro” (PFC – Relatório

Paisagem Material).

1.3 Desvio para as Oficinas

Logo que saem das Oficinas, os trilhos seguem em direção ao Ramal Curitiba-

-Paranaguá sobre um elevado com sete metros de altura em relação às ruas que o

margeiam. Com casas em seus dois lados, o desvio e seu aterro criam por algumas

centenas de metros uma muralha que divide fisicamente a comunidade em duas,

impedindo que de um lado se veja o outro. Apesar disso, ambos os lados têm uma

unidade paisagística: são compostos por casas e sobrados, em sua maioria, residen-

ciais.

O trem passa na comunidade. Esporadicamente, uma pessoa ou outra atraves-

sa os trilhos em algum de seus poucos cruzamentos de pedestres. O andar do pedes-

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 38: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

37

PELO

S T

RIL

HO

S

Casas construídas pela Rede na Rua dos Ferroviários.

Desvio Oficinas (sentido Oficinas – Ramal Curitiba-Paranaguá).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 39: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

38

PELO

S T

RIL

HO

S

tre sobre os trilhos parece, neste trecho, solitário. Os trilhos estão isolados pela altura

e isolam, contextualmente, aqueles que estão sobre eles. A Serra do Mar, que já era

visível de outros tantos pontos da Vila Oficinas, torna-se visualmente mais presente

e marcante, lembrando a proximidade do litoral e destacando a baixa verticalização

das construções da região, o que viabiliza uma grande profundidade de campo de

visão. Esse desvio “é marcado por diversas ocupações originalmente irregulares em

suas margens. São ocupações antigas, hoje bastante consolidadas” (idem). A serra

acompanha o caminhar sobre os trilhos, enquanto o viajante, rumo à Curitiba, dá as

costas e se distancia das Oficinas. Os trilhos encontram o Ramal Curitiba-Paranaguá,

pouco antes do cruzamento, em forma de viaduto, da linha férrea com a Av. Pref.

Maurício Fruet. Aqui é o limite da paisagem chamada Vila Oficinas.

2 ª PAISAGEMTrajeto Parada Stresser/km 104 – Parada Cajuru

Quando eu morava em Piraquara, eu vinha com o

Subúrbio. […] Vinha de manhã e voltava à tarde [...]. O

trem era cheio. Andava com seis, sete vagões. Cada vagão

cabe sentado 40 pessoas. [...] ele parava nas estações e

em alguns lugares nas passagens de nível. Onde tinham

essas casas da Rede sempre parava o trem. Eram casas

de turmeiro, de trabalhador conservador. Tinha essa

estação em frente à Vila Oficinas, para o pessoal que

desembarcava ali, no Capão do Imbuia. (Sr. Sidney

Grosko, segurança da RFFSA)

O desvio da Vila Oficinas encontra o Ramal Curitiba-Paranaguá e segue, no

sentido que o percorremos, até o centro de Curitiba. Em determinado momento,

a linha férrea passa sob um viaduto na Linha Verde (antiga BR-116) e este ponto,

vizinho à parada Cajuru, é o limite desta paisagem. Das Oficinas até o referido cruza-

mento despontam dois pequenos núcleos de edificações ferroviárias: as casas de tur-

ma das paradas Stresser e Cajuru. Essa paisagem, composta pelas vilas ferroviárias

e o percurso entre elas, pode ser apreendida a partir de um trajeto claro e definido,

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 40: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

39

PELO

S T

RIL

HO

S

dado pela linha do trem e o seu entorno13.

Da mesma forma que a próxima paisagem-trajeto, os trilhos e a Av. Pres.

Affonso Camargo seguem lado a lado. Antes disso, no final de década de 1920, aque-

la via, então conhecida como Av. Capanema, partia do Largo Bom Jesus (atualmente,

Largo Baden Powell) e não avançava muito além do pátio 108. Com a construção das

oficinas no Bairro Cajuru, essa avenida, de mão simples, chegou até o desvio do km

104 (IPPUC, 1972). Somente na década de 1970 estendeu-se até Pinhais, em um

traçado que segue as curvas da ferrovia. Do outro lado da ferrovia está a Av. Pref.

Maurício Fruet. Ambas, hoje em dia, são largas e bastante movimentadas. Assim,

para quem caminha sobre a linha do trem, os ruídos da cidade são uma companhia

constante.

Uma das singularidades desta paisagem é a distância entre o trilho e as ruas.

Esta distância, determinada pelo recuo da via férrea, é ocupada por grama e uma

vegetação rasteira, além de ciclovias. Alguns fungos alaranjados, presentes em ou-

tras paisagens-trajetos da ferrovia, destacam-se nos dormentes enegrecidos e, junto

com pequenas flores lilases, amarelas e púrpuras, colorem o chão verde ao redor dos

trilhos. Às vezes concentradas, às vezes esparsas, árvores de pequeno e médio porte

também estão presentes nesta área verde, sempre a uma certa distância do trilho.

Há um considerável fluxo de pessoas que atravessam as linhas neste trajeto, além

de movimentados cruzamentos de trens com carros e ônibus. São quatorze os cru-

zamentos improvisados para pedestres: pequenas trilhas, em meio à vegetação, que

recortam a paisagem em diferentes pontos. Em um deles, um curioso “calçamento”

feito com tapetes e pedaços de carpetes velhos facilita o acesso de quem quer chegar

ao terminal de ônibus do Capão da Imbuia. Os cruzamentos de pedestres dão acesso

a ruas, escolas, estações-tubo, ao centro de abastecimento do Armazém da Família;

ligam as avenidas Pres. Affonso Camargo e Pref. Maurício Fruet e algumas ruas per-

pendiculares a essas avenidas. Sobre as linhas férreas, é frequente a presença de

cacos de cerâmicas, garrafas, pedaços de velas – brancas, vermelhas e pretas. Vestí-

gios de oferendas de religiões de matriz africana. A linha e suas orlas tornam-se um

lugar de passagem ou de culto para alguns, mas também um não lugar para outros,

que ali despejam restos de construção e sacos plásticos.

13 Grande parte das paisagens que analisamos ao decorrer deste trabalho foram apreendidas e são apresentadas enquanto trajetos.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 41: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

40

PELO

S T

RIL

HO

S

Vegetação e trilhos.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 42: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

41

PELO

S T

RIL

HO

S

Oferendas sobre trilhos.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 43: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

42

PELO

S T

RIL

HO

S

Neste trajeto os trilhos são a fronteira entre os bairros Capão da Imbuia e

Cajuru, bastante populosos, mas predominantemente horizontais. Aqui, as casas

começaram a se estabelecer depois da construção das Oficinas e da consolidação dos

principais acessos àquelas paragens, como as grandes avenidas contíguas ao trilho.

O isolamento da Vila Oficinas começa a ser vencido nas décadas de 1960 e 1970

(DITTRICH, 1962).

2.1 Parada Stresser/km 104

Logo que o desvio das Oficinas encontra o Ramal Curitiba-Paranaguá há um

conjunto de casas construídas pela Rede, conhecido como parada Stresser, posto

de Cruzamento Engenheiro Theodoro Stresser ou, simplesmente, km 104 – que na

linguagem ferroviária indica a distância daquele ponto em relação ao início da linha,

neste caso, Paranaguá. São seis residências térreas e de madeira que ficam entre os

trilhos e a Av. Pres. Affonso Camargo. Dentre as seis, três encontram-se “bastante

descaracterizadas por reformas” (PFC – Relatório Paisagem Material). A primeira e

mais antiga das casas foi construída na mesma época que as Oficinas, para servir de

moradia ao guarda-chaves, funcionário que era responsável pela chave que altera o

trilho, definindo a direção por onde o trem vai seguir.

Logo o lugar se tornou também um posto de controle e uma parada, por causa,

principalmente, da crescente expansão habitacional das redondezas. Junto àquela

primeira casa há um elevado de concreto, ainda com alguns tacos de madeira do

chão: ruínas de um posto de cruzamento que, em 1985, foi batizado como Engenhei-

ro Theodoro Stresser14. Este posto fazia o controle das locomotivas que entravam e

saíam das oficinas, dos trens de carga, de passageiros e das litorinas que seguiam

pelo Ramal Curitiba-Paranaguá. Como lembra o Sr. Leocádio, ferroviário que hoje

vive nessa pequena vila, ali também “era uma estaçãozinha, pequenininha. Tinha

agente de estação que cuidava e tudo […,] dava aquele ‘pode’ para ir viajar, essas

coisas de estação”. O desembarque era feito na linha mesmo: “As pessoas que mo-

ravam pra cá não pegavam o ônibus. Pegavam o Subúrbio. Quem morava aqui, nas

redondezas, descia tudo aqui.” (Sr. Leocádio).

14 Disponível em: http://www.estaçõeosdetrens.com.br. Acesso em: 04 set. 2010.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 44: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

43

PELO

S T

RIL

HO

S

Os trens de subúrbio eram uma alternativa de transporte coletivo, sobretudo

frente à precariedade do transporte rodoviário entre os municípios aos quais aten-

dia. Eles saíam cedo de cidades vizinhas, transportando trabalhadores, e chegavam

a Curitiba perto das sete horas da manhã. Havia três linhas de subúrbio: a de Rio

Branco do Sul, a do Passaúna (com escala em Araucária) e aquela que passava pela

parada Stresser, vinda de Roça Nova, passando por Piraquara e Pinhais (Correios dos

ferroviários, jun. 1968). Os trens de subúrbio foram um anúncio, bastante precoce,

da formação da Região Metropolitana de Curitiba.

Quatro casas da parada foram construídas em momentos subsequentes ao da

primeira casa. Abrigaram, conforme indica a garagem de trole15 (pequena edificação

de madeira com porta tipo garagem), o pessoal da Via Permanente, responsável pela

manutenção da linha. No jargão ferroviário: uma “turma”. Como recorda o ferroviário

Sidnei Grossko: “Eles tinham um percurso para fazer, tipo, dois ou três quilômetros

[de trilhos] para fazer a manutenção […]. O pessoal conservava tudo. Limpava buei-

ro, as canaletas de chuva, trocava os parafusos, trocava as placas, trocava o trilho,

trocava dormente”. A organização desse pessoal é explicada pelo Sr. Nery: “Tínha-

mos as turmas fixas e as turmas volantes. Tinha o mestre de linha, que coordenava

toda a seção e coordenava as turmas fixas e as volantes, através dos feitores de

turma fixa e de turma volante, ele coordenava os trabalhadores de linha”.

A última das seis casas foi construída recentemente, há aproximadamente 13

anos, quando o Sr. Leocádio teve sua antiga moradia – também uma casa da Rede –

demolida em favor da construção do prolongamento da Av. Getúlio Vargas, próximo à

atual Rodoferroviária. Assim como na maioria das casas construídas pela Rede, hoje

vivem, nas casas do km 104, ferroviários (aposentados ou não) e seus familiares.

Um pouco adiante do km 104 é possível observar os dormentes de um antigo

desvio que levava ao Instituto Brasileiro do Café, onde hoje estão instalados de-

pósitos do Armazém da Família e da Justiça do Trabalho. Era um longo desvio, que

começava em frente ao posto de controle e seguia paralelo ao ramal, em direção a

Curitiba, indo “até quase ali, no Colégio Uruguai e recuava para entrar no IBC […]. A

15 O trole, também conhecido como vagonete, era usado no trabalho dos turmeiros para trans-porte de equipamentos e materiais: “eles tinham uma casinha que tem uns trilhos, que saem de lá e que vêm para cá [para o ramal]. É onde ficava o vagonete. A casinha do vagonete. Então, ele sai daqui, entra lá em cima da linha. Eles giravam o vagonete e punham certo na linha, para andar com o vagonete.” (Sr. Sidnei Grossko – segurança da Rede aposentado).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 45: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

44

PELO

S T

RIL

HO

S

Ruínas do posto de cruzamento do km 104.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 46: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

45

PELO

S T

RIL

HO

S

Casas da Parada Stresser da perspectiva dos trilhos (sentido Curitiba-Paranaguá).

Casas da Parada Stresser da perspectiva da Avenida Presidente Affonso Camargo (sentido

Paranaguá-Curitiba).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 47: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

46

PELO

S T

RIL

HO

S

máquina ia até lá e aí empurrava de recuo para ir para o IBC. Ela cruzava a Maurício

Fruet.” (Sr. Leocádio). Os galpões do IBC, que têm sua instalação datada na década

de 1960, são gigantescos: “Nós vinhamos ali com café e feijão. Aqui dentro do IBC

você colocava 14 vagões” (Sr. João de Souza Albino – maquinista).

Alguns metros à frente do desvio para as Oficinas, no sentido Paranaguá, exis-

tia também uma seringa, onde a Rede realizava o descarregamento de bois que vi-

nham em vagões-gaiola. Um desembarque quase sempre acompanhado pelos olhos

fascinados de crianças que moravam na região: “vinham os vagões de bois, descar-

regavam ali, e os caminhões carregavam os bois para levar para os clientes [frigorífi-

cos]. Era um troço muito bem feito. Com os próprios trilhos usados” (Sr. Leocádio).

2.2 Parada Cajuru

Próximo ao viaduto da Linha Verde fica a parada Cajuru, que conserva hoje

quatro casas. A exemplo da parada Stresser, as casas beiram o trilho do trem. Mas,

enquanto naquela primeira vila as casas estão entre o trilho e a Av. Pres. Affonso

Camargo, nesta estão entre o trilho e a Av. Pref. Maurício Fruet.

A principal casa desta vila é uma edificação de alvenaria que fica na esquina da Rua Santo André,

em um quintal com grandes araucárias. Esta edificação tem cobertura em duas águas com telhas

cerâmicas e apresenta lambrequins nos beirais. Possui ainda as esquadrias originais de madeira.

[…] Junto a esta edificação encontramos outras três casas, estas de madeira, com suas arquiteturas

bastante alteradas e em mau estado de conservação. (PFC – Relatório Paisagem Material)

Segundo a Sra. Diair, filha e viúva de ferroviário (seu pai era mestre de linha

e seu marido, fiscal de departamento), que mora em frente às casas mencionadas,

desde 1956, havia mais duas casas na pequena vila ferroviária, do outro lado da

via16, e o fluxo de pessoas era intenso em função do trem de subúrbio, que tinha ali

uma de suas paradas. O Sr. Leônides Thur, funcionário da Companhia Força e Luz e

dono de um antigo armazém na região, faz a descrição desta parada:

16 Tal informação foi confirmada por antigas fotos aéreas da parada (IPPUC, 1972) – fotos estas nas quais também foi possível visualizar a garagem de trole ou vagonete (hoje inexistente) e a estação, no terreno ao lado da casa de alvenaria.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 48: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

47

PELO

S T

RIL

HO

S

Casas da parada Cajuru da perspectiva dos trilhos (sentido Paranaguá-Curitiba).

Casas da parada Cajuru da perspectiva dos trilhos (sentido Curitiba-Paranaguá).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 49: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

48

PELO

S T

RIL

HO

S

A Estação era até bem grandinha. A turma em dia de chuva se escondia ali […]. Depois tinham as

casas da Rede. A Estação tinha uma casa perfeita, toda bonitinha […] só que era marronzinha. Era

meia estreitinha, mas era comprida. Era coberta para os dois lados, tipo chalezinho.

A quantidade de operários que utilizava o trem e saltava na parada Cajuru era

significativa: “o pessoal que vinha trabalhar, vinha de Piraquara, Banhado, a maioria

descia aqui para trabalhar, porque tinha a Irmãos Thá ali para baixo e tinha bastante

industriazinha por aí, sabe? E tinha o Centro Polítécnico, que eles estavam construin-

do.” (Sr. Leônides Thur). Por ser uma região próxima ao pátio 108, a meio caminho

para as Oficinas, vários trabalhadores da ferrovia estabeleceram-se nas imediações:

“tinha o Zé Linguiça, tinha o Cordeiro, tinha o Gervázio. Aqui era quase só o pessoal

da Rede que morava. Era maquinista, foguista, carvoerio, chefe de trem. Tinha o

Seu Vitório ali, que faleceu ano passado” (idem). Muitos desses trabalhadores pega-

vam a maria-fumaça que ia até a Vila Oficinas. Alguns moradores também tomavam

esse sentido para se divertir: “Era até gostoso. A gente ia pescar lá para Piraquara.”

(idem).

Além das casas da própria Rede onde moravam “turmeiros” da via perma-

nente, havia uma garagem do vagonete, recorda o Sr. Leônides Thur, onde ficavam

guardadas as ferramentas dos trabalhadores que também eram emprestadas aos vi-

zinhos. Quase todos que vivem nas casas que eram (ou são) da Rede convivem com

uma situação delicada de despejo sempre em iminência, como afirma a Sra. Diair:

“parece que no próximo ano vão tirar essas casas daí”. Essa relação e a incerteza da

permanência das vilas ferroviárias decorrente da extinção da Rede foi expressa em

diferentes situações e lugares, por diferentes pessoas. Ela é talvez o maior incômodo

que esses moradores, ferroviários ou não, têm em relação ao complexo ferroviário.

O trem, mesmo com seu barulho e apito, não chega a incomodá-los. Ele passa oito

vezes por dia, e na altura do km 104 são realizados também alguns testes de força.

Pouco, perto do trânsito das avenidas onde estão localizadas as casas dessas duas

vilas ferroviárias, em especial na parada Cajuru, que fica ao lado de um cruzamento

de intenso fluxo de veículos.

Neste trajeto, a proximidade com o centro da cidade fica cada vez mais eviden-

te, não só pelo aumento desse ruído típico das grandes metrópoles – de carros, ôni-

bus, motocicletas, buzinas, etc. –, mas também pela verticalização das construções.

São as edificações, prédios, viadutos e o próprio relevo da cidade que encobrem a tão

bela vista da Serra do Mar que acompanhou o viajante até aqui.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 50: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

49

PELO

S T

RIL

HO

S

3 ª PAISAGEMTrajeto Viaduto BR 116/linha Verde – Viaduto do Capanema

Era uma estrada que beirava a linha de trem. […]

O progresso, porém, também a atingiu e a Avenida

Capanema tomou a direção dos trilhos, à direita, deixando

São José a denominação da rua que quebrava para a

esquerda [onde hoje é o Hospital Cajuru…] Embora

Curitiba fosse considerada moderna e progressista,

possuía, nos anos 40, perto de 150 mil habitantes.

E a Avenida Capanema, ou Affonso Camargo, como

deve ser considerada hoje, cresceu em função de uma

circunstância maior: a estrada de ferro. […] A avenida

Capanema custou a decolar […] Outros bairros vieram a

formar-se e lá pelas bandas do Capão da Imbuia, onde a

rede ferroviária também se assentava, foram aparecendo

e o bairro foi se tornando realidade. Com isso, a Avenida

Affonso Camargo pôde sair daquela espécie de estagnação

e, ao lado da linha de trem, que nunca a abandonou,

cresceu, populou-se e inscreveu-se definitivamente na

história, contemplando o aspecto urbano com melhoria

fundamental para o progresso incontrolável da cidade.

(HOERNER JÚNIOR, 1989: 109)

Este percurso está na fronteira entre os bairros Jardim Botânico e Cristo Rei. A

paisagem é bastante heterogênea e apenas o Hospital Cajuru guarda relação direta

com a ferrovia17. A especificidade da paisagem se dá pelas relações do trilho com a

cidade: o desnível do trilho frente à Av. Pres. Affonso Camargo e a respectiva ciclo-

via, aramados que cercam o ramal e o isolam, a passagem pelo Jardim Botânico,

17 E sobre o qual optamos, por uma questão analítica, discutir no capítulo “Quinta paisagem”, que versa sobre o que chamamos de “sociedade ferroviária”.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 51: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

50

PELO

S T

RIL

HO

S

Trecho paisagem 3 (sentido Paranaguá-Curitiba).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 52: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

51

PELO

S T

RIL

HO

S

os prédios altos no decorrer do trajeto, os cruzamentos de pedestres cada vez mais

escassos.

Como pontos de referência dos extremos da paisagem temos dois viadutos.

A região era propriedade do Barão de Capanema. Como a Estação ainda não estava

pronta, em 1884, a princesa Isabel e seus filhos, em visita ao Paraná, embarcaram no

trem em direção a Paranaguá, na chácara do Barão. A região começou a ser ocupada

por ferroviários na década de 1920, devido à proximidade com o pátio 108, dividindo

o espaço com as chácaras, como a Santa Bárbara, do Desembargador Antônio Mar-

tins Franco – no local onde está hoje o Jardim Botânico (FENIANOS e JUNG, 1996:

21). Na altura do parque, a linha férrea começa a ficar abaixo do nível da rua. “Esse

desnível é garantido por um muro de arrimo de concreto entre as vias. Tal condição

de desnível não permite que a linha seja cruzada por ruas ao longo deste trecho e as

únicas transposições são cruzamentos de pedestres através de escadas de concreto”

(PFC – Relatório Paisagem Material) que estão próximos às estações-tubo.

Além disso, esse desnível marca fortemente a paisagem com o desaparecimento visual do trem para

quem está em cima, na Avenida Presidente Affonso Camargo, e o contrário para quem está embaixo,

ao longo da Rua Doutor Mário Lopes dos Santos, que tem a presença visual do trem e como fundo

o muro de arrimo. Este muro se encontra em grande parte decorado com grafites, arte urbana

frequentemente encontrada nos espaços de paisagem ferroviária, inclusive vagões. (idem)

Próximo à Rodoferroviária, o trilho volta a se nivelar com a rua. As experiên-

cias de andar sobre o trilho ou beirá-lo através da ciclovia são distintas daquelas que

se tem quando o trilho está abaixo da Av. Pres. Affonso Camargo. Na ciclovia, boa

parte da perspectiva sobre o trilho é do alto. Pode-se observar o trecho mais imedia-

to, ou lançar o olhar para os trechos mais distantes. O mesmo não acontece ao andar

sobre o trilho: a atenção constante para não tropeçar ou torcer o pé nas pequenas

armadilhas dos dormentes e das pedras, a muralha criada pelo muro de arrimo entre

o trilho e a rua somada às curvas da linha e à vegetação um pouco menos rasteira

dificultam a visão do que está logo à frente. E, em muitos momentos, não há outra

alternativa que não seguir em frente ou retornar: saídas laterais são impossíveis.

Restos de marmitas, cobertores, colchões e garrafas de cachaça são evidências de

que aqueles espaços são ou foram recentemente ocupados. Entre moitas, protegidos

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 53: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

52

PELO

S T

RIL

HO

S

sob as curvas, pessoas solitárias dormem. Outras, acompanhadas, comem, bebem,

fumam crack. Um não lugar18, onde pouca gente passa e pouca gente fica.

18 Densidade factual, individualização dos procedimentos e superabundância espacial são as principais características do mundo contemporâneo para o antropólogo Marc Augé. Dentre as inúmeras “consequências” destas características, associada principalmente à superabundância espacial (correlativa a uma sensação de “encolhimento do planeta” frente aos atuais meios de transporte, comunicação e necessidade de mobilidade), está a criação de não lugares, contex-tualmente opostos a casa e ao espaço personalizado. São, por exemplo, espaços públicos e de circulação. “Os não lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde estão estacionados os refugiados do planeta.” (AUGÉ, 2001: 36). O não lugar é um mundo pro-metido à passagem, ao provisório e ao efêmero. Mas também existe o não lugar como lugar: ele nunca existe sob uma forma pura; lugares se recompõem nele: relações se reconstituem nele. Ou seja, como o lugar, o não lugar é contextual. O não lugar funciona, segundo Augé, como espaço-paisagem, que contém uma pluralidade de lugares e impõem um excesso ao olhar que impede que o “viajante-espectador” veja nele um lugar. O não lugar, neste caso, transforma o espaço em uma “prática dos lugares e não do lugar” em decorrência de “um duplo desloca-mento: do viajante [... e] das paisagens, dos quais ele nunca tem senão visões parciais, ‘ins-tantâneos’, somados confusamente em sua memória. [...] A viagem [...] constrói uma relação fictícia entre olhar e paisagem [...] onde o indivíduo se experimenta como espectador, sem que a natureza do espetáculo lhe importe realmente. Como se a posição do espectador constituísse o essencial do espetáculo. […] O movimento acrescenta à coexistência dos mundos e à experiência combinada de lugar e daquele que não é mais [...] a experiência particular de solidão e, em sen-tido literal, de uma ‘tomada de posição’” (idem: 80 e 81).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 54: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

53

PELO

S T

RIL

HO

S

I I – CENTRO, CAPANEMA, REBOUÇAS

Na década de 1950, o jornalista Evaristo Biscaia fez uma viva descrição da

cidade de Curitiba e de seus bairros. Entre eles, o bairro do Capanema19 com sua

paisagem tipicamente industrial: lá estavam localizados o Moinho Inglês, o engenho

de erva-mate da firma Leão Júnior, as Indústrias Fontana, a fábrica de laminação

Raul Lacerda e a subestação da Cia. Força e Luz, entre outros estabelecimentos im-

portantes. Destacando-se das instalações fabris, erguia-se o Estádio Durival Britto e

Silva, que tinha em suas vizinhanças um conjunto residencial para operários da Rede

de Viação Paraná-Santa Catarina. “É uma parte da cidade aprazível devido aos lindos

campos e inúmeras árvores que dão ao conjunto encanto e harmonia. O impulso

dessa parte da cidade é bem recente, mas já se nota o notável desenvolvimento e

dentro em breve será, sem dúvida, um bairro de que a cidade se orgulhará” (BIS-

CAIA, 1996: 113 e 114).

O progresso anunciado por Biscaia se confirmou. Mas parece que o encanto e a

harmonia do conjunto foram perdidos em algum momento na história. O fluxo inces-

sante dos ônibus, na Rodoferroviária e nas canaletas da Av. Pres. Affonso Camargo,

e dos veículos, nas avenidas e viadutos, se contrapõe ao silêncio residencial de algu-

mas ruas; a disposição dos consumidores em direção a um shopping contrasta com

o cansaço dos operários que deixam as fábricas que insistem em funcionar no bairro;

e em frente às instituições de ensino, bem iluminadas, o movimento dos estudantes

acentua o escuro abandono de armazéns antigos nas imediações. Assim, a paisagem

está marcada pelos diversos usos e funções que se desenvolveram na região, sobre-

postos pelo tempo.

Mas, na primeira metade do século XX, as edificações presentes nessa área,

registradas por Biscaia, tinham uma coerência que escapa ao observador contempo-

râneo. E eram os trilhos e outras edificações ferroviárias que davam sentido àquele

lugar. A reconstituição dessa paisagem forma a base a partir da qual é possível com-

preender o emaranhado de tantas outras paisagens que ali se cruzam atualmente.

19 Na época, Biscaia incluía como parte do Capanema regiões que hoje fazem parte dos bairros Jardim Botânico e Rebouças.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 55: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

54

PELO

S T

RIL

HO

S

Para efeitos de análise e de apresentação, a região foi dividida em cinco pai-

sagens, de acordo com as funções das edificações selecionadas e sua relação com a

ferrovia. São os conjuntos de edificações do Pátio do km 108 e do Complexo Central

da Rede e as construções do entorno, compostas pelos circuitos dos Desvios Particu-

lares, da Sociedade Ferroviária e dos Lugares Públicos e de Serviços.

4 ª PAISAGEMConjunto Pátio km 108

Desde que foi inaugurada, em 1885, a ferrovia foi ocupando com suas instala-

ções uma grande área nessa região. Os limites dessa área estavam marcados pelos

trilhos do Ramal Curitiba-Paranaguá (hoje, Av. Pres. Affonso Camargo) e do Ramal

Curitiba-Ponta Grossa (hoje, Rua Conselheiro Laurindo), pela Rua Engenheiros Re-

bouças e pelo Rio Juvevê. Essa região era conhecida como campo do Schimidtling e

chegou a ser cogitada para receber a Estação, em 1880. Mas a comissão responsável

pela escolha descartou o local por estar sujeito às inundações dos rios Belém, Juvevê

e Capão Barbado, além de ficar, na época, muito distante do núcleo central da cidade

(RFFSA, 1985). Mas a ferrovia não deixou de aproveitá-lo. Lá foram assentadas as

linhas do pátio de manobras do km 108, o Depósito das Locomotivas e, mais tarde,

a Rodoferroviária.

Este conjunto de edificações estava no centro de outras paisagens ferroviárias

de Curitiba. Os ramais que vêm de Paranaguá, Ponta Grossa e Rio Branco do Sul

marcavam seu encontro nas linhas do pátio de manobras; grandes indústrias do Re-

bouças estavam a ele ligadas por desvios particulares; nas suas margens, floresceu

uma sociedade de ferroviários, com suas escolas, associações de classe, armazéns e

clubes recreativos. A Ponte Preta, vigiada apelo Edifício Teixeira Soares, era o liame

que atava a antiga Estação e seu entorno àquele conjunto.

4.1 O Viaduto do Capanema enquanto cruzamento

Hoje, as linhas de ferro que dão entrada ao antigo Pátio 108 descansam às

sombras do Viaduto do Capanema. Com seus 268 metros de extensão, apoiados em

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 56: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

55

PELO

S T

RIL

HO

S

Fragmentos de paisagens centrais da perspectiva do Viaduto do Capanema (sentido Rebou-

ças). No canto inferior esquerdo está o pátio de manobras do km 108; no canto superior

esquerdo, o Moinho Rebouças; ao lado do moinho, a Matte Leão. No canto inferior direito

está os fundos da Rodoferroviária; logo acima, a antiga Fábrica de Phospohoros. Cruzando

a paisagem é possível observar o Viaduto do Colorado.

Imagem frontal da Rodoferroviária ao lado da Garagem das Litorinas.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 57: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

56

PELO

S T

RIL

HO

S

cinco pilares e passando a uma altura de seis metros e meio em relação ao solo, o

viaduto se destaca na paisagem (Correios dos Ferroviários, 1969). Além dos trilhos,

o Viaduto do Capanema se sobrepõe às avenidas Pres. Affonso Camargo e Dr. Dario

Lopes do Santos. Mas, para além da sua grandiosidade como edificação, o que cha-

ma a atenção é o caráter emblemático do viaduto enquanto cruzamento entre ruas,

trilhos e passagens de pedestres.

Os cruzamentos fazem parte da paisagem ferroviária. Neles, os trens têm a

preferência, tanto por seu fluxo menos intenso quanto por suas proporções – são to-

neladas e mais toneladas de ferro que cruzam as ruas e avenidas da cidade. Por isso

ele não para, apenas diminui a velocidade. Veículos e pessoas, nos cruzamentos de

nível, é que devem parar, olhar e escutar. O apito do trem soa repetidamente quando

ele se aproxima de cada cruzamento. É um som alto que recorta a paisagem sonora

da cidade.

O respeito às regras de trânsito nesses espaços é o que permite que trens,

pessoas e veículos em movimento se encontrem momentaneamente, se aproximem

fisicamente e estabeleçam uma relação, mesmo que efêmera, de vizinhança. Esse

encontro é, portanto, a proximidade sem o choque. Existe, no entanto, uma certa

tensão nos cruzamentos, pela potencialidade de colisão. E quanto maior o fluxo de

coisas que o perpassam, maior é esta tensão. Isso porque acidentes eventualmente

acontecem. Atropelamentos de animais, que cruzavam os trilhos nas áreas rurais de

Curitiba, eram tão comuns no passado como hoje são as colisões com os automó-

veis, e estão registrados nos relatórios da Rede. Além disso, a memória de antigos

moradores da região guarda algumas dessas fatalidades ocorridas nos trilhos. João

Lazzarotto, filho de ferroviário, que nasceu e que ainda trabalha nas imediações do

Capanema, lembra-se do atropelamento da charrete da Sra. Rosa Bordingnon, na

década de 1940. As cancelas instaladas pela RVPSC, alguns anos antes, não conse-

guiram evitar a colisão20, mas não houve vítimas fatais.

Com o crescimento da cidade e com o rápido desenvolvimento do transporte

rodoviário após a década de 1950, aumenta a preocupação da RFFSA com os cru-

zamentos em Curitiba. Antes da construção do Viaduto do Capanema, a Avenida

Centenário (hoje, Rua Ubaldino do Amaral) cruzava as linhas da ferrovia no mesmo

nível. Com o aumento do fluxo de veículos, a RFSSA instalou ali um sistema moder-

20 Informação presente no Relatório da Rede de 1936.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 58: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

57

PELO

S T

RIL

HO

S

Viaduto do Capanema (sentido Paranaguá-Curitiba).

Pátio de manobras visto do Viaduto do Colorado.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 59: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

58

PELO

S T

RIL

HO

S

no de sinalização ótica e acústica, em substituição às antigas cancelas. Na verdade,

essa medida era parte de um programa mais abrangente, que começava a sinalizar

as principais passagens de nível nos ramais Rio Branco, Paranaguá e Ponta Grossa

(RFFSA, 1962).

Mas, na década de 1960, a ferrovia começava a entrar em uma encruzilhada.

Antes, sinônimo da modernidade, ela pareceu incapaz de acompanhar a aceleração

do fluxo de mercadorias, pessoas e ideias no Brasil da segunda metade do século XX.

Em 1965, teve início o Plano Preliminar de Urbanismo de Curitiba. Com esse plano,

a cidade repensou seu destino de estrutura radial – marcado pelo plano Agache – e

desenvolveu em seu lugar uma proposta de linearização do crescimento, a partir de

eixos estruturais em direção norte-sul e leste-oeste. Para boa parte dos administra-

dores públicos e da elite empresarial de Curitiba, os extensos territórios ocupados

pela ferrovia em uma região central da cidade passam a representar uma barreira a

ser suplantada (DITTMAR e HARDT, 2006). O Viaduto do Capanema começou a ser

construído em 1969 para servir de ligação entre os bairros das regiões norte e sul

da cidade, tornando-se um importante acesso para quem quisesse alcançar a antiga

BR-116 (Linha Verde) e a BR-277 (Correios dos Ferroviários, nov. 1969). O viaduto,

ao transpor pelo alto o Pátio 108, é um marco no processo de desterritorialização da

ferrovia. Com ele, a cidade dá sinais de que vai avançar sobre as instalações ferrovi-

árias, que até então governavam soberanas naquela região.

4.2 Pátio de Manobras km 108

Onde é a Rodoferroviária era o Pátio 108. Dali é que saíam

todos os trens de carga. Entre a Estação Ferroviária e o

estádio Durival de Britto era tudo cheio de linhas. Os trens

de carga eram formados ali. Mas quando começaram fazer

a Rodoferroviária, todo o dia você via a mudança. (Sr.

Pimpão – engenheiro aposentado da Rede).

A ocupação do campo do Schimidtling pelas linhas de trem foi lenta, obede-

cendo às novas demandas do serviço ferroviário e às condições de investimento das

diferentes administrações dos caminhos de ferro. Em 1885, as manobras para mon-

tagem das composições eram feitas no pátio da própria Estação, mas com as inau-

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 60: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

59

PELO

S T

RIL

HO

S

gurações de novos ramais, como o de Ponta Grossa, em 1892, e o transporte cres-

cente de gente e mercadorias, o campo do Schimidtling foi cumprindo essa função.

Em 1915, durante a administração da Brasil Railway, já havia ali alguns desvios em

formato de semicírculo usados para manobrar as locomotivas (BELTRÃO e FRANCO,

1915). Na década de 1930, estava se consolidado o formato triangular das linhas do

pátio de manobras: pelo Ramal Curitiba-Paranaguá, um desvio iniciado no km 108

atravessava todo o terreno na diagonal, indo de encontro ao Ramal Curitiba-Ponta

Grossa, na altura da Av. Getúlio Vargas. Na junção dessas linhas, um novo desvio

ajudava a compor um triângulo de reversão para as locomotivas. Esse longo desvio

em diagonal do km 108 se subdividia em várias linhas paralelas, formando um pátio

de manobras, utilizado para compor trens de carga21.

Nas linhas paralelas, todos os dias dezenas de vagões aguardavam a vez de

serem arrastados pelo movimento frenético de pequenas locomotivas e de funcioná-

rios da rede, e engatados nas composições. Mas as atividades no Pátio 108 não se

restringiam apenas às manobras de locomotivas e vagões. Na década de 1940, as

crianças do bairro acompanhavam o embarque e o desembarque do gado em uma

seringa localizada em um dos desvios. E torciam pela fuga de um dos bois, para se

divertirem com a farra da captura, segundo o relato de João Lazzarotto. Esse desvio,

que terminava atrás do Estádio Durival Britto e Silva, foi utilizado mais tarde pelo

Serviço Rodoviário como um dos pontos para a carga e descarga de caminhões. Além

disso, no pátio foram construídos um barracão para o pessoal da via permanente,

um galpão de carpintaria, uma oficina de manutenção de carros de passageiros e

dezenas de casas para os operários, de acordo com os relatórios da Rede, entre 1934

e 1952. Foi construído, ainda, o imponente Depósito de Locomotivas, que hoje é a

Garagem das Litorinas.

4.3 Depósito das locomotivas/Garagem das litorinas

Tudo aquilo ali era o Depósito das Locomotivas. A locomotiva

chegava e fazia uma revisãozinha ali. Mas conserto era nas

oficinas. (João de Souza Albino – maquinista)

21 As composições com carros de passageiros continuariam a ser montadas no pátio da antiga Estação.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 61: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

60

PELO

S T

RIL

HO

S

Até 1942, as locomotivas eram recolhidas ao pátio da antiga Estação. Ficavam

em uma rotunda: uma construção peculiar, em forma de ferradura, onde estacio-

navam várias marias-fumaças lado a lado, com trilhos que desembocavam em uma

estrutura central, o que permitia girar a locomotiva em direção ao compartimento

reservado para ela. Naquele ano, a que existia em Curitiba começou a ser demolida

(RVPSC, 1942). Para substituí-la, iniciou-se a construção, em regime de empreitada,

do moderno Depósito de Locomotivas, localizado no Pátio 108. Essa obra foi cons-

truída na administração do superintendente Cel. Durival Britto e Silva, assim como as

Oficinas. E, guardadas as devidas proporções, acabou por compartilhar com estas as

grandes dimensões e o uso de certas técnicas construtivas. A edificação foi projetada

para ter 60 x 45 metros. Com três vãos de 15 metros cada um, a cobertura foi feita

com laje impermeabilizada. Sua estrutura é de concreto armado, com fundações em

estacas pré-moldadas. No seu interior, quatro valas foram construídas para limpeza

e manutenção das locomotivas. A obra também foi dotada de escritórios, armazém

e ferramentaria (RVPSC, 1944). Em 1947 ela estava praticamente pronta. As linhas

de acesso atravessavam o depósito e seguiam nos dois sentidos. De um lado, se en-

contravam com as linhas em diagonal do km 108, cruzando uma ponte sobre o Rio

Ivo. Na frente, comunicavam-se com o Ramal Curitiba-Paranaguá22. Hoje é utilizada

como garagem e local para reparos das litorinas e carros de passageiros de uma das

concessionárias da via férrea. Além de servir de abrigo para a memória ferroviária,

acolhendo o acervo da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF).

4.4 Rodoferroviária

Em 1880 era notória a disposição das autoridades municipais de Curitiba em

favorecer a construção dos caminhos de ferro, confiando aos itinerários dos trens o

destino da própria cidade. Com a década de 1960, os sinais apareceram trocados.

Para realizar estudos e atender às novas orientações do Plano Diretor de Curitiba,

em 1965, uma comissão de engenheiros foi designada pela RFFSA. Presidida pelo Sr.

22 A ligação do Depósito de Locomotivas com o Ramal Curitiba-Paranaguá, e esse próprio ramal, em toda a extensão do km 108 até a Ponte Preta, foram retirados ou desativados com as obras de ampliação das avenidas Pres. Affonso Camargo e Sete de Setembro.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 62: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

61

PELO

S T

RIL

HO

S

Garagem das Litorinas.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 63: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

62

PELO

S T

RIL

HO

S

Euro Brandão, essa comissão elaborou um influente relatório, intitulado Instalações

Ferroviárias em Curitiba (1965). Era a hora de a Rede se pôr à disposição das de-

mandas da municipalidade. Já com 400 mil pessoas vivendo em Curitiba, a comissão

concluiu que a antiga Estação “[…] é incompatível com o desenvolvimento vertiginoso

registrado nas últimas décadas e constitui, entre outros motivos, entrave ao melho-

ramento urbanístico, econômico e populacional da cidade” (idem). Além disso, o Pá-

tio de Manobras do km 108 já não atendia às necessidades crescentes das operações

de carga da Rede23. Sua conformação triangular impedia a utilização adequada da

área total do terreno, formando “uma área grande, com mau aspecto e sem possibili-

dade de tratamento urbanístico ou aproveitamento ferroviário” (idem). O Pátio do km

108 também não poderia ser ampliado sem graves entraves para manobras e para o

tráfego da cidade.

As conclusões dessa comissão são radicais, recomendando a política de “terra

arrasada”. O crescimento da cidade já não comportava o tráfego de trens de carga

e por isso era preciso fechar os ramais Curitiba-Ponta Grossa e Rio Branco. Em um

novo Ramal Curitiba-Ponta Grossa, contornando o perímetro urbano, seria construído

um moderno pátio para as operações de carga24. Apenas a linha Curitiba-Paranaguá

deveria permanecer para atender aos trens de passageiros, mas agora operando em

um novo terminal ferroviário, que seria construído no Pátio do km 108. Com essa me-

dida, a intenção era abrir os terrenos mais centrais da Rede ao transporte rodoviário.

Esse plano sugeria a retirada da Ponte Preta, para facilitar a circulação de veículos na

Rua João Negrão; e a abertura das ruas Barão do Rio Branco, Conselheiro Laurindo,

Mariano Torres, Dr. Faivre e General Carneiro: todas elas cortando e fracionando os

terrenos e edificações da Rede. As despesas com as novas instalações ferroviárias

seriam cobertas com o loteamento e a venda desses imóveis centrais da Rede, in-

cluindo a antiga Estação.

Em 1968 avançam as negociações da prefeitura com a Rede, já orientadas

pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC). No dia 25 de

23 Em 1949, começava a construção da Estrada de Ferro Central do Paraná, que expandiria a malha ferroviária até o norte do estado, principal região produtora de café (RFFSA, 1985).24 Sobre os ramais, as propostas da comissão foram parcialmente aplicadas. O ramal do antigo traçado Curitiba-Ponta Grossa foi substituído em 1977 pela variante Pinhais, que passa ao lado do Rio Iguaçu. Esse novo ramal recebeu um moderno pátio para as operações de carga: o Pátio Iguaçu (DITTMAR e HARDT, 2006). O Ramal Rio Branco, no entanto, permanece em operação.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 64: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

63

PELO

S T

RIL

HO

S

março de 1969, o presidente da RFFSA, General Antônio Andrade Araújo e o prefeito

municipal de Curitiba, Omar Sabbag, firmaram o convênio para a construção da “Es-

tação Rodoferroviária de Curitiba” (RFFSA, 1985). A RFFSA cederia o terreno do Pátio

do km 108, e a construção ficaria a cargo da prefeitura, que precisava de uma nova

rodoviária, já que as instalações do Guadalupe estavam deficitárias. A construção do

Viaduto do Capanema fez parte dessas negociações.

Com o convênio firmado entre a prefeitura e o IPPUC, em 1969, tem início o

processo para a construção da Rodoferroviária, com pretensões futurísticas: ela seria

a primeira no país a integrar, em um mesmo terminal, os transportes rodoviário e

ferroviário de passageiros. A nova Estação seria inaugurada no dia 13 de novembro

de 1972, com um projeto assinado pelo arquiteto Rubens Meister, importante cria-

dor de outros grandes espaços públicos da cidade, como o Teatro Guaíra e o prédio

da Prefeitura Municipal de Curitiba. Contratado pelo prefeito Omar Sabbag, Meister

deu mostras da sua capacidade para projetar uma “estrutura simples, usando telhas

de cimento-amianto e grandes vãos que o programa solicitava” (SUTIL e GNOATO,

2005: 79). No setor rodoviário, “um detalhe construtivo chama atenção na concep-

ção estética da obra: o pilar que ‘torce’ de lado, na relação do apoio no piso e na

junção com a viga superior” (idem: 79 e 80)25. Já os pilares do setor ferroviário,

apesar de em proporções menores, também têm seu encanto: lembram trilhos. Uma

longa plataforma principal foi projetada para o embarque e desembarque dos trens

de passageiros com destino ao litoral. Hoje, o espaço recebe a animação colorida dos

turistas com suas sorridentes máquinas fotográficas, mochilas e óculos escuros. Em

frente, uma plataforma menor perdeu seu uso original. Lá desembarcavam os operá-

rios dos trens de subúrbio, com seus passos rápidos e pontuais e com suas marmitas

e preocupações a tiracolo, em direção ao trabalho.

Chama atenção, na paisagem, as dimensões acanhadas da edificação do setor

ferroviário em relação ao rodoviário. Essa característica é sintomática. A nova es-

tação ferroviária ganha linhas modernas e funcionais com o novo desenho da gare.

Mas, agora, pelas mãos da Prefeitura Municipal de Curitiba e não por iniciativa da

Rede. Os trens já não tracionam a modernidade. A Rodoferroviária é a materialização

25 Mas alterações na execução do projeto, feitas pela administração municipal posterior, como o fechamento de passagens inferiores e a construção de novas escadas de acesso e passarelas, além da ampliação equivocada das áreas destinadas ao comércio, traíram a funcionalidade do desenho original, levando o arquiteto a protestar nos jornais.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 65: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

64

PELO

S T

RIL

HO

S

Rodoferroviária de Curitiba: espaços de uso ferroviário.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 66: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

65

PELO

S T

RIL

HO

S

disso. As diferenças dos espaços reservados aos seus setores é a expressão da cen-

tralidade ocupada agora pelas rodovias, no transporte de passageiros.

O relatório Instalações Ferroviárias era a admissão de que, no quadro urbano,

a preferência seria dada ao sistema rodoviário. As áreas que estavam reservadas à

ferrovia seriam transpassadas em nome do desenvolvimento da cidade. Na década

de 1980 o Viaduto do Colorado atravessa o Pátio 108, tornando-se outra via de liga-

ção da cidade no sentido norte-sul. Na década de 1990 o antigo Ramal Curitiba-Ponta

Grossa é retirado e a Rua Conselheiro Laurindo ganha seus contornos atuais. Terre-

nos foram repassados à iniciativa privada para a RFSSA pagar dívidas trabalhistas

surgidas com o processo de privatização (YAMAWAKI e HARDT, 2008). A Rua Dr. Dá-

rio Lopes dos Santos, uma continuação da Getúlio Vargas, corta os terrenos da Rede

no sentido leste-oeste, obrigando a retirada de alguns desvios, incluindo a oficina de

manutenção de carros de passageiros e algumas casas de funcionários, isolando de

vez a Vila Ferroviária e o Estádio Durival Britto e Silva do terreno do antigo Pátio do

km 108.

5ª PAISAGEMCircuito Desvios Particulares

Longos muros e grandes galpões, pontuados por chaminés. A formação dessa

paisagem fabril, que caracteriza o Bairro Rebouças, esteve intimamente ligada às

instalações ferroviárias que havia na região. A construção da Estrada de Ferro do

Paraná, tão desejada pelas elites políticas e econômicas locais como uma solução

para o isolamento da cidade em relação ao litoral, serviu, em especial, para escoar a

crescente produção ervateira para os centros consumidores do Rio da Prata. O trans-

porte do mate foi a principal atividade da linha férrea até as primeiras décadas do

século XX, junto com a madeira26. O primeiro surto de industrialização no estado, no

final do século XIX, coincide com esse desenvolvimento da economia da erva-mate

e da madeira, e com a intensificação da imigração. As primeiras fábricas estavam

relacionadas com as atividades de beneficiamento ou de transformação daquelas

26 O transporte da erva-mate e de madeira começa a ser ultrapassado pelo do café na década de 1930 (KROETZ: 1985,

p. 185). Hoje, predominam o transporte de grãos (soja, em particular) e de cimento.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 67: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

66

PELO

S T

RIL

HO

S

matérias-primas (OLIVEIRA, 2001: 25).

A ferrovia facilitou os negócios dessa industrialização pioneira. Suas linhas

permitiam o transporte das matérias-primas e do maquinário para as unidades fa-

bris e a condução dos seus produtos finais até o Porto de Paranaguá. Muitas dessas

empresas, próximas aos trilhos do trem, contavam com desvios particulares e eram

proprietárias dos vagões que carregavam seu material.

Na ocasião da construção dos caminhos de ferro, em 1880, os engenhos de

erva-mate de Curitiba estavam localizados no quarteirão do Mato Grosso (atual Rua

Comendador Araújo, no Bairro Batel). A produção desses engenhos alcançava os ar-

mazéns da Estação Ferroviária através do serviço de bondes de mulas, instalado em

1887. Mas a partir de 1892, com a inauguração do ramal para Ponta Grossa – que

ligava Curitiba às regiões do interior do estado – as margens daquela linha, na região

dos bairros Rebouças e Portão, começaram a receber instalações industriais mais

modernas, com seus desvios ferroviários.

O jornalista Ernesto Senna (1900), em viagem pelo estado para a inauguração

da ferrovia São Paulo-Rio Grande, em 1899, não esconde a surpresa com uma dessas

fábricas pioneiras:

Na rua João Negrão, acha-se installada em grande edificio, construido expressamente para esse

fim e que ainda agora está sendo augmentado, a importantissima fabrica de phosphoros de páo,

dos Srs. Eisenback & Hurlemann, com o titulo de Fabrica Paranaense de Phosphoros de Segurança.

[…] Machinas as mais curiosas e mais aperfeiçoadas ahi se encontram, occupando a fabrica 600

operarios, entre homens, mulheres e crianças e possuindo diversas officinas, como de carpinteiro,

latoeiro, ferreiro e marcineiro. (SENNA, 1900: 34)

A opção da Fábrica Paranaense de Phosphoros de Segurança (hoje, Swedish

Match) pela localização no Bairro Rebouças era estratégica: ficava ao lado da linha

Curitiba-Ponta Grossa, que trazia do interior as toras e o material de consumo para

a fábrica. Ainda hoje, ao lado de seu terreno, sobre uma ciclovia e um pequeno gra-

mado que acompanha os muros da fábrica, é possível observar alguns rastros dessa

linha férrea.

A ocupação da região do Rebouças a partir dessas primeiras fábricas, arma-

zéns e residências, determinada pela proximidade com a Estação Ferroviária e com

seus ramais, encontrou apoio nas administrações municipais. Na primeira década do

século XX, a prefeitura da cidade vai investir na infraestrutura da região do Rebou-

ças, com o calçamento e o alinhamento das ruas, com a retificação do Rio Belém e

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 68: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

67

PELO

S T

RIL

HO

S

Desvios (IPPUC, 1972). Fábrica Paranaense de Phosphoros de Segurança (1), Serviço de Subsistência da 5ª Região Militar (2), Moinhos Unidos Brasil-Mate e Leão Jr. (3), Leão Jr. e Moinho Paranaense Limitada (4), Fábrica de Compensados Duca (5), Desvio Novo (6), Estádio Durival de Britto (7), Moinho Anaconda (8).

Fábrica de Phosphoros de Segurança, fundada em 1895, atual Swedish Match.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 69: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

68

PELO

S T

RIL

HO

S

a canalização do Rio Ivo e com o estabelecimento de linhas de bondes elétricos (Bo-

letim informativo Casa Romário Martins, 2000). Aos poucos, o Rebouças passa a ser

um centro industrial, com a instalação de novas empresas, voltadas para o mercado

nacional e para a exportação: cervejarias, engenhos de erva-mate, madeireiras e

construtoras. Mas tais medidas também estimularam a presença de pequenas em-

presas familiares na região, com produção voltada para o consumo doméstico, como

tanoarias, olarias, serralherias, marcenarias, funilarias e barricarias.

Aproveitando essas facilidades, ali se instalou, em 1934, o Serviço de Sub-

sistência da 5a Região Militar (hoje, 5o Batalhão de Suprimento do Exécito) entre a

Rua João Negrão e o Ramal Curitiba-Ponta Grossa. O Serviço de Subsistência era

encarregado do abastecimento dos quartéis do Paraná e Santa Catarina. Alimentos,

forragem para animais de carga e montaria, fardamento, munição e medicamentos,

enviados pelos fornecedores, chegavam ao Batalhão e eram por ele distribuídos pela

via férrea. Um desvio exclusivo levava a locomotiva e os vagões para o interior do

quartel (idem). Na Conselheiro Laurindo, rua que hoje ocupa o espaço destinado às

linhas do trem, o muro do quartel vai recuando progressivamente em relação à cal-

çada, até chegar a um portão. Era por esse acesso que passava o antigo desvio.

Outra empresa que tinha seu desvio particular no Ramal Curitiba-Ponta Grossa

era a Moinhos Unidos Brasil-Mate, surgida da fusão das empresas ervateiras Tibagy e

Fontana, em 1934. A transformação da empresa em sociedade anônima, em 1943, deu

a ela a denominação atual de Fábricas Fontana S.A. Sua produção de erva-mate em

folhas torradas e moídas e em saquinhos era levada dali para as principais cidades do

país a partir de um desvio ferroviário que atravessava todo o pátio da fábrica.

No final da década de 1930, além dessas empresas citadas, contavam ainda

com trilhos exclusivos o Paiol de Pólvora e os depósitos das firmas Irmãos Matarazzo

e João Carvalho Oliveira. Entre as décadas de 1940 e 1960, essa lista vai se estender.

Em 1943, o Plano Agache acentua a vocação fabril do bairro – em sua vizinhança com

as linhas – indicando que as indústrias deveriam se concentrar ali, entre a Rua Ma-

rechal Floriano e o Rio Belém, formando o centro industrial de Curitiba. Nessa época,

novas fábricas reforçaram o mutualismo das instalações industriais com as linhas de

trem, inaugurado pela Fábrica Paranaense de Phosphoros de Segurança.

A empresa Leão Júnior e Cia. S.A. já experimentara a convivência com os tri-

lhos no Bairro Portão, na década de 1920. A firma, fundada por Agostinho Ermelino

de Leão, em 1901, edificou naquele bairro uma moderna fábrica, alimentada por um

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 70: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

69

PELO

S T

RIL

HO

S

5o Batalhão de Suprimentos, construído em 1934. À esquerda é possível observar a Ponte Preta.

Mate Real, antiga Moinhos Unidos Brasil-Mate.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 71: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

70

PELO

S T

RIL

HO

S

desvio ferroviário. E foi a proximidade com os trilhos o motivo de um desastre: em

1930 essas instalações foram destruídas por um incêndio provocado pela fagulha de

uma locomotiva a vapor (FENIANOS, 2000). Mas, apesar dos riscos, o trem ainda

era a melhor alternativa de transporte para escoar a produção. As novas e amplas

instalações da empresa, construídas no Bairro Rebouças, entre as ruas João Negrão,

Eng. Rebouças, Rockefeller e a Av. Getúlio Vargas,27 foram servidas por dois desvios

particulares. O primeiro era uma continuação da mesma linha que atendia às Fábri-

cas Fontana, e que chegava à Matte Leão na esquina da João Negrão com a Pres.

Getúlio Vargas. O segundo adentrava a empresa pela esquina da João Negrão com a

Engenheiros Rebouças.

Essa última linha, depois de atravessar todo o pátio da Matte Leão, também

era utilizada pela Moinho Paranaense Limitada, localizada do outro lado da Rua Piqui-

ri. A fábrica de farinha de trigo e agente dos biscoitos Aymoré, no Paraná, pertencia a

uma sociedade formada pela empresa Moinho Paulista e pelos donos da Matte Leão –

os senhores Agostinho Ermelino e Ivo Abreu de Leão. As atividades do Moinho foram

encerradas definitivamente com um incêndio, em 1942 (Boletim informativo Casa

Romário Martins, 2000). Hoje, o imponente e belo moinho é sede da Fundação Cultu-

ral de Curitiba e passou a ser conhecido como Moinho Rebouças. No pátio do moinho

estão bem preservados os trilhos do desvio, que apontam na direção da Matte Leão,

revelando a relação que existia entre as duas edificações.

Nas vizinhanças da Matte Leão estava a empresa madeireira Raul Suplicy de La-

cerda & Cia ou Fábrica de Compensados Duca. Inaugurada em 1935, também contava

com um desvio, que se projetava em direção às instalações da empresa na altura da

Rua João Negrão com a Brasílio Itiberê. O circuito dos desvios utilizados para opera-

ções de carga não se limita aos do Ramal Curitiba-Ponta Grossa. O Desvio Novo ficava

entre o Ramal Curitiba-Paranaguá e a Av. Sete de Setembro, já na altura da Ponte

Preta. O desvio fora construído para facilitar as atividades do recém- inaugurado Ser-

viço Rodoviário, no Edifício Teixeira Soares. Era “novo” porque surgiu depois do outro

desvio rodoviário nas imediações do Estádio Durival Britto e Silva. Não era um desvio

particular, mas era muito utilizado para atender aos armazéns que se localizavam nas

proximidades, como o do Açúcar Diana, na década de 1950. A empresa do Sr. Emílio

27 Um quarteirão inteiro da fábrica foi recentemente vendido para a Igreja Universal do Reino de Deus, que não tardou em colocar gigantescas placas informando que aquele local receberá suas futuras instalações.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 72: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

71

PELO

S T

RIL

HO

S Leão Júnior e Cia. Acima, fachada localizada na esquina da Rua Piquiri com a Avenida Presidente Getúlio Var-

gas. Abaixo, fachada localizada na esquina da Rua João Negrão com a Avenida Pres. Getúlio Vargas.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 73: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

72

PELO

S T

RIL

HO

S

Moinho Rebouças (vista da Rua Piquiri).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 74: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

73

PELO

S T

RIL

HO

S

Romani ocupava os galpões da Av. Visconde de Guarapuava, que hoje abrigam a

Previdência Social (depoimento do Sr. Pimpão).

Mais à frente, retornando ao km 108, um último desvio particular faz a ligação

entre a Anaconda Industrial & Agrícola de Cereais S.A. e a ferrovia. As instalações

dessa empresa, com seus silos monumentais se destacando na paisagem, foram con-

cluídas em 1961 (FENIANOS, 1996). Bem mais singelo, o desvio resiste ao tempo,

em toda a sua integridade.

Todos esses desvios colocavam a malha ferroviária a serviço de grandes empresas,

que com seus produtos, disputavam (e algumas ainda disputam) o mercado nacional e

internacional. A ligação da ferrovia com as empresas de grande capital parece reforçada,

hoje, pelos enormes trens de carga que correm os trilhos com alguns poucos produtos

agrícolas e minerais, invariavelmente. Mas é uma visão enganosa, principalmente se

levadas em conta as décadas anteriores ao desenvolvimento do transporte rodoviário.

Além das grandes cargas, o trem transportava também todos os tipos de miudezas.

Eram produtos agrícolas, como alfafa, batata, frutas, milho e mandioca; animais, como

bois, cavalos, porcos e galinhas; alimentos, como banha, toucinho e queijo; bebidas,

como cervejas, vinhos e aguardentes; materiais de construção, como areia, cal, telhas

e tijolos; produtos de primeira necessidade, como velas, lenha e calçados; e artigos de

luxo, além de automóveis e máquinas agrícolas (RVPSC, 1935: 50-55). As mercadorias

dos grandes e pequenos, sejam eles agricultores, comerciantes ou industriais, encon-

travam no trem o seu mais seguro e eficiente meio de transporte até a década de 1950,

pelo menos. Essa movimentação toda de mercadorias dava às estações, nas primeiras

décadas do século XX, o aspecto de um grande empório.

A paisagem do Rebouças foi possível graças à composição que uniu o desen-

volvimento de atividades industriais com incentivos públicos, em um lugar demarca-

do pelos trilhos do trem. A partir da década de 1960, no entanto, seus componentes

começaram a tomar novos rumos. Os produtos das indústrias foram atraídos pelo

transporte rodoviário, mais flexível e em expansão. O novo Plano Diretor, atento às

transformações do setor produtivo, levou as plantas fabris para a Cidade Industrial

de Curitiba (CIC); o Ramal Curitiba Ponta-Grossa e seus desvios particulares foram

desativados. A região do Rebouças passou por um processo de “abandono”. No final

da década de 1990 e início dos anos 2000, eram comuns (e em grande medida ainda

o são) narrativas sobre violência no bairro, associada às edificações vazias e à baixa

densidade populacional.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 75: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

74

PELO

S T

RIL

HO

S

Moinho Anaconda (vista sentido Curitiba-Paranaguá).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 76: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

75

PELO

S T

RIL

HO

S

O Bairro Rebouças, em Curitiba, não é para amadores. Há quem diga [...] que o local estacionou no

Plano Diretor de 1965 [...]. Algumas quadras, como as da Almirante Gonçalves, são tão pacatas que

dá para contar os paralelepípedos no meio da rua. Dali mesmo, contudo, ouve-se o ruído vindo do

encontro da João Negrão com a Getúlio Vargas e da Engenheiros Rebouças com a Iapó. […] A marca

mais forte do Rebouças, no entanto, é guardar quase intacta a arquitetura dos tempos em que ali

funcionava a Cidade Industrial de Curitiba. Sobram na redondeza paredões vigorosos e sombrios,

sob medida para despertar aquela pontinha de nostalgia [...] Quem anda pelo bairro – faça o teste

– sempre arruma um jeito de contar que já foi assaltado, ou que foi por pouco. Mas nada que roube

da região um título que já é seu há mais de três décadas – desde que a CIC foi inaugurada e levou

a chaminé da fábrica para bem longe: o Rebouças é por direito o Soho curitibano. (FERNANDES,

200828)

A tentativa de transformar o Rebouças no “Soho curitibano” está associada a

uma necessidade percebida (e/ou criada) pelos administradores públicos de efetivar

uma mudança de perfil do bairro. Já em 1975, a Lei de Zoneamento de Uso e Ocupa-

ção do Solo considerava a região como Setor Especial de Recuperação, estimulando

novos usos residenciais e comerciais nos espaços vazios deixados pelas fábricas e

pelas instalações da ferrovia. Em 2001, foi lançado o projeto Novo Rebouças, que

quer fazer da região um centro de lazer e cultura e um polo de formação profissional

e de desenvolvimento tecnológico.

6 ª PAISAGEMCircuito Sociedade Ferroviária: serviços, residências e espaços de lazer

Nós tínhamos 27 associações de ferroviários no Paraná e

Santa Catarina. Toda associação de ferroviários ocupava

uma casa ou um prédio qualquer, ou um terreno da Rede.

Tinha campo de futebol e churrasqueira. Os empregados

se reuniam, a família se reunia. (Sr. Saulo, engenheiro).

No entorno do Pátio 108, e dos ramais ferroviários, estão preservadas as

28 Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=734524&tit=Enquanto-o-SoHo-nao-vem. Acesso em: 28 ago. 2010.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 77: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

76

PELO

S T

RIL

HO

S

marcas de uma sociedade ferroviária que ultrapassam as edificações com relações

exclusivamente operacionais com a Rede. Era ao redor da linha férrea que seus fun-

cionários moravam, se reuniam, se divertiam e procuravam soluções para problemas

do dia a dia. Associações eram formadas com diferentes finalidades: previdenciárias,

sindicais, esportivas, culturais, assistencialistas. Em 1928, a ferrovia, sob a admi-

nistração da Brasil Railway, ocupava o posto de maior empresa do Estado, contando

com mais de 6 mil ferroviários espalhados em diferentes regiões (RVPSC, 1935). Há

uma profusão de associações – algumas mais frágeis, outras mais perenes – tanto

no Paraná quanto em Santa Catarina. A imensa maioria foi fruto da iniciativa par-

ticular dos trabalhadores da Rede. Em Curitiba, a União de Socorro e de Consumo

dos Ferroviários, a Caixa de Aposentadoria e Pensões dos Empregados da Estrada de

Ferro São Paulo-Rio Grande, os Sindicatos dos Operários e Empregados Ferroviários

do Paraná e o Clube Atlético Ferroviário estavam entre as associações mais atuantes,

associadas ou não à administração da Rede. Com a encampação da ferrovia, durante

o governo de Getúlio Vargas, começou a se conformar uma política de proteção aos

trabalhadores urbanos, e ao mesmo tempo, se colocar sob estrito controle do Estado

as organizações de classe, atraindo-as para um apoio difuso ao governo getulista

(FAUSTO, 2002). Assim, a RVPSC, que passa a administrar a ferrovia, começou a

tomar uma série de medidas de proteção social e de cooptação de algumas dessas

entidades. As ações sociais da Rede e dessas agremiações deram a sua contribuição

para a formação da paisagem ferroviária da cidade.

6.1 Espaços de assistência

6.1.1 Escola de Artes e Ofícios do Cajuru A União de Socorro e de Consumo dos Ferroviários tem sua origem na for-

mação de uma caixa de empréstimos, formada por funcionários da contabilidade do

almoxarifado em 14 de julho de 1923 (Correios dos Ferroviários, jan. 1950). Além

das atividades de empréstimos, a União manteve um armazém que fornecia produ-

tos para os funcionários da Rede, com as compras descontadas diretamente na folha

de pagamento. Durante o Estado Novo, em observação a dispositivos legais, essa

associação mudou sua razão social para Cooperativa dos Ferroviários Ltda. Foi essa

associação que fundou, em 10 de dezembro de 1933, a Escola de Artes e Ofícios do

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 78: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

77

PELO

S T

RIL

HO

S

Cajuru, voltada para os filhos e enteados dos ferroviários associados. Esta escola

oferecia formação primária e intermediária para as crianças, além de cursos de for-

mação profissional. Os garotos faziam cursos de mecânica, serralheria, marcenaria,

carpintaria e sapataria. As meninas se dedicavam ao trabalho com agulha, bordado

e costura. Os primeiros exames realizados pela escola datam de 15 de dezembro

de 1934. Entre os aprovados no curso primário, e com distinção, está o menino

Napoleão Lazzarotto (Correios dos Ferroviários, jan. 1935). Dificuldades financeiras

da associação levaram ao fechamento da escola, em janeiro de 1940 (Correios dos

Ferroviários, jan. 1950).

6.1.2 Hospital Central Ferroviário/Hospital Universitário Cajuru Durante a administração da RVPSC pelo Coronel Machado Lopes teve início

uma importante obra de assistência social aos ferroviários: a construção do Hos-

pital Central Ferroviário, o primeiro da Rede. O terreno era o mesmo onde ficava a

Escola de Artes e Ofícios, doado à RVPSC pela Cooperativa dos Ferroviários Ltda. No

dia 23 de dezembro de 1949, foi celebrado com o engenheiro Nival Faria Maranhão

o contrato para a construção do hospital. O projeto previa um prédio de três anda-

res, com cerca de 5.000 metros quadrados, repletos de modernos aparelhos e com

um amplo ambulatório. Os serviços de terraplanagem iniciaram-se em janeiro do

ano seguinte (Correios dos Ferroviários, jan. 1950). Em 1953, a comissão respon-

sável pela programação da visita do presidente Getúlio Vargas a Curitiba incluiu as

obras do Hospital Central Ferroviário na agenda do Presidente, para que “numa bre-

ve inspeção, visse o hospital que a Rede estava construindo com capacidade para

100 leitos destinados aos seus empregados e respectivos familiares. Será, senão

o maior, seguramente, o mais perfeito da cidade” (Correios dos Ferroviários, jan.

1953). Já aparelhado, o hospital começou a funcionar em 1955. Depois de passar

para a administração de uma associação de classe – a União dos Ferroviários do

Brasil, segundo o depoimento do Sr. Neri – o hospital foi vendido, durante o regime

militar, para a Pontifícia Universidade Católica do Paraná, tornando-se, em 1975, o

Hospital Universitário Cajuru.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 79: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

78

PELO

S T

RIL

HO

S

Hospital Universitário Cajuru.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 80: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

79

PELO

S T

RIL

HO

S

6.2 Vila Capanema

As casas eram da Rede, e residências, de ferroviários. Era

outro reduto ferroviário, como é o Cajuru, Vila Oficinas.

Tinha bastante ferroviário. (Neri Carvalho - diretoria da

UNIFER)

Em 1935, o Sr. Alexandre Gutierrez, superintendente da RPVSC na época,

demonstrou sua preocupação com a construção de casas para os funcionários, em

especial para as turmas da Via Permanente, responsáveis pela manutenção da via

férrea (RVPSC, 1935). Até a década de 1930, os ferroviários já vinham se estabe-

lecendo nas proximidades das linhas. Os funcionários de alto escalão procuravam

terrenos próximos à antiga Estação, em especial, na Av. Silva Jardim. Os operários da

Rede formavam pequenos núcleos de habitação em regiões mais afastadas do centro,

nas imediações do Pátio 108, que ajudam, hoje, a compor os bairros Capanema, Ca-

juru e Cristo Rei. Nos primórdios do período getulista, as reivindicações das entidades

de classe por moradias foram frequentes na revista Correios dos Ferroviários. O que

ajuda a entender a preocupação do Sr. Gutierrez. Porém, a construção de casas pela

própria Rede só ganhou impulso alguns anos mais tarde. A partir de 1937, a RVPSC

deu início à construção de casas para operários no Pátio de Curitiba. Era o princípio

daquilo que hoje é conhecido como Vila Capanema, um dos principais redutos ferro-

viários da cidade.

Ao longo do trecho final do Rio Juvevê, antes do deságue no Rio Belém e único trecho que aparece à

céu aberto, encontramos uma vila ferroviária, a Vila Capanema. A vila fica nas duas margens do rio,

que é transposto por duas pequenas pontes de madeira.

Esta região é uma antiga área alagadiça, que por este motivo foi escolhida para receber grandes

lotes, como a Estação Rodoferroviária, um estádio de futebol, uma subestação elétrica e grandes

indústrias.

A vila fica ao lado do Estádio Durival de Britto, antigo estádio do Clube Atlético Ferroviário, e foi

construída para servir como moradia de funcionários da antiga Rede Ferroviária. (PFC – Relatório

Paisagem Material)

A localização das casas remanescentes naquela área determinada assumiu um

aspecto diferente daquele que tinha na década de 1930. A distribuição das habitações

construídas pela própria Rede no Pátio 108 era bem mais difusa. Naquele período, as

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 81: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

80

PELO

S T

RIL

HO

S

Rio Juvevê na altura da Vila Capanema.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 82: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

81

PELO

S T

RIL

HO

S

Casas de alvenaria da Vila Capanema, localizadas na Rua Engenheiro Rebouças.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 83: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

82

PELO

S T

RIL

HO

S

residências ocupavam também o local onde seria construída a Rodoferroviária, mais

tarde. Havia um conjunto de casas alinhadas nas proximidades da Av. Capanema

(Av. Pres. Affonso Camargo), sob as sombras acolhedoras de algumas palmeiras ali

plantadas (HOERNER JUNIOR, 1989). Mas as mudanças no Pátio 108 alteraram aos

poucos essa distribuição. Em 1979, as casas se restringiam àquela região.

Nessa época, a Vila Capanema estava composta “por 68 lotes. Sendo 5 deles

na Rua Engenheiro Rebouças ocupados por casas de alvenaria ainda existentes, que

serviam a funcionários de maior função, e o restante eram casas de madeira” (PFC -

Relatório Paisagem Material).

Essa hierarquização das moradias é confirmada no relato do Sr. Portela, mo-

rador da Vila Capanema. Mecânico, trabalhava na manutenção de carros (como são

chamados os vagões de passageiros), no Pátio 108. As casas de alvenaria eram ocu-

padas pelos funcionários da administração, que trabalhavam nos escritórios do Edifí-

cio Teixeira Soares. É o próprio Sr. Portela que contabiliza a diminuição do número de

casas de operários. Na época em que foi morar na Vila, haviam “22 casas de madeira

e hoje, em 2010, são encontradas apenas 12” (idem). As enchentes periódicas do Rio

Juvevê, a fragilidade do material empregado, o abandono, a falta de manutenção e a

abertura de novas ruas contribuíram para a redução do número de residências. Tudo

isso somou-se para dar à vila o aspecto que tem hoje: A vila é composta por casas

de madeira dispostas isoladamente nos lotes, seguindo algumas tipologias arquitetô-

nicas que se repetem. A maior parte delas está em uso e encontra-se em mal estado

de conservação (idem).

A Rua Walter Marcquadt dá acesso ao interior da vila, onde se concentram boa

parte das casas preservadas. Embora esteja há alguns metros do Viaduto do Capane-

ma, o local apresenta uma paisagem completamente diferente da região de entorno.

Pouco se ouve do barulho dos carros e outros ruídos da cidade. Quase não se vê pré-

dios. O local é bastante arborizado, inclusive com algumas árvores frutíferas. É um

pequeno recanto verde em plena região central de Curitiba.

6.3 Espaços de lazer

6.3.1 Estádio Durival de Britto e Silva Na manhã do dia 24 de abril de 1955, centenas de ferroviários, em trajes de

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 84: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

83

PELO

S T

RIL

HO

S

Casas de madeira da Vila Capanema.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 85: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

84

PELO

S T

RIL

HO

S

domingo, caminhavam com seus familiares em direção ao Estádio Durival de Britto.

Iam participar da 2a Páscoa Coletiva dos Funcionários da RVPSC, uma das ativida-

des de confraternização promovida pela Rede. Uma banda de música composta por

ferroviários acompanhou o ato litúrgico. Depois da missa, veio a parte recreativa:

uma seleção de funcionários da administração desafiou o time das Oficinas para uma

animada partida de futebol. Dois a um para o pessoal do colarinho branco, que levou

a taça “Páscoa dos Ferroviários” (Correios dos Ferroviários, set. 1955: 08).

As origens do Estádio Durival de Britto remontam à formação de uma pequena

sociedade esportiva, composta por trabalhadores das oficinas da Rede. A associação

foi fundada em 12 de janeiro de 1930 e batizada de Clube Atlético Ferroviário (CAF)

(Correios dos Ferroviários, 1969). Inicialmente, os treinos aconteciam em um campo

situado entre as linhas do Pátio 108. Em 10 de setembro de 1931 o CAF inaugurou

sua sede própria, no número 849 da Rua Desembargador Westphalen. O time cres-

ceu e, carinhosamente apelidado de “Boca Negra”, consagrou-se campeão paranaen-

se nos anos 1937, 1938, 1944, 1948, 1950, 1965 e 1966, além de vencer o impor-

tante Campeonato do Centenário, em 1953. Em 1942, dirigentes do clube, políticos

e empresários locais começaram um movimento que levou à construção do estádio.

Entre os seus idealizadores, estão: Reinaldo Thá, dono de uma construtora; o Cel.

Durival de Britto, superintendente da Rede; o Sr. Heron Wanderlei, presidente do

Clube; além do Dr. Lineu do Amaral, Sr. Flávio Suplicy de Lacerda e Sr. Walter Scott

de Castro Veloso. Em 1945, a RVPSC fez doações significativas para a construção do

estádio, utilizando-se de recursos do fundo de melhoramentos (RVPSC, 1945). Parte

das arquibancadas ficaram prontas nesse mesmo ano. O projeto também previa a

construção de quadras de basquete, vôlei, tênis, bocha, boliche, pistas de atletismo,

piscinas de natação e de polo aquático, além de um auditório para apresentações

musicais. A preocupação da Rede era construir um espaço para o lazer e a confrater-

nização dos seus empregados (RVPSC, 1946).

Em 23 de janeiro de 1947 foi inaugurado o “Colosso do Capanema”, o terceiro

maior estádio do país, na época, que perdia em capacidade apenas para os estádios

do Pacaembu (SP) e São Januário (RJ), e que por isso foi escolhido para sediar alguns

jogos da Copa do Mundo em 1950. Mas com o processo de federalização das ferro-

vias, o CAF foi perdendo o apoio que recebia da RVPSC e o estádio viu esmorecer sua

estrita vinculação com a “Sociedade Ferroviária”. Em 1971, em meio a dificuldades

financeiras, o “Esquadrão de Aço” resolveu se unir ao Britânia e ao Palestra Itália,

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 86: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

85

PELO

S T

RIL

HO

S

Estádio Durival de Britto visto do Viaduto do Capanema.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 87: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

86

PELO

S T

RIL

HO

S

dois outros clubes de Curitiba, para dar origem ao Colorado29.

6.3.2 Vagão do Armistício Bem no início do Ramal Curitiba-Rio Branco, logo após cruzar a Av. Pres. Affon-

so Camargo, o trilho segue alguns metros entre dois muros altos. Dos trilhos, sobre

o muro do lado direito, é possível ver o telhado de uma pequena casa de madeira, a

poucos metros da linha. A construção está no terreno de um cartório. O responsável

pelo lugar é o Sr. João Lazzarotto, filho do ferroviário Isaac Lazzarotto e irmão do co-

nhecido artista paranaense Poty Lazzarotto. A edificação de madeira, extremamente

bem conservada, abrigava o famoso Vagão do Armistício.

No início do século XX, aproveitando a proximidade dos trilhos e o despontar

de núcleos urbanos nas imediações do Pátio 108, em boa parte formados por fer-

roviários, várias casas comerciais e pequenas indústrias foram se estabelecendo no

entorno, especialmente na Av. Capanema (Av. Pres. Affonso Camargo). Entre eles,

o curtume de Albano Boutin, a britadeira da família Greca, o comércio de João Vello

e os grandes armazéns atacadistas Bassi e Cazzetta. No Rebouças, os armazéns da

Economat, da União de Socorro e de Consumo dos Ferroviários e da Cooperativa 26

de Outubro, em diferentes épocas, forneciam mercadorias aos trabalhadores da Rede

com as facilidades do desconto em folha.

Menos pretensioso, um pequeno armazém de secos e molhados foi construído

no começo do Ramal Curitiba-Rio Branco, propriedade de um guarda-freios e chefe

de trem aposentado, Sr. Isaac Lazzarotto. Entre os clientes do Sr. Isaac estavam os

oficiais do 5o Batalhão de Suprimentos. Daí surgiu a ideia de servir refeições, aprovei-

tando uma estrebaria nos fundos do armazém (HOERNER JÚNIOR, 1989). O singelo

restaurante, que começou a funcionar em 1937, fez sucesso. Passou a ser frequen-

tado por políticos da época, como o interventor do estado Manoel Ribas, e artistas

de renome nacional, como o cantor e compositor Sílvio Caldas. O apelido de Vagão

veio mais tarde: “[…] Isaac Lazzarotto fez forrar o teto, abaulando-o, como se fora na

verdade um vagão de trem. Com esta providência, para melhor caracterizar a casa,

contou com a criatividade do filho [...] Desenhos sugestivos. Estrada de ferro, trem,

vagão, maquinista...”30 (idem: 118).

29 Disponível em: http://mavalem.sites.uol.com.br/pr/Curitiba4.htm. Acesso em: 03 jun. 2010. 30 O Vagão do Armistício teve suas dimensões reduzidas, depois de desativado.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 88: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

87

PELO

S T

RIL

HO

S

Vagão do Armistício.

Vagão do Armistício (parte interna).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 89: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

88

PELO

S T

RIL

HO

S

7 ª PAISAGEMConjunto Central da Rede

Sentado no banco da plataforma da Estação, o menino,

comendo pão com gemada ou com açúcar, aguardava a

chegada do trem. A sua alma se enchia de um sentimento

que não lhe era possível compreender, quando ouvia ao

longe o apitar demorado da locomotiva. […] Maquinista,

estrada de ferro, locomotiva, vagões, cargas de madeira

e de animais, fumaça, vapor d’água, lenha, plataforma,

tudo aquilo, para êle, se resumia na emoção primaria

da chegada do trem. O menino era eu. (Osvaldo Pilotto,

Correios dos Ferroviários, mai. 1952: 07)

As transformações ocorridas na ferrovia a partir das orientações da comissão

responsável por atender às especificações do novo Plano Diretor, em 1965, tiveram

um forte impacto sobre as edificações centrais da Rede, como a antiga Estação, o

Edifício Teixeira Soares e a Ponte Preta. A retirada dos trilhos que ligavam essas

edificações com a ferrovia pôs termo às suas funções primeiras. A antiga Estação re-

cebeu novos usos ao ser transformada em shopping center. Mas arquitetonicamente

manteve sua ligação com a paisagem ferroviária – em parte pelo espaço tradicional

que ocupa na paisagem local, em parte pelo novo imaginário coletivo de estação,

evocado pelas edificações do shopping, mas cujas dimensões e arquitetura já não

correspondem às características anteriores. A Ponte Preta e o Edifício Teixeira Soares

permanecem sem uso definido, e se tornaram uma espécie entreato do drama urba-

no, aguardando a definição de novas ocupações.

7.1 Ponte Seca/Ponte Preta

A modernidade ganhou contornos surreais para muitos populares em Curitiba,

com a construção da “Ponte Seca” – o primeiro viaduto de Curitiba. Até aí, a cidade

só conhecia duas pontes rudimentares, usadas para a passagem de pedestres, carro-

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 90: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

89

PELO

S T

RIL

HO

S

No canto inferior esquerdo temos a Ponte Preta; ao lado, o Edifício Teixeira Soares; e no canto superior direi-

to, a antiga Estação (Shopping Estação).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 91: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

90

PELO

S T

RIL

HO

S

ças, cavaleiros e tropas. Uma sobre o Rio Belém, na altura do passeio público. Outra,

na Praça Zacarias, sobre o Rio Ivo. Com um misto de descrédito e assombramento,

meninos e adultos corriam para ver a novidade, e com chacotas e zombarias, moles-

tavam os operários, perguntando se eles sabiam para onde tinha ido o rio daquela

ponte. Construída para evitar a passagem de gado e tropas em frente à Estação, e já

prevendo o crescimento da cidade, a Ponte Seca foi inaugurada pelo primeiro trem a

chegar a Curitiba, no dia 10 de dezembro de 1884. Era uma locomotiva de serviço,

que trazia material que faltava para o acabamento da Estação. Desde a sua constru-

ção, a Ponte Seca (ou Ponte Preta) foi uma das sensações da cidade, um ponto de

referência para muitos moradores.

Aos domingos e feriados as famílias saíam a passeio e obrigatoriamente iam à rua João Negrão

para ver a Ponte Preta servir de passagem aos trens da Rede Viação. Sua construção de ferro para

unir duas extremidades provocava ruído quando os trens por ali passavam. O viaduto da rua João

Negrão é muito útil ao tráfego da cidade e é o único que possuímos. As crianças principalmente eram

assíduas frequentadoras e adoravam ver o tráfego dos trens com os seus apitos estridentes. Todos

nós que tivemos a ventura de conhecê-la recordamos essas passagens com saudade. Hoje em seu

lugar existe outra, pintada de cinza, mais moderna e silenciosa. Mas nós não esquecemos a querida

ponte antiga que nos traz suaves recordações de meninice. (BISCAIA, 1996: 30 e 31)

A nova ponte, edificada em 1944, acabou ganhando, um pouco mais tarde, a

mesma cor e nome da antiga – e ao que parece, o mesmo lugar na memória afeti-

va da cidade. Na década de 1960, frente à ameaça de remoção – já que sua altura

era “insuficiente para o tráfego atual, sendo frequentes os esbarros de cargas altas

de caminhões” (Instalações Ferroviárias, 1965: 02) – a Ponte Preta angariou apoio

suficiente para ser tombada pelo IPHAN/PR, em 1976. Com a retirada dos trilhos, a

ponte perdeu sua função – ultrapassada pela modernidade –, mas acabou renovada

em seus traços surreais, como uma ligação entre espaços que não mais existem.

7.2 Edifício Teixeira Soares

Na década de 1940, um moderno edifício, recém-inaugurado, pode exibir suas

linhas elegantes na Rua João Negrão, ao lado da Ponte Preta. O entra e sai de ca-

minhões, pintados com o símbolo da RVPSC era um aviso de que ali funcionava o

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 92: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

91

PELO

S T

RIL

HO

S

Ponte Preta (RVPSC, 1944): construída em 1944 pela United States Steel Company. Uma placa informa:

“Viaduto João Negrão – Construído na Administração do Coronel Durival Britto e Silva pelo Engenheiro Oscar

Machado da Costa – RVPSC – 1944”.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 93: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

92

PELO

S T

RIL

HO

S

Serviço Rodoviário e Comercial da Rede. Hoje, Edifício Teixeira Soares.

Tem estilo arquitetônico de grande influência Art Déco. Funcionou com esta estrutura até a extinção

da Rede, em 1997. Foi repassado ao patrimônio da União, e hoje pertence à Universidade Federal do

Paraná. O edifício passou por diversas reformas e ampliações, uma delas promoveu o surgimento de

uma torre de 5 pavimentos na qual temos a presença de um relógio, elemento marcante na paisagem

urbana. (PFC – Relatório Paisagem Material)

Em meados da década de 1930, a construção de rodovias no Paraná – como a

Estrada da Ribeira ligando Curitiba a São Paulo – e a intensificação do uso de cami-

nhões representavam uma primeira ameaça à hegemonia do transporte ferroviário. A

RVPSC, no entanto, respondeu bem ao desafio lançado. Em 1935, a Rede inaugurava

seu próprio serviço rodoviário de entrega de cargas “porta a porta”, nas estradas que

iam para São Paulo, Joinville e Araucária (RVPSC, 1935). No começo, a expedição e o

recebimento de mercadorias por parte do serviço rodoviário eram feitos na Estação.

Já a garagem e a oficina dos caminhões ficavam em um prédio alugado na Rua Dr.

Muricy. A administração do Serviço Rodoviário, por sua vez, funcionava junto aos ou-

tros escritórios da Rede, no Edifício Moreira Garcez. O crescimento das encomendas

e a inauguração do transporte de passageiros com o uso de automotrizes (litorinas),

na via férrea, passaram a exigir da Rede a construção de edifícios próprios para essas

atividades.

A construção do Teixeira Soares foi rápida. Na ocasião de sua inauguração, o

edifício contava com apenas dois pavimentos. Nos fundos, com acesso pelo pátio da

antiga Estação, eram erguidos os galpões das Oficinas das Litorinas. Além do Serviço

Rodoviário, ali também funcionou a impressora, a estação central de rádio e a oficina

eletrotécnica da Rede. Em 1945 teve início a ampliação do edifício, que ganhou mais

alguns andares. Os escritórios da administração, que estavam no Moreira Garcez,

para lá foram transferidos com a conclusão das obras, em 1947.

No Teixeira Soares funcionava a área de recursos humanos, o departamento de transportes, o

departamento de via permanente, o departamento de obras, o departamento de finanças, o centro de

processamento de dados, o departamento de material, o departamento comercial e o departamento

rodoferroviário, que era aqui, na garagem. (Neri Carvalho – diretoria UNIFER, que até este ano ficava

sediada no Teixeira Soares)

Através do Decreto Municipal 1033, de 25 de outubro de 2001, o prédio passou

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 94: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

93

PELO

S T

RIL

HO

S

Edifício Teixeira Soares: finalizado em dezembro de 1942 pela construtora Irmãos Thá. Foto acima

é da década de 1940 (RVPSC, 1942). Abaixo, atual configuração do edifício.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 95: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

94

PELO

S T

RIL

HO

S

a ser considerado Setor Especial de Preservação da Paisagem Ferroviária de Curitiba.

Atualmente, o Teixeira Soares está prestes a entrar em reformas para abrigar cur-

sos da Universidade Federal do Paraná. Enquanto espera por seus novos usos, suas

marquises solidárias protegem homens e mulheres que, em um ponto da Rua João

Negrão, aguardam os ônibus do transporte coletivo para retornar para suas casas.

7.3 Antiga Estação/Shopping Estação

Na Estação do caminho de ferro o movimento era

consideravel; muita gente, muitas carruagens. Em frente

uma rua muito larga para subir. Era a parte nova da

cidade, ha uns doze annos coberta de pantanos. (Tobias

Monteiro, in: RPVSC, 1935: 10)

Em alguns pontos da região central, uma estrutura monumental pode ser apre-

ciada a certa distância: uma mistura de referências cinematográficas de grandiosas

e luxuosas estações de dimensões gigantescas, com estruturas de vidro e metal e

com a preservação de uma edificação mais antiga. “Localizado dentro de uma antiga

Estação Ferroviária no Bairro Rebouças em Curitiba, o Shopping Estação teve todo o

seu projeto realizado para manter a concepção original da antiga construção, inte-

grando o antigo e o novo com perfeição”, informa o site do shopping31. Sua imponen-

te edificação acaba por se sobrepor a antiga Estação Ferroviária, ao mesmo tempo

em que busca evocá-la em sua arquitetura e decoração. A antiga Estação tem suas

instalações relativamente bem preservadas, conservando, em seu interior, o Museu

Ferroviário.

A Estação foi um marco fundamental na ocupação urbana da região. Em 1880,

a escolha do local estava a cargo de uma comissão criada pelo Comendador Ferrucci,

responsável pela construção da ferrovia. A comissão era composta por engenheiros

indicados pela Câmara Municipal e pela Caminhos de Ferro, para melhor conciliar os

interesses da empresa concessionária com os da municipalidade. Eram duas as loca-

lidades possíveis para edificar a Estação: o campo do Schimidtling e o local onde, de

31 Disponível em: http://www.shoppingestacao.com/institucional/index.aspx?CodPag=5. Aces-so em: 25 ago. 2010.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 96: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

95

PELO

S T

RIL

HO

S

Estação vista da Avenida Sete de Setembro (sentido Rodoferroviária-Estação).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 97: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

96

PELO

S T

RIL

HO

S

fato, ela seria construída. O campo do Schimidtling foi descartado por estar sujeito

às inundações e pela distância maior em relação a qualquer núcleo urbano.

O local escolhido era um potreiro, distante cerca de 800 metros da Rua do

Comércio (hoje, Marechal Deodoro), que, com suas casas, assinalava na época os

limites do quadro urbano de Curitiba. “De sorte que há vasto espaço, no qual a cida-

de poderá desenvolver-se regularmente, antes de surgir necessidade de prolongar

as ruas além da estação” (RFFSA, 1985: 184). Outra vantagem do local escolhido

era sua maior proximidade com o quarteirão do Mato Grosso (hoje, Rua Comenda-

dor Araújo) onde estavam assentados os engenhos de erva-mate. Ferrucci deixou a

cargo de Cuniberti o desenho da Estação, traçando, no entanto, algumas orientações

gerais: o projeto deveria conter um edifício de passageiros, um recinto coberto e uma

plataforma descoberta para as mercadorias, um reservatório de água, um abrigo

para duas locomotivas e um hangar para abrigar de oito a dez carros de passageiros.

Para esse trabalho, Cuniberti deveria consultar os modelos sugeridos por Opermann,

em seu tratado sobre estradas de ferro, e particularmente, sobre os das estações da

linha Bolonha-Ancona-Roma, muito cômodos e de um custo moderado.

A Estação projetada por Cuniberti era uma construção baixa, “com três por-

tadas sobre a escadaria” que se lançava sobre a futura Rua Sete de Setembro, “en-

cimada por modesta cobertura”, tendo um relógio que se destaca na fachada, com

um armazém de carga dos dois lados e, “na extremidade deste, três dependências

para escritório” (GRAF, 2008: 27). Em 1883, o edifício já estava quase pronto, sem

os trilhos e cercado por pastos e pequenas propriedades rurais. Para ligar o quadro

urbano com a Estação, a Rua da Liberdade (hoje, Barão do Rio Branco) seria aberta

logo em seguida.

No dia 02 de fevereiro de 1885, um trem inaugural, com várias autoridades do

Império e da Província, fez o percurso de Paranaguá a Curitiba:

Às 19 horas, debaixo de intenso foguetório, a composição adentrava na estação ferroviária da rua

Barão do Rio Branco, sendo recebida com grande alegria do povo. Respeitamos o gesto de uma parte

da população de Curitiba, que, em outro local e tendo à frente a Câmara de Vereadores, protestava

contra tal inauguração. Temiam o desemprego dos carroceiros em atividade de transporte de cargas,

principalmente erva-mate, na estrada da Graciosa! (RFFSA, 1985: 56)

Em 1894, com o aumento do volume transportado e com a ampliação da es-

trada de ferro até Ponta Grossa e Rio Negro, o edifício da Estação passa por uma

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 98: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

97

PELO

S T

RIL

HO

S

Estação na década de 1930, na ocasião do início da prestação de serviços rodoviários pela Rede (RVPSC,

1935).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 99: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

98

PELO

S T

RIL

HO

S

grande reforma. Seguindo o traçado de Cuniberti, mais um andar foi erguido, sobre

as mesmas paredes e fundações da planta original, permanecendo o relógio no topo

da fachada. Não existe registro sobre a autoria dessa reforma, que deu ao edifício

ferroviário seu estilo Renascença. Há, no entanto, algumas pesquisas que indicam

autoria do engenheiro Rudolph Lange, pai do pintor Lange de Morretes, pela seme-

lhança com “a bela residência que ele construiu para a família na cidade de Morretes”.

(Boletim informativo Casa Romário Martins, 1981: 09).

Já sob a administração da Brasil Railway, a Estação e suas oficinas passaram por

melhorias, principalmente após uma grande explosão, em 1913, que destruiu parte

dos armazéns, fez vítimas e atingiu os prédios em volta (Correios dos Ferroviários,

1963). Em 1918, com a transferência de alguns escritórios da Rede para outro lugar,

a Estação passou por mais uma reforma, ganhando um salão nobre. As salas do pavi-

mento superior eram ocupadas pelos escritórios operacionais, como o dos grafistas, do

movimento e do telégrafo. E a Estação ganhou sua configuração atual:

Implantada no alinhamento predial, é um edifício de dois pavimentos em alvenaria de tijolos com

cobertura duas águas, telhas francesas e platibanda abalaustrada. Apresenta uma marquise ao longo

da fachada do antigo setor de cargas, com mãos francesas e forro em madeira, bem como suas

esquadrias originais em madeira. A fachada interna apresenta uma estrutura metálica formada por

colunas cilíndricas e braços em T, que suportam a cobertura da plataforma. (PFC – Relatório Paisagem

Material)

Com a encampação da Rede, em 1930, as oficinas no pátio da Estação foram

ampliadas com a construção de galpões para ferramentaria, carpintaria e pintura,

abrigo para carros de passageiros e uma nova extensão do galpão para reparos de

vagões (Correios dos Ferroviários, 1968). Mas, era cada vez mais evidente que, tanto

as oficinas quanto a própria Estação estavam alcançando seus limites. Naquela pla-

taforma, mercadorias e pessoas se misturavam para aguardar a partida dos trens de

carga ou de passageiros, quando não mistos, para destinos tão diferentes quanto Rio

Branco do Sul, Ponta Grossa e cidades de Santa Catarina e São Paulo. Os vagões e as

locomotivas disputavam espaço com um amontoado de galpões das oficinas. Passa-

dos mais de cinquenta anos de sua construção, a Estação não podia mais comportar

as demandas de uma cidade em franco desenvolvimento:

Ao atual prédio da gare da Rua Rio Branco cabe uma denominação, apesar dos esforços da administração

em lhe dar bom aspecto e certo conforto: um pardieiro. […] Nossa capital era uma aldeia com apenas

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 100: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

99

PELO

S T

RIL

HO

S

Fachada do setor de cargas da Estação Ferroviária (fotografia: Gabriel Gallarza).

Estação Ferroviária: plataforma de embarque de passageiros (Acervo: Sr. Leocádio).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 101: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

100

PELO

S T

RIL

HO

S

uns 10.000 habitantes, quando hoje conta com mais de 150.000. Tinha umas 100 casas comerciais,

hoje, mais de 3.000. Possuia 20 fábricas primitivas, hoje mais de 1.000. […] Tudo apertado, tudo

constrito, tudo reclamando arejamento. Tocará ao nosso conterraneo os aplausos da posteridade pela

iniciativa da construção de novo edifício. (Correios dos Ferroviários, fev. 1937: 170)

Com a construção da Vila Oficinas, os antigos galpões e garagens foram sendo

desativados e demolidos. As operações com os trens de carga passaram a ser rea-

lizadas no Pátio 108. Na década de 1990, o lugar das antigas oficinas era ocupado

por dois campos de futebol. Mas o projeto de uma nova Estação teria que esperar.

Em 1965, o Relatório das Instalações Ferroviárias chegava a conclusões conhecidas

sobre a condição da antiga Estação em continuar atendendo à cidade:

A estação de Curitiba, velho edifício, construído a 70 anos é atualmente incompatível com a cidade

atual, que não só atingiu elevado gráu de desenvolvimento urbanístico, econômico e de população,

como continua com ininterrupta aceleração dêsse ritmo de progresso. As dependências são exíguas

e antiquadas. O público fica comprimido em minúsculas salas de espera e em uma única plataforma,

não raro sentado sôbre as próprias bagagens”. (Instalações Ferroviárias, 1965: 01)

No dia 13 de novembro de 1972, com a inauguração da nova Rodoferroviária, a

antiga Estação recebeu seus últimos vagões do serviço regular. Em 1974, um projeto

para sua demolição tramitou na Assembleia Legislativa Estadual (DITTMAR e HARDT,

2006). Mas a Estação sobreviveu definitivamente ao ser inscrita, em 1976, junta-

mente com a Ponte Preta, no livro de tombamento do IPHAN. Em 1982 foi inaugurado

o Museu Ferroviário e, ainda nesse período, trens turísticos com destino à cidade da

Lapa e Antonina partiam de sua plataforma aos domingos. No início dos anos 1990,

os trilhos foram definitivamente desativados. Estava desfeita a ligação daquele lugar

com a malha da ferrovia. Restaram apenas os trilhos em frente à plataforma e rastros

ao lado do Teixeira Soares – e as lembranças de quem viveu uma época em que a Es-

tação vivia agitada por locomotivas e passageiros. Como a do Sr. Pimpão, engenheiro

que se recorda, com certa graça, do movimento e dos sons da partida de um trem:

“atenção senhores passageiros, dentro de dois minutos, partirá o trem para Paranaguá. Senhores

passageiros, boa viagem”. E tocava uma musiquinha32. O agente “péim, péim”, no sino, e o chefe

de trem, aqui “fiu, fiu’ com o assobio, com o apito. E o maquinista dava com o apito e lá saia a

maria-fumaça: “tché, tché, tché...”

32 Na década de 1970, a música era o Cisne Branco.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 102: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

101

PELO

S T

RIL

HO

S

Maquete da Estação feita em 1930 (Acervo: Museu Ferroviário de Curitiba).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 103: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

102

PELO

S T

RIL

HO

S

8ª PAISAGEMCircuito Prédios e lugares Públicos e de Serviço

Enfim surgiu Curityba. Havia no panorama algo a lembrar

São Paulo. A cidade despontava no dorso das collinas; as

torres da cathedral surgiam de vez em vez, dominando a

paisagem, e a casaria elevava-se pouco a pouco, manchando

de branco a verdura do quadro. Curityba parecia maior

do que eu esperava. […] Na Estação do caminho de ferro

o movimento era consideravel; muita gente, muitas

carruagens. Em frente uma rua muito larga para subir.

Era a parte nova da cidade, ha uns doze annos coberta de

pantanos. O centro principal ficava no alto, do lado opposto;

mas a estrada veiu ter alli e as construções conquistaram

o terreno, entre ellas o palacio do Governo e o edificio do

Congresso. (Tobias Monteio, in RVPSC, 1935: 10)

Vários viajantes que chegavam a Curitiba no começo do século XX deixaram

registros do grande progresso que a cidade experimentava desde a conclusão da

ferrovia. Em 1880, o local escolhido para a construção da Estação podia surpreender

pelo seu isolamento em relação ao quadro urbano. Era preciso estender a acanhada

Rua Leitner, que se encerrava na altura da Marechal Deodoro, até a entrada do edifí-

cio, fazendo a ligação da Estação com o centro. O projeto de abertura dessa via, que

passaria a se chamar Rua da Liberdade (atual Rua Barão do Rio Branco), apresen-

tava os signos do que se entendia como modernidade: a avenida deveria ser ampla,

arborizada, ladeada por dois largos na entrada da Estação, lembrando os boulevards

franceses. Junto com mercadorias e passageiros, essas novas concepções de plane-

jamento urbano também chegavam à cidade pelos trilhos do trem.

A construção da ferrovia trouxe para Curitiba operários, técnicos, engenheiros

e arquitetos de uma Europa entusiasmada pela ideia de progresso. Esses profissio-

nais carregavam em suas bagagens “propostas arquitetônicas consoantes ao que se

fazia nos grandes centros urbanos” (SUTIL, 1996: 33). A mudança nos padrões de

construção de casas e prédios comerciais da cidade já se fazia sentir, desde a che-

gada dos primeiros grupos de imigrantes em Curitiba a partir da segunda metade do

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 104: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

103

PELO

S T

RIL

HO

S

século XIX. A ferrovia acelerou ainda mais esse processo. A cidade, com seu casario

colonial de taipa, pedras e ruas estreitas, viu surgir novas edificações: sobrados de

alvenaria, que usavam ferro nos gradis e nas estruturas internas, cobertos por telhas

alemãs. O ecletismo e o neo-classicismo deram à cidade um novo colorido. As ruas

agora tinham como modelo o projeto de reformulação urbanística de Paris, feito pelo

Barão de Hausmann, em 1850. A Rua da Liberdade (atual Barão do Rio Branco) é um

dos frutos desse novo modo de pensar e construir a cidade.

O engenheiro contratado pela Câmara Municipal para orçar a obra, em 1883,

foi o italiano Ernesto Guaíta, que também havia trabalhado na ferrovia. Dois anos

depois, o mesmo engenheiro apresentou o projeto de toda a malha urbana das ime-

diações, desde os fundos da Estação até a Rua do Comércio (Rua Mal. Deodoro). O

plano de urbanização, em formato de grade, se preocupava com a simetria das ruas,

orientando a Câmara a realizar algumas desapropriações para preservar a estética

urbana (idem: 48). Mais tarde, esse mesmo engenheiro também deixou sua assina-

tura em importantes edifícios da região, como o Palácio do Congresso e o Palácio do

Governo.

“Com a chegada da ferrovia, Curitiba cresceria em uma década mais do que

nos dois séculos anteriores de sua história” (idem: 47). Em 1905, a Rua da Liberdade

já havia se tornado um dos principais logradouros da cidade, junto com a Rua XV de

Novembro e a Praça Tiradentes. Nessa época a legislação municipal determinou que

seriam liberados para construção, nesses lugares, apenas sobrados de alvenaria com

dois ou três pavimentos. É essa nova cidade que causa surpresa a Nestor Victor:

Olha como a cidade está mais solene. Emiliano Pernetta dizia-me, na noite da chegada, da primeira

vez, indicando os prédios de um lado e de outro, enquanto o carro atravessava, primeiro, a rua

da Liberdade, depois a rua Quinze de Novembro […]. Efetivamente, desde a estação […] eu vinha

observando a notável mudança que fizera a nossa capital de há dezessete anos para cá. [...]

Os pobres e os sapos vão indo de cada vez para mais longe, dizia-me Emiliano Pernetta, com a

perversidade de quem não quer perder uma boa frase, tanto mais quando, realmente, ela bem

resumia a situação. Está aí o motivo principal, acrescentou, porque não achas mais na cidade esse

cheiro campesino de que falas, e de que eu me recordo: com os pobres vão-se distanciando também

as culturas. (VITOR, 1996: 82 e 91)

Impulsionada pelo movimento da ferrovia, a Rua da Liberdade já estava intei-

ramente compactada e havia se tornado a rua do poder, abrigando o Palácio do Con-

gresso e do Governo. Nas imediações da Estação, a Praça Eufrásio Correia recebia as

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 105: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

104

PELO

S T

RIL

HO

S

instalações de armazéns, casas comerciais e hotéis, para atender ao fluxo de pessoas

e mercadorias. A expansão da cidade na direção do Rebouças confirma a centralidade

ocupada pela Estação na paisagem urbana da primeira metade do século XX (YAMA-

WAKI, 2006: 154).

8.1 linhas de Bondes

No tempo das tropas, carroças e estradas de terra, os trilhos representavam

o que havia de mais moderno em termos de mobilidade. Assim, como uma extensão

dos caminhos de ferro dentro do quadro urbano, as linhas de bonde foram instaladas

pouco depois, na cidade. A garagem desses veículos se localizava na esquina das

ruas Barão do Rio Branco e Visconde de Guarapuava, em frente ao Palácio do Con-

gresso (hoje Câmara Municipal). No princípio, eram os bondinhos de mula. O serviço

foi inaugurado em 1887 e, além de passageiros, transportava também barricas de

erva-mate dos engenhos localizados no Bairro Batel para os depósitos da Estação

Ferroviária. Em 1913, começaram a operar os bondes elétricos, que conectavam o

centro da cidade com as regiões do Batel, Seminário, Guabirotuba, Juvevê, Bacacheri

e Portão (MARCASSA, 1989), até serem substituídos definitivamente pelas linhas de

ônibus, em 1952. Mas a antiga garagem dos bondes permaneceu, registrando parte

dessa história:

É composta por galpões de alvenaria com coberturas de duas águas, de estruturas e telhas metálicas,

bem como algumas telhas transparentes para iluminação natural. Com o desativamento das linhas

de bondes a edificação recebeu diversos usos comerciais, e foi por muito tempo subutilizada. Hoje

funciona como estacionamento da Câmara Municipal de Vereadores, que fica em frente. (PFC –

Relatório Paisagem Material)

No pátio do atual estacionamento é possível observar fragmentos dos trilhos

dos bondes que ainda emergem sob sua pavimentação.

8.2 Prédios e lugares Públicos

Com a construção da Estação, vários órgãos do governo e centros de serviços

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 106: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

105

PELO

S T

RIL

HO

S

Garagem de Bonde.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 107: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

106

PELO

S T

RIL

HO

S

importantes se instalaram nas imediações da Praça Eufrásio Correia e Bairro Rebou-

ças até a década de 1950. As oficinas da Rede, com seus artífices, trouxeram proce-

dimentos técnicos desconhecidos na cidade e passaram a formar uma mão de obra

especializada. As indústrias ali localizadas também começaram a exigir uma maior

qualificação profissional dos trabalhadores. Para atender a essa demanda, foram ins-

taladas no Rebouças a Escola de Aprendizes e Artífices, em 1936 (que dará origem

ao futuro CEFET) e o SENAI, em 1948. Organizações militares e empresas concessio-

nárias de serviço público também escolheram esse bairro para suas sedes, como o

Regimento de Segurança da Polícia Militar, o 5o Batalhão de Suprimentos do Exército

e a Empresa Sanitária de Curitiba. A Companhia Força e Luz tinha seus escritórios na

Praça Eufrásio Correia, na década de 1940, em um edifício hoje ocupado pela Câmara

Municipal. Na Rua da Liberdade estavam o Palácio do Governo, o Quartel General do

5o Distrito Militar e, mais acima, nas proximidades da Rua Riachuelo, o Paço Municipal

e o Edifício da Mútua Predial. Mais próximo da Estação, o que se destaca na paisa-

gem é um antigo prédio, com elementos greco-romanos e capitéis coríntios, ocupado

pela Câmara de Vereadores de Curitiba, desde 1957. Era o Palácio do Congresso do

Estado (Assembleia Legislativa). Esse prédio foi construído entre 1891 e 1895, com

projeto assinado por Ernesto Guaíta. Seus arcos da entrada e das portas, junto com

os elementos decorativos na cimalha e na fachada, dão ao conjunto certa leveza, em

comparação às pesadas construções que serviam de hotéis e casas comerciais, e que

ficam em frente à Praça Eufrásio Correia (SUTIL, 1996).

8.3 Casas Comerciais e Hotéis

O ramo de hotelaria estava ali (na praça Eufrásio Correia)

concentrado: Hotel Tassi, Hotel Roma, Hotel do Comércio,

Hotel Paraná, Hotel Curitiba, Hotel Guarani. Destes, resta

ainda, modestamente, o Novo Hotel Roma. (MARCASSA,

1989: 23)

Nas proximidades das avenidas Sete de Setembro e Pres. Affonso Camargo,

hotéis e pensões, de diversos tamanhos e categorias, foram construídos, em dife-

rentes épocas, para atender aos viajantes que chegavam a Curitiba pela Estação Ro-

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 108: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

107

PELO

S T

RIL

HO

S

Câmara Municipal de Vereadores.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 109: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

108

PELO

S T

RIL

HO

S

doferroviária, pelo aeroporto Affonso Penna ou por seus carros particulares. Os mais

antigos estabelecimentos desse tipo na região surgiram junto com a Estação, na Pra-

ça Eufrásio Correia. Desses, ainda está em funcionamento o Hotel Roma. Restaurado

recentemente, opera na qualidade de hostel, relacionado ao sistema de Albergues

da Juventude. Trata-se de um “sobrado de alvenaria de tijolo, com três pavimentos,

com sacadas no segundo pavimento; implantado no alinhamento predial e colado às

divisas laterais” (PFC – Relatório Paisagem Material).

Imediatamente ao lado do Hotel Roma, encontra-se o antigo Hotel Tassi, em

processo de restauro. Trata-se de uma edificação de esquina com três pavimentos,

de alvenaria de tijolo; implantado no alinhamento predial e colado às divisas late-

rais. Originariamente essa casa era térrea, no início deste século foi ampliada com

a sobreposição de mais um andar, passando a abrigar o hotel. É um exemplar de

arquitetura eclética.” (idem).

Essas edificações são consideradas patrimônios históricos e foram tombadas,

junto com a Praça Eufrásio Correia, em 1985, ano em que se comemorou o centená-

rio de inauguração da Estrada de Ferro do Paraná.

Outra edificação ligada a essa paisagem ferroviária é a casa Emílio Romani. A

empresa de Emílio Romani era uma das que mais se utilizava do transporte ferroviário.

Na década de 1960, suas instalações próximas a Av. Mal. Floriano e ao antigo Ramal

Curitiba-Ponta Grossa contavam com um desvio particular para escoar sua produção.

Já a casa, que leva o nome do empresário, foi construída em torno de 1880:

É um sobrado localizado em frente à Praça Eufrásio Correia. Foi a antiga sede da Companhia Francesa

de Estrada de Ferro. Com arquitetura em estilo neoclássico, possui galeria porticada de seis arcos,

com terraço no andar superior. A cobertura, em quatro águas, é ocultada por platibanda. Os vãos

de portas e janelas são em arcos com bandeiras envidraçadas. Possui suas esquadrias originais de

madeira e está totalmente restaurada. O imóvel foi comprado em 1911 por Emílio Romani, proprietário

dos Produtos Diana, o que acabou dando o nome popular para a arquitetura. (idem)

Além dos hotéis, grandes armazéns e casas comerciais, havia o varejo dos pe-

quenos estabelecimentos, que atendiam às necessidades miúdas daqueles que pas-

savam pela Estação Ferroviária. Ainda no final do séc. XIX, comerciantes como Cus-

tódio de Melo e Francisco Serrador construíram, na Praça Eufrásio Correia, quiosques

que vendiam biscoitos, doces, cafés, cervejas, charutos, cigarros e jornais (Boletim

informativo Casa Romário Martins, 2006). Hoje, a lanchonete Ferroviária, da década

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 110: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

109

PELO

S T

RIL

HO

S

Hotel Roma.

Hotel Tassi.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 111: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

110

PELO

S T

RIL

HO

S

Casa Emílio Romani.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 112: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

111

PELO

S T

RIL

HO

S

Lanchonete Ferroviário, que atende aos frequentadores da região desde a década de 1960, embora com

diferentes “direções”.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 113: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

112

PELO

S T

RIL

HO

S

de 1950, localizada na Av. Sete de Setembro, guarda a lembrança desses singelos

estabelecimentos e de sua clientela, formada por passageiros, frequentadores da

região e ferroviários.

8.4 largo da Estação/Praça Eufrásio Correia

As poucas pessoas que passam pela praça não fazem

ideia de que esse agradável recanto da cidade, no fim do

século passado e início deste, foi o “coração de Curitiba”.

(MARCASSA, 1989: 23)

A proposta inicial de urbanização da região incluía a formação de dois largos,

separados pela Rua da Liberdade e cobrindo toda a fachada da Estação. Mas apenas

um dos largos foi executado, dando origem a atual Praça Eufrásio Correia. No come-

ço, não passava de um terreno com mato baixo, ainda bastante irregular. A própria

Companhia Caminhos de Ferro começou a aplainar o largo, para facilitar o acesso

à Estação. Em 1888 ganhou o nome atual, mas as melhorias só vieram em 1903,

quando se tornou cenário de uma exposição que comemorava o cinquentenário da

instalação da província. O largo foi macadamizado e recebeu seu primeiro ajardina-

mento. A administração municipal de Cândido de Abreu, entre 1913 e 1916, deu à

praça seu desenho atual e a fonte com suas estátuas trazidas da França (Boletim in-

formativo Casa Romário Martins, 2006). Mais tarde, a escultura O Semeador e alguns

bustos vão completar a praça, considerada uma das atrações turísticas da cidade na

primeira metade do século XX. Porta de entrada de muitos visitantes que chegavam

a Curitiba, o largo era “o coração da cidade”, principalmente nos momentos em que a

Estação se enfeitava para grandes recepções. Desfiles cívicos foram organizados para

recepcionar os presidentes da República em visita ao estado; a população se aglo-

merou nas calçadas para saldar, emocionada, os pracinhas que retornavam da Itália;

por ali desfilou Didi Caillet, a representante do estado no badalado concurso de miss

Brasil de 1929; o Tiro Rio Branco, comandado pelo Coronel João Gualberto, marchou

na Rua da Liberdade, depois de participar das cerimônias fúnebres do Barão do Rio

Branco, no Rio de Janeiro. Nessa ocasião, a rua mudou de nome para homenagear

o diplomata. Até a década de 1950, a Estação e a praça eram uma festa. Mas o fim

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 114: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

113

PELO

S T

RIL

HO

S

Praça Eufrásio Correia da perspectiva do Shopping Estação.

Praça Eufrásio Correia.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 115: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

114

PELO

S T

RIL

HO

S

dos serviços de bondes, a transferência dos espaços de poder para o Centro Cívico

e a construção da Rodoferroviária desviaram do largo a centralidade que ele havia

ocupado.

Hoje a praça, bastante arborizada, parece inspirar em quem nela passa um

certo prazer melancólico.

Algumas árvores impressionam pelo grande porte e promovem um ambiente sombreado e muito

agradável ao estar e à vista, como os plátanos, cujas folhagens ganham, no outono, diversos tons

que vão do laranja ao castanho. Não só por sua beleza, mas também por sua importância histórica,

a Praça Eufrásio Correia foi tomada pelo Patrimônio Estadual no ano de 1985, quando do centenário

da Estação Ferroviária. (PFC – Relatório Paisagem Material)

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 116: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

115

PELO

S T

RIL

HO

S

I I I – ESTRADA DE FERRO NORTE DO PARANÁ/RAMAl CURITIBA–RIO BRANCO

Quatro horas da madrugada. É bom que o Pedro Neves já

tenha acordado […] e lá se vai, marmita embaixo do braço,

para a Estação de Rio Branco do Sul, onde dentro de trinta

minutos vai sair o trem do dia.

Passagens, passagens – o chefe do trem, o Ferreira,

acordou mais cêdo ainda e vai recolhendo os bilhetes dos

operários, que está na hora do expresso partir para a

sua viagem diária. E lá vai o trem. Em Rio Branco do Sul,

junto com o Pedro das Neves devem ter embarcado mais

uns quarenta trabalhadores, o que não chegou a lotar um

vagão, cuja capacidade é de 44 sentados. Daqui a pouco

os três vão estar lotadinhos e vai ter mais gente em pé do

que sentada […] E lá vai o trem. São seis e vinte e, agora

é que está nascendo o sol. Nasce o sol, o trem chega à

Estação Ferroviária de Curitiba”. (Correios dos Ferroviários,

jun. 1968: 09)

O Ramal Curitiba-Rio Branco (ou Estrada de Ferro Norte do Paraná) tem início

no Pátio 108, sob o Viaduto do Capanema e segue em direção à região norte da cida-

de. Seu traçado está ligado à história das primeiras colônias formadas por imigrantes

no Vale do Ribeira. O auge da produção ervateira, em meados do século XIX, ocupava

praticamente toda a mão de obra local, levando à falta de braços para a produção de

gêneros de subsistência e ao encarecimento do custo de vida. A solução encontrada

pela elite paranaense foi a constituição de núcleos coloniais formados por mão de

obra imigrante, dedicados à produção de alimentos.

Assim, um contingente considerável de brasileiros, franceses, ingleses, ita-

lianos, alemães, espanhóis e suecos é levado a constituir a Colônia de Assungui,

distante cerca de 110 quilômetros ao norte de Curitiba. As terras eram férteis, mas a

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 117: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

116

PELO

S T

RIL

HO

S

ligação com núcleos urbanos importantes como Curitiba era precária. Existia apenas

um caminho de tropas para Curitiba, conhecido como Estrada do Assungui (atual

Rua Mateus Leme), inadequada para escoar a produção de alimentos dos colonos.

Diante dessas dificuldades, muitos daqueles imigrantes abandonaram suas terras,

retornando para seus países ou se estabelecendo em outros lugares. Mas um núcleo

permaneceu e deu origem ao município de Cerro Azul (WACHOWICZ, 2002).

Pensando em resolver a questão do isolamento de Cerro Azul e dotá-la de ade-

quada infraestrutura, o governo do estado projetou a construção da Estrada de Ferro

Norte do Paraná, já em 1876. Mas a estrada demorou a sair do papel33. Em 1906, o Sr.

Gaston de Cerjat, ex-diretor da Compagnie Générale des Chemins de Fèr Brèsiliens, as-

sumiu a construção da estrada, cujo traçado, além de atender às colônias de imigran-

tes e atravessar áreas de extração de madeira e erva-mate, deveria passar também

por uma região calcária, fornecedora de mármore branco, cal e cimento. A primeira

seção da obra contava com 43 quilômetros e foi inaugurada em 1o de março de 1909.

Ligava Curitiba à Rocinha (atual Rio Branco do Sul), e contava com estações em

Itaperussu, Tranqueira, Almirante Tamandaré e Cachoeira (KROETZ, 1985). O ramal

tem uma sinuosidade impressionante, acompanhando o relevo da região.

Esta ferrovia passou pelas mãos da concessionária Brasil Railway, foi encampa-

da nos anos 1930 e finalmente incorporada à RVPSC. Nenhuma dessas gestões levou

a cabo o projeto inicial que pretendia ligar Curitiba a Assungui. A característica mais

marcante dessa ferrovia nas primeiras décadas de sua existência foi seu constante

e crescente déficit: ela foi sustentada ora pelo Estado, por causa dos compromissos

assumidos com a garantia de juros, ora pelo lucro de outros ramais da Rede. Somen-

te com o desenvolvimento de uma grande indústria de cimento em Rio Branco do

Sul, a partir de 1950, o transporte ferroviário nesta via começou a cobrir seus custos

(idem).

Dentro dos limites do município de Curitiba, esse caminho de ferro cruzava

dois importantes acessos ao litoral: o Caminho de Itupava e a Estrada da Graciosa.

33 O Estado do Paraná enfrentou dificuldades em atrair empresas interessadas no empreen-dimento. A ferrovia projetada era uma concessão estadual, com o objetivo principal de servir a uma experiência de colonização voltada para o abastecimento do mercado interno. Essas características parecem ter colocado em dúvida a viabilidade econômica dessa via férrea, em comparação com outras ferrovias que serviam ao mercado externo, como a própria Estrada de Ferro do Paraná.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 118: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

117

PELO

S T

RIL

HO

S

Mais ao norte, se encontrava e seguia junto com uma vertente do Caminho do Assun-

gui (atual Anita Garibaldi). Nesse trajeto, a ferrovia fortaleceu a existência de núcleos

populacionais, dedicados principalmente à agricultura de subsistência. Alguns desses

núcleos eram formados por imigrantes vindos de Assungui e deram origem a duas

importantes colônias, cortadas pela linha do trem: a Colônia Argelina e a Colônia do

Abranches.34

Assim, durante muito tempo, os trens que percorriam essa linha transporta-

vam não apenas cal, cimento, madeira e algum mate, mas principalmente milho,

porco, aves e outros produtos vindos das colônias localizadas próximas à estrada.

Pensando na distribuição desses produtos, mas também no transporte de pessoas,

os núcleos populacionais mais importantes dentro de Curitiba ganharam algumas

paradas de trem, como a Colônia Argelina, o Estribo Ahú e, mais à frente, a parada

do 21 ou Santa Efigênia.

As chácaras ao longo da estrada de ferro, nas décadas de 1950 e 1960, pas-

saram por um processo de urbanização, com loteamentos despontando em todo

o trecho, dando origem aos atuais bairros do Cristo Rei, Alto da XV, Hugo Lange,

Cabral, Boa Vista, Barreirinha e Cachoeira. Com mais pessoas morando ao longo da

via, o transporte de mercadorias foi se separando do transporte de passageiros. Os

trens mistos foram substituídos pelos trens de carga e pelos trens expressos, exclu-

sivos para passageiros. Na década de 1950, o trem expresso vai se chamar trem de

subúrbio, que encerrou suas atividades em 12 de janeiro de 1991. A linha perdia sua

função social, motivo mesmo de sua construção. Hoje, ainda em funcionamento, o

ramal é praticamente um grande desvio particular para as operações de transporte

de uma grande empresa de cimento. Atravessando, dentro dos limites da cidade, re-

giões habitadas por pessoas de diferentes classes sociais, o trem não conta mais com

a simpatia de muitos moradores. A substituição das marias-fumaças por locomotivas

diesel-elétricas, na década de 1950, multiplicou o poder de tração e o tamanho das

composições. No mesmo passo, o som cheio e agradável dos apitos foi substituído

pela potência ensurdecedora das buzinas pneumáticas. Sem relação com as comu-

nidades que cruza, mais pesado e barulhento, o trem neste ramal se apresenta hoje

cortando a paisagem social de forma agressiva. Mas na memória de muitos morado-

res permanece as lembranças do caráter social da estrada, tanto por ter transportado

34 É interessante destacar que, enquanto esse ramal sublinhava ocupações já existentes, a es-trada de ferro que liga Curitiba a Paranaguá viabilizou o surgimento de núcleos urbanos.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 119: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

118

PELO

S T

RIL

HO

S

trabalhadores, quanto por ter carregado os produtos de subsistência dos produtores

locais – o que lhe rendeu o simpático apelido de “ferrovia das galinhas”35.

9ª PAISAGEMTrajeto Cristo Rei – Alto da XV

É ao lado do Vagão do Armistício que essa estrada desponta. Ao deixar a Ro-

doferroviária, o trilho segue ladeado por dois muros altos e pichados por cerca de

trezentos metros. Estes muros fazem as vezes de um portal. Enquanto na região

da Rodoferroviária a cidade pode ser sentida como metrópole, devido à altura dos

prédios e ao ruído de carros e ônibus, esta passagem acaba por conduzir a espaços

e paisagens que proporcionam uma outra vivência da cidade. A diferença é notável

logo ao final daqueles dois muros: o ruído dos carros é substituído pelo canto de

pássaros, há pouco movimento de veículos nas ruas que ladeiam os trilhos (estes se

concentram nas ruas que o cruzam), há muito verde (árvores, gramados, jardins), e

predominam casas ao invés de grandes edifícios. Como no interior da Vila Capanema,

em alguns passos e poucos instantes o centro da cidade ficou para trás.

Nas imediações do trilho, nas ruas Francisco Alves Guimarães, do Herval, bem

como na própria Zélia Moura dos Santos, antigas casas de madeira se destacam na

paisagem. Dispostas em amplos e arborizados terrenos cercados por muros baixos,

algumas das casas estão em excelente estado de conservação e indicam nossa entrada

em uma área predominantemente residencial. Essas casas são reminiscências do início

da ocupação da região, que hoje corresponde ao Bairro Cristo Rei. O lugar era repleto

de chácaras que cultivavam frutas, verduras e criavam animais. Com a construção da

ferrovia a região atraiu novos moradores, que compraram lotes nas imediações. Além

das chácaras, casas de madeira com grandes quintais tornaram-se comuns na paisa-

gem. A presença dos ferroviários nesse primeiro núcleo de povoamento do Cristo Rei é

notória. Em 1918, funcionários da Rede e outros moradores fundam aqui um clube, a

União Beneficente e Recreativa Vila Morgenau. O primeiro presidente a dirigir a socie-

dade Morgenau foi um maquinista, o Sr. Sergio Ricetti (FENIANOS, 1996).

A década de 1960 mudou a fisionomia do bairro com um intenso processo

35 Como recorda o Sr. João Lazzarotto, cuja família morava em um lote no início do ramal.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 120: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

119

PELO

S T

RIL

HO

S

Trilho ao lado do Vagão do Armistício, logo após a Rodoferroviária, sentido Curitiba-Rio Branco.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 121: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

120

PELO

S T

RIL

HO

S

Área verde presente ao se deixar para trás o centro da cidade.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 122: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

121

PELO

S T

RIL

HO

S

de urbanização, embora a característica residencial da região tenha predominado.

Poucos prédios vistos neste trajeto ultrapassam a altura de quatro ou cinco andares.

Com exceção de quatro grandes torres de edifícios, que ficam na esquina da Rua Se-

nador Souza Naves. Por coincidência, no mesmo terreno antes ocupado pela fábrica

de fósforos Mimosa que, a exemplo da Fiat Lux, também veio se instalar junto à fer-

rovia para receber e exportar seus produtos através de um desvio (RVPSC, 1936).

A paisagem do Ramal Curitiba-Rio Branco, no trajeto que vai do Vagão do

Armistício até o cruzamento do trilho com a Rua Jaime Balão, ainda é marcada por

uma grande convivência da cidade e citadinos com o trilho. Em todo esse trajeto, no

qual o trilho é acompanhado pela Rua Flávio Dallegrave, a presença de pedestres e

ciclistas circulando na calçada junto ao trilho ou cruzando-o é muito mais constante,

se comparado aos trechos do Ramal Curitiba-Paranaguá. Essa circulação é favorecida

pela existência de uma ciclovia que segue o mesmo traçado plano do trilho, e pela

coexistência de um comércio diversificado e de uso cotidiano (lojas de roupas – in-

cluindo um shopping center – padarias, farmácias, bares, pet shops, lanchonetes,

lavanderias, salões de beleza, bancas de revistas, etc.). O grau de arborização pró-

xima ao trilho, que proporciona sombra aos caminhantes, e a existência de diversas

praças, jardinetes e largos também é notável.

Comparada ao Ramal Curitiba-Paranaguá, esta primeira paisagem do Ramal

Curitiba-Rio Branco apresenta um aumento considerável no número de cruzamentos

de veículos e pedestres e um menor número de cruzamentos apenas de pedestres.

Nos bairros Cristo Rei, Alto da Rua XV e Hugo Lange, o trilho é cruzado por algumas

ruas de grande fluxo devido às suas tendências comerciais e por serem importantes

vias de acesso ao centro da cidade. Não é à toa que, mesmo sem plataforma de

desembarque, os maquinistas dos trens de subúrbio se solidarizavam com os traba-

lhadores, fazendo algumas paradas “não oficiais”, como recorda o Sr. Bittencourt: “O

subúrbio que vinha de Rio Branco tinha várias paradas. Parava ali no Alto da XV. Na

Souza Naves também tinha parada”.

10ª PAISAGEMTrajeto Argelina

A paisagem ferroviária anteriormente descrita é marcada por uma forte ten-

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 123: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

122

PELO

S T

RIL

HO

S

Fotos do trilho e da ciclovia na passagem da 9a para a 10a paisagem.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 124: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

123

PELO

S T

RIL

HO

S

dência a residências unifamiliares dispostas em amplos e arborizados terrenos, pelo

alto grau de arborização, pela ciclovia que acompanha o traçado do trilho e pelo gran-

de número de cruzamentos de ruas com intenso tráfego. Esta paisagem, que começa

de forma um tanto quanto brusca após a passagem pelo que denominamos “pórtico”

– dois muros altos que conduzem os transeuntes do centro a um bairro residencial

considerados de alto padrão –, sofre uma brusca alteração diante de novos muros.

Nas imediações da Praça Soroptismo Internacional ainda é possível observar a oeste

e de forma panorâmica a cidade de Curitiba e seus altos prédios. Mas, por enquan-

to, porque os referidos muros que cercam a linha férrea a partir de então indicam

a proximidade do Bairro Cabral, onde se encontram em construção diversos prédios

residenciais que chegam a dez ou mais andares.

Pouco depois de um primeiro muro e de uma paisagem um tanto árida em

decorrência das cores e ruídos das construções desta região, em franca expansão

imobiliária, o verde volta a encher os olhos daqueles que caminham pela ciclovia que

ladeia o trilho. Algumas árvores altas fazem as vezes de cerca viva ou cortina para os

campos de golfe do Graciosa Country Club. O aristocrático clube, fundado em 1927,

é um indício da ocupação remota daquela região. Caminha-se umas centenas de

metros acompanhado pelo Graciosa e chega-se a um local bastante singular. À es-

querda do trilho, para quem segue no sentido Curitiba-Rio Branco, está um conjunto

de antigas residências de madeira que constitui o que chamamos de Vila Argelina.

São seis singelas casas térreas de madeira, com idade aproximada de 60 anos, quase

“engolidas” pela recente verticalização no local.

As casas da Vila Argelina pertencem atualmente à União, mas ainda apresen-

tam a placa indicativa de que foram um dia patrimônio da RFFSA. Estão dispostas a

cerca de cinco metros da linha férrea na região da antiga Colônia Argelina. Foi nessa

região que se formou, ainda em 1869, uma colônia com mais de 200 famílias. Suas

chácaras se estendiam pelos bairros do Bacacheri e Boa Vista. A grande maioria eram

franceses vindos da Argélia, daí o nome Colônia Argelina. Mas ali estabeleceram-se

também alemães, suíços, suecos, ingleses e escoceses. A localização da Colônia era

estratégia: ocupava as duas margens da Estrada da Graciosa (hoje, Av. Erasto Ga-

etner) e distava apenas quatro quilômetros do centro de Curitiba. O núcleo colonial

enfrentou problemas com a pobreza do solo e com o abandono da Estrada da Gra-

ciosa após a construção da estrada de ferro que liga Curitiba a Paranaguá (Boletim

informativo Casa Romário Martins, jul. 1989). Mesmo assim, a colônia se fixou, como

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 125: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

124

PELO

S T

RIL

HO

S

Vista panorâmica da cidade e torre em construção, na passagem da 9a para a 10a paisagem.

Imagem aérea da região da Colônia Argelina (GOOGLE MAPS, 2010).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 126: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

125

PELO

S T

RIL

HO

S

outras que se desenvolveram no Pilarzinho e no Abranches. A Colônia Argelina logo

se constituiu em parada para trens mistos e bondes elétricos, que levavam e traziam

cargas e passageiros.

Em 1921 teve início a ocupação militar da região, com a construção do prédio

que recebeu o 5o Batalhão de Engenharia de Combate, mais tarde transformado em

Regimento de Cavalaria Divisionária e, no pós-guerra, o 20o Batalhão de Infantaria

Blindado. Na década de 1930, a ocupação da região intensificou-se, com a instalação

nas imediações do Aeroclube do Paraná. Em 1937, foi construído o complexo militar

do Bacacheri. Localizadas na então Estrada da Graciosa, a proximidade da Estrada

de Ferro parece ter sido decisiva para a implantação dessas unidades na região. Na

década de 1930 já operava ali na Colônia Argelina um desvio para carga e descarga

de material bélico.

A Colônia Argelina tinha o pátio de carregamento de material bélico. Nas casas da Rede morava o

pessoal que trabalhava aqui, arrumando a linha. Antigamente aqui tinha um muro de palanques.

Ainda tem alguns postes por ali. Esse muro era uma rampa. Os vagões vinham e tinha quatro linhas.

Tem essa principal e quatro desvios que saíam daqui e paravam todos lá, junto ao muro. Os vagões

encostavam, daí os materiais subiam por cima. (Sr. Grosko – segurança da Rede)

Ainda habitadas por ferroviários, as casas da parada Argelina seguem o mes-

mo padrão construtivo: são térreas e de madeira, frontalmente apresentam a porta

principal e quatro janelas ainda com as esquadrias originais também em madeira,

cercas baixas e cobertura quatro águas com telhas de cerâmica – as quais, segundo

relatos de alguns dos moradores, volta e meia são quebradas por bolinhas de golfe

lançadas pelos frequentadores do Graciosa Country Club. São casas de duplas para

operários, construídas pela Rede a partir dos anos 30 (RVPSC, 1935: 240).

O trilho segue seu curso em direção à região norte de Curitiba, ainda acompa-

nhado pela Rua Flávio Dallegrave e pela ciclovia. Nas imediações do trilho algumas

edificações não ligadas diretamente à Rede se destacam pela antiguidade. Neste tra-

jeto o trem também cruza algumas ruas com alto fluxo de veículos e pedestres, tais

como a Avenida Munhoz da Rocha, a Rua Nicarágua, a Rua Deputado Joaquim Pedro-

sa, a Avenida Paraná e a Rua Belém. Mas são ruas que só começam a cruzar a linha

depois da década de 1950. Até aí, as chácaras dominavam a região, e o batalhão

usava os campos como invernada para seus burros e cavalos (Boletim informativo

Casa Romário Martins, dez. 1996). O loteamento da região se deu apenas a partir

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 127: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

126

PELO

S T

RIL

HO

S

Casas da Vila Argelina.

Casas da Vila Argelina.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 128: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

127

PELO

S T

RIL

HO

S

dos anos 1960. Depois daqueles cruzamentos, a intensificação das áreas verdes e a

ocupação quase exclusiva dos terrenos por casas térreas acabaram por conservar na

paisagem do Bairro Boa Vista um ar um tanto “interiorano”, fazendo a intermediação

com a próxima paisagem. Há, inclusive, logo após a Rua Ary Barroso, uma proprie-

dade particular que mantém uma ampla área verde repleta de grandes árvores, uma

espécie de ilha verde na cidade.

Esta paisagem vai até o cruzamento do ramal com a Rua Simão Mansur, no

Bairro Boa Vista. Um local elevado no relevo da cidade, de onde novamente pode-se

observar parte da região norte de Curitiba em panorâmica. Nesta vista, o baixo grau

de verticalização e o aumento das áreas verdes parecem sugerir que os limites do

município estão próximos.

11ª PAISAGEMTrajeto Avenida Anita Garibaldi

Seguindo o Ramal Curitiba-Rio Branco a partir da Rua Simão Mansur, os trilhos,

acima do nível da Rua Flávio Dallegrave, traçam uma curva em formato de ferradura.

No meio desta curva, de frente para a Rua José Mansur, encontra-se o Estribo Ahú,

onde hoje há uma estrutura que:

consiste em uma pequena plataforma de concreto, coberta por um telhado de duas águas com telhas

francesas e estrutura de madeira. Nas laterais apresenta um guarda-corpo feito com dormentes,

que resguarda o usuário do grande desnível existente entre a Avenida Anita Garibaldi, na frente, e a

Rua Flávio Dallegrave, nos fundos. Este desnível se sustenta por um talude gramado, seguido de um

arrimo em pedra e é transposto por uma escada de concreto. (PFC – Relatório Paisagem Material)

No entanto, essa construção data da década de 1990, para lembrar que o es-

paço era uma das paradas dos trens de passageiros, que ficaram conhecidos como

trens de subúrbio. Essa parada também era conhecida como km 7, quando ali

havia uma plataforma. Era feita de pedra, né? Que era da altura do vagão e ainda sobra um espaço

de quase um metro, assim. O pessoal descia meio com sacrifício. Era tipo de uma rampa. Ali também

eles traziam coisas para carregar, porque vinha o trem e trazia um vagão que era para as bagagens.

Um vagão de bagageiro. Às vezes os caras levavam as coisas daqui para Rio Branco do Sul: sacarias,

sal, açúcar, que eles usavam muito pra lá, então vinha pelo trem. Carregavam naquele trem de

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 129: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

128

PELO

S T

RIL

HO

S

Estribo Ahú.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 130: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

129

PELO

S T

RIL

HO

S

bagageiro, porque as malas e outras coisas vinham no vagão. Ele tinha espaço para as malas. (Sr.

Pedro)

A localização privilegiada, no encontro do trilho do trem com uma das estra-

das para Assungui (atual Anita Garibaldi) fez com que ali se fixassem armazéns,

pequenas indústrias, casas comerciais e bares. Além de um açougue e matadouro,

que ficava em um lote atualmente ocupado pela Fundação de Assistência Social de

Curitiba. Pelo trilho, que passa nos fundos desse terreno, eram descarregados alguns

bois depois de suas viagens em vagões gaiolas, como se recorda o Sr. Carlito:

Ali eles soltavam os bois, ali pra baixo. E faziam a matança ali. Eu ia no catecismo, ali onde é a

guarda-mirim [antiga Capela Santa Cruz], e nós passávamos pela linha do trem. Mas era um fedor

ali. […] Os trens com animais vinham do Rio Branco. Tinha vagão de boi. Descarregava tudo ali. (Sr.

Carlito – morador da região)

Conforme o relato de moradores, seguindo pela Anita Garibaldi, quase em

frente ao Estribo, havia a fábrica de vassouras dos Mansur, logo depois de uma fá-

brica de barricas para transporte de erva-mate – que fez história na região com sua

Sociedade dos Barriqueiros do Ahú – e um grande depósito de sacarias, onde hoje

funciona um depósito da Justiça.

Mas não era apenas o comércio que se desenvolvia na região. Ali também tinha

espaço para diversão e lazer, tudo ao lado do trilho. Ainda na década de 1960:

tinha um campo de futebol, que eu frequentava também. No caso era o União Ahú, que era o time

do bairro. Aos domingos, sábado à tarde, vinha uma multidão ali, pra assistir os jogos do União Ahú

com o Combate Barreirinha. Uma maravilha aos domingos à tarde. E ao lado do campo tinha um

espaço para parques de diversão. De vez em quando vinha um parquinho. E Circo também. (Sr. Ivo,

morador da região)

Apesar do fim dos trens de carga e de passageiros, por conta da expansão

do transporte rodoviário e das melhorias nas ruas e avenidas da região (incluindo a

abertura da Rodovia dos Minérios), a identidade da paisagem com a passagem do

trem permanece forte na memória de todos. O Sr. Ivo é enfático em afirmar que o

próprio nome do local reforça essa identidade: “Eu me lembro com saudade. Foi ori-

ginário dessa estaçãozinha ali é que originou o nome estribo Ahú. Estribo Ahú é só

esse nucleozinho nosso aqui, por causa da parada do trem”.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 131: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

130

PELO

S T

RIL

HO

S

O trilho segue seu traçado, margeado por construções residenciais e comerciais,

em sua maioria térreas, algumas áreas verdes e cruza, pela primeira vez, a Avenida

Anita Garibaldi. Esta importante via da cidade e os trilhos do Ramal Curitiba-Rio Bran-

co passam a se cruzar e a se encontrar inúmeras vezes neste trajeto da paisagem

ferroviária de Curitiba, que marca os bairros Boa Vista, Barreirinha e Cachoeira. Nes-

ta espécie de zigue-zague, nestes bairros predominantemente residenciais, são nos

encontros e cruzamentos com a Avenida Anita Garibaldi e seu forte comércio que é

possível sentir-se novamente em uma grande cidade.

Em um cantinho da Rua Flávio Dallegrave, esquina com a Rua Reinaldo Recke,

em uma construção térrea de alvenaria com cobertura duas águas e telhas de cerâ-

mica, funciona um bar ainda no estilo “secos e molhados”, chamado “21”.

Nas mesas dispostas na varanda do bar pode-se ouvir inúmeras histórias dos

tempos em que ainda circulavam trens com passageiros, levando e trazendo gente do

subúrbio para o centro da cidade, bem como pode-se ver a Avenida Anita Garibaldi.

Os loteamentos apareceram por ali só na década de 1960. A região guarda

lembranças da vida em torno do movimento de Anita Garibaldi e da ferrovia antes

de sua urbanização. A igreja e a Vila de Santa Efigênia ainda não existiam. No lugar,

havia a propriedade do Sr. Ovídio Garcez, cuja sede ainda está conservada. Onde

está a igreja, havia o campo de futebol do clube local: o Combate Barreirinha. Por

ali passavam, vindas de Rio Branco do Sul, tropas de burros com seus cestos ou

carroças, trazendo fumo em corda, rapadura, feijão, galinha. Boiadas passavam em

direção ao matadouro. Nas terças e sextas, os sitiantes das imediações iam vender

seus produtos em Curitiba. Verdura, leite, lenha e ovos. Tanto na ida quanto na volta

paravam ali, no armazém do 21, para comprar o que precisavam. Como no núcleo

do Estribo Ahú, uma plataforma recebia os trabalhadores que se utilizavam dos trens

de subúrbio. Lembra a Dona Lourdes: “Era uma estaçãozinha assim que nem a do

Estribo Ahú. Passava a rua em frente ao Armazém, daí cruzava de novo o trilho e

saía. Continuava a Anita Garibaldi dali. O trem fazia uma paradinha pra gente aqui”.

O armazém também era ponto de encontro para aqueles que retornavam para casa

depois da jornada de trabalho: “Quando chegava o trem, aquilo era um alvoroço. O

povo vinha tudo: tinha aquele da cachacinha, outros que queriam fazer uma compra

pra levar pra casa, deixavam pra vir comprar o querosene para o lampião ali...” (Sr.

Pedro, morador da região).

Esse tempo permanece registrado em algumas das residências próximas à Ani-

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 132: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

131

PELO

S T

RIL

HO

S

“21”.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 133: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

132

PELO

S T

RIL

HO

S

ta Garibaldi e à linha férrea. Até o Bairro Cachoeira, limite entre Curitiba e Almirante

Tamandaré, predominam casas térreas na paisagem, algumas visivelmente antigas,

sejam de alvenaria, sejam de madeira, dispostas em lotes bastante arborizados. Ao

longo da ciclovia é comum encontrar crianças e adultos pedalando e caminhando. A

vegetação colore com diversos tons de verde, mas também de vermelho, amarelo,

branco, lilás e outros tons florais, a paisagem calma desta região da cidade. O ba-

rulho da cidade é cada vez menos ouvido e o canto dos pássaros é tanto mais cons-

tante, sobretudo em locais de adensamento de árvores, como próximo ao Horto do

Barreirinha e das nascentes do Rio Belém. Em alguns pontos deste trajeto o observa-

dor pode encher os olhos com belas vistas da cidade. Uma região de relevo bastante

acidentado, mas de horizontes mais distantes.

A intimidade dos habitantes da região com o trem é apresentada pelo Sr. Pe-

dro, que morando no Ahú, pegava o trem de subúrbio retornando a Rio Branco do

Sul no final da tarde para encontrar a namorada no Cachoeira. Ou, então, quando

pegava o trem só para se divertir aos domingos, se aventurando entre os carros para

não pagar a passagem, driblando o chefe de trem:

No domingo, a gente saía para um passeio, né? Tinha um trem que vinha de lá do centro e cruzava

com outro aqui na Estação do Cachoeira, já em Almirante Tamandaré. Então, a gente que morava no

Ahú, eu era piazão com uns 14 ou 15 anos, pegava o trem e vinha encontrar o outro aqui. Fazia a

troca na Estação do Cachoeira, e a gente voltava com o outro trem de passageiros, só prá passear.

Para evitar a cobrança da passagem, a gente ficava atrás da porta do vagão. O trem vinha lotado. Na

troca de trem, quando a gente ia embarcar no Cachoeira, a gente já via onde tava o cobrador […] Às

vezes ele estava lá no primeiro vagão, e a gente pegava o último. Quando ele vinha para cobrar no

nosso vagão, já estava de volta na Estação do Ahú, e era hora de descer.

Essa intimidade com o trem também tinha seus riscos. No tempo das marias-fuma-

ças, as fagulhas podiam entrar nas casas e causar incêndios. Nos tempos de estia-

gem, o cuidado era redobrado, principalmente como a relva mais próxima da linha.

Quase na divisa com Almirante Tamandaré, a linha férrea tinha um último desvio, que

a maria-fumaça utilizava, ao vir da Estação de Cachoeira em direção a Curitiba.

As máquinas não conseguiam subir com todos os vagões, não. Então a locomotiva trazia uns três ou

quatro e deixava os vagões no desvio. E voltava lá embaixo, na Estação do Cachoeira, buscar mais

uns três ou quatro vagões. Isso porque da Estação do Cachoeira para cá era subida. Depois desse

desvio, daqui até Curitiba, só desce. Daqui o trem ia embora com todos os vagões. (Sr. Pedro)

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 134: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

133

PELO

S T

RIL

HO

S

Paisagem próxima ao limite entre Curitiba e Almirante Tamandaré.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 135: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

134

PELO

S T

RIL

HO

S

Para operar o desvio, ficava ali um guarda-chaves, em uma pequena casinha

onde se abrigava. Além de cuidar do desvio, bronqueava com os meninos da vizi-

nhança para que não mexessem onde não deviam e nem subissem nos vagões esta-

cionados.

No cair da noite, o trem de subúrbio seguia seu caminho em direção a Rio

Branco do Sul, deixando Curitiba para trás. Nos carros de passageiros, depois de

cada parada, o guarda-freios aparecia com sua lanterna de querosene na mão. Dava

um sinal para o maquinista e o trem seguia seu caminho, sumindo na escuridão.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 136: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

135

PELO

S T

RIL

HO

S

DESEMBARQUE

Saudações a vós, belas raças do futuro, rebentos da

estrada de ferro! […] Ao vagão! Ao vagão! O apito retiniu

agudo sob as abóbodas sonoras da estação […] Antes da

criação das estradas de ferro, a natureza não palpitava

mais; era uma Bela Adormecida no bosque...; até os céus

pareciam imutáveis. A estrada de ferro animou tudo...

O céu tornou-se um infinito que age, a natureza, uma

beleza em ação. O Cristo soltou-se de sua cruz, caminhou,

e deixou bem longe, para trás, na estrada, o velho

Ahasverus. (GASTINEAU apud BENJAMIN, 2006: 631)

Senhoras e senhores passageiros: em nossa viagem passamos por curvas,

ruínas, trens, grandes e pequenas edificações – tombadas (reconhecidas como pa-

trimônio material) ou não. Coisas, grandes ou pequenas, relacionadas às políticas de

colonização do estado e/ou interesses econômicos e a um dos principais ensejos do

mundo moderno e do nosso mundo hoje: a mobilidade, a possibilidade de se deslocar

e deslocar coisas (cada vez em maior quantidade e mais agilmente). A paisagem fer-

roviária já foi, outrora, sinônimo de progresso. Meio de transporte e principal símbolo

da modernidade oitocentista, o trem foi fundamental para a constituição de Curitiba

enquanto cidade.

Eu entrei em 79 na rede. De 79 até o ano em que eu saí, não se construiu nada que não fosse a

ferrovia do aço. A ferrovia brasileira já teve 35 mil km, e hoje o Brasil opera 10 mil km de linha. [...] A

maria-fumaça veio até 58, 57, quando foi feita a unificação. Daí foi feita a dieselficação, que é passar

do vapor à locomotiva diesel-elétrica. As ferrovias foram indutoras do desenvolvimento, porque elas

fazem a mobilidade humana. Se Curitiba não tivesse tido a ferrovia aqui, Curitiba não seria o que

é hoje. Porque ela não teria sido habitada como foi. As ferrovias sempre foram ponta tecnológica.

Por que, o que que era o automóvel em 1957? As pessoas só se transportavam por trem e por mar.

Não tinha ônibus, não tinha estrada. Juscelino se voltou para o sistema rodoviário e implementou

a rodovia. A rodovia tem capilaridade. Ou seja, ela vai em qualquer buraco, em qualquer lugar,

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 137: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

136

PELO

S T

RIL

HO

S

Trem em paisagem limítrofe de Curitiba com Almirante Tamandaré.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 138: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

137

PELO

S T

RIL

HO

S

mas ficou de costas para o setor ferroviário. A parte de carga é que foi dada importância, e a parte

de transporte [de passageiros] foi ficando para trás […] Os governos não construíram ferrovias

modernas. Não há investimento. (Sr. Saulo Ferreira – ferroviário engenheiro).

Além de reiterar informações dadas ao longo deste trabalho, o depoimento do

Sr. Saulo traz à luz o fato de que o “avanço”, a “modernidade”, o “progresso” são fru-

tos da ação humana. “O progresso não se situa na continuidade do decurso do tempo

e sim em suas interferências” (BENJAMIN, 2006). Assim, a suposta “defasagem” das

estradas de ferro presente em diferentes discursos que encontramos no decorrer

deste trabalho não “aconteceu naturalmente”: ela foi construída na medida em que

diferentes agentes históricos e sociais fizeram a opção por outras vias e meios de

transporte. Mas a contribuição dos caminhos de ferro para a constituição da paisa-

gem urbana de Curitiba já estava estabelecida. As paisagens ferroviárias importam

enquanto patrimônio histórico e cultural porque suas linhas ajudaram a delinear os

contornos das identidades urbanas e sociais da cidade que crescia à sua volta.

Para além dos trilhos e das edificações da Rede, pessoas constituem e recons-

tituem as paisagens ferroviárias, sejam elas passadas – e presentificadas através de

suas memórias –, sejam como espaços reapropriados para novas práticas sociais. Na

diversidade dos grupos que estabelecem relações com as linhas do trem, o dos ferro-

viários merece aqui um destaque. São pessoas que conviveram ou convivem com os

trilhos em suas vizinhanças, porque trabalharam como ferroviários para a Rede (ou

tiveram, entre seus parentes, ferroviários), ou que ainda trabalham para as empre-

sas concessionárias das ferrovias. Trabalhar como ferroviário não é algo ocasional.

Ser ferroviário é um ofício intimamente atrelado à identidade de cada um daqueles

que trabalharam na Rede: um ferroviário aposentado não deixa de ser conhecido e

identificado pelos seus pares como ferroviário. E este é o primeiro adjetivo que os

ferroviários associam a si mesmos, independentemente da função que exerceram ou

exercem (administrativa ou operacional), e pelo qual foram e/ou são classificados

pelas suas comunidades: “Sr. Pedro, ferroviário”.

E são os ferroviários, ou seus afins, que, residindo nas pequenas edificações da

Rede, praticando as casas construídas para as turmas e demais funcionários enquan-

to suas moradias, que conservam estas pequenas estruturas que, como as grandes

(Estação, Ponte Preta, Edifício Teixeira Soares, Estádio Durival de Britto e Silva, as

Oficinas, etc.), constituem a paisagem ferroviária. Sem tais pessoas, muitas das ca-

sas que hoje ainda estão “em pé” tenderiam ao mesmo fim que tantas outras casas

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 139: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

138

PELO

S T

RIL

HO

S

que lhes eram vizinhas: foram invadidas, demolidas, incendiadas.

Além do cuidado com o patrimônio deixado pela Rede, são muitos os ferroviários

preocupados com a preservação da memória ferroviária, seja através de agremiações,

como a Associação Brasileira de Preservação Ferroviária, ou de iniciativas pessoais.

A memória das paisagens ferroviárias é enriquecida por essas diversas perspectivas

individuais e coletivas. Este trabalho é mais uma contribuição nesse sentido: um pon-

to de vista possível de uma paisagem histórica complexa, e que pode ser apreendida

através de suas múltiplas dimensões. O resultado depende de quem a observa e dos

roteiros escolhidos. Uma consciência manifestada no relato e no olhar experimentado

do Sr. Leocádio, ferroviário, com sua fala contida e exata: “cada viagem, uma histó-

ria”.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 140: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

139

PELO

S T

RIL

HO

S

REFERÊNCIAS BIBlIOGRÁFICAS

Artigos, livros, Teses e Dissertações

AUGÉ, Marc. Não Lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. São

Paulo: Editora Papirus, 2003.

BENJAMIN, Walter. “Paris, a capital do século XIX (exposé de 1935)”, “N - Teoria do

Conhecimento, Teoria do Progresso” e “U – Saint-Simon, Ferrovias”. In: Passagens. Belo

Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.

BERGER, John. Capítulo 1. Modos de ver. Rio de Janeiro: Racco, 1999.

BERMANN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da moderni-

dade. São Paulo: Cia das Letras, 2003.

BISCAIA, Evaristo. Coisas da cidade: crônicas. Farol do saber. Curitiba: Fundação

Cultural de Curitiba, 1996.

BOLETIM INFORMATIVO CASA ROMÁRIO MARTINS. Os franceses em Curitiba. Curiti-

ba: Fundação Cultural de Curitiba, v. 14, n. 84, jul. 1989.

______. Boa Vista. O bairro na história da cidade. Curitiba: Fundação Cultural de

Curitiba, v. 23, n. 118, dez. 1996.

______. Rebouças. O bairro na história da cidade. Curitiba: Fundação Cultural de

Curitiba, v. 26, n. 124, mai. 2000.

______. Praças de Curitiba: espaços verdes na paisagem urbana. Curitiba: Fundação

Cultural de Curitiba, v. 30, n. 131, set. 2006.

BONI, Paulo César. Mais uma agradável viagem de trem. Discursos fotográficos, Lon-

drina, v. 1, n. 1, p. 247-254, jan./dez. 2005.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 141: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

140

PELO

S T

RIL

HO

S

DE CERTEAU, Michel. Práticas de espaço. In: A invenção do cotidiano 1: Artes do fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.

DITTMAR, Adriana Cristina Corsico; HARDT, Letícia Peret Antunes. PONTIFÍCIA UNI-

VERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana.

Paisagem e morfologia de vazios urbanos: análise da transformação dos espaços

residuais e remanescentes urbanos ferroviários em Curitiba – Paraná. 2006. Disser-

tação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2006.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 10. ed. São Paulo: EDUSP, 2002.

FERNANDES, José Carlos. “Enquanto o SoHo não vem: projeto em bairro operário

implusiona mercado imobiliário e comércio, mas resiste às artes”. Gazeta do Povo,

03 fev. 2008. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/con-

teudo.phtml?tl=1&id=734524&tit=Enquanto-o-SoHo-nao-vem. Acesso em: 28 ago.

2010.

FEATHERSTONE, Mike. “O flâneur, a cidade e a vida pública virtual”. In: ARANTES,

Antônio A. (Org.). O espaço da diferença. São Paulo: Papirus, 2000.

FENIANOS, Eduardo Emílio. Cristo Rei: a viagem da nau do tempo. Bairros de Curiti-

ba; 7. Curitiba: UniverCidade, 1996.

______. Jardim Botânico: só pra não dizer que eu também não falei das flores. (Bair-

ros de Curitiba; 6). Curitiba: UniverCidade, 1996.

______. Portão: Novo Mundo e Fazendinha: pode entrar!. (Bairros de Curitiba; 18).

Curitiba: UniverCidade, 2000.

GRAF, Marcia Elisa de Campos. As estações das estradas de ferro do Paraná e sua

história. Inventário de reconhecimento do patrimônio material ferroviário da extinta

rede ferroviária federal S.A. – RFSSA. Curitiba: Proambientes, 2008.

GURAN, Milton. “Linguagem fotográfica e Considerações sobre a utilização da foto-

grafia como instrumento de pesquisa nas ciências sociais”. In: Linguagem fotográfica

e informação. Rio de Janeiro: Editora Gama Filho, 2002.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 142: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

141

PELO

S T

RIL

HO

S

HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança

cultural. São Paulo: Loyola, c1992.

HOERNER JUNIOR, Valério. Ruas e histórias de Curitiba. Curitiba: Artes & Textos,

1989.

KROETZ, Lando Rogerio. As estradas de ferro do Paraná 1880-1940. Tese (doutora-

do) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1985.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

MAGNANI, José Carlos. Festa na cidade: cultura popular e lazer na cidade. São Paulo: Brasiliense, 1984.

______ . “Quando o campo é a cidade: fazendo antropologia na metrópole”. In: MAG-

NANI, José C.; TORRES, Lilian de Lucca. Na metrópole: textos de antropologia urba-

na. São paulo: Editora da USP, Fapesp, 2000.

MARCASSA, João. Curitiba essa velha desconhecida. Curitiba: Refripar, 1989.

MELO, Giselia dos Santos. Ao som do apito: Vila Oficinas, controle e disciplinarização

do ferroviário (Curitiba, 1945-1960). Série Monografias. Curitiba: Universidade Tuiuti

do Paraná, 2008.

OLIVEIRA, Dennison de. Urbanização e industrialização no Paraná. Curitiba, PR:

Seed, 2001. (História do Paraná , textos introdutórios)

OLIVEIRA, Paulo Ritter de. “Inventário de Reconhecimento do Patrimônio Material

Ferroviário da Extinta Rede Ferroviária Federal S.A.” – RFFSA. Curitiba, 2008.

PASSARELLI, Silvia Helena. “Memória e identidade do bairro Estação São Bernanrdo:

proteção da paisagem ferroviária”. In: LIRA, José Tavares Correia de & GITAHY, Maria

Lucia Caira (Org.). Cidade: Impasses e Perspectivas – Arquiteses 2. São Paulo: FU-

PAM/Annablume, 2007.

PAISAGENS FERROVIÁRIAS DE CURITIBA (BAPTISTA, Maria; GALLARZA, Gabriel).

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 143: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

142

PELO

S T

RIL

HO

S

Relatório de Paisagem Material: arquitetura e urbanismo. Disponível no site do pro-

jeto (www.pelostrilhos.net) e na Casa da Memória.

REDE DE VIACAO PARANÁ-SANTA CATARINA. Cincoentenário da Estrada de Ferro do

Paraná: 1885 – 5 de fevereiro – 1935.

REDE FERROVIÁRIA FEDERAL S.A. Edição comemorativa do Centenário da Estrada de

Ferro do Paraná. (Uma Viagem de 100 anos). Curitiba: 1985.

RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem Cultural e Patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN,

2007.

SCHOPPA, Renê Fernandes. 150 anos do trem no Brasil: 30 de abril de 1854 a 2004.

[S.l.]: Milograph, [2004?].

SENNA, Ernesto. O Paraná em estrada de ferro. [S.l.]: Tipografia do Jornal do Com-

mercio, 1900.

SUTIL, Marcelo. Arquitetura Italiana na Construção de Curitiba – A contribuição da

Comunidade Italiana na Construção do Patrimônio Histórico de Curitiba. Curitiba: M.

V. B. Meschino, 2006.

SUTIL, Marcelo Saldanha; GNOATO, Salvador. Rubens Meister: vida e arquitetura.

Curitiba: Travessa dos Editores, 2005.

VITOR, Nestor. A terra do futuro: impressões do Paraná. (Farol do saber). Curitiba:

Prefeitura Municipal de Curitiba, 1996.

WACHOWICZ, Ruy Christovam. História do Paraná. (Brasil diferente). Curitiba: Im-

prensa Oficial do Estado, 2002.

YAMAWAKI, Yumi; HARDT, Letícia Peret Antunes. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CA-

TÓLICA DO PARANÁ. Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana. Gestão de

espaços urbanos refuncionalizados: estudo de caso sobre a reconversão de uso da

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 144: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

143

PELO

S T

RIL

HO

S

antiga Estação ferroviária de Curitiba, Paraná. 2008. 256 f. Dissertação (Mestrado) –

Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2008

Mapas e Imagens Aéreas

BELTRÃO, Francisco Gutierrez; FRANCO, Arthur Martins. Mappa do Município de Co-

ritiba. Curitiba: 1915.

INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO DE CURITIBA. Cobertura aero-

fotogramétrica de Curitiba. Curitiba: 1972.

INSTITUTO DE PESQUISA E PLANEJAMENTO URBANO DE CURITIBA. Cobertura aero-

fotogramétrica de Curitiba. Curitiba: 193[?].

PREFEITURA MUNICIPAL DE CURITIBA. Planta da cidade de Curitiba. Curitiba: mar.

1962.

Periódico Correio dos Ferroviários

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: v. 2, n. 01, out. 1934.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: jan. 1935.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: v. 3, n. 06, mar. 1936.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: v. 9, n. 9-10, out. 1942.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: n. 01, jan. 1950.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: fev. 1951.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 145: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

144

PELO

S T

RIL

HO

S

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: mai. 1952.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: jan. 1953.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: v. 06, n. 02, fev. 1954.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: v. 07, n. 07, jul. 1955.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: v. 07, n. 09, set. 1955.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: v. 15, n. 09, mar. 1963.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: n. 411, jan. 1968.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: fev./mar. 1968.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: n. 414, mai. 1968.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: n. 415, jun. 1968.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: n. 420, nov. 1968.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: n. 425, mai. 1969.

CORREIO DOS FERROVIÁRIOS. Curitiba: n. 432, nov. 1969

Relatórios da Rede

INSTALAÇÕES ferroviárias em Curitiba. [S.l.: s.n.], 1965.

RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA. HORáRIO DOS TRENS DE PASSAGEI-

ROS E CARGAS. CURITIBA: [S.N.], 1936.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 146: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

145

PELO

S T

RIL

HO

S

RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA. Relatório do ano de 1934 da Rêde de

Viação Paraná-Santa Catarina (Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande apresentado

ao Dr. Marques dos Reis Ministro da Viação e Obras Públicas pelo Alexandre Gutier-

rez. Curitiba: Paranaense, 1935.

RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA. Relatório do ano de 1935 da Rêde de

Viação Paraná-Santa Catarina (Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande apresentado

ao Dr. Marques dos Reis). Curitiba: Paranaense, 1936.

RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA. Relatório do ano de 1936 da Rêde de

Viação Paraná-Santa Catarina (Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande) apresentado

ao Exmo. Sr. Dr. Marques dos Reis Ministro da Viação e Obras Públicas pelo superin-

tendente Alexandre Gutierrez. Curitiba: Impressora Paranaense, 1937.

RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA. Relatório do ano de 1937 da Rêde de

Viação Paraná-Santa Catarina (Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande) apresentado

ao Exmo. Sr. Gal. João de Mendonça Lima, Ministro da Viação e Obras Públicas pelo

superintendente Alexandre Gutierrez. Curitiba: Impressora Paranaense, 1938.

RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA. Relatório referente ao ano de 1940

apresentado ao Exmo. Snr. Ministro da Viação e Obras Públicas pelo Ten. coronel

Durival Britto e Silva. [Curitiba]: RVPSC, [1940].

RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA. Relatório referente ao ano de 1941

apresentado ao Exmo. Snr. Ministro da Viação e Obras Públicas pelo Coronel Durival

Britto e Silva. [Curitiba]: RVPSC, [1941].

RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA. Relatório referente ao ano de 1942

apresentado ao Exmo. Snr. Ministro da Viação e Obras Públicas pelo Coronel Durival

Britto e Silva. [Curitiba]: RVPSC, [1942].

RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA. Relatório referente ao ano de 1944

apresentado ao Exmo. Snr. Ministro da Viação e Obras Públicas pelo Coronel Durival

Brittto e Silva. [Curitiba]: RVPSC, [1944].

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 147: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

146

PELO

S T

RIL

HO

S

RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA. Relatório referente ao ano de 1945

apresentado ao Exmo. Snr. Ministro da Viação e Obras Públicas pelo Coronel Durival

Britto e Silva. [Curitiba]: RVPSC, [1945].

RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA. Relatório referente ao ano de 1946,

administração do General Durival Britto e Silva apresentado ao Exmo. Snr. Ministro

da Viação e Obras Públicas pelo Major Luiz Neves. Curitiba: RVPSC, 1947.

RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA. Relatório referente ao ano de 1947

apresentado ao Exmo. Snr. Ministro da Viação e Obras Públicas pelo Coronel José

Machad Lopes. [Curitiba]: RVPSC, [1947].

RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA. Relatório referente ao ano de 1952

apresentado ao Exmo. Snr. Ministro da Viação e Obras Públicas pelo Engenheiro Raul

de Mesquita. [Curitiba]: RVPSC, [1952].

RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA. Relatório referente ao ano de 1956

apresentado ao Exmo. Snr. Ministro da Viação e Obras Públicas pelo Engenheiro An-

gelo Lopes. [Curitiba]: RVPSC, [1956].

RÊDE FERROVIÁRIA FEDERAL S.A.; RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA.

Relatório dos Departamentos e Serviços referente ao ano de 1960. [Curitiba]: RFFSA,

[1960].

RÊDE FERROVIÁRIA FEDERAL S.A.; RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA.

Relatório dos Departamentos e Serviços referente ao ano de 1962. [Curitiba]: RFFSA,

[1962].

RÊDE FERROVIÁRIA FEDERAL S.A.; RÊDE DE VIAÇÃO PARANÁ SANTA CATARINA.

Relatório anual 1968. [Curitiba]: RFFSA, [1968].

RÊDE FERROVIÁRIA FEDERAL S.A.; SISTEMA REGIONAL SUL; 11ª DIVISÃO – PARA-

NÁ SANTA CATARINA. Relatório Anual 1969. [Curitiba]: RFFSA, [1969].

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 148: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

147

PELO

S T

RIL

HO

S

RÊDE FERROVIÁRIA FEDERAL S.A.; SISTEMA REGIONAL SUL; 11ª DIVISÃO – PARA-

NÁ SANTA CATARINA. Relatório Anual 1970. [Curitiba]: RFFSA, [1970].

RÊDE FERROVIÁRIA FEDERAL S.A.; SISTEMA REGIONAL SUL; 11ª DIVISÃO – PARA-

NÁ SANTA CATARINA. Relatório Anual 1971. [Curitiba]: RFFSA, [1971].

RÊDE FERROVIÁRIA FEDERAL S.A.; SUPERINTENDÊNCIA REGIONAL CURITIBA. In-

formações da SR-5. [Curitiba]: RFFSA, [1980].

RÊDE FERROVIÁRIA FEDERAL S.A.; SUPERINTENDÊNCIA REGIONAL CURITIBA. In-

formações da SR-5 1984-1985. [Curitiba]: RFFSA, [1985].

Sites

ESTAÇÕES de trens. Disponível em: http://www.estacoesdetrens.com.br. Acesso

em: 04 set. 2010.

GOOGLE MAPS. Acesso em: 19 de setembro de 2010.

SHOPPING Estação. Disponível em: http://www.shoppingestacao.com/institucional/

index.aspx?CodPag=5. Acesso em: 25 ago. 2010.

SHOPPING Mueller. Disponível em: http://www.shoppingmueller.com.br/institucio-

nal. Acesso em: 25 ago. 2010.

TEMPLOS do Futebol. Disponível em: http://mavalem.sites.uol.com.br/pr/Curitiba4.

htm. Acesso em: 03 jun. 2010.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 149: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

148

PELO

S T

RIL

HO

S ISBN 987-85-86107-17-7

Page 150: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

149

PELO

S T

RIL

HO

S

PRESERVAÇÃO DO PATRIMôNIO ARQUITETôNICO INDUSTRIAl PAUlISTANO: INICIATIVAS DE lEVANTAMENTO, VAlORIzAÇÃO E TUTElA

Manoela Rossinetti Rufinoni1

[email protected]

A questão das áreas urbanas industriais subutilizadas e dos novos cenários a

serem buscados para a sua valorização são temas que vêm assumindo significativa

representatividade no panorama das políticas de desenvolvimento urbano em di-

versos países e em diferentes escalas. Além da localização geralmente privilegiada,

essas antigas áreas industriais representam reservas potenciais de terreno urbano

ocioso, degradado e de baixo custo; um considerável conjunto de vantagens para a

implementação de novos empreendimentos e que vem despertando, naturalmente,

a atenção de diversos setores envolvidos na produção e transformação da cidade.

Ao lado do mercado imobiliário privado, também o poder público tem demonstrado

interesse nessas áreas e em seu evidente potencial fundiário e econômico para o

desenvolvimento de grandes projetos urbanos.

Essa realidade tem sido observada no tratamento de sítios industriais ao longo

das estradas de ferro na cidade de São Paulo, como as áreas hoje encampadas pela

Operação Urbana Diagonal Sul (OUDS), ainda na fase de intenções. O perímetro de-

limitado pela Prefeitura como área estratégica para a realização de futuros projetos

urbanos, percorre o eixo da ferrovia Santos-Jundiaí desde as proximidades do bairro

do Pari até a divisa com a cidade de São Caetano do Sul (fig.1). Ao longo desse traje-

to que atravessa vários bairros e perfaz cerca de 2 mil hectares encontramos diversos

edifícios fabris, galpões, espaços produtivos, pátios de manobras e vilas operárias;

1 Arquiteta e urbanista, Professora doutora da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 151: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

150

PELO

S T

RIL

HO

S

conjuntos construídos e espaços urbanos cuja configuração fora condicionada pela

presença marcante da atividade industrial entre o final do século XIX e meados da

década de 1960, quando as indústrias de maior porte começaram a deixar a região.

Nesse perímetro marcado por extensas áreas subutilizadas, por vezes degradadas e

abandonadas, a municipalidade pretende promover transformações revitalizadoras

com o intuito de dinamizar a região e criar instrumentos de valorização, objetivo

principal das chamadas operações urbanas, instrumento previsto pelo Estatuto da

Cidade (BRASIL, 2001) e cujas áreas a serem trabalhadas na cidade de São Paulo

foram recentemente demarcadas pelo último Plano Diretor (SÃO PAULO, 2002).

Não obstante as questões econômicas e estratégias naturalmente envolvidas

na atuação sobre áreas urbanas de grandes dimensões e visivelmente degradadas,

uma particularidade essencial tem sido deixada para segundo plano nas discussões

sobre a atuação renovadora em antigas áreas industriais desocupadas: a caracteri-

zação de grande parte desses edifícios e sítios como patrimônio cultural.

O reconhecimento dos valores das paisagens urbanas, a sua caracterização

como bem cultural e a preocupação com a sua tutela, são temas que vêm sendo dis-

cutidos desde longa data, mas a repercussão na intervenção prática sobre a cidade

existente ainda é incipiente. Em um processo contínuo de amadurecimento concei-

tual, artefatos até então considerados menores, como conjuntos arquitetônicos e

paisagens construídas, passaram a ser reconhecidos por suas especiais qualidades

compositivas, contexto interpretativo que nos permite abarcar muitos exemplares

do patrimônio industrial. Essa expansão do conceito de patrimônio representa um

dos grandes temas do debate contemporâneo sobre a preservação e o restauro dos

bens culturais. Como toda ação modificadora em um bem cultural pressupõe o re-

conhecimento e entendimento prévio de suas especificidades como premissa para

fundamentar qualquer proposta, a valorização de artefatos cada vez mais complexos

tem nos colocado diante de grandes desafios interpretativos e operacionais. No caso

do patrimônio urbano industrial, a diversidade e complexidade de edifícios e espaços

que o compõem representam uma série de dificuldades para uma correta apreensão

de suas especificidades. A grande extensão das áreas envolvidas, o entendimento das

relações entre espaços construídos, codificações sociais e expressividades estéticas,

a devida apreensão de suas características evolutivas, composição formal e integra-

ção com o entorno, são alguns dos principais desafios na análise desse patrimônio,

além, é claro, da própria dificuldade inicial de defender a sua caracterização como um

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 152: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

151

PELO

S T

RIL

HO

S

1 – À esquerda, operações urbanas propostas pelo Plano Diretor da cidade de São Paulo. No círculo em

destaque, a OUDS. À direita, perímetro da OUDS. (fonte: SÃO PAULO, 2003)

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 153: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

152

PELO

S T

RIL

HO

S

bem cultural e da pressão especulativa a que frequentemente está sujeito.

O entendimento do valor cultural dos conjuntos arquitetônicos e urbanos e os

princípios teóricos que devem reger a atuação sobre os mesmos (e sobre quaisquer

bens culturais) são aquisições conceituais devidamente contempladas em vários do-

cumentos internacionais sobre a preservação e o restauro; textos que sugerem di-

retrizes gerais para o tratamento desses bens com base nas discussões travadas em

décadas de amadurecimento teórico.

A Carta de Veneza, elaborada em 1964 e até hoje nosso principal referencial

teórico, expõe com muita clareza e objetividade a citada ampliação do conceito de

patrimônio cultural. São considerados como monumento histórico, não apenas as

edificações grandiosas, mas também os sítios urbanos e rurais, bem como edifícios

modestos que tenham adquirido significado histórico ou cultural ao longo do tempo.

A Declaração de Amsterdã, elaborada em 1975, destaca a inserção de conjuntos

e bairros de interesse histórico na definição de patrimônio arquitetônico e ressalta

a necessidade de considerar a preservação desse patrimônio dentre os objetivos

do planejamento urbano e territorial. Para tanto, afirma ser necessário o diálogo

constante entre urbanistas e conservadores para que os procedimentos básicos do

planejamento urbano possam coadunar-se com as exigências de proteção aos edifí-

cios e áreas históricas. A integração entre a proteção desses artefatos e as políticas

urbanas, portanto, torna-se indispensável. Esse seria um caminho pelo qual ambos

os instrumentos – preservação e políticas públicas – poderiam beneficiar-se mutua-

mente; ao acolher as exigências de conservação do patrimônio arquitetônico e inte-

grar o artefato como dado de projeto, um planejamento adequado poderia incitar a

implantação de novas atividades em zonas decadentes, implementar usos contempo-

râneos em construções antigas como mecanismo de revitalização urbana e reduzir a

expansão da área metropolitana através da reabilitação dos bairros existentes, ação

que também representaria economia de recursos, pois exploraria a infra-estrutura

disponível.

Outro documento que enfatiza tais aspectos é a Carta de Washington – elabo-

rada em 1987 pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, ICOMOS. A Carta

complementa as questões enunciadas na Carta de Veneza, enfocando precisamente

as cidades ou bairros que representem valores específicos das civilizações urbanas;

valores particularmente ameaçados pela urbanização acelerada das últimas déca-

das. Consolida-se, portanto, o entendimento de que a preservação de áreas urbanas

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 154: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

153

PELO

S T

RIL

HO

S

especiais deverá necessariamente estar integrada a planos de maior abrangência,

bem como atentar para a manutenção das relações físicas e imateriais que compõem

esses conjuntos construídos: as relações entre volumes, o traçado urbano e o parce-

lamento, as características arquitetônicas dos edifícios e as relações com o entorno.

Tais diretrizes respondem perfeitamente, portanto, às especificidades dos sítios his-

tóricos industriais.

Paralelamente ao desenvolvimento desses debates e elaboração das citadas

cartas internacionais, cabe destacar a atenção de diversos pesquisadores para o

estudo e valorização do patrimônio específico da industrialização. Os téoricos da

chamada arqueologia industrial – Kenneth Hudson, Arthur Raistrick, Buchanan, Neil

Cossons, entre outros – , na mesma época em que se discutia a ampliação do con-

ceito de patrimônio cultural, voltaram-se para o estudo dos artefatos provenientes

da industrialização e buscaram elaborar métodos de pesquisa, levantamento e re-

gistro dos artefatos industriais. Na decada de 1970, com a criação do TICCIH, The

International Committee for the Conservation of Industrial Heritage, órgão voltado

especificamente para a preservação desse patrimônio, tais estudos receberam um

significativo impulso.

Cabe ressaltar, contudo, que as diretrizes emanadas dos documentos citados e

a ampliação dos estudos no campo da arqueologia industrial não têm sido suficientes,

tanto no contexto nacional como internacional, para a consolidação de uma efetiva

prática de reconhecimento dos valores do patrimônio industrial ou a garantia de seu

devido estudo, seleção e preservação. De modo geral, defender a preservação de edi-

fícios ou sítios industriais de interesse cultural é ainda tarefa muito difícil; o próprio

reconhecimento do valor cultural dessas estruturas esbarra em grandes entraves,

seja devido às características arquitetônicas da maioria dos edifícios industriais, em

geral pouco apreciadas, ou mesmo devido ao caráter de conjunto que não se com-

preende bem, predominam ainda as atitudes pautadas pela caracterização desses

artefatos segundo critérios de funcionalidade e lucro. Ao atuar em áreas industriais

desativadas – como aquelas existentes no perímetro da OUDS – , a prioridade ge-

ralmente é de ordem funcional: busca-se verificar qual o potencial que os edifícios

possuem para abrigar novos usos ou quais as possibilidades para nova ocupação

dessas áreas após a demolição. A verificação de suas possíveis qualidades históricas

e estéticas, portanto, facilmente passa para segundo plano ou nem mesmo chega a

ser aventada. Esse tipo de abordagem se verifica ainda mais quando consideramos a

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 155: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

154

PELO

S T

RIL

HO

S

escala urbana desse patrimônio. O fato de muitos sítios industriais ocuparem áreas

de grandes dimensões, por um lado dificulta a apreensão de suas especificidades

de conjunto e, por outro lado, aguça ainda mais o interesse na reutilização lucrativa

desses terrenos.

Considerando sobretudo as diretrizes de Amsterdã e de Washington, quando

identificado o interesse cultural dos conjuntos urbanos industriais, o seu tratamento

necessariamente deve ser pensado a partir de uma escala mais ampla, buscando

articular os diversos fatores envolvidos na dinâmica urbana e promovendo o diálo-

go entre as diretrizes de planejamento urbano e as exigências do restauro. É uma

situação, portanto, que nos remete às discussões em torno da preservação urbana:

a necessidade de pensar a inserção de novos elementos em sintonia com o preexis-

tente, de propor novos usos condizentes com a escala e a situação local, bem como a

pertinência de integrar projetos pontuais a projetos de maior abrangência reinserindo

com cuidado as áreas restauradas em uma nova realidade (RUFINONI, 2009).

Os antigos sítios industriais geralmente agrupam diversos edifícios construí-

dos em diferentes épocas, com tipologias construtivas distintas e cuja composição

espacial provém de complexas relações pautadas pelo desenvolvimento das ativida-

des produtivas ali sediadas. Dessa forma, esses sítios são compostos por grupos de

edifícios e espaços envoltórios vinculados entre si em função do processo produtivo.

Eventualmente, uma única edificação industrial isolada pode apresentar valores ex-

cepcionais, mas em muitos casos trata-se de uma rede de edifícios, fabris ou não,

inter-relacionados em torno da produção (galpões, edifícios fabris, vilas operárias,

pátios de manobras, equipamentos, etc.), cuja avaliação e preservação não fará sen-

tido se todos os elementos que compõem esse cenário não forem analisados como

um conjunto, como um patrimônio urbano. Também o entorno desses sítios – áreas

voltadas a outros usos, residenciais por exemplo –, deve ser observado e analisado

com atenção pois geralmente é composto por parcelas urbanas formadas e conso-

lidadas em grande parte devido à presença da indústria, são conjuntos construídos

que mantêm a homogeneidade volumétrica e a horizontalidade responsáveis pela

configuração da paisagem e da tradição urbana dos bairros industriais.

As características de parcelamento do solo em regiões ocupadas ou influencia-

das pela atividade industrial apresentam um ordenamento espacial específico para o

atendimento de funções produtivas que repercute em toda a composição do conjun-

to, seja na distribuição dos edifícios fabris, seja na localização de vilas operárias e ou-

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 156: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

155

PELO

S T

RIL

HO

S

tras estruturas urbanas. Assim, a procura pela funcionalidade e otimização de fluxos

produtivos e logísticos condiciona uma configuração própria e dinâmica que, ao se

transformar de acordo com a evolução dos sistemas produtivos, permite a observa-

ção de diferentes períodos da história da técnica e da própria urbanização de cada

localidade. Em alguns ramos industriais específicos, a necessidade de extensas áreas

repercutiu diretamente no parcelamento do solo urbano a partir da delimitação de

grandes lotes e da conseqüente ordenação do sistema viário que contornou extensas

e compactas parcelas urbanas (RUFINONI, 2004: 137). A preservação de edifícios

isolados, portanto, não surte muito efeito para a manutenção dessa paisagem.

Em qualquer cidade que possua exemplares significativos desse passado, como

no caso de São Paulo, sabemos que não será possível preservá-los em sua totalida-

de; precisaremos realizar uma seleção. Essas escolhas, contudo, deverão basear-se

em aprofundados estudos e pautar-se por rigorosas análises histórico-críticas para

que se possa definir quais parcelas devem ser preservadas, como manter parte sig-

nificativa dessas complexas relações e quais as diretrizes de desenvolvimento futuro

para as áreas envoltórias.

No caso dos sítios industriais existentes na área da OUDS, certos aspectos

dessa problemática têm sido observados pelo poder público. Em 2003, durante a

elaboração dos Planos Regionais Estratégicos – estudos que objetivaram complemen-

tar as propostas enunciadas em 2002 a partir da análise pormenorizada das áreas

encampadas por cada subprefeitura – , as características associadas à conformação

da paisagem e os valores de certos conjuntos urbanos do perímetro foram sensivel-

mente evidenciados, permitindo a proposição de medidas de preservação na redação

final do Plano Diretor, votado em 2004.

Entre outras análises, nos levantamentos elaborados pelos Planos Regionais,

a presença dos complexos fabris e a própria paisagem e morfologia característi-

ca da ocupação industrial foram consideradas com atenção. Tomando como base o

Plano Regional da Subprefeitura Mooca, no que concerne ao patrimônio de origem

industrial, as análises efetuadas demonstraram certa sensibilidade com relação às

características históricas da região, não apenas voltada para edifícios isolados, mas

também para a própria morfologia urbana como importante elemento caracterizador

desse patrimônio (SÃO PAULO, 2003). A participação popular durante o processo de

diagnóstico também seguiu nesse sentido. A evidenciação desse patrimônio é cita-

da dentre as preocupações mais prementes e sugeriu-se, inclusive, o tombamento

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 157: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

156

PELO

S T

RIL

HO

S

de algumas edificações. Os moradores indicaram trechos da orla ferroviária onde

gostariam que fosse criado um parque linear, iniciativa que revitalizaria os galpões

industriais de interesse histórico e também supriria a carência de áreas verdes na

região.2 Na elaboração final do Plano Diretor, algumas das edificações sugeridas rece-

beram um zoneamento específico: foram demarcadas como ZEPEC, Zonas Especiais

de Preservação Cultural, e encaminhadas para estudos específicos para verificar a

possibilidade de tombamento desses bens. Com este zoneamento, pretende-se esti-

mular a preservação dos imóveis e sítios, bem como estudar a possível aplicação de

instrumentos urbanísticos que orientem a reconversão de uso.3

O zoneamento ZEPEC define restrições na transformação do imóvel e busca

ressarcir os proprietários por meio da transferência do direito de construir, ou seja, o

potencial construtivo do lote demarcado com este zoneamento poderá ser transferido

para outros terrenos. Trata-se de um instrumento que visa dinamizar o tratamento

de áreas tombadas (ou em processo de tombamento) impedindo que as restrições

impostas se transformem em motivo de congelamento do bem. Com este instrumen-

to, o proprietário de um imóvel situado em ZEPEC pode transferir para outros ter-

renos o potencial construtivo que não poderá ser explorado na área preservada. Os

imóveis demarcados pelo Plano Diretor estão sendo analisados pelo DPH-CONPRESP

(Departamento de Patrimônio Histórico – Conselho Municipal de Preservação do Pa-

trimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) e alguns entraram

em processo de tombamento. Recentemente, proveniente de zoneamento ZEPEC,

foram tombados vários edifícios que compõem um significativo conjunto industrial

ao longo da rua Borges de Figueiredo, bem como definidos critérios específicos de

ocupação no entorno imediato.

2 Dentre as Subprefeituras envolvidas na Diagonal Sul, apenas na Subprefeitura Mooca (que inclui os bairros do Pari, Brás, Mooca, Belém, Tatuapé e Água Rasa) o Plano Regional Estra-tégico (PRE) chegou a indicar edifícios e sítios industriais para preservação. Nos Planos das Subprefeituras Sé, Ipiranga e Vila Prudente não encontramos indicações semelhantes. Dados gerais sobre as análises desenvolvidas pelos PREs podem ser consultados no site da Secretaria Municipal de Planejamento da Prefeitura Municipal de São Paulo.

3 Segundo o Artigo 168 do Plano Diretor, “Zonas Especiais são porções do território com diferen-tes características ou com destinação específica e normas próprias de uso e ocupação do solo, [...] As Zonas de Preservação Cultural – ZEPEC são porções do território destinadas à preser-vação, recuperação e manutenção do patrimônio histórico, artístico e arqueológico, podendo se configurar como sítios, edifícios ou conjuntos urbanos”. (SÃO PAULO, 2002)

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 158: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

157

PELO

S T

RIL

HO

S

Outro importante instrumento urbanístico que chegou a ser aventado para

certas parcelas da Diagonal Sul é o direito de preempção. Este instrumento, deter-

minado pelo Estatuto da Cidade, permite ao poder público a prioridade de compra de

um terreno no momento em que estiver à venda. Assim, a Prefeitura define no Plano

Diretor as áreas onde pretende exercer o direito de preempção, geralmente porções

consideradas estratégicas para futuros projetos de requalificação ou reestruturação

urbana. Na Diagonal Sul, uma grande extensão do eixo da via férrea e significativas

parcelas urbanas envoltórias haviam sido demarcadas como preempção. Nas últimas

revisões do Plano Diretor, contudo, a demarcação inicial sofreu grandes alterações.

Notamos, portanto, tanto pela delimitação das ZEPECs, como na demarcação de

áreas de preempção (ainda que tenham sido suprimidas, posteriormente) que o pa-

trimônio cultural da Diagonal tem sido observado com certa atenção e que existe a

intenção da municipalidade em promover a sua preservação. Conforme temos tra-

tado, no entanto, a grande extensão dessas áreas e a rapidez com que o mercado

imobiliário tem avançado, dificultam sobremaneira a efetivação de um programa a

longo prazo que permita o desenvolvimento de estudos detalhados e que conduza

coerentemente quaisquer medidas de preservação e de intervenção.

Um primeiro passo para qualquer operação na área seria a elaboração de estu-

dos detalhados sobre o perímetro da Diagonal Sul e de pesquisas aprofundadas sobre

seu processo de urbanização, sobre as edificações existentes, suas características

construtivas formais e técnicas, acompanhadas de estudos multidisciplinares que

permitissem a apreensão das diversas e complexas relações materiais e imateriais

que definem essa paisagem. Ao longo do extenso perímetro da operação urbana,

observamos numerosos edifícios e sítios industriais, bem como áreas residenciais

vinculadas à presença histórica das indústrias, que configuram um inestimável patri-

mônio urbano ainda não identificado e estudado convenientemente4.

Na Diagonal Sul e arredores são poucos os edifícios e sítios industriais efeti-

vamente protegidos por Lei. São tombados os edifícios da Estação do Brás e a Vila

Maria Zélia, em nível estadual e municipal (tombamento ex officio). Em nível munici-

pal, além do Moinho Matarazzo e da Tecelagem Mariangela, protegidos na década de

4 Existem alguns levantamentos parciais, como o estudo realizado na década de 1970 pela EMURB, Empresa Municipal de Urbanização e o IGEPAC elaborado pelo DPH na década de 1980, bem como pesquisas acadêmicas que têm se ampliado nos últimos anos, mas ainda há muito a ser estudado e atualizado. Nesse sentido, consultar RUFINONI, 2004 e 2009.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 159: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

158

PELO

S T

RIL

HO

S

1995, foram tombados em 2007, a partir de estudos impulsionados pelo zoneamento

ZEPEC, uma série de galpões na rua Borges de Figueiredo, na Mooca (fig. 2 e 3).

Além dos demais imóveis em ZEPEC que estão sendo estudados pelo DPH há, ainda,

outros pedidos encaminhados e processos de tombamento em análise, como a solici-

tação datada de 2006 que sugere a proteção de diversos galpões não listados pelos

Planos Regionais (RUFINONI, 2006).

O recente tombamento do conjunto industrial da rua Borges de Figueiredo

significou uma importante conquista para a preservação do patrimônio urbano in-

dustrial da cidade de São Paulo. Procurou-se proteger não apenas edifícios isolados,

mas todo um conjunto arquitetônico homogêneo e representativo de etapas decisivas

na formação urbana do bairro e da própria cidade.6 Foram tombados o conjunto de

galpões das Oficinas Vanorden; o Moinho Minetti Gamba (incluindo edifícios de pro-

dução de óleo, sabão e glicerina, os moinhos de trigo e arroz e espaços adjacentes);

o conjunto de depósitos para armazenagem de café posteriomente adquiridos pela

CEAGESP; o conjunto arquitetônico da Sociedade Técnica Bremensis e Schmidt Trost

(também conhecido como Cooperativa Banco do Brasil) e os armazéns da antiga São

Paulo Railway (fig.2).

O tombamento abrange o perímetro formado pelas ruas Borges de Figueiredo,

Monsenhor João Felipo, avenida Presidente Wilson e viaduto São Carlos e determina,

ainda, restrições de gabarito no entorno. As alturas das novas construções deverão

ser estudadas caso a caso, não ultrapassando, porém, 25m nas áreas adjacentes aos

imóveis tombados e 30m nos quarteirões entre a rua Borges de Figueiredo e a rua

João Antonio de Oliveira, que também não poderão ser remembrados, conforme o

mapa reproduzido na figura 3.

O tombamento desse extenso conjunto industrial e as restrições construtivas

no entorno foram motivo de muita polêmica, sobretudo por parte de empreendedores

5 Tombamentos: Moinho Matarazzo e Fábrica Mariangela (CONPRESP, Res. 38/92); Vila Maria Zélia (CONDEPHAAT Res. SC 43/92 e CONPRESP Res. 39/92); remanescentes da Estação do Brás (CONDEPHAAT Res. 22/82 e CONPRESP 5/91).

6 CONPRESP. Resolução 14/2007. Há, ainda, processo de tombamento aberto para os edifícios da Companhia Antarctica Paulista (Res. 09/07); para a chaminé remanescente da Companhia União de Refinadores, conjunto industrial em desativação (Res.07/08), ambos em nível munici-pal; e para o conjunto industrial da rua Joli, no Brás, em nível estadual. Para informações deta-lhadas sobre os edifícios tombados na rua Borges de Figueiredo, consultar: SÃO PAULO, 2007.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 160: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

159

PELO

S T

RIL

HO

S

2 – Conjuntos industriais no bairro da Mooca tombados em 2007. Da esquerda para a direita:

galpões da rua Borges de Figueiredo; edifícios da Sociedade Técnica Bremensis e Schmidt Trost;

Moinho Minetti Gamba. (fotos Rufinoni, 2004)

3 – Conjunto industrial da rua Borges de Figueiredo. Mapa anexo

à resolução de tombamento. (fonte: CONPRESP, Resolução 14/07)

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 161: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

160

PELO

S T

RIL

HO

S

imobiliários que já planejavam investimentos na área. Algumas edificações chegaram

a ser demolidas internamente, mesmo estando protegidas pelo zoneamento ZEPEC.

Atitudes que evidenciam as dificuldades políticas e econômicas envolvidas na prote-

ção desse patrimônio.

Um possível caminho para sugerir novos moldes de tutela e intervenção po-

deria se configurar a partir dos instrumentos urbanísticos a serem propostos pela

operação urbana. Se a preservação e o restauro do patrimônio urbano industrial in-

tegrarem, de fato, o escopo dos temas a serem abordados pela OUDS, conforme as

diretrizes de Amsterdã, a operação poderia configurar-se como um programa a longo

prazo voltado para a condução de um criterioso processo de requalificação, utilizando

a abertura jurídica que lhe é própria para a proposição de novos instrumentos de

tutela, preservação e intervenção devidamente estudados para atender às particu-

laridades do contexto em pauta. Não há, contudo, qualquer previsão para iniciar a

elaboração desses estudos e a programação de toda a operação urbana por ora está

suspensa.

Cabe ressaltar que a preservação do patrimônio urbano industrial não significa,

como argumentam alguns, o congelamento da cidade ou a mumificação de parce-

las estratégicas para o desenvolvimento urbano. Como esclareceu Miarelli Mariani

(1993), um dos desafios da preservação e do restauro urbano – de posse dos concei-

tos adquiridos e da compreensão dos valores inerentes às paisagens urbanas – é jus-

tamente permitir a relação dialética entre conservação e desenvolvimento, conforme

sugerem, inclusive, os citados documentos internacionais. Essa tarefa certamente

não será simples e implicará a congregação de diferentes disciplinas, adequadamente

interligadas, na busca pela interpretação dos pressupostos teóricos e por uma cons-

ciente aplicação na prática de intervenção. No caso específico de sítios industriais,

devemos considerar primeiramente um adequado e aprofundado conhecimento do

patrimônio existente, de suas particularidades compositivas materiais e imateriais,

para que possamos apreender a inteireza dos conjuntos construídos e os elementos

formadores que devem ser preservados. Não defendemos que tudo deva ser tutela-

do indiscriminadamente; diante de tão extensas e complexas preexistências indus-

triais é inevitável realizar uma seleção. Mas essas escolhas deverão pautar-se pelo

conhecimento amplo de cada território e pelas próprias análises histórico-críticas

que instrumentalizam a apreensão das qualidades de conjunto. O que não podemos

permitir é que essa seleção seja, na verdade, a tutela daquilo que sobrou; que as

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 162: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

161

PELO

S T

RIL

HO

S

escolhas ocorram pela ação do mercado imobiliário e não pelas determinações de

uma criteriosa análise. O caminho para a preservação do patrimônio urbano – e dos

remanescentes cada vez mais ameaçados de nosso passado industrial – deve buscar

uma retomada do entendimento da preservação e do restauro como atos críticos e

como ações pautadas pelo reconhecimento das especificidades do artefato cultural.

Devemos buscar, portanto, o aprofundamento dos debates aqui brevemente enun-

ciados de modo a permitir a abertura de caminhos investigativos e propositivos que

nos conduzam à efetiva preservação e reabilitação do patrimônio urbano de origem

industrial.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 163: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

162

PELO

S T

RIL

HO

S ISBN 987-85-86107-17-7

Page 164: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

163

PELO

S T

RIL

HO

S

REFERÊNCIAS BIBlIOGRÁFICAS:

BRASIL. Lei n. 10257, de 10 de julho de 2001. Estatuto da Cidade.

BUCHANAN, R. A. Industrial Archaeology in Britain. Harmondsworth: Penguin,

1974.

Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000.

COSSONS, Neil. The BP Book of Industrial Archaeology. London: David & Charles,

1978.

HUDSON, Kenneth. Industrial Archaeology: an introduction. London: Baker, 1966.

KÜHL, Beatriz Mugayar. Preservação da arquitetura industrial em São Paulo: ques-

tões teóricas. Relatório Científico FAPESP. São Paulo: FAUUSP, Fapesp, 2005.

________. Questões teóricas relativas à preservação da arquitetura industrial. De-

sígnio Revista de História da Arquitetura e do Urbanismo, n. 1, março 2004.

MIARELLI MARIANI, Gaetano. Centri Storici: note sul tema. Roma: Bonsignori,

1993.

RAISTRICK, Arthur. Industrial Archaeology: an Historic Survey. Frogmore: St. Al-

bans, Paladin, 1973.

RUFINONI, M. Preservação e restauro urbano: teoria e prática de intervenção em sí-

tios industriais de interesse cultural. Tese de Doutorado. São Paulo: FAUUSP, 2009.

________. Preservação do patrimônio industrial na cidade de São Paulo: o bairro da

Mooca. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FAUUSP, 2004.

________. Preservazione e tutela di siti storici industriali a San Paolo, Brasile. In:

XIII TICCIH International Congress. Roma, Terni: TICCIH, 2006.

SALES, Pedro M. R. Operações Urbanas em São Paulo: crítica, plano e projetos. Parte

5: Operação Urbana Digonal Sul. Arquitextos Vitruvius, n.315, junho 2005.

SÃO PAULO (Cidade). Lei no. 13.430, de 13 de setembro de 2002. Plano Diretor Es-

tratégico do Município de São Paulo.

________. Plano Regional Estratégico da Subprefeitura Mooca – relatório final. São

Paulo: SEMPLA, Instituto Polis, 2003, v.1,2.

________. Galpões Industriais Significativos. São Paulo: EMURB, [197-?].

________. IGEPAC – Inventário Geral do Patrimônio Ambiental, Cultural e Urbano de

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 165: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

164

PELO

S T

RIL

HO

S

São Paulo. São Paulo: SMC/DPH, 1987.

________. SMC/CONPRESP. Resoluções: 5/91; 38/92; 39/92; 10/95; 09/07; 14/07;

07/08.

________. SMC/DPH. Estudo para o tombamento do Patrimônio Industrial na orla

ferroviária em torno da Estação da Mooca. [Pesquisa desenvolvida por Ana Clara

Giannecchini, Dalva Thomaz e Valdir Arruda]. São Paulo: DPH, 2007.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 166: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

165

PELO

S T

RIL

HO

S

PAISAGEM CUlTURAl E POlÍTICAS DE PATRIMôNIO: TRADIÇÕES E CONFlITOS

Rafael Winter Ribeiro

Geoppol – Grupo de Estudos e Pesquisa em Política e

Território

Dept. de Geografia – UFRJ

Introdução

No Brasil, como parte de um movimento que tem origem internacional, desde

o final do século XX vivemos uma ampliação da noção de patrimônio, renovação re-

fletida na forma de organização e atuação das instituições, bem como nos seus ins-

trumentos legais de ação. Nesses primeiros anos do século XXI a noção de paisagem

cultural ganha cada vez mais destaque, tornando-se interesse de muitos que buscam

uma integração das políticas de patrimônio. A aparente facilidade de compreensão

da categoria – afinal, todos achamos que sabemos o que é uma paisagem, todos

achamos que sabemos identificá-la – além da possibilidade aventada de integração

através da paisagem de categorias antes analisadas em separado, como patrimônio

natural e cultural, material e imaterial, tornam a paisagem uma categoria extre-

mamente sedutora. Entretanto, o canto da sereia muitas vezes pode levar a falsos

caminhos e a aparente facilidade em lidar com esta categoria pode causar prejuízos

às políticas de preservação.

Há muito que a paisagem é alvo de políticas de patrimonialização. No Brasil,

essa preocupação nasce junto com a política federal de preservação cultural, pre-

sente desde o anteprojeto apresentado por Mário de Andrade e materializada na

criação de um Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico já em 1937,

no qual constam uma série de inscrições. Entretanto, quando se busca a designação

de paisagem cultural, procura-se uma espécie de reinvenção da categoria. Foi dessa

maneira que a paisagem cultural ganhou, nos anos 2000 no Brasil, o status de algo

novo, diferente da forma como a paisagem vinha sendo tratada tradicionalmente

nas políticas de patrimônio. O que pretendo discutir aqui é o fato de que esse novo

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 167: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

166

PELO

S T

RIL

HO

S

é construído a partir de tradições diversas nas quais se sobressaem, principalmen-

te, os discursos da geografia e do paisagismo e a forma como essas tradições são

incorporadas tem sérias implicações no processo de seleção dos sítios e na maneira

como estes são vistos e tratados. Nesse trabalho preliminar, a partir das ações da

UNESCO e da forma como a categoria de paisagem cultural está sendo construída

como instrumento de preservação patrimonial, faço uma análise das tradições que

estão sendo incorporadas ao discurso do patrimônio. Desse modo, o que pretendo

discutir brevemente com esse texto é a forma como a categoria de paisagem cultural

vem sendo apropriada nas políticas de patrimônio, identificando algumas das tradi-

ções que são incorporadas, moldando essa prática, e apontando também possíveis

conflitos e potencialidades na integração dessas diferentes tradições.

A (re) invenção da paisagem cultural

La Petite Pierre, França, Parque Natural Regional de Vosges du Nort, outubro

de 1992. Foi ali que um grupo de especialistas de formações diversas se reuniu para

consolidar uma discussão que já vinha sendo levada a cabo há algum tempo dentro

de organismos internacionais (UNESCO ICOMOS, IUCN) preocupados em quebrar

a dicotomia entre natural e cultural na Lista de Patrimônio Mundial. Dessa reunião

saíram as diretrizes para a criação da categoria de paisagem cultural dentro da Lista

de Patrimônio Mundial que acabou por se tornar referência, dando considerável visi-

bilidade a essa categoria e influenciando toda uma discussão sobre o tema e ações

em outras escalas. Não cabe aqui retraçar um histórico da implementação desta ca-

tegoria pela UNESCO, já realizado alhures1, mas apontar brevemente suas principais

características.

No documento que é elaborado, o grupo reconhece as paisagens como ilustra-

tivas da evolução da sociedade humana e seus assentamentos ao longo do tempo,

sobre a influência de contingências físicas e/ou oportunidades apresentadas pelo am-

biente natural, bem como pelas sucessivas forças social, econômica e cultural, que

nelas interferem. A partir de um entendimento amplo da paisagem, o grupo entendia

que, no caso da Lista do Patrimônio Mundial, as paisagens culturais deveriam ser

1 RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem Cultural e Patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN, 2007.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 168: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

167

PELO

S T

RIL

HO

S

selecionadas para a inclusão na Lista, assim como os demais sítios, pelo seu “Valor

Universal Excepcional” e pela representatividade em relação à sua região geocultu-

ral.

A partir de uma definição tão ampla, e visando maior objetividade para o reco-

nhecimento e atribuição de valor dessas paisagens, elas são divididas em três cate-

gorias distintas: 1) a paisagem claramente definida, aquela intencionalmente criada

pela homem, representada nos parques e jardins; 2) a paisagem essencialmente

evolutiva, que resulta da ação do homem como uma resposta ao ambiente natural,

refletindo o processo evolutivo da sociedade; 3) e a paisagem cultural associativa,

aquela cuja inscrição é justificada pelos valores associados a ela, muito mais do que

suas transformações físicas e seu agenciamento.

Nessa categoriazação das paisagens alvo de inscrição da Lista de Patrimônio

Mundial, emergem três focos claramente distintos: aquele que valoriza a planifica-

ção, os jardins e o paisagismo, um segundo que valoriza a maneira como sociedades,

notadamente as tradicionais, agenciaram seu ambiente, e uma terceira, que valoriza

os símbolos e valores associados a elementos da paisagem. Essa constituição não é

gratuita e está ligada à forma como diferentes ramos do conhecimento se apropria-

ram da noção de paisagem, conceitualizando-a e, claro, aos agentes responsáveis

por essas definições e ao jogo de forças internas e externas na UNESCO.

A dupla tradição

Em 2010, no mundo todo, existem 70 sítios inscritos como paisagem cultural

na Lista de Patrimônio Mundial da UNESCO. Apesar de toda a normatização para a

inscrição de um bem dentro desta categoria, é possível notar uma razoável diver-

sidade de sítios inscritos, revelando diferentes formas como a categoria tem sido

incorporada pelo Centro de Patrimônio Mundial.

Uma geografia das paisagens culturais inscritas pela UNESCO atualizada ainda

está por ser feita, mas a título de exemplo e apontando conclusões preliminares do

trabalho em curso, analisarei aqui sítios inscritos como paisagens culturais em dois

continentes: aquele que, historicamente tem sido privilegiado para inscrições na Lis-

ta e de onde partiu a maior parte das diretrizes para o Centro do Patrimônio Mundial,

a Europa, representado aqui neste texto pela Alemanha; e aquele que historicamente

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 169: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

168

PELO

S T

RIL

HO

S

tem sido marginalizado e, ainda hoje, apesar das ações afirmativas para inscrição de

sítios, tem um número bastante reduzido de inscrições, a África, representado aqui

pela África do Sul. Trata-se de um exemplo didático sobre as diferentes apropriações

da categoria de paisagem para políticas de patrimônio que, se não contempla o gran-

de universo de paisagens e países com inscrições na Lista, nos fornece um primeiro

olhar para a questão.

De uma maneira geral e esquemática, é possível identificar dois grandes gru-

pos de sítios, associados a duas tradições distintas em relação à paisagem: as quais

chamarei de a tradição geográfica, ou vidalina, e a tradição paisagista. A primei-

ra remete a uma preocupação com a relação homem/natureza pautada sobretudo

em sociedades tradicionais, nas quais os aspectos considerados “naturais” mantém

predominância na sociedade e na paisagem. O outro grupo de sítios inscritos como

paisagem cultural remete à tradição do paisagismo, os jardins e áreas planejadas.

Analisarei mais detidamente esses dois grupos.

Embora sem citação explícita, a presença daquilo que poderíamos identificar

como uma tradição geográfica ou vidalina pode ser percebida na inscrição de uma sé-

rie de sítios. Tomando como exemplo os dois sítios inscritos como paisagem cultural

pela África do Sul ela fica bem evidente. A “Paisagem Cultural e Botânica de Richter-

veld” é definida da seguinte forma: “O povo Nama leva ali uma vida pastoral semi-

nômade, testemunho de formas de vida que podem ter persistido por não menos que

dois milênios na África Austral. É o único local onde os Namas constroem ainda suas

casas cobertas de junco (haru oms).” 2

O segundo sítio inscrito pela África do Sul é denominado “Paisagem Cultural

de Mupungbwe” e tem a seguinte descrição: “Trata-se de uma paisagem de savana,

espaçada com árvores, arbustos e alguns baobás colossais. Na confluência dos rios

Limpopo e Shashe e juntando as rotas norte/sul e leste/oeste no sul da África, Ma-

pungubwe foi o maior reino do subcontinente antes de ter sido abandonado no século

XIV. Sobreviveram vestígios quase intactos dos sítios do palácio, com toda a zona de

povoamento que dele dependia, e duas capitais anteriores. O conjunto oferece um

panorama do desenvolvimento de estruturas sociais e políticas attravés de cerca de

400 anos.”

2 Esta, e as demais referências aos sítios da UNESCO são cortes da Declaração de Valor Uni-versal Excepcional destes sítios retiradas do portal da Lista do Patrimônio Mundial http://whc.unesco.org/en/culturallandscape.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 170: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

169

PELO

S T

RIL

HO

S

Na geografia francesa, para Paul Vidal de La Blache o conceito de paisagem

desempenhava um papel importante, embora tenha ficado mais conhecido por sua

preocupação com o conceito de região e como o fundador da geografia regional fran-

cesa que se tornou o eixo principal não só da geografia na França, mas em boa parte

do mundo até pelo menos a década de 1950, incluindo o Brasil.

Ao lançar a premissa de que a história de um povo é inseparável da área

que ele habita, Vidal de La Blache procurava fazer uma correlação entre o meio e

a sociedade que nele se desenvolve, ao mesmo tempo fundando um conhecimento

geográfico sem cair em determinações de causa e efeito que desde o século XVIII,

como a Teoria dos Climas de Montesquieu, por exemplo, acompanhavam esse tipo de

preocupação.

O importante é ressaltar que para Vidal, a paisagem é moldada pela cultura,

fruto da relação entre homem e natureza, gerando um tipo peculiar de viver. O con-

ceito de gênero de vida, por ele trabalhado e desenvolvido de maneira mais forte por

seus discípulos procura dar conta do produto dessa relação entre cultura e natureza

impregnada pela (e impregnando) a paisagem.

Embora sem citação direta, nota-se fortemente uma presença da tradição vi-

dalina, em confluência com a ecologia, nas diretrizes apontadas pela UNESCO e em

uma série de inscrições de sítios, como os apontados na África do Sul. A incorporação

dessa tradição à Lista de Patrimônio Mundial, embora tenha trazido com ela uma for-

ma de compreender processos naturais e culturais em conjuntos, incorpora à paisa-

gem cultural da UNESCO também uma daquelas que foi uma das críticas direcionadas

à Vidal, qual seja, sua associação com modos de vida tradicional e uma dificuldade

de inclusão de modos de vida modernos.

O paisagismo tem dado contribuições importantes para conceitualizações ope-

racionais de paisagem, marcadas sobretudo a partir de um caráter estético e tam-

bém muito próximo da preocupação de projetos. É importante lembrar também que,

embora no momento de criação da categoria de paisagem cultural esta tenha sido

idealizada a partir da tradição geográfica, são os arquitetos que trabalham com patri-

mônio e/ou os arquitetos paisagistas que, em sua maioria, irão lidar com a categoria

de paisagem cultural dentro das instituições de patrimônio e, nesse sentido, a partir

da prática a tradição paisagista passa a ter um peso importante.

Tomar como exemplo os três sítios hoje inscritos na Lista pela Alemanha como

paisagem cultural é revelador dessa tradição. Hoje são três sítios inscritos como

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 171: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

170

PELO

S T

RIL

HO

S

paisagem cultural na Alemanha3. Os Jardins de Dessau-Wörtlitz são assim definidos:

“O reino dos jardins de Dessau-Wörlitz é um exemplo excepcional de concepção pai-

sagista e de urbanismo do século XVIII, o Século das Luzes. Seus diversos compo-

nente – edifícios remarcáveis, parques, jardins ingleses e terras agrícolas sutilmente

modificadas – preenchem de maneira exemplar funções estéticas, educativas e eco-

nômicas. ”

O segundo é um sítio binacional, na fronteira entre a Alemanha e a Polônia,

o Parque de Muskau / Muakowski: “O parque de 559,90 ha, situado de um lado e

outro do rio Neisse na fronteira entre a Alemanha e a Polônia, foi criado pelo príncipe

Hermann von Pückler-Muskau entre 1815 e 1844. Inscrevendo-se harmoniosamente

na paisagem agrícola de seu entorno, esse parque inaugura novas concepções pai-

sagistas e influenciou o desenvolvimento da arquitetura paisagista na Europa e na

América.”

O terceiro é Vale do Reno: “Os 65 km do médio vale do Reno, com seus caste-

los, suas cidades históricas e seus vinhedos, ilustra de maneira viva a perenidade da

implicação humana na paisagem natural espetacular e diversificada. Esta paisagem

está intrinsecamente ligada à história e lendas e exerce, através dos séculos, uma

influência poderosa sobre escritores, pintores e compositores.”

Nota-se, sobretudo nos dois primeiros, uma predominância de paisagens pro-

jetadas, jardins e construções que remetem ao agenciamento planificado da paisa-

gem e a valorização dos projetos que foram realizados. A natureza aqui é algo total-

mente dominada e controlada pelo homem, seguindo preceitos estéticos e sociais. O

que se valoriza, acima de tudo, é o projeto, a maneira como a natureza foi agenciada

e o trabalho do homem foi incluído seguindo uma determinação bem dirigida.

Considerações finais

Existe ainda a necessidade de uma ampla análise sobre os sítios inscritos como

paisagem cultural na Lista de Patrimônio Mundial, sua distribuição geográfica e a

3 Um quarto sítio, a Paisagem Cultural de Dresden, no Vale do Elba, foi retirado da Lista em 2009 em função de intervenções, notadamente a construção de uma ponte, que foi considerada como incompatível com os valores inscritos na Declaração de Valor Universal Excepcional do sítio.

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 172: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

171

PELO

S T

RIL

HO

S

forma como as diferentes tradições e acepções do conceito de paisagem tem sido

incorporadas – um atlas das paisagens culturais patrimônio mundial, mas que além

de meramente descritivo seja capaz de fornecer informações sobre formas distintas

de compreensão de uma paisagem cultural.

Embora o número de sítios analisados aqui tenha sido extremamente pequeno

diante do universo já inscrito como paisagem pela UNESCO, ele oferece um laborató-

rio para começarmos a pensar a forma como a ideia de paisagem tem sido integrada

nas políticas de patrimônio. Mais que isso ainda, ele nos permite começar a pensar e

repensar estas políticas, tomando conscientemente interpretações da paisagem que

melhor estejam adequadas às nossas necessidades.

No caso da forma como aquilo que chamamos de tradição geográfica tem sido

incorporada à Lista, como dito anteriormente, ela acaba refletindo as mesmas críticas

dirigidas à Vidal de La Blache por alguns. Áreas de grandes cidades tem dificuldade

de inscrição segundo essa tradição, uma vez não mais apresentam “elementos natu-

rais” presentes na paisagem, já bastante alterada, embora a meu ver, elas possam

representar um bem acabado exemplo de paisagem cultural, na medida em que são

paisagens construídas pela cultura. Como também não são fruto de um projeto único,

também não se encaixam na tradição paisagista. É possível inscrever alguns proje-

tos dentro de cidades, como tem sido feito, mas a paisagem urbana, também tem

dificuldade de encontrar explicação dentro da Lista. Essas são apenas algumas das

questões que, conseguimos enxergar a partir do momento em que analisados que

tipo de discurso sobre a paisagem tem sido incorporado nas políticas públicas.

Nesse momento em que se procura uma formulação de uma política brasileira

para paisagens culturais é necessário pensar a experiência brasileira à luz das di-

ferentes tradições e incorporar, conscientemente, aquilo que melhor se adequar às

nossas necessidades. Reitero aqui, mais uma vez, a necessidade de que qualquer

trabalho sobre paisagem cultural não pode passar ao largo da rica discussão concei-

tual sobre o tema. Uma política de paisagens culturais no Brasil precisa ser montada

conscientemente sobre essa discussão conceitual, sob pena de banalizar a paisagem

cultural.

O técnico/pesquisador que tem como objetivo trabalhar na identificação de

paisagens culturais precisa fazê-lo consciente de que realizará um recorte tanto es-

pacial quanto conceitual, precisará se posicionar com relação a quais abordagens de

paisagem está se remetendo e, com isso, precisa ir buscar a história da discussão so-

ISBN 987-85-86107-17-7

Page 173: IDENTIFICAÇÃO & REGISTRO PELOS TRILHOSpelostrilhos.net/pdf/pdf0.pdf · São dois os principais produtos do projeto Paisagens Ferroviárias: este livro e um site (). Embora o site

172

PELO

S T

RIL

HO

S

bre o conceito. A paisagem cultural não pode e não deve ser usada a partir do senso

comum ou como o conceito que irá resolver todos os problemas agregando tudo que

se pensa “cultural”, sob pena de ser banalizada. Devemos fugir da tentação de iden-

tificar nessa categoria a solução para todos os problemas. Como qualquer categoria/

conceito, sua força está exatamente em suas limitações, nos forçando a trabalhar

dentro de um determinado quadro. Se bem utilizada ela apontará um rico caminho a

ser trilhado na incorporação de novas referências às políticas de patrimônio.

ISBN 987-85-86107-17-7