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Mesa temática: Epistemologías coloniales/des/poscoloniales IDENTIDADE, COLONIALISMO & UTOPIA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A AÇÃO ARTÍSTICA DO MOVIMENTO INTERCULTURAL IDENTIDADES NA COMUNIDADE QUILOMBOLA CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS. Autor: Madalena Zaccara Instituição: Universidade Federal de Pernambuco e-mail: [email protected] Resumo O Movimento Intercultural IDENTIDADES, nascido em Porto, Portugal, interage com comunidades de colonização lusa através de uma proposta de arte relacional. Ele atua em Moçambique, Cabo Verde e Conceição das Crioulas, comunidade quilombola no Nordeste do Brasil. É sobre asua atuação em Conceição das Crioulas e de nossa experiência enquanto historiadora de arte e membro do grupo que trataremos no presente texto. A utopia da comunidade de origem quilombola é um dos produtos artísticos do grupo e serve de ponto de partida para uma História da Arte que se afasta da cronologia e da concepção ocidental de obra de arte. Palavras Chave: Movimento Intercultural “Identidades”; descolonização; Utopia, Conceição das Crioulas. Abstract The Intercultural Movement IDENTIDADES, born in Porto, Portugal, interactswithportuguesecolonizationcoloniesthrough a proposalofrelational art. It acts in Moçambique, Cabo Verde and Conceição das Crioulas, a quilombola community in theNortheastofBrazil. It is to its activity in Conceição das Crioulas and our experience as an art historian and member of the group that we will treat the present text. The utopia of the community of quilombola

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Mesa temática: Epistemologías coloniales/des/poscoloniales

IDENTIDADE, COLONIALISMO & UTOPIA: CONSIDERAÇÕES

SOBRE A AÇÃO ARTÍSTICA DO MOVIMENTO INTERCULTURAL

IDENTIDADES NA COMUNIDADE QUILOMBOLA CONCEIÇÃO

DAS CRIOULAS.

Autor: Madalena Zaccara

Instituição: Universidade Federal de Pernambuco

e-mail: [email protected]

Resumo

O Movimento Intercultural IDENTIDADES, nascido em Porto,

Portugal, interage com comunidades de colonização lusa através de

uma proposta de arte relacional. Ele atua em Moçambique, Cabo

Verde e Conceição das Crioulas, comunidade quilombola no Nordeste

do Brasil. É sobre asua atuação em Conceição das Crioulas e de nossa

experiência enquanto historiadora de arte e membro do grupo que

trataremos no presente texto. A utopia da comunidade de origem

quilombola é um dos produtos artísticos do grupo e serve de ponto de

partida para uma História da Arte que se afasta da cronologia e da

concepção ocidental de obra de arte.

Palavras Chave: Movimento Intercultural “Identidades”;

descolonização; Utopia, Conceição das Crioulas.

Abstract

The Intercultural Movement IDENTIDADES, born in Porto,

Portugal, interactswithportuguesecolonizationcoloniesthrough a

proposalofrelational art. It acts in Moçambique, Cabo Verde and

Conceição das Crioulas, a quilombola community in

theNortheastofBrazil. It is to its activity in Conceição das Crioulas and

our experience as an art historian and member of the group that we

will treat the present text. The utopia of the community of quilombola

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origin is one of the artistic products of the group and serves as

starting point to a History of Art that moves away from chronology

and the occidental conception of the work of art.

Keywords: Intercultural Movement "Identidades", uncolonization;

utopia; Conceição das Crioulas.

Sobre economia, marginalização, identidade e descolonização.

Uma epistemologia do Sul se traduz em

três orientações: aprender que existe o

Sul; aprender a ir para o Sul; aprender

a partir do Sul e com o Sul1

Novas formas de soberania capitalista desenham, na

contemporaneidade, a cartografia do poder econômico e cultural em

um processo contemporâneo de colonização. O discurso neoliberal

fica ainda mais forte enfraquecendo as instituições políticas que

poderiam em principio tomar posição contra a liberdade do capital e

da movimentação financeira.Globalização significa, entre outras

coisas, a progressiva separação entre poder e política com um capital

que tornou-se extraterritorial, não mais submetido às fronteiras do

Estado.

A pós – modernidade, modernidade líquida ou modernidade

avançada (não importa a terminologia utilizada para definir o aqui e

agora), se manifesta como um consumir transformado em uma

ideologia de tal forma manipuladora que se torna quase um culto.

Não se consome o objeto em si, pela sua utilidade, e sim pelo que ele

representa pela sua capacidade de remeter o consumidor a uma

determinada posição, a um determinado status. Para tanto, todo um

ritual foi criado, planejado e é executado cotidianamente tendo as

1Boaventura, Santos. Pela Mão de Alice: O Social e o Político na Pós-Modernidade, São Paulo: Cortez,

1995.

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mídias como missionários na conversão dos fiéis.Trata-se de uma

sociedade de consumo estabelecida “com tipos de consumidores

claramente diferenciados e novas modalidades de comercialização e

técnicas de marketing” 2.

Essa cultura do consumo encontra cada vez mais eco na

contemporaneidade e, segundo Don Slater 3 ,está vinculada a uma

sociedade na qual as “práticas sociais, valores culturais, ideias,

aspirações e identidades são definidas e orientadas”. Vivemos,

portanto, em uma sociedade materialista e pecuniária na qual o valor

social das pessoas é aferido pelo que elas têm e não pelo que elas

são. Uma sociedade de consumo como quer Baudrillard4. Essa

“sociedade do espetáculo” segundo a definição de Guy Debord 5.

Dentro deste contexto, de contornos ideológicos e econômicos

forjados pelo Ocidente hegemônico o mercado dita as regras

anulando ideologias que se afastem dos conceitos dominantes. Como

forma de controle investena manipulação e no estilhaçamento das

identidades fundindo os seus fragmentos num todo conceitual onde

os critérios de importância do indivíduo e das sociedades estão

ligados à sua capacidade de gerar e consumir e onde os que fogem a

esta regra são descartados a partir do momento em que eles não

correspondem às necessidades neoliberais que regulam hoje esse

“admirável mundo novo” globalizado.

Sob essa nova forma de colonização pertence - se a todos os

espaços e a nenhum espaço em particular. As identidades

desaparecem. Sem território ou referências culturais o indivíduo e os

grupos perdem modelos.Não há lugar para a memória mesmo que ela

seja um elemento fundamental para a construção de uma identidade

pessoal e coletiva.

2 Lívia Barbosa.Sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. P. 27

3 Don Slater, citado por Barbosa Lívia Op. Cit., 2004, p.32.

4 Jean Baudrillard. La societé de consommation. Paris: Denoel, 1970.

5 Debord Guy. La Societé du Spectacle.Paris: Gallimard, 1992.

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Pouco a pouco, entretanto, os movimentos sociais, culturais e

intelectuais tomam consciência de que a colonização planetária não

foi um produto de uma evolução histórica que aconteceu de forma

linear gerada pelo avanço de uma cultura superior eurocêntrica, mas

de um processo histórico de conquista militar e dominação econômica

e religiosa que orientou a ocidentalização do mundo6. A partir,

principalmente, dos anos oitenta do século XX passa-se a questionar,

de forma interdisciplinar, a ideia de um centro culturalmente e

historicamente superior e a defender uma pluralidade de centros nas

margens e, consequentemente, a possibilidade de outros processos

civilizatórios. O modelo binário centro-periferiajá não é

incondicionalmente aceito bem como a estrutura hierárquica de

dominação que foi construída pelo modelo eurocêntrico. 7

Frantz Fanon em Os condenados da terra8·,nos lembra de que a

principal arma do colonizador sempre foi a imposição da imagem que

eles concebiam dos colonizados sobre os povos subjugados. O

processo do pensamento sobre a descolonização passa, portanto,

pela desconstrução de mitos tradicionais tais como modernização,

desenvolvimento, sociedade industrial, crescimento econômico

ilimitado ou superioridade étnica dos povos brancos9bem como

pelasubstituição e superação da concepção eurocêntrica de centro-

periferia, pela ideia de um Norte e um Sul global e pela valorização

de outros campos do saber não necessariamente eurocêntricos.

A reconfiguração da ideia centro-periferia libera outras

narrativas questionadoras do eurocentrismo como fonte hegemônica

de produçãodo saber sobre o mundo gerando novas reflexões que

partem tanto das margens quanto de alguns países

6 S. Latouche. Fault-il refuser le développement? : essai sur l’anti-économique du tiers-monde.

Paris :PUF, 1986. 7Paulo Henrique Martins. La decolonidad de América Latina y la heterotopia de uma comunidade de

destino solidaria. Buenos Aires: Fundacion CICCUS, 2012. 8 Frantz Fanon.Les Damnés de la Terre .Paris : Editions Maspero, 1961.

9 Paulo Henrique Martins. Op Cit. 2012.

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colonizadorescujos teóricos se dispõem a rever a uniformização global

a partir de uma ótica hegemônica. Como lembra Paulo Henrique

Martins10este “giro epistemológico se desenvolve de modo importante

neste momento simultaneamente em vários continentes- América,

Europa, África, Ásia e também em vários países considerados

colonizadores como França, Itália, entre outros”.

É necessário sublinhar que o trabalho de desconstrução do

colonialismo, sob suas mais diversas expressões, não se limita à

produção do conhecimento teórico, mas a uma práxis onde a

artetambém tem lugar como possibilidade de subversão da

hipervalorização de inovações de caráter científico e tecnológico

produzido pelas culturas do Norte e legitimadas pela lógica do

capitalismocomo referência de uma verdade que fundamenta a

hierarquia de dominação.

Michel Maffesoli11, no prefácio de seu livro Eloge de

laraisonsensible,afirma que “no momento em que a mercantilização

parece se impor” é necessário “ a audácia de um pensamento

meditativo no lugar de um calculador”.Portanto, pensar diverso,

investir no sensível, pode fazer toda a diferença.Os momentos de

crise produziriam como quer Chateaubriand“un redoublement de vie

chez les hommes”?12O tempo seria, portanto, uma espiral, um ciclo,

onde retornaria, em outro nível, aquilo que julgamos perdido,

passado.É investindo, pois, neste pensamento que passaremos a

analisar o papel da arte como instrumento de resistência e o papel de

um grupo de artistas como agentes de uma micro utopia na

sociedade do espetáculo.

10

Paulo Henrique Martins. Op. Cit. P 38 11

Michel Maffesoli. Éloge de la raison sensible.Paris : La table ronde. 2005. 12

Chateaubriand citado por Michel Maffsolli. Op. Cit, 2005. P 134

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Arte e política como uma forma de resistência.

La subversion la plus profonde ne

consiste forcément pas a dire ce

qui choque l‟opinion,la loi, la

police,mais à inventer un discours

paradoxal 13

Na atual reconfiguração do universo das artes visuais como são

introduzidas as estratégias políticas de denúncia ou de

transformação? Como podemos ir além do espaço concedido pelo

poder geopolítico que ainda parte dos, já denunciados ad nauseam,

centros hegemônicos? Em nossa realidade contemporânea

globalizada onde as novas formas de soberania capitalista desenham

cartografias, inclusões, corações e mentes qual o poder da arte, para

agir de forma a interferir nas fissuras deste mundo e como ela se

situaria entre a utopia e a realidade?

A arte é aquilo que resiste segundo Deleuze 14. Em que medida,

porém arte e artista escapam das relações/condicionantes em um

mundo de ideias e conceitos cada vez mais internacionais e

uniformizados?

Para Canclini15 um futuro parece possível. Os processos de

hibridização cultural, nos quais a arte se inclui, seriam tão intensos

que mobilizariam a construção de novas identidades bem como o

reconhecimento e a valorização das diferenças culturais apesar da

consciência das relações de poder.Adolfo Pedro Arribas Montejo16, por

sua vez, acredita que a arte pode interferir no processo de mudança

13

Roland Barthes citado por Michel Maffesoli. Op. Cit. P.15. 14

Gilles Deleuse. O ato da criação. A obra de arte não é um instrumento de comunicação in Folha de São Paulo, São Paulo 27 de junho de 1999. 15

Nestor Garcia Canclini. Consumidores Y ciudadanos. Conflictos multiculturales de globalización. México: Grijalbo, 1995 16

Adolfo Pedro Montejo Arribas. Os paradoxos da imagem: arte versus visualidade. InÉ tudo mentira. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2010.

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social a partir de sua relação com a utopia. Através da esperança que

ela constrói. A arte poderia funcionar como uma última instância, um

último reservatório humano a escapar de ser incorporado/apropriado

pelo sistema que hoje serve ao capitalismo neoliberal.

Para Jacques Rancière17 a arte é um agente transformador pela

sua capacidade de reconfigurar o sensível. Rancière 18 reforça que é a

partir “do recorte sensível do comum, da comunidade, das formas de

sua visibilidade e de sua disposição, que se coloca a questão da

relação estética/politica”. Esse olhar priorizaria a noção de

envolvimento em relação ao desenvolvimento.

Vitalidade, como filosofia da vida, seria o caminho a seguir,

segundo Maffesoli19 . Um caminho ligado à priorização da vida onde

novas formas do fazer artístico apontariam caminhos. Paul Ardenne

20denomina essa nova forma de fazer arte de “arte contextual”, uma

relação estreita entre artista & sociedade. Para ele “la première

raison de l‟art coxtextuel relève d‟un désir social:intensifier la

présence de l‟artiste à la réalité collective » 21Uma nova gênese.

Uma esperança.

As práticas artísticas seriam, portanto, para a maioria dos

teóricos mencionados, uma possibilidade de interferir na realidade ou,

pelo menos, tornar uma utopia menos distante. Através de ações

micropolíticas poder-se-ia tentar mudar a dinâmica do mainstream. A

liberdade conceitual, imaginativa e perceptiva das práticas artísticas

que envolvem a política poderia abrigar umsonho para além das

servidões e uma promessa de reconciliação com o humano em sua

expressão maior. Ela encontrar-se-ia, portanto, para além das

múltiplas grades com as quais o capital burocratiza e regula tudo,

17

Jacques Rancière. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009. 18

Jacques Rancière . OP. Cit. 2009. P.26 19

Michel Maffesoli. Homo eroticus. Des communions émotionnelles.Paris : CNRS Editions,2012 20

PaulArdenne. Un art contextuel. Paris, Flammarion.2002.p.39. 21

Paul Ardenne. OP. Cit.p.40.

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inclusive a arte, incidindo em sua produção. A arte ofereceria uma

alternativa de resistência possível para esse mundo injusto.

O trabalho da arte, nas suas novas formas, ultrapassou a antiga

produção de objetos destinados a serem vistos. Também, no que diz

respeito à política, outras maneiras de compreendê-la e pratica-la se

processam nos tempos que correm. Nas palavras de Jacques Rancière

22: “a ação artística identifica-seentão com a produção de subversões

pontuais e simbólicas do sistema”. Outra maneira de militância.

A arte arrasta sempre a magia na sua sombra, o encanto do

enigmático, a inquietação das mentes insubmissas, a incompletude

do estabelecido, a procura da transcendência, a vontade de

superação do conseguido. Em si isso se constitui em um alento nesse

mundo de pouca esperança. O artista pode abrir caminhos, resistindo

e isolando-se do ruído circundante do grande espetáculo que é

promovido e gerar novas propostas e ressonâncias.

Para Nicolas Bourriaud 23 cabe ao artista a tarefa de “devolver

concretude ao que se furta à nossa vida” o que ele faria rompendo

com a lógica da sociedade do espetáculo, com a escala diluidora da

globalização colonialista e tentando reconstruir e restituir fé a um

mundo cuja dominação cultural pelo capitalismo avançado conduz a

um cotidiano transformado em um produto de consumo.

Talvez a melhor definição da prática artística contemporânea

que opta pela ação política, traga realmente em si o discutido

conceito de utopia. Ela reflete um questionamento crítico da ordem

existente e abriga a ideia de outro território humano possível. Ela

poderia, portanto, supor e propor a revisão da mecânica ocidental

universalista através de uma interculturalidade baseada em trocas

em que a solidariedade e a participação se façam presentes.O ato de

22

Jacques Rancière. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010.p.108. 23

Nicolas Bourriaud. Pós-produção. Como a arte programa o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.p.31.

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criação pode ser então um ato utópico. Aquilo que nos arranque do

sono do senso comum, que possa desenhar um novo horizonte eque

desperte em nós o desejo de construir novas formas para o

pensamento e para a vida.

Nicolas Bourriaud24 teorizou a proposta de uma arte ligada a

uma estética relacional que cria diferença no consenso legitimado de

mundo e religa vínculos sociais perdidos. Uma estética que se pauta

em função das relações inter-humanas que elas figuram, produzem

ou criam. O mundo da arte e da vida está cada vez mais fundido e a

estética, como ciência do sensível, está em consonância com esse

novo olhar.Para ele, a possibilidade desta arte relacional, “uma arte

que toma como horizonte teórico a esfera das relações humanas e

seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico

autônomo e privado” 25,atende aos objetivos estéticos, culturais e

políticos postulados pela contemporaneidade e estaria contribuindo

para a preparação de um mundo futuro.Pressente-se já, através de

suas ideias, a necessidade de uma retomada de uma política ligada a

uma transformação estética, ou como quer Carlos Vidal “uma

refundação da linguagem estética que ultrapasse a fatalidade do

triunfo da industrialização do pensamento”.26

A arte contemporânea desenvolveria, portanto, um projeto

político quando se empenha, por exemplo, em investir nas esferas

das relações humanas. Essa condição corresponde, hoje, a iniciativa

de artistas que mergulham no campo ampliado da criatividade onde o

caráter político é relacionado ao fato de uma integração do trabalho

artístico com a vida.

O trabalho da arte, nas suas novas formas, ultrapassou a antiga

produção de objetos destinados a serem vistos e consumidos e

24

Nicolas Bourriaud. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 25

Nicolas Bourriaud. Op. Cit. 2009. P.19. 26

Carlos Vidal. Definição da arte política. Lisboa: Fenda, 1997.p 22.

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investiu em novos horizontes que funcionam ora como mapas que

orientam seu movimento ora como motor de um desejo de caminhar

novamente em busca de um ideal.

Essa prática levaria mesmo a uma (re) conceitualização da

palavra utopia: uma atualização de sentido. Ela seria uma práxis mais

perto do chão. Possível. E necessária, pois, afinal, não é que a utopia

tenha o monopólio da esperança em uma perspectiva histórica, mas a

sua ausência em qualquer momento,inclusive no que vivemos,

significa uma falha para com a fé.

Jaques Rancière configura a utopia como “um bom lugar, de

uma partilha não polêmica do universo sensível, onde o que se faz se

vê e se diz se ajustam exatamente”.27·.Ela abre uma dimensão de

reflexão crítica e introduz no espaço da vida e da arte uma zona de

imaginação, de desequilíbrio, de suspensão. A arte deve introduzir,

neste mesmo espaço, processos que sinalizem uma desconstrução

criativa para que o território contemporâneo do espetáculo não se

aproprie da ação de criar baseado na constatação da inevitabilidade

do consenso.

Para essa a concretização desta possibilidade, desta nova

práxis, o envolvimento do artista segundo Jose Carlos de Paiva e

Silva seria o de procurar modelos que ultrapassassem as fragilidades

e investissemnas possibilidades utópicasdo mundo contemporâneo,

“em contextos sociais precisos, onde, se promoveu uma aproximação

epidérmica”28

Artistas ou grupos de artistas já se inserem neste universo de

práticas que, dentro de um circuito micropolítico, faz frente à estética

e a ideologia dominante. Sua ação interfere em todos os aspectos da

27

Jacques Rancière. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Ramada: Edições Pedago, 2010, p.61. 28

Jose Carlos de Paiva. ARTE/desenvolvimento. Tese de doutoramento defendida junto a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto sob a orientação do Professor Pintor Mário Bismarck. Porto. 2009.p. 53

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vida cotidiana. A reação das mentes insubmissas é o que pode levar à

quebra do feitiço do consumo logo existo. Isto pode ser observado

nas, ainda raras, estratégias de resistência, individual ou coletiva,

nos centros hegemônicos ou nas margens que vêm acontecendo nos

últimos anos:a artesendo utilizada como agente de transformação

social com seu papel político sobre a sociedade reescrito e

redesenhado.

O “outro” como proposta artística de (des) envolvimento.

Nunca fomos catequizados.

Fizemos foi Carnaval. O índio

vestido de Senador do Império.

Fingindo de Pitt. Ou figurandonas

óperas de Alencar cheio de bons

sentimentosportugueses29

O discurso (e a realidade) neoliberal torna-se ainda mais forte e

contundente na medida em que se acentua o enfraquecimento das

instituições políticas “que poderiam em principio tomar posição contra

a liberdade do capital e da movimentação financeira”30.É um tempo

em que os resultados econômicos, a produtividade e a

competitividadesubstituíram as grandes ideologias, suas utopias e os

no qual os indivíduos foram abandonados a sua própria sorte

perdendo o sentido agregador da tribo.

Dentro de um espaço minado pelo neoliberalismo e centrado na

hegemonia econômica e cultural, processa-se um aliciamento

conceitual apoiado na força das novas mídias, na diluição das

fronteiras, na sedução da novidade, no fugidio, no efêmero que têm

como caixa de ressonância os centros periféricos. Dentro dessa

relação centro/periferia um modelo mais forte, inserido em um

29

Oswald de Andrade. Manifesto antropofágico, 1922. inhttp://www.puc-campinas.edu.br /centros/clc/jornalismo/projetosweb/2003/Semanade22/mani festo.htm 30

Zygmunt Bauman. Em busca da politica. Rio de Janeiro: Zahar Editora. 2000, p.36.

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contexto com características hierárquicas definidas por relações de

poder, incide sobre outro deixando - lhe poucas alternativas de

sobrevivência.

Contrapondo - se a essa nova e muito mais eficiente forma de

colonização, levando-se em conta as ferramentas de difusão de

influências, que promove o desmanche diferencial e a primazia das

culturas centralizadoras, coloca-se a alternativa de que “identidades

culturais não são construções atemporais dotadas de um núcleo

imutável de crenças e valores”31 sendo, portanto, porosas a um

intercâmbio conceitual.Nestas condições a arte se apresentaria “como

uma mesa de montagem alternativa que perturba, reorganiza ou

insere as formas sociais”32 caberia ao artista desprogramar a

realidade para reprogramar uma estética que se pautaria em função

das relações inter-humanas. Uma estética que contemple o “outro”

legitimando-o. O mundo da arte e da vida estaria, então, de fato cada

vez mais fundido e a estética, como ciência do sensível, em

consonância com esse novo olhar.

Se o artista é influenciado pelo meio, suas obras exercem

influência sobre o espaço social. Sua atuação afeta o contexto

comunitário inserindo novos códigos de referência. O criador detém,

portanto, uma forma de poder: aquele de trazer um olhar particular

sobre o mundo. Um olhar pessoal que pode conduzir o coletivo. Arte

e sociedade são, assim, estreitamente ligadas no que diz respeito à

possibilidade de reconfiguração dos padrões de referência coletiva

pelo artista que atuaria, então, como agente político de

transformação social.

A arte contemporânea traz uma relação nova entre ela e o

mundo. A realidade transforma-se em um objetivo de investigação.

31

Moacir dos Anjos. Contraditório. Texto do Catálogo Panorama in http://www.cultura.gov.br/brasil_arte_contemporanea/?Page_id=272 32

Nicolas Bourriaud. Op. Cit p. 2009.p.83

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Criadores e pensadores se debruçam sobre o seu engajamento com a

realidade, com o outro.Paul Ardenne 33,por exemplo, denomina de

“arte contextual” esta relação artista & sociedade.Citando Richard

Martel, o teórico e artista canadense que se encontra a frente do Le

Lieu,em Quebec, ele nos lembra que “

l‟artcontextuelsupposelamatérialisation d‟ une intention

d‟artistedansuncontexteparticulier”. 34Para Ardenne 35 “la première

raison de l‟art coxtextuel relève d‟un désir social:intensifier la

présence de l‟artiste à la réalité collective.”36.

Jose Carlos de Paiva 37considera que a arte “se constrói como

lugar reflexivo e contaminador”. As práticas artísticas seriam,

portanto, uma possibilidade de interferir na realidade ou, pelo menos,

tornar tal fato uma utopia menos distante. Através deste olhar o

artista, também antropólogo, não mais estudaria ou registraria as

aldeias, as comunidades, ele estudaria e aprenderia nas

comunidades. Essa seria a obra de arte: uma realidade onde

identidade e alteridade tornam-se matéria prima da produção

artística e que necessita do apoio da antropologia, sociologia, política

e demais ciências que ajudem à sua conceituação e gênese.

Essa nova realidade de ações micropolíticas como campo de

expressão faz pensar arte hoje em um mapa global que inclui formas

de geografias materiais e imateriais. A liberdade conceitual,

imaginativa e perceptiva das práticas artísticas que envolvem o outro

pode abrigar um sonho para além das servidões e uma promessa de

reconciliação com o humano em sua expressão maior. Sua proposta

33

Paul Ardenne.Op. cit..2002.p.40. 34

A arte contextual supõe a materialização da intenção do artista dentro de um contexto particular (tradução do autor) 35

Paul Ardenne. Op. Cit.42. 36

A principal razão da arte contextual sublinha um desejo social: intensificar a presença do artista na realidade coletiva. (tradução do autor) 37

Paiva, José Carlos de. Investigar a partir da ação intercultural. Porto: Gesto Cooperativo Cultural, CRL, 2011.p. 29

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encontra-se para além das múltiplas grades com as quais o capital

burocratiza e regula a arte.

Gênese e percurso do Movimento Intercultural Identidades:

Conceição das crioulas.

Arte é uma palavra e uma

categoria europeia, que

estágeralmente ausente da

maioria das línguas e das

culturasnão ocidentais38

Um grupo de artistas pode atingir novas possibilidades de

atuação no real. Essa interação pode se processar seja através de

uma horta comunitária e canteiros, seja na ajuda a uma comunidade

para caiar suas casas, seja na produção de um mural, uma calçada

ou qualquer outra produção. Através de ações cotidianas, o artista

promove oseu espaço de convivência social. A intervenção na

comunidade possibilita trocas e experiências e possibilidade de novas

poéticas visuais bem como de seus processos.

Grupos como o do coletivo dinamarquês Superflex que

desenvolveu projetos de arte coletiva entre eles o Supergas139

(1996-97) processada “a partir da realidade de uma comunidade

específica em Camboja (África) e na Tailândia (Ásia)”, serve de

exemplo. A preocupação do coletivo seria a preservação do meio

ambiente através de uma estratégia micro empresarial.Outro

exemplo, também apontado por Janice Martins Sitya Appel,40é o do

38

José António B. Fernandes Dias. “Arte e Antropologia no Século XX: modos de relação”, in Etnográfica, Vol. V (1), 2001, p. 106 citado por Jose Carlos de Paiva in ARTE/desenvolvimento. Tese de doutoramento defendida junto a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto sob a orientação do Professor Pintor Mário Bismarck. Porto. 39

Appel, Janice Martins Sitya. Dispositivos relacionais em processos coletivos e prática artística emcomunidades: hortas comunitárias e canteiros como possibilidade in Panorama Crítico. Junho-julho 2010. Disponível em http://www.panoramacritico.com/006/docs/JaniceMartins_DispositivosRelacionais_artigos_panoramacritico06.pdf 40

Appel, Janice Martins Sitya. Op. Cit. 2010.

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artista Rirkrit Tiravanija “que fundou em 1998 junto a outros artistas,

o projeto The Land, que reúne ações colaborativas e coletivas para

moradia e obtenção de energia natural para a comunidade”. As

habitações, “pequenas estruturassobre palafitas sobre plantações de

arroz”, atendem a coletividade como obra de arte relacional.41

O Movimento Intercultural IDENTIDADES “aposta” em um (re)

equacionamento do mundo da arte.Emuma linguagem artística

voltada para a fusão de mundo, arte e vida e na descolonização do

olhar.A arte é uma forma de resistência e as estratégias artísticas

podem abrigar o sonho de liberdade.O IDENTIDADES inscreve seu

fazer entre as ações de caráter micro político. O seu interesse pelo

outroimplica na ideia de uma produção artística que tem identidade e

alteridade, como matéria prima e que necessita do apoio da

antropologia, sociologia, política, direito e demais ciências para

ajudar na sua conceituação e ação. A sua reflexão/ação não está

mais sujeita ao olhar contemplativo do belo platônico ou o das belas-

artes no sentido clássico. Ela existe em sintonia com outras

atividades da existência humana. Traz em sua gênese um novo mapa

global que inclui geografias e interesses diversos.

Apesar de ter origem em um país de passado

colonialista,Portugal,eleproporciona uma (re) conceitualização da

palavra utopia: uma atualização de sentido. Ela, a utopia, seria uma

práxis possível através de um processo de comunicação entre

culturas diversas em condições de respeito, de um intercâmbio

construídoentre pessoas, saberes e práticas culturalmente diferentes

buscando um novo sentido nas suas diferenças, de uma negociação

onde os conflitos de poder são confrontados gerando práticas e ações

conscientes.A partir de Porto, Portugal, ele se relaciona com

41

Idem Op. Cit. 2010.

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Moçambique e Cabo Verde, na África e Conceição das Crioulas,

comunidade quilombola42 em Pernambuco, Nordeste do Brasil.

De acordo com o site oficial do município de Salgueiro,

Pernambuco, ao qual pertence Conceição das Crioulas, a gênese

desta comunidade éconcebida e divulgada através da tradição oral.

Sua origem seria, segundo os moradores mais velhos,proveniente da

ação de seis negras escravas que no início do século XIX

conquistaram a liberdade, chegaram à região e arrendaram uma área

de aproximadamente três léguas. Com a produção e fiação do

algodão que vendiam na cidade de Flores, conseguiram pagar a renda

e ganharam o direito à posse das terras.Esta comunidade

quilombola,de características matriarcais, faz parte das hoje já

reconhecidas pelo Estado Brasileiro por meio de “certificação feita

pela Fundação Cultural Palmares (FCP) (certificação do

autorreconhecimento) e da abertura de processo de regularização dos

territórios quilombolas pelo Instituto Nacional de Colonização e

Reforma Agrária (INCRA)” 43

Conceição das Crioulas foi (e é) marcada por conflitos pela

posse da terra. Historicamente, em tempos mais remotos teve lugar

a Guerra dos Urias onde ela, a comunidade, enfrentou brancos

apoiados por fazendeiros e a Guerra dos Revoltosos que obedeceu

aos mesmos padrões. 44 Esses conflitos ainda perduram na atualidade

neste espaço geográfico que faz divisa com o território indígena

42

No período de escravidão no Brasil (séculos XVII e XVIII), os negros que conseguiam fugir se refugiavam com outros em igual situação em locais bem escondidos e fortificados no meio das matas. Estes locais eram conhecidos como quilombos. Nestas comunidades, eles viviam de acordo com sua cultura africana, plantando e produzindo em comunidade. Na época colonial, o Brasil chegou a ter centenas destas comunidades espalhadas, principalmente, pelos atuais estados da Bahia, Pernambuco, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e Alagoas. 43

Gilvania Maria da Silva Educação como processo de luta politica. A experiência de ‘Educação diferenciada’ do território quilombola de Conceição das Crioulas. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Políticas Públicas e Gestão da Educação. 2012., p. 28 44

Crioulas Vídeo in ID10: com 10 anos o Identidades esclarece-se e dá-se a conhecer. Porto: Gesto,2007.

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pertencente a tribo Atikum Uma com a qual a comunidade interage e

miscigena-se.

No ano 2000 foi fundada a AQCC (Associação Quilombola da

Conceição das Crioulas) representada por membros desta

comunidade e das vizinhas. Seu objetivo maior era a luta por seus

direitos, inclusive o da posse da terra. Finalmente isso aconteceu no

dia vinte e dois de setembro de 2014,um dia histórico para a

comunidade quilombola Conceição das Crioulas.Nesta data foram

entregues pelo INCRA três títulos de domínio de cinco imóveis rurais

que estavam dentro do Território Quilombola.Com este ato (que visa

assegurar direitos históricos e garantir segurança jurídica quanto à

situação fundiária) aproximadamente 898 hectares passaram a

compor efetivamente o patrimônio coletivo da comunidade,

beneficiando 750 famílias.

O movimento IDENTIDADES descobriu nesse cenário sertanejo

brasileiro um espaço de investigação e a possibilidade de “poder

partilhar com uma abnegada população a construção do seu

destino.”45. Em 2003 estabeleceu-se o início de um relacionamento

intercultural que permanece até hoje. Naquele momento,que

estabelece um marco, foi criada uma oficina de artes plásticas e uma

oficina de teatro ministrada pelo ator moçambicano Rogério

Manjate.O objetivo erasediar lá um projeto duradouro que pouco a

pouco criasse raízes no território. A interação se daria via

cumplicidade com a comunidade e comunhão com as suas lutas.

Em 2005, o grupo (que sempre incluiu artistas professores e

alunos), voltou a Conceição das Crioulas para iniciar o programa

intitulado Deslocações, programa este que garantia uma presença

anual do coletivo e que se centrava em espaços de intervenção

45

José Carlos de Paiva, ARTE/desenvolvimento. Tese de doutoramento defendida junto a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto sob a orientação do Professor Pintor Mário Bismarck. Porto. 2009, p.141

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através das linguagens doVídeo e do Web design. Nascia o “Crioulas

Vídeo”, formado por membros da comunidade. A partir de um

computador, uma câmara de vídeo pessoal e um microfone este

grupo realizou,de forma autônoma, no que diz respeito à técnica e

narrativa, um conjunto de documentários em vídeode apoio à luta da

comunidade e o divulgou.O IDENTIDADESdotou, assim, a população

de instrumentos de comunicação, de informação e de preservação de

sua memória utilizando meios contemporâneos.Com isso libertou a

população de um passado já ausente e de um isolamento fatal

contribuindo para a construção de uma identidade que se edifica

permanentemente.

O coletivo atuou também na revitalização da cerâmica

local,uma tradição na comunidade em declíniopor conta do

envelhecimento das suas artesãs ministrando oficinas de expressão

plástica,técnicas de impressão e animação cultural. O método,

elaborado gradualmente ao longo de muitas discussões e de análises

das diversas experiências vividas teve (e tem) como premissas o

conhecimento, a confiança e a cumplicidade com a comunidade para

a construção crítica do conhecimento.

Hoje a ação do grupo centra-se no trabalho desenvolvido com

as professoras, no sentido de que elas adquiriram as competências

mínimas necessáriaspara a passagem do conhecimento sobre

arte.Neste exato momento, por exemplo, Elisabete Mônica Moreira

Faria, doutoranda em Educação Artística pela Universidade de Porto e

membro domovimento IDENTIDADES desde 2000, desenvolvesua

pesquisa na comunidade.Sobre essa experiência ela assim se

manifesta:

A comunidadeentendeu que deve integrar as

diversas áreas da expressão no seu currículo,

num processo de cruzamento intercultural

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com o IDENTIDADES. Neste contexto o

projecto „expressões artísticas nas escolas da

comunidade‟ visa elaborar uma discussão

construtiva e participativa paraum Currículo

nas Artes. 46

A experiência educacional de Conceição das Crioulas é

considerada referência para o movimento quilombola e outras

organizações que trabalham com educação. A comunidade construiu

um projeto de educação específica e diferenciada que trabalha com

uma concepção na qual os valores, a cultura, os costumes, as

tradições, a sabedoria das pessoas mais velhas e a história dos

antepassados fazem parte do processo.

A proposta de uma descolonização mental pode relativizar

condicionamentos a partir de uma visão mais generosa, mais sensata

e mais ética de mundo. A liberdade conceitual, imaginativa e

perceptiva das práticas artísticas ditas utópicas que envolvem a

política pode abrigar um sonho para além das servidões e uma

promessa de reconciliação com o humano em sua expressão maior. A

arte, devemos lembrar, pode ser o último reservatório do imaginário

a escapar de ser incorporada/apropriada pelo sistema que hoje serve

ao capitalismo neoliberal.

A arte relacional ou contextual a qual se propõe o movimento

analisado transforma o artista em participante da história imediata.

Esse engajamento dessa forma de criar artístico com a realidade não

visa o sublime ou o transcendente. Sua proposta se volta para a

possibilidade de transformação do social e nele se encontra seus

instrumentos.

O movimento IDENTIDADES propõe ação para além das

teorizações. Aotomar comunidades e suas relações interculturais

46

Entrevista online concedida a autora. Dezembro de 2013.

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como campo do fazer artístico quevisa a desconstrução da

subalternidade e o fortalecimento de sua identidade, ocoletivo

pretendeu e pretende encontrar outras modulações para as oposições

entre periferia ecentro, atrasado e desenvolvido, subalterno e

dominante, popular e acadêmico, apartir de relações de reciprocidade

e de dialogo.Nas palavras do coordenador do grupo José Carlos de

Paiva 47 oque diferencia a ação do coletivo da política social é que «a

ação artística nãoprepara nenhum amanhã, lida com o que habita em

cada um, amplia a capacidadede admiração, de atenção, de

reflexão”. É o que acontece hoje em Conceição das Crioulas no

interior profundo do Nordeste do Brasil.

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47

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HTCA/Madalena%20Zaccara.pdf

Currículo:

Madalena Zaccara é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela

Universidade Federal de Pernambuco, tem doutorado em História da

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Arte pela Université Toulouse II, França pós-doutorado na Faculdade

de Bellas Artes da Universidade de Porto, Portugal como bolsista da

CAPES. É professora associada do Departamento de Teoria da Arte e

Expressão Artística da UFPE e do Programa de Pós Graduação

Associado em Artes Visuais UFPE-UFPB. É autor de vários livros,

capítulos de livros e artigos.

[email protected]