Identidades Brasileiras Nas Hqs

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46 Geisa Fernandes D’Oliveira Nasceu em Niterói, RJ. Formada em História pela Unicamp, é Doutora em Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Membro do Observatório de Histórias em Quadrinhos (ECA/USP), colabora com a Revista Latinoamericana de Estudios sobre la Historieta (Cuba) e com o International Journal of Comic Arts (EUA). Paralelamente à pesquisa acadêmica e à literatura, atua em projetos na área de música, como cantora e compositora. E-mail: [email protected] IDENTIDADES BRASILEIRAS NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS IDENTIDADES BRASILEÑAS EN CÓMICS BRAZILIAN IDENTITIES IN COMIC BOOKS

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Geisa Fernandes Doliveira

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    Geisa Fernandes DOliveira

    Nasceu em Niteri, RJ. Formada em Histria pela Unicamp, Doutora em

    Comunicao pela Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So

    Paulo. Membro do Observatrio de Histrias em Quadrinhos (ECA/USP),

    colabora com a Revista Latinoamericana de Estudios sobre la Historieta

    (Cuba) e com o International Journal of Comic Arts (EUA). Paralelamente

    pesquisa acadmica e literatura, atua em projetos na rea de msica,

    como cantora e compositora.

    E-mail: [email protected]

    IDENTIDADES BRASILEIRAS NAS HISTRIAS EM QUADRINHOS

    IDENTIDADES BRASILEAS EN CMICS

    Brazilian identities in comic Books

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    RESUMO

    O processo de construo de uma crtica apropriada s histrias em

    quadrinhos. A busca por histrias tipicamente nacionais. Histrias em

    quadrinhos: poltica e resistncia. As diversas construes identitrias

    contemporneas.

    Palavras-chave: QuAdrinHOs; identidAde; HumOr; BrAsil.

    RESUMEN

    el proceso de construccin de una crtica apropiada a los cmics. la bsqueda

    de historietas tpicamente nacionales. Historietas: poltica y la resistencia.

    las diversas construcciones de la identidad en la contemporaneidad.

    Palabras clave: HistOrietAs; identidAd; HumOr; BrAsil.

    ABSTRACT

    the process of building an appropriate critique to comics. the search for

    typically national stories. Comics: politics and resistance. the various forms

    of contemporary identities.

    Keywords: COmiCs; identity; HumOr; BrAzil.

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    da lista de interesses do pblico culto europeu.

    somente a partir dos anos sessenta do sculo XX,

    com a influncia declarada das histrias em qua-

    drinhos na obra de exaltados artistas como Andy

    Warhol, a crtica passa a voltar seus olhos para

    produes ligadas sociedade de consumo. (Gr-

    newald, 2000, p.67-9).

    no entanto, o significativo aumento do nmero

    de trabalhos sobre histrias em quadrinhos na aca-

    demia (Vergueiro; santos, 2006), seu emprego em

    exames de admisso para as diversas universidades

    brasileiras e a presena cada vez mais assdua de

    produtores e crticos da rea em eventos literrios

    so provas do estabelecimento da linguagem como

    forma de compreender o real. O discurso dos qua-

    drinhos se qualifica, obtm competncia para

    ser usado como mediador de realidades, na medida

    em que visto pelo pesquisador como fonte prim-

    ria, assim como ocorre com a produo de outras

    linguagens (a fotografia, a telenovela, o romance).

    2. Em busca de um quadrinho nacional

    A busca por histrias em quadrinhos que incor-

    porassem elementos tipicamente nacionais e fos-

    sem alm da reproduo dos trabalhos estrangei-

    ros encontra-se na gnese da linguagem no Brasil.

    dentre as marcas da produo locais, destacam-se

    a acentuada crtica poltica e de costumes, temas

    compartilhados com a caricatura, da qual os qua-

    drinhos brasileiros herdaram muitas de suas ca-

    ractersticas (Figura 1).

    Coube a um criativo e mordaz caricaturista, o

    talo-brasileiro Angelo Agostini, a autoria das pri-

    meiras narrativas em imagens seqenciadas publi-

    cadas no Brasil (Cirne, 1990, p.16). em As Aven-

    turas de Nh Quim, de 1869 e As Aventuras de Z

    Caipora, de 1883, Agostini explorou o humor pre-

    sente no confronto entre tipos urbanos e rurais. A

    Corte e suas afetaes europias e as riquezas de

    fachada eram postas prova por tipos nacionais

    como o homem do campo (rude, porm prspe-

    ro) ou o valente ndio brasileiro.

    1. Construindo a crtica

    O crtico alemo dietrich Grnewald (2000) cita

    o trabalho Histria da Histria da Arte, de u. Kulter-

    mann, para ilustrar o surgimento e a consolidao

    da crtica prpria das histrias em quadrinhos. se-

    gundo Kultermann (1996), no h uma histria da

    arte antiga, pois o esprito do tempo da poca no

    permitia esta aproximao. Foi necessria uma mu-

    dana da percepo coletiva, ocorrida nos decorrer

    dos sculos XiV e XV, para que pintores, esculto-

    res ou artesos se vissem como artistas. somente a

    partir desse reconhecimento, passa a ser possvel se

    falar em uma teoria sobre a arte, um registro de sua

    histria para alm dos objetos representativos.

    nas histrias em quadrinhos ocorreu, de forma

    semelhante, primeiramente uma ausncia de crtica

    especializada, seguida por trabalhos pioneiros que

    se calcavam prioritariamente sobre gostos pesso-

    ais. A grande flexibilidade dos quadrinhos torna-os

    capazes de dialogar com diversos seguimentos de

    pblico, podendo ser apreciados bem longe de suas

    fronteiras originais, circulando internacionalmente

    com desenvoltura. Por outro lado, cria dificuldades

    para seus tericos, os quais no raro confundem o

    meio com a linguagem e seus gneros.

    Para Grnewald, as histrias em quadrinhos

    chegam mesmo a desfrutar dessa posio inter-

    mediria entre uma linguagem de grande aceita-

    o, porm ligada a uma forma marginal de cul-

    tura. entenda-se por margem assuntos abstrados Figura 1

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    velhos esteretipos disfaradamente racistas, os

    quais enaltecem a variedade de grupos presentes

    na formao do povo brasileiro estabelecendo, no

    entanto, uma rgida hierarquia entre eles.

    neste sentido, a anlise de Cirne seria mais pro-

    blemtica, por seu tom anacrnico, que o desenho

    de J. Carlos, uma vez que este est inserido num

    senso comum da poca, enfraquecido, mas ainda

    vigente, a respeito da identidade nacional. Ao si-

    tuar a menina Lamparina no cenrio nacional, a

    partir de um ponto de vista exgeno, J. Carlos est

    de acordo com diversas teorias sobre raa e cor

    vigentes na dcada de 1930 no Brasil. Por outro

    lado, Cirne, ao ver no personagem um smbolo do

    tipicamente nacional, descontextualiza a discus-

    so a respeito destas teorias e toma a representa-

    o somente pelo que ela deixa ver, descartando o

    que ela oculta.

    3. Pag e a construo de uma identidade poltica

    Ancestral do Pasquim, o jornal O Homem do

    Povo foi fundado em maro de 1931 por Oswald

    de Andrade e Patrcia Galvo, a Pag. A jornalista

    assinava uma coluna (A mulher do povo) e tam-

    embora pautado por grandes sucessos vindos de

    fora, o mercado nacional de quadrinhos no raro

    expressou a preocupao em definir o conceito de

    brasilidade. na revista O Tico-Tico (1905), por

    exemplo, o carro chefe era o clebre Chiquinho, na

    verdade Buster Brown, criao do norte-america-

    no richard Felton Outcault. na verso brasileira,

    porm, o menino aparecia devidamente escolta-

    do pelo amigo negro Benjamin, personagem no

    existente na histria original. (Cirne, 1990, p.21)

    (Figura 2)

    estratgia algo parecida de lidar construo e

    (re)afirmao de identidades so expressas nos

    trabalhos de jovens autores nacionais, represen-

    tantes de uma gerao movida pelo cruzamento

    de gneros estilsticos (h lugar para citaes a fil-

    mes, livros, programas de televiso). A profuso

    de referncias utilizadas na construo das iden-

    tidades brasileiras rene elementos tradicionais

    da cultura brasileira e apropriaes de tendncias

    internacionais. A impresso a de que nenhuma

    origem deva ser identificvel, nenhuma fronteira

    reconhecvel e nenhum limite desejado. no entan-

    to, o atrito entre o conceito de identidade nacional

    e suas possveis manifestaes na representao se

    manifesta em brechas demonstradas tanto pelos

    autores, quanto por seus crticos. este o caso da

    leitura que o crtico brasileiro moacy Cirne (1990)

    faz da obra do desenhista J. Carlos, criador do per-

    sonagem Lamparina, histria publicada na revista

    O Tico-Tico.

    Cirne atribui a J. Carlos a criao, em 1928, do

    primeiro personagem negro, tipicamente brasilei-

    ro, das histrias nacionais. no entanto, Lamparina

    descrita como uma menina proveniente de uma

    tribo de selvagens, que no fala portugus e que

    foi oferecida pelo rei da tribo a Jujuba, outro per-

    sonagem da galeria de J. Carlos para O Tico-Tico,

    como um presente por suas mgicas.

    A origem exgena de Lamparina e a forma como

    ela se aproxima da cultura brasileira - por meio de

    uma oferenda e no de uma conquista - recai em

    Figura 2

  • 50

    nas histrias de Pag, mais que a militncia pol-

    tica, restrita ao sentido de reproduo das diretrizes

    partidrias, v-se uma tentativa de subverso dos

    costumes. na tira reproduzida, a brincadeira com

    a paixo de Cristo e a mensagem malcriada da Ka-

    belluda ressuscitada (agora vocs me pagam) se

    apiam em situaes facilmente reconhecveis pelo

    leitor brasileiro para, a partir de outro final, ou seja,

    da proposio de uma estratgia de agncia dife-

    rente daquela costumeiramente ligada aos cnones

    catlicos (a obedincia, a redeno pela morte)

    chamar ateno do leitor comum para as mltiplas

    possibilidades de interao com sua realidade.

    A construo da identidade poltica ganha con-

    tornos regionais, integrando-se ao momento vivi-

    do pelo pas, e a representao deixa aparentes as

    frestas que compem a relao como referencial.

    O homem do povo (com o qual a Kabelluda foge

    em uma das histrias), tanto pode ser o brasileiro

    ideal a quem Pag e Oswald de Andrade, ambos

    procedentes de famlias burguesas, tentavam se

    dirigir; quanto cada um dos trabalhadores do

    Brasil, evocados por Getlio Vargas no incio de

    seus discursos.

    4. Humor e resistncia: O Pasquim

    ligado a um momento mais recente de nossa hist-

    ria, o peridico humorstico O Pasquim foi a grande

    publicao do perodo do regime militar brasileiro,

    destacando-se por uma postura nacionalista e crtica

    contra os desmandos dos poderes dominantes.

    Assim como O Tico-Tico, o Pasquim no era

    uma revista propriamente de quadrinhos, mas

    com histrias em quadrinhos

    (alm de charges, caricaturas e

    entrevistas). Fundado pelo car-

    tunista Jaguar juntamente com

    tarso de Castro, srgio Cabral e

    Carlos Prsperi, o tablide sema-

    nal de humor, visava substituir A

    Carapua, que pouco antes havia

    encerrado suas atividades.

    bm uma histria em quadrinhos: Malakabea,

    Fanika e Kabelluda. O tom panfletrio da publi-

    cao se fazia presente tambm na narrativa, que

    contava a histria de um casal burgus que recebe

    da cegonha, uma sobrinha pobre. dentre outras

    peripcias, a Kabelluda provoca o cime da me

    adotiva, torna-se militante comunista, morre fu-

    zilada e ressuscita.

    As tiras de Pag so exemplos de como uma

    figura estranha ao meio editorial da poca (uma

    mulher jornalista, no Brasil, na dcada de 1930)

    apropriou-se das histrias em quadrinhos com

    fins polticos. Pag colaborava tambm como

    ilustradora e escrevendo diversas colunas no jor-

    nal, sob pseudnimos. As histrias de Kabelluda

    situam-se num terreno de transio entre ilustra-

    o e quadrinhos. Os bales de fala so pouco uti-

    lizados e as calhas a serem preenchidas pelo leitor

    muito extensas, o que confere narrativa um de-

    senvolvimento em saltos, dificultando o fluxo do

    continuum virtual (Cirne, 2000).

    lanando mo de uma linguagem intimamente

    ligada sociedade de consumo capitalista, os qua-

    drinhos de Patrcia Galvo so testemunhos da in-

    corporao de regionalismos como forma de am-

    pliar a difuso de suas idias pela ideologia comu-

    nista, apesar de sua inteno de internacionalismo.

    O fato dO Homem do Povo reservar espao para

    histrias em quadrinhos significativo, pois indica

    uma preocupao da publicao em se assemelhar

    a outros jornais do perodo, propondo um espao

    ldico de interao com o leitor (Figura 3).

    Figura 3

  • 51

    ela fica. Qualquer po-

    sio intermediria

    tambm incompleta e,

    portanto, indesejada.

    em outras palavras:

    saber, sem poder;

    assim como poder,

    sem saber, no levam

    muito longe. um,

    sem o outro, so

    competncias ina-

    cabadas, que no se

    sustentam.

    Consideremos a sociedade brasileira como o la-

    birinto. tomando como base a teoria de Bauman

    (2001), este seria formado no por paredes ou cer-

    cas vivas, parecendo-se mais com um emaranhado

    fluido, sem contornos definidos, ao qual estaramos

    confinados. um espao que pode se tornar viscoso

    a qualquer momento, mas que oferece como com-

    pensao a seus habitantes/prisioneiros uma notvel

    capacidade de adaptao. mesmo ignorando se h

    um local fora do labirinto (ou, em caso positivo, se

    ele oferece vantagens em relao posio anterior),

    nos movimentamos por ele e demarcamos nossa

    passagem por meio das representaes.

    A maneira como demarcamos essa passagem

    no se mantm constante e pode ser descrita de

    diversas maneiras. Para o crtico Antnio Cndi-

    do (1970), a tolerncia se impe como um trao

    distintivo da sociedade brasileira desde sua for-

    mao. A conseqncia dessa caracterstica na

    literatura a formao de tipos que tratam a lei

    apenas como uma instncia mediadora na cons-

    truo de sua conduta moral.

    O primeiro nmero chegou s bancas em 26 de

    junho de 1969. era um semanrio de crtica de

    costumes onde pouco espao cabia ao coment-

    rio poltico aberto. no comeo havia pouco es-

    pao para poltica e a publicao era basicamente

    comportamental. mas com o recrudescimento da

    ditadura, o jornal passou a sofrer uma maior vi-

    gilncia dos militares, tornando-se, por sua vez,

    mais e mais politizado (Figura 4).

    na medida em que a censura aumentava, o

    Pasquim intensificava sua verve crtica, seguindo

    a tradio do humor impresso de assumir uma

    postura de luta contra a opresso. desta forma, se

    colocavam como herdeiros de O Malho, A Careta,

    Dom Quixote, A Manha, o Pif-Paf, e a citada Re-

    vista Ilustrada.

    O jornal durou 22 anos, encerrando-se em 1991.

    sua trajetria mais um exemplo de como as ar-

    tes grficas podem ser usadas como uma via de

    entendimento do processo de incluso do pas em

    discusses estticas (no que se refere forma), eco-

    nmicas (fatores referentes produo e circulao

    dos exemplares) e polticas (temas mais freqentes,

    grau de liberdade de produo, dentre outros).

    5. Quadrinhos e a modernidade lquida (Figura 5)

    A imbricada relao entre poder e saber tra-

    balhada de maneira bem humorada na srie As

    Cobras, do escritor e quadrinista brasileiro luis

    Fernando Verssimo. Os personagens esto presos

    num labirinto que muita gente sabe explicar,

    mesmo sem conhecer a sada. Pode-se imaginar

    que a cobra do ltimo quadro, apesar de no sa-

    ber explicar o caminho para a sada, saiba guiar

    os outros at l, o que j seria um avano consi-

    dervel, apesar de pouco conve-

    niente, porque implicaria numa

    relao de dependncia. Ou seja:

    explicar o labirinto e no saber

    onde fica a sada um conheci-

    mento to vo quanto conhec-

    -la, mas no saber explicar onde Figura 5

    Figura 4

  • 52

    A busca pelo equilbrio entre os dois lados desta

    balana se alinha com o conceito de modernidade

    lquida descrito por Bauman. Os agentes sociais

    tero de deslizar fluidamente pelas categorias de

    produtores, receptores, crticos e divulgadores. sai

    de cena o artista inalcanvel, detentor do conhe-

    cimento de produo (mas no necessariamente

    de reproduo), para dar lugar ao agente mlti-

    plo, que entende sua arte como expresso cultural

    e produto de massa. O consumidor, por sua vez,

    abandona a crena de ocupar o ltimo degrau da

    escada das produes culturais e se percebe como

    elo de uma cadeia.

    O movimento de realocao de saberes e o esta-

    belecimento de discursos nos permitem descobrir

    muito a respeito do que as sociedades entendem

    por cincia, seus sistemas de crenas e relaes

    de poder. Os objetos sobre os quais se debruam

    o saber institudo mudaram, por certo, mas no

    foram os nicos. O olhar que os agentes sociais

    lanam sobre ele tambm j no mais o mesmo.

    A expanso e diferenciao dos suportes res-

    ponsveis pela divulgao de histrias em quadri-

    nhos trazem novas questes ao campo: se a tira e

    a caricatura no perdem seu frescor na forma im-

    pressa ou digitalizada, at que ponto uma hist-

    ria interativa, somente disponvel na internet, na

    qual o leitor escolhe o andamento e os desfechos

    da narrativa ainda uma histria em quadrinhos?

    O quo indispensveis para este discurso so as

    calhas, os enquadramentos e mesmo o contato

    ttil, o virar de pginas? Quais as conseqncias

    para o autor do aumento do nmero de pessoas

    que tero acesso obra e dos canais de veiculao?

    Como suprir todos os sites especializados, alm

    das verses on line de jornais e revistas?

    A intensa troca de informaes entre elaborador

    e receptor que se verifica atualmente ter, decerto,

    desdobramentos que escapam aos observadores

    contemporneos. possvel afirmar, no entanto que,

    a partir das alteraes, outras apreciaes se estabele-

    cero e talvez o panorama da produo nacional da-

    Valores cristalizados e normas de comporta-

    mento social e privado tradicionais so, ao mes-

    mo tempo, ambicionados e rechaados. A busca

    por um ideal de civilizao nos moldes europeus

    convive com a recusa em relao aplicao dos

    dispositivos legais que zelariam por esta mesma

    civilizao que se queria inventar.

    A lei, tomada no como um regulador social,

    mas como uma mera mediao, garante a manu-

    teno da liberalidade de costumes, sendo esta a

    faceta mais atraente da sociedade que se formava.

    da nosso apreo to remoto pela piada corrosiva

    e pelo anti-heri. (Cndido, 1970).

    no sendo descendentes diretos dos europeus,

    como tampouco o foram nossos antepassados es-

    panhis e portugueses, povos que j mantinham

    contato com outras culturas e por elas se deixaram

    influenciar, no produzimos heris no sentido

    dado por Will eisner (2005) ao vocbulo, ao tra-

    tar das influncias nacionais nos quadrinhos. Para

    este autor, o super-heri produto da liberdade

    da qual os autores de quadrinhos dispem e confi-

    gura um exemplo da necessidade de diferenciao

    em relao ao realismo de outras linguagens visu-

    ais, como o teatro e o cinema.

    mesmo remetendo a tipos clssicos, como os ho-

    mens fortes do circo, de onde deriva sua vestimen-

    ta peculiar (eisner, 2005, p.78) os super-heris so

    figuras especficas da cultura norte-americana, sa-

    tisfazendo um fascnio coletivo pelo homem que,

    por sua retido de carter, integridade e fora fsi-

    ca alcana seus objetivos. A malcia, to aprecia-

    da pelos brasileiros, um elemento ausente nesta

    equao. no entanto, s influncias de caracters-

    ticas nacionais sobre o autor de quadrinhos, vm

    se juntar a utilizao de cdigos universalmente

    reconhecveis, traduzidos em gestos, posturas

    corporais, expresses faciais, entre outros compo-

    nentes da linguagem visual. imagens facilmente

    reconhecveis dialogam com a realidade, no pela

    semelhana, mas por recordarem experincias co-

    muns (ibidem, p.19).

  • qui a algumas dcadas guarde poucas semelhanas

    com o cenrio atual. mudam os agentes culturais e o

    mesmo acontece com as representaes.

    O carter lquido no significa uma perda de

    caractersticas essenciais. Assim como uma deter-

    minada quantidade de gua (num copo ou der-

    ramada no cho) continua a ser gua, tambm os

    indivduos mantm marcas distintivas prprias

    dentro da sociedade, independente da funo que

    exeram. A liquidez diz respeito impossibilidade

    de se estabelecer um preceito rgido de classifica-

    o que dite o que pode vir a ser classificado de ti-

    picamente nacional. A coexistncia entre o que h

    de fixo e de mvel nesta nova conformao social

    se alia ao exerccio das identidades contempor-

    neas. neste sentido, a linguagem dos quadrinhos

    comporta expresses, aplicaes e reinvenes de

    diversos modelos de brasilidade.

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