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idealizadores

Prof. Dr. Ricardo Pinto de Souza

orientação

Prof. Dr. Ricardo Pinto de Souza

conselho docente

editoresCamila Mendes

Pablo Rodrigues

Thais Lima

William Freitas

revisãoPablo Rodrigues

William Freitas

diagramaçãoThais Lima

capaSuani Tomás

ilustraçõesCarlos Henrique Costa

universidade federal do rio de janeiroreitor: Carlos Antonio Levi da Conceiçãovice-reitor: Antônio José Ledo Alves da Cunha

faculdade de letrasdiretora: Eleonora Ziller Camenietzkivice-diretora:

[email protected]

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Chega de saudade...

ano 2 - número 2

2014

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Sumárioeditorial

artigoS

os bastidores de uma exoneração: o caso de vinicius de moraes no itamaraty

Marcelo Bortoloti 9

para que meus netos escolham a quem seguir

Ana Helena Ribeiro Tavares 18

djunta mon, angola e guiné-bissau: mãe e filhos tecendo a oralidade

Tatiana Silva 25

a mortalha de laertes: walter benjamin entre homero e marcel proust

Patrick Gert Bange 37

a narrativa sem calçadas de helder macedo

Mariana Braga 45

mayombe em volta da fogueira: luta anticolonial e construção nacional em angola.

João Victor S. da M. Machado 66

e agora josef? observando drummond em kafka.

Thais Lima 85

reSenhaS

muito mais quente

Thaís Seabra Leite 95

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contoS

abril de 14 99

Marina Albuquerque 99

quero ser um artista Leonardo Alves de Lima 102

poemaS

valsa das gotas d’água

André Luiz Silva da Rocha 109

Priscila Branco 111

lágrima

Priscila Branco 112

sótão

Raul Ávila de Agrela 113

5 e 7 por 18

Raul Ávila de Agrela 117

flores falsas

Fernando Pereira Impagliazzo 120

crônicas

sou um homem de frases

Pablo Rodrigues 123

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editorial

Finalmente a Odara #2 está lançada! A Revista passou por um longo intervalo desde sua primeira edição no ano passado e estamos aos poucos recuperando o ritmo, aliás, estamos (re)apreendendo e (re)definindo qual o ritmo necessário à uma revista.

Em nossa primeira experiência descobrimos o quanto é difícil e ao mesmo tempo enriquecedor criar uma revista de graduação. Nesse hiato entre as edições tivemos a oportunidade de estabelecer de maneira mais precisa nossa organização e divisão de trabalho, além de identificar com mais clareza quais são nossos objetivos daqui em diante para este projeto. Ainda temos alguns desafios como, por exemplo, o de realizar o sonho de ter nossa revista impressa. (Se você estiver lendo este texto em uma versão física, considere parte dos nossos objetivos realizados e se alegre conosco!)

Nesta edição você encontrará uma revista com um conteúdo

mais híbrido e sem seguir um tema central. Trazemos um pouco dos

50 anos do golpe da Ditadura Militar – completados no último 14 de

abril – com o artigo de Ana Helena Ribeiro Tavares chamado “Para

que meus netos escolham a quem seguir”, falando um pouco para nós

sobre seu livro O problema é ter medo do medo, que será lançado em

breve. Nessa temática temos o texto “Os bastidores de uma exonera-

ção: o caso de Vinicius de Moraes no Itamaraty”, de Marcelo Bortoloti,

que relaciona o centenário de Vinicius à Ditadura de 64.

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Temos ainda os trabalhos criativos de Marina Albuquerque com

o seu conto intitulado “Abril de 14” e Leonardo Alves lima com “Quero

ser um artista”. Os poemas de André Luiz da Silva Rocha, Fernando

Pereira Impagliazzo, Raul Ávila de Agrela e Priscila Branco. Nos presti-

giam ainda nesta edição Thais Seabra Leite com seu olhar crítico sobre

o filme Azul é a cor mais quente. O artigo de Mariana Braga sobre o livro

Tão longo amor, Tão curta a vida de Helder Macedo, em que nos revela

um pouco mais da face do escritor e crítico português. Patrick Gert

Bange nos brinda falando sobre Walter Benjamin, Homero e Proust.

Thais Lima faz uma comparação entre Drummond e Kafka e Tatiana

Silva fala sobre a oralidade de Angola e Guiné-Bissau. Contamos tam-

bém com a análise de João Victor Sanches da Matta Machado sobre o

universo ficcional de Pepetela em seu livro Mayombe, e a importância

da literatura para a compreensão de uma África pós-colonial. E por

fim, fecha esta ilustre edição a bem-humorada crônica de Pablo Rodri-

gues sobre o ato de citar.

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AR TI GOS

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A expulsão de Vinicius de Moraes do Itamaraty é um episódio

que sempre se prestou a especulações e lendas. Pelo menos duas ver-

sões podem ser contadas sobre o caso. Na mais folclórica e difundida, o

poeta teria sido exonerado através de um memorando em que o presi-

dente Arthur da Costa e Silva o chamava de vagabundo. No livro Chega

de saudade, Ruy Castro conta que em fins de 1968 Vinicius recebeu

o comunicado mergulhado em sua banheira e caiu em prantos, pois

adorava o Itamaraty.

Uma segunda versão, baseada em documentos da ditadura,

assegura que ele foi vítima da Comissão de Investigação Sumária,

que em 1969 expurgou diplomatas de carreira sob acusação de serem

boêmios ou homossexuais. Foi publicada em reportagem do jornal O

Globo e também no livro Vinicius de Moraes, produzido pelo Instituto

Cultural Cravo Albin. Nesta versão, o algoz do poeta seria o embaixa-

dor Antonio Cândido da Câmara Canto, que presidiu a tal comissão

inquisidora, e o motivo alegado foi alcoolismo.

Para quem se interessa pelo tema, nos últimos anos essas duas

versões ganharam credibilidade diferente. A primeira ficou sendo a

os bastidores de uma exoneração:

Marcelo Bortoloti

o caso de vinicius de moraes no itamaraty

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mais anedótica, e a segunda a mais séria e portanto correta. Não existe

documentação conclusiva sobre o episódio em nenhum dos principais

arquivos que poderiam guardar os registros da exoneração. Refiro-me

aos maços pessoais de Vinicius no Itamaraty, os documentos do SNI

no Arquivo Nacional, o fundo das polícias políticas no Arquivo do

Estado do Rio e os acervos privados de diplomatas no CPDOC da Fun-

dação Getúlio Vargas.

Mas as pistas deixadas levam a acreditar mais na culpa do

marechal Costa e Silva do que na do embaixador Câmara Canto. Ao

que tudo indica, a exoneração foi ordenada em instâncias superiores e

não pela comissão do Itamaraty, e o que mais incomodou os militares

foi a suposta falta de assiduidade ao trabalho, e não a postura política

ou o comportamento boêmio do poeta.

guardiões do itamaraty

As restrições quanto ao comportamento boêmio e namorador

de Vinicius surgiram no Itamaraty antes mesmo da ditadura militar.

Em 1963, ainda no governo João Goulart, um diplomata de carreira

enviou carta ao ministro das Relações Exteriores, João Augusto Araújo

Castro, em que chamava a atenção para o que considerava um fato

grave.

Segundo o delator, que assina como Carlos Pourlon, o embaixa-

dor Paulo Carneiro foi abordado no aeroporto do Galeão pelos pais de

uma jovem de 18 anos que o poeta havia “raptado” e levado para Paris.

Estavam preocupados com o destino da moça. Era Nelita de Abreu,

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quinta esposa de Vinicius. “Os velhos, chorando, imploraram ao

embaixador Carneiro que ajudasse sua filha, agora vivendo em com-

panhia de tal indivíduo”, escreveu. Continuava a carta dizendo que

não era a primeira jovem a cair em suas mãos, já que, pouco tempo

antes, o poeta “traiu miseravelmente um seu amigo Jorge Vargas de

Andrade, casado com uma senhora da família Proença”. Era a quarta

esposa de Vinicius, Lúcia Proença, de fato subtraída ao amigo.

O missivista questionava sua designação para trabalhar na

Unesco: “Não compreendo como um funcionário possuidor de tão

sórdido caráter consegue designação para a Unesco – Paris”. E conti-

nuava com uma acusação aparentemente contraditória: “Dizem agora

que o tal ‘gênio’ bossa nova virou homossexual…”. O autor lamentava a

má influência desse tipo de comportamento sobre os jovens diploma-

tas e sugeria uma limpeza no Itamaraty, com expurgo dos pederastas

e dos amigados, que não tinham casamento formal: “uns amigados

com pessoas discretas, outros, mal amigados, afrontando despudora-

damente a opinião pública”.

Apesar da veemência das acusações, não houve consequências

maiores depois da missiva. A carta foi parar na mesa do chefe do

departamento de administração do ministério, Azeredo da Silveira,

que era amigo de Vinicius.

Mas este tipo de manifestação ganharia força nos anos seguin-

tes. Em janeiro de 1966, já durante a ditadura militar, o embaixador

Manoel Pio Corrêa assumiu o cargo de secretário geral do ministério,

adotando uma postura pouco tolerante com comportamentos que

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considerava impróprios. Em seu livro de memórias, O mundo em que

vivi, ele diz que, na época, chamou seu chefe de gabinete para lhe

dar a seguinte orientação: “Não gosto de diplomatas pederastas; não

gosto de diplomatas vagabundos; não gosto de diplomatas bêbados.

Quem não se enquadrar em qualquer dessas três categorias nada tem

a recear de mim, mesmo por suas opiniões políticas”. No mesmo livro,

o embaixador, que não era militar, assume a culpa por ter colocado

Vinicius em licença não remunerada, ainda em 1966, como se verá

adiante.

Por este viés histórico, faria sentido que Vinicius fosse fatal-

mente expulso do Itamaraty por sua vida boêmia e sua irregularidade

matrimonial. E tudo concorreu para isto nos anos seguintes. Com o

governo Costa e Silva e o decreto do AI-5 que acirrou o regime, foi

criada no Itamaraty a Comissão de Investigação Sumária. Era uma

medida saneadora proposta pelos militares, que instituíram comis-

sões semelhantes em outros ministérios. Neste, o objetivo era expur-

gar funcionários com conduta incompatível com o que se entendiam

ser as responsabilidades e o decoro da diplomacia brasileira. A coor-

denação dos trabalhos coube a Câmara Canto, supostamente o algoz

do poeta.

É fácil colocar o embaixador no papel de vilão. Canto foi um

diplomata linha-dura. Mudou-se posteriormente para o Chile onde se

tornou assessor do ditador Augusto Pinochet. Mas o relatório final da

comissão que ele entregou no dia 7 de março de 1969, com rubrica

do ministro das Relações Exteriores, Magalhães Pinto, não reflete ple-

namente este papel. Pode-se dizer que Canto foi brando em relação

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ao que os militares esperavam. Isso fica evidente na maneira com que

Vinicius foi tratado: “Considerando que a conduta do primeiro secre-

tário Vinicius de Moraes é incompatível com as exigências e o decoro

da carreira diplomática, mas em atenção a seus méritos de homem de

letras e artista consagrado, cujo valor não se desconhece, a Comissão

propõe o seu aproveitamento no Ministério da Educação e Cultura”. De

acordo com a comissão, ele deveria ser transferido, e não exonerado.

Tão esclarecedor quanto esse relatório final é um outro, produ-

zido 20 dias mais tarde pelo departamento de inteligência da Aeronáu-

tica, também acessível no Arquivo Nacional. O autor não se identifica,

mas pelas referências trata-se de um coronel da Aeronáutica infiltrado

em alguma embaixada brasileira.

Segundo ele, o decreto que ordenava a criação da Comissão de

Investigação Sumária foi, de início, motivo de muita apreensão por

boa parte dos diplomatas, que considerava o AI-5 “um golpe dos gori-

las”. Mas o militar diz que a tranquilidade voltou a reinar no Itamaraty

quando se soube que a comissão seria criada no âmbito do próprio

ministério e presidida por um embaixador. Nesse texto, fica nítida a

divisão entre os militares e o pessoal do Itamaraty. Por mais que vigo-

rasse dentro da casa uma rejeição aos boêmios e homossexuais desde

o governo João Goulart, o sentimento de grupo falou mais alto na oca-

sião de caça às bruxas promovida pelos militares. No relatório, o coro-

nel afirma textualmente que o código de honra vigente entre os diplo-

matas ajudou a “neutralizar a comissão”, diminuindo o tamanho do

expurgo. Diz que o ministro Magalhães Pinto teria reduzido o número

de processos de 34 para 17 – na verdade, o relatório final da comissão

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pede exoneração de apenas 15 diplomatas (e 33 funcionários subalter-

nos) e sugere a transferência de Vinicius para o MEC.

No final do relato, o militar acrescentou: “De par com a neces-

sidade de eliminar do serviço público os elementos improbos ou de

conduta irregular, empenha-se por igual o Governo da Revolução em

aliviá-lo dos ociosos (…) como era o caso do primeiro secretário Gil-

berto Chateaubriand, há poucos dias demitido a pedido, ou é ainda o

caso do não menos notório primeiro secretário Vinicius de Moraes”.

No dia 30 de abril de 1969, o Diário Oficial publicou a lista dos

diplomatas a serem afastados. Vinicius foi o único caso de funcionário

poupado na lista do embaixador Canto, mas exonerado no decreto

oficial. Ou seja, houve uma incompatibilidade entre o relatório final

da Comissão de Investigação Sumária e o seu resultado publicado em

Diário Oficial. Isto significa que alguém interferiu na sentença de Vini-

cius durante seu trânsito do Itamaraty para o Palácio do Planalto, onde

ela foi analisada para a publicação.

altas esferas do poder

Notícia do  Correio da Manhã  em março de 1969 informava

que os nomes apontados na Comissão de Investigação Sumária do

Itamaraty seriam submetidos ao Conselho de Segurança Nacional.

Este conselho militar daria a palavra final, o que poderia justificar

a mudança de punição em relação a Vinicius. Mas o caso dele não

aparece na ata da reunião de 29 de abril, onde deveria ter sido ana-

lisado. Entretanto, no princípio da sessão, o presidente Costa e Silva

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informou que fez uma triagem nos nomes que seriam submetidos ao

conselho naquele dia. A situação de Vinicius pode ter sido analisada

pelo próprio presidente ou pelo seu gabinete.

Em sintonia com a tese de que o pedido de exoneração veio

do andar de cima, o general João Baptista Figueiredo, em entrevista

ao jornalista Orlando Brito, afirmou sobre Vinicius: “Ele até diz que

muita gente do Itamaraty foi cassada ou por corrupção ou por pede-

rastia. É verdade. Mas no caso dele foi por vagabundagem mesmo. Eu

era o chefe da Agência Central do SNI e recebíamos constantemente

informes de que ele, servindo no consulado brasileiro de Montevidéu,

ganhando 6 mil dólares por mês, não aparecia por lá havia três meses.

Consultamos o Ministério das Relações Exteriores, que nos confirmou

a acusação. Checamos e verificamos que ele não saía dos botequins

do Rio de Janeiro, tocando violão, se apresentando por aí, com copo de

uísque do lado. Nem pestanejamos. Mandamos brasa”.

A memória do general não estava boa na ocasião da entrevista.

Vinicius trabalhou em Montevidéu entre agosto de 1957 e março de

1960, período em que Figueiredo era chefe do 1º Regimento de Cava-

laria de Guardas em Brasília. O general foi chefe da Agência Central do

SNI entre 1974 e 1978, bem depois da exoneração do poeta. Na época

do episódio, ele não tinha nem assumido o Gabinete Militar da Presi-

dência da República. Não poderia, portanto, estar envolvido no caso.

Mas a declaração de Figueiredo, que naturalmente estava enfronhado

nas fofocas que vigoravam no meio militar, é interessante por mostrar

que tipo de acusação pesava sobre Vinicius neste meio. Mais do que o

comportamento boêmio e namorador, as eventuais ausências no tra-

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balho eram uma irregularidade que os militares não engoliam.

O embaixador Pio Corrêa conta uma outra história que mos-

tra que também dentro do Itamaraty a imagem de Vinicius era com-

prometida por sua fama de vagabundo. Isto teria acontecido três anos

antes de sua exoneração. No livro  O mundo em que vivi, Corrêa diz

que, quando assumiu a Secretaria Geral, em 1966, notou que Vinicius

praticamente não aparecia no trabalho. Mas que se apresentava todas

as noites na boite Zum-zum, tomando vários copos de uísque. Decidiu

convocar o poeta, num horário propositalmente cedo, em que ele não

costumava estar acordado.

Escreve o embaixador: “Apresentou-se pontualíssimamente,

corretíssimamente vestido de traje escuro e gravata discreta – soube

depois que desde mais de um ano ele não havia usado paletó e gravata

– com a face escanhoada na qual um corte testemunhava a pressa com

que se havia barbeado”.

Corrêa diz que colocou o poeta em uma poltrona confortável,

explicou que era seu fã, mas que o regulamento da casa impedia ao

funcionário ter outra atividade remunerada. Com isto, ele deveria

escolher o Itamaraty ou uma licença não remunerada para tratar de

assuntos particulares. Vinicius teria escolhido a segunda opção. Ou

seja, ele escolheu que, durante um período, sairia em licença não

remunerada.

Na biografia  O poeta da paixão, José Castello diz que, nessa

época, Vinicius se colocou voluntariamente à disposição da Funda-

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ção Ouro Preto, ligada ao governo de Minas. Mas, acabado o prazo da

licença não remunerada, bateu várias vezes à porta de Pio Corrêa para

voltar às atividades, sem conseguir qualquer resposta do embaixador.

Segundo a irmã do poeta, Laetitia, ele não tinha mesa nem cadeira, e

se recusava a ficar vagando pelos corredores. Justamente neste perí-

odo veio o AI-5 e a Comissão de Investigação Sumária, perseguindo os

boêmios e homossexuais.

Por estas informações, fica claro que Vinicius não estava

trabalhando efetivamente quando foi expulso. E a Comissão de

Investigação Sumária, ao invés de ter perseguido o poeta, procurou

na verdade um caminho de conciliação, sugerindo sua transferência

para o MEC. Mas a fama de vagabundo que pesava sobre Vinicius no

meio militar foi decisiva para que a sentença da comissão fosse refor-

mada no seu caso, provavelmente por Costa e Silva ou por alguém do

seu gabinete, condenando o poeta irremediavelmente à expulsão. Na

falta de documentação conclusiva sobre a exoneração de Vinicius do

Itamaraty, a versão mais anedótica parece de fato ser a que está mais

próxima da realidade.

nota biográfica:

Jornalista e doutorando em Letras Vernáculas na UFRJ.

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É para isso – para que meus netos escolham a quem seguir – que

estou há cinco anos entrevistando pessoas que enfrentaram a dita-

dura. Enfrentaram com armas, dentro do Exército e fora dele; enfren-

taram com batinas, na cidade e no campo; enfrentaram com canetas,

microfones e câmeras; enfrentaram com a lei diante de um Estado de

exceção.

Medo todos tiveram. Mas nenhum teve medo de enfrentar o

medo. É esse o problema: ter medo do medo. E só quem luta numa

ditadura é capaz de contar à democracia o que aquele medo tem a nos

dizer. Para que nós e nossos netos entendamos, quem sabe, como o

medo é usado para controle do homem pelo homem.

Difícil é explicar como é passar anos entrando nas casas de tan-

tas pessoas que trazem a história dentro de si. Tudo o que acrescen-

tou à minha vida, toda a bagagem preciosa que adquiri. Tantas curvas

precisei fazer em minha própria estrada para conhecer os caminhos

que estes grandes brasileiros trilharam. Nenhuma reta pagaria estas

curvas.

Num mundo entregue à teologia da prosperidade, me dei ao

para que meus netos escolham a quem seguir

Ana Helena Ribeiro Tavares

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luxo de visitar expoentes da Teologia da Libertação. Dois deles já fale-

cidos: Dom Tomás Balduíno e Dom Waldyr Calheiros. Mantém-se

vivo, porém, Dom Pedro Casaldáliga, a lenda que me fez cruzar o Bra-

sil de ônibus rumo ao Araguaia.

Responsável pelo título do livro – ‘O problema é ter medo do

medo’ – Pedro, como gosta de ser chamado, permanece com as por-

tas de sua casa abertas. E para lá eu quero voltar para lhe entregar em

mãos um exemplar. Para lá eu quero voltar para ter a certeza de que o

ciclo foi completo.

Num mundo exilado nas cidades, me dei ainda ao luxo de pisar

na terra. De ficar com sapatos marcados para sempre, de ficar com

o olhar fascinado para sempre. De conversar com índios, posseiros

e latifundiários. De descobrir que no dia em que o homem dividir a

terra acabará a guerra.

Num mundo em que impera a lógica da guerra, também me dei

ao luxo de conversar com militares das três Forças – da terra, do mar

e do ar –, que sempre acreditaram na paz. Militares duramente puni-

dos por sua opção pela legalidade. Punidos com seus sonhos tolhidos.

Punidos por ver tolhido o sonho do Brasil com que sonhavam.

Entre o marechal Lott, com todo seu legalismo, e o general Mou-

rão Filho, que trouxe o golpe de Minas, quero que meus netos possam

escolher a quem seguir. Entre o brigadeiro Moreira Lima, já falecido,

cujo sorriso inebriante tive a honra de conhecer, e o sanguinário briga-

deiro Burnier, quero que meus netos possam escolher a quem seguir.

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É preciso que meus netos saibam que é possível fazer voos

gloriosos, como fez o comandante Mello Bastos, e, mais de 50 anos

depois, passear nas ruas sem aplausos, mas com a certeza do dever

cumprido. É preciso que meus netos saibam que, ao contrário do que

parece, ser bem-sucedido não é sinônimo de ser famoso.

Num mundo em que jornalismo é show, conversei com gente

que fez e faz notícia sem querer ser notícia. Gente que tentou contar

aos quatro ventos que aqui se vivia uma ditadura. Uma dupla de jor-

nalistas com distintas visões me ensinou que a história não é “preto

no branco”. E que atitudes ou omissões não podem ser desprendidas

de contexto.

Num mundo mais copiado do que criado, conversei com quem

usou a poesia, o cinema, a fotografia e a música contra a tirania. É ine-

rente ao ser humano descobrir seus dons criativos quando se vê obri-

gado a driblar o arbítrio. É questão de sobrevivência se disfarçar em

versos, películas, imagens e notas musicais.

Foi o cinema que, em plena ditadura, teve a coragem de lem-

brar que JK desenvolveu o país numa democracia. Foi a fotografia

que teve a coragem de tomar o Forte infiltrada no meio dos militares.

Foi a poesia que teve a coragem de perguntar “Que país é este?”. Foi a

música que teve a coragem de gritar “Cala a boca, moço!”.

Aos jornalistas Alberto Dines e Milton Coelho da Graça, a Sil-

vio Tendler, Evandro Teixeira, Affonso Romano de Sant’Anna e Sérgio

Ricardo, muito obrigada por me mostrarem que é possível usar cane-

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tas, máquinas de escrever, gravadores, câmeras fotográficas, filmado-

ras e microfones como armas em prol daquilo no que acreditamos.

Ah, sim, conversei com quem pegou em armas de fogo. Gente

que matou para não ser morta, gente que viveu para ter razão. Mas,

ainda hoje, há quem lhe negue razão. A estes uma única pergunta: se

os militares e civis apoiadores da ditadura acreditavam estar fazendo

coisas justas por que tão poucos contam para a gente o que fizeram?

O último comandante vivo da Ação Libertadora Nacional

(ALN); antigos integrantes do Movimento Revolucionário 8 de Outu-

bro (MR8); e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR); três das

maiores organizações guerrilheiras que lutaram contra a ditadura,

contam suas histórias, da mesma forma como nunca tiveram medo

de contar.

Num mundo em que a justiça ainda não é para todos, conheci

gente que esfregou a lei na cara de generais. O AI-5 negou o habeas

corpus, espalhou terror com esquadrões da morte. Nada disso os

freou. Nada os impediu de sobreviver para hoje dizer que a tortura

ainda existe, mas não é mais prática institucional, não é mais política

de governo.

Hélio Bicudo, que aos 92 anos corre dois kms por dia; Modesto

da Silveira, que me provou que o nome de uma pessoa pode represen-

tar o seu modo de vida; Rosa Cardoso e Marcelo Cerqueira. Travaram

a luta do bom combate e viveram para dizer que valeu a pena. Viveram

para ver um país ainda imperfeito, mas onde a justiça pode “chegar lá”.

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E se valeu a pena ontem, continua valendo. É isso o que mos-

tram duas fundadoras de entidades que se dedicam à luta por Direitos

Humanos e à rememoração dos horrores da ditadura. A história da

Comissão de Direitos Humanos da OAB e do Grupo Tortura Nunca

Mais está muito bem representada no último dos sete capítulos do

livro.

Eu também ouso dizer que valeu a pena. Remei contra a maré,

ouvindo de libertários a liberais. A idéia de uma série de entrevistas

nasceu em 2009, sugerida pelo jornalista Antonio Martins, do site

“Outras Palavras”, do “Le Monde Diplomatique”. Antonio achava ser

uma boa que eu começasse a carreira agarrando um tema e apuran-

do-o.

O tema nasceu antes, em 2008, após a leitura de artigo sobre

os 40 anos do AI-5, assinado pelo sociólogo Gilson Caroni Filho, meu

eterno mestre. Aquela leitura, com dados aterradores que eu desco-

nhecia e que tantos jovens desconhecem, detonou em mim a vontade

de gritar ao mundo a história do meu tio – torturado durante a vigên-

cia do AI-5, sem que pertencesse a nenhuma organização política.

Fiz um comentário ao artigo do Gilson e aquele comentário

virou um artigo meu, publicado em janeiro de 2009 como editorial de

uma revista sindical. A partir daí, passei a mergulhar na temática da

ditadura e na necessidade de entender que influência aquele período

teve sobre o Brasil que vivemos hoje.

Em 2010, quando eu martelava a sugestão de agarrar um tema

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ao qual me dedicar, o Supremo Tribunal Federal (STF) manteve

impunes os torturadores da ditadura. Foi a gota d’água. Decidi que

o que aconteceu ao meu tio não poderia acontecer aos meus netos.

Ao menos não sem que, com a minha arma – a caneta –, eu tentasse

impedir.

O resultado estará nas livrarias até o fim de 2014, ano em que

estarei com 30 anos. Meus netos lerão talvez 60 anos depois, ainda a

tempo de contar para os filhos deles. Porque a História está sempre a

tempo de ser contada, em especial quando antes não houve oportuni-

dade disso.

Numa ditadura, não há oportunidade de contar o que a ditadura

faz. Se você conta, é preso, torturado. É isso o que fingem não entender

os que dizem que não havia corrupção na ditadura. Como era possível

denunciá-la? Como era possível criticar governos da maneira como

hoje se critica? Como era possível escolher a quem seguir?

Meus netos escolherão a quem seguir. Escolherão como lutar.

Serão livres, libertários ou liberais. Meus netos serão o que quiserem

ser. Viverão num mundo que respeite suas escolhas. E poderão até não

se orgulhar da avó. Mas terão o direito de escolher entre orgulhar-se

ou não. É essa a luta que me move.

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Nota biográfica

Ana Helena Tavares é carioca, nascida no ano das “Diretas Já!”.

Estudou no Colégio Pedro II e a isso deve grande parte de sua formação

humanística. Passou também dois anos e meio no Núcleo de Filosofia

da Fiocruz pesquisando o conceito de verdade. Premiada em concur-

sos de crônicas e monografias, tem textos em prosa e verso publicados

em seis antologias diferentes.

É jornalista e mantém um site de jornalismo político chamado

“Quem tem medo da democracia?”, tendo artigos publicados no

“Observatório da Imprensa” e na extinta revista eletrônica “Médio

Paraíba”, dentre diversos outros sites. Foi assessora de imprensa e

repórter dos Sindicatos dos Policiais Civis e dos Vigilantes, no Rio

de Janeiro. Atualmente, é colunista semanal do “Direto da Redação”,

espaço que funciona dentro do jornal eletrônico “Correio do Brasil”.

Universitária, cursando Letras – Português/Literaturas na UFRJ,

vem há cinco anos entrevistando numerosas pessoas que resistiram à

ditadura. Seus relatos (alguns publicados na Carta Capital e Brasil de

Fato) serão publicados brevemente em livro.

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A oralidade é meu culto. As mães embalam os filhos cantando ou dizendo palavras nas nossas

línguas todas. Se os meus textos puderem ser lidos em voz alta fico muito contente.

(Paula Tavares)

Em que língua escrever As declarações de amor?

Em que língua cantar As histórias que ouvi contar?

(Odete Semedo)

No fundo do canto, frutos amargos. Vozes, muitas vozes car-

regadas de histórias. Por vezes sem forças, mas contínuas, cientes de

seus poderes. A Mãe África a cantar, através de seus filhos, por eles

e para eles, ao longo do Tempo, este fiel companheiro da Memória,

grandes construtores da Identidade. A verdade de um povo está em

suas mãos. Tato, paladar, olfato, audição, fala. Coração. Tudo cabe em

palavras, e elas sabem os tesouros que podem carregar...

Uma nação ágrafa é considerada, por muitos, como ausente de

cultura, inferior. Este era o olhar do outro em direção ao continente

djunta mon, angola e guiné-bissau:

mãe e filhos tecendo a oralidade

Tatiana Silva

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africano, mas a Mãe ensinou a seus filhos que jamais devem aceitar a

opinião dos outros como sua verdade. À tradição oral devemos con-

ceder a credibilidade que ela merece, pois ela é construída através de

olhares, relatos, testemunhos, vidas. Em se tratando de África, mais

do que isso: Homem e Palavra se unem, tornam-se um só. A simbiose

entre o humano e o divino, os caminhos que percorrem e conduzem.

As gerações e suas histórias, transmitidas, perpetuadas, são a alma, o

espírito destes povos, na diversidade e na unidade.

O homem, sujeito de si, representante de muitos, encontrado

em meio a conflitos e decisões, tem o poder da palavra consigo. Mesmo

que seja difícil, é preciso usá-lo, pois o passado, o presente e o futuro

necessitam dessa voz. Não há qualquer garantia de que a escrita seja a

representante oficial da veracidade: em um embate com a oralidade,

não há maior vencedor do que o discurso testemunhal, independente

de como e para quem é proferido. O importante é de onde vem esta

voz. Em meio aos anos de opressão, os colonizados estiveram sem-

pre à mercê dos colonizadores, em todos os aspectos. Muito do que

conhecemos hoje como história chegou até nós pelo olhar dos ven-

cedores, do que lhes era favorável, o que, em sua maioria, não condiz

com a realidade ou muitas vezes a renega. As literaturas africanas de

língua portuguesa precisam assumir-se como porta-vozes do discurso

não-oficial, colocar à tona a perspectiva dos vencidos, utilizar o pas-

sado como matéria para o diálogo com o presente e projeção para o

futuro.

Que África nos foi e nos é apresentada até hoje? Qual é sua

identidade? As respostas a estas perguntas certamente são distintas:

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o que nos é apresentado, sob uma perspectiva geralmente destoante,

constrói o que “conhecemos”, a partir de nossos julgamentos e senso

comum diante do que chega até nós. Tudo isto não constitui a verda-

deira identidade, individual e coletiva, desta nação, uma em várias. É

preciso colocar-se em liberdade, fugir dos padrões estabelecidos que

calam à força suas vozes para, assim, apresentarem-se, aos seus e ao

mundo. O poder da palavra, a arte de todos nós.

O fator linguístico na cultura africana é de extrema importân-

cia. Obrigados a se apropriarem da língua dos colonizadores, necessi-

tam, concomitantemente, transmitir seus princípios e valores às gera-

ções. Sua língua, por um bom tempo, torna-se “ilegal”, mas é preciso

conservá-la, pois é um elemento primordial da identidade, do nosso

contraponto em relação ao outro. Mais do que isso: o caráter sagrado

concedido à linguagem. As palavras proferidas têm um poder além do

discurso, fora do contexto linguístico, mas do âmbito da sacralidade.

Nas palavras de A. Hampaté Bá: “Na tradição africana, a fala, que tira

do sagrado o seu poder criador e operativo, encontra-se em relação

direta com a conservação ou com a ruptura da harmonia no homem e

no mundo que o cerca”.

A origem divina da palavra, explicada por Bá neste capítulo

(A tradição oral), concede à fala um dom, divina – porque ainda não

havia se tornado material no princípio de tudo - e sagrada – após o

contato com o homem perde um pouco de divindade, mas ainda car-

rega em si a sacralidade. Este é um dos fatores mais importantes para

a preservação da tradição oral africana, não apenas os mitos e lendas

que nós, olhares externos, julgamos ser constituída. “Ela é ao mesmo

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tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, histó-

ria, divertimento e recreação”. É uma visão do mundo única, um colo-

car-se, existir de uma forma especial: um homem diferenciado.

A memória da África é vida, ainda. Os tradicionalistas, gran-

des depositários da herança oral e conhecedores (Doma), são as últi-

mas testemunhas e mestres, especialistas nos mais variados âmbitos,

arquivistas de seus povos. Há uma extrema necessidade em reunir

todo este conhecimento, que dentre alguns anos poderá desapare-

cer junto com estes anciãos, detentores da Palavra e da História, os

últimos ligados diretamente aos antepassados e, consequentemente,

às “palavras sagradas e encantatórias transmitidas pelas cadeias de

ancestrais”.

Além dos tradicionalistas, importantes “personagens” da cul-

tura africana são os gritos. Comparados a trovadores e menestréis, eles

também são responsáveis pela transmissão oral, mas sem um com-

promisso tão intenso com a verdade como àquele contido na palavra

dos tradicionalistas. Eles são classificados em três categorias: músi-

cos – tocam vários instrumentos e são ótimos cantores/compositores

-, embaixadores – mediadores de conflitos – e os genealogistas, gran-

des poetas, historiadores e contadores de histórias. Eles possuem um

papel fundamental na cultura africana, em especial este último grupo,

pois através deles a palavra circula, cumpre a sua função representa-

tiva.

Os griots têm como característica em comum a preocupação

com a transmissão através da oralidade, seja ela através da música,

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das palavras certas em meio às desavenças e por meio da arte. Manter

entre os seus as tradições é fundamental para a memória, a identidade

de sua nação, conduzindo, reconstituindo sua história. Todo homem

africano é, até certo ponto, um contador de histórias: ele se sente res-

ponsável por carregar e transmitir aos outros o passado, a tradição, a

sua alma, inseparável de seu povo.

Como exemplos de griots, vozes mensageiras, transmissoras de

sua cultura e tradição através de arte, selecionamos para este trabalho

duas poetisas africanas que até hoje atuam na propagação, através da

literatura, de seus olhares perante as realidades que permeiam seus

países e as sociedades em que se encontram, distintas e unidas, filhas

de uma mesma Mãe África. Aliás, este olhar feminino, carregado de

maternidade, será um diferencial ao se colocarem inteiramente em

seus versos, como leoas protegendo seus filhotes, entregando-se por

eles.

Ana Paula Tavares (1952) e Odete Costa Semedo (1959). Angola,

ainda hoje um país repleto de marcas de um dos piores, e mais con-

turbados, processos de independência dentre todos os países do con-

tinente africano, sofrendo por quase 30 anos de uma guerra civil, e

Guiné-Bissau, a primeira colônia a se tornar oficialmente indepen-

dente de Portugal, mas até hoje considerada o país mais atrasado das

ex-colônias portuguesas. Processos semelhantes ocorreram em todos

os outros países africanos que foram dominados pelos portugueses

por vários séculos. A literatura, reflexo de uma sociedade, também

tardou em libertar-se dos moldes dominantes europeus, e, aos pou-

cos, conseguem ganhar autonomia e expressão. Paula Tavares e Odete

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Semedo enfrentam, além do desafio de uma cultura escrita em meio

à sagrada oralidade, o fato de serem vozes femininas, naturalmente

oprimidas, em busca da reestruturação de sociedades feridas.

Poetisa, historiadora e Mestre em Literaturas Africanas pela

Universidade de Lisboa, Paula Tavares é um dos maiores nomes de

Angola – é a única poetisa contemporânea do período pós-indepen-

dência - e de Portugal, onde atualmente trabalha como professora na

Universidade Católica de Lisboa. Encontra-se, literal e literariamente,

em um cenário repleto de novas tensões. Aqui, não cabe mais a utopia

anterior, mas certa distopia, um esvaziamento diante do que ficou.

A nova ordem mundial não aceita mais as ideologias libertárias

de outrora, pois a partir de todo o sofrimento que até hoje permeia a

sociedade angolana, o canto eufórico de esperança sobre a liberdade

perdeu sua voz, tornou-se ilusão. É preciso, então, reescrever esta

visão, reorganizar-se para realocar sua história e retomar seu posicio-

namento diante de sua pátria. A escrita e a oralidade, portanto, refle-

tirão estes deslocamentos, a tensão entre o tradicional e o moderno, o

desejo e a realidade.

O olhar não muda, mas a maneira de olhar. Assim, ocorre a alte-

ração de perspectiva, necessária para mostrar as alteridades na reno-

vação de uma unidade. No caso de Paula Tavares, rupturas sem fim.

Uma mulher, com a coragem necessária, coloca em si a responsabili-

dade de tecer com palavras a situação de seu povo. Fios da memória se

entrecruzarão, corpos se entrelaçarão. Repletas de simbologias, suas

poesias representarão esta nova ordem, reestruturando o que ficou

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e acrescentando o que há de vir. A natureza, o corpo e o tecido, ele-

mentos chaves de suas obras, interligados e poetizados através de uma

escrita maternal:

A MÃE E A IRMÃ

A mãe não trouxe a irmã pela mão

viajou toda a noite sobre os seus próprios passos

toda a noite, esta noite, muitas noites [...]

(tavares, 2011)

Muitas noites que carecem de memória. Revistar o passado

para reconstruí-lo através de um contra-discurso que tem como uma

de suas missões re-estabelecer o elo natural entre o homem e a pala-

vra, ambos fragmentados em meio ao caos. O sujeito de Paula Tavares

deseja penetrar no sentido das coisas, conhecê-las para ser penetrado

por elas, apropriando-se para reinventá-las, tomando posse do seu

poder diante do mundo ao “descascar” os frutos amargos. Mesmo que

as falas não sejam doces, são necessárias:

AMARGOS COMO OS FRUTOS

[...] Amado, meu amado,

o que regressou de ti

é a tua sombra

dividida ao meio

é um antes de ti

as falas amargas

como os frutos.

(tavares, 2011)

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É preciso que o povo africano descubra-se como possíveis

gritos, no sentido de serem detentores da história, construtores do

conhecimento e capazes de transmiti-los aos seus. Estas mulheres

aqui destacadas, mesmo em meio a todas as dificuldades, com suas

vozes discretas dentre a superioridade masculina, têm consciência

disso: não desprezam a tradição oral, mas de certa forma transferem-

na para seus textos. Em Paula Tavares, elementos comuns ao povo

angolano ganham corpo e voz, apresentam-se aos que não os conhe-

cem, reafirmam-se diante do conhecido. Estas (re) ligações também

farão parte da literatura de Odete Semedo.

Guiné-Bissau, como já citamos anteriormente, é a ex-colônia

portuguesa mais atrasada, devido a várias razões históricas e sociais, e

com sua literatura ocorre o mesmo. Em meio a uma escassa produção

literária, Semedo lança seu primeiro livro apenas em 1996, Entre o ser e

o amar. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela  Universi-

dade Nova de Lisboa, atualmente trabalha na capital de seu país, para

o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), como colabora-

dora nas áreas de Educação e Formação. Aliás, foi este o apoio que

teve para realizar o lançamento de seu livro.

Entre o ser e o amar revela-se ao leitor através de dois grandes

temas: as desilusões vinculadas à pós-independência e a consequente

busca de uma nova ordem, social e individual, a identidade de um

sujeito em meio a uma sociedade fragmentada. A poesia de Semedo

revela não só a tensão natural de um povo e seus conflitos, mas a

inquietude do individuo diante da existência, como colocar-se nesta

realidade. Assim, ela consegue reinventar o rebuscado Barroco, traba-

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lhar sua essência de uma forma simples, cotidiana: a mulher do dia a

dia e suas reflexões acerca do mundo que a cerca, com todos os seus

dissabores, “de modo a proporcionar aos leitores um espaço de lazer,

reflexão, crítica e encontro consigo mesmo” (semedo, 1996)

Em seu outro livro de poesias, No fundo do canto (Publicado em

Portugal em 2003 e no Brasil em 2007), Odete Semedo deixa explícita

sua voz. Em cada canto-poema, o desabafo como missão, a experiên-

cia de vida como matéria de poesia. Os 333 dias de guerra civil – entre

1998 e 1999 – e tudo o que eles significaram para seu povo estarão

explícitos em seus versos:

[...]

Mais que três dias

não deve atingir

tal confronto

se prolongar...

Só trinta e três dias depois

teria o seu final

e será como um punhal

todo o povo vai ferir

Caso passasse o predileto período

sem que o tormento amainasse

apenas trezentos e trinta e três dias

trinta e três horas

separaria aquela gente

de tal maldição

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assim está escrito

no destino da nova Pátria

(semedo, 2007)

Odete Semedo, voz representativa da cultura multifacetada

guineense, retornará às suas tradições, evocará e cultuará o passado

e toda a herança deixada pelos seus, herança esta que sobreviveu á

toda opressão. Para isso, é preciso o resgate de tudo o que ficou sub-

jugado. Como ato político, cultural, social e afetivo, poesia em crioulo,

assumindo o caráter híbrido da formação de seu país. Escrever tam-

bém em sua língua é reinventá-la, mostrar a seu povo que a língua é

uma arma de resistência e prova de uma identidade forte, capaz de

preservar-se. Aqui, o papel essencial da tradição oral: já que a língua

portuguesa, dos “herdeiros do nosso século”, é a “oficial”, que tenham a

consciência de conservar o crioulo, transmiti-lo, para que não percam

a essência lingüística e cultural:

[...}

Ou terei que falar

Nesta língua lusa

E eu sem arte nem musa

Mas assim terei palavras para deixar

Aos herdeiros do nosso século

Em crioulo gritarei

A minha mensagem

Que de boca em boca

Fará a sua viagem

(semedo, 1996)

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No poema de abertura de No fundo do canto, Semedo coloca-se

aos seus leitores, revela sua missão. “O teu mensageiro”, em crioulo,

“Bu Tcholonadur” – neste livro encontramos alguns poemas nas duas

línguas, e um glossário com a tradução de todos os termos utilizados

em crioulo. Assume-se como mediadora em relação a seu povo e nar-

rará em versos a sua realidade. Só em português não seria suficiente:

o crioulo serve como um elemento importante nesta aproximação que

solicita aos leitores/ouvintes:

(...)

Aproxima-te de mim

não te afastes

vem...

senta que a história não é curta...

(semedo, 2007)

Paula Tavares e Odete Semedo são algumas das muitas vozes

em África. Mostram-nos que é preciso ter ímpeto, coragem em meio

às limitações que nos são impostas. A desterritorialização, comum a

ambas, é também uma forma de enxergar-se de outro ponto de vista,

mas consciente de retornar ao primeiro olhar. A verdade está per-

meada pela história, não podemos deixá-la. A África vive, sobrevive,

pulsa. Suas tradições não foram, elas são. E, a cada novo filho, que a

Mãe tenha sempre um Tcholonadur para colocá-lo junto de si e deixá

-lo ali, protegido, repleto de carinho e de histórias...

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Referências bibliográficas:

BÁ, Hampaté Bá. A tradição viva. In História Geral da África – volume

1: Ática/UNESCO, 1980.

SEMEDO, Odete Costa. Entre o ser e o amar. Bissau: Instituto Nacional

de Estudos e Pesquisas, 1996.

_________. No Fundo do Canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.

TAVARES, Paula. Amargos como os frutos. Rio de Janeiro: Pallas Edi-

tora, 2011.

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walter benjamin entre homero e marcel proust

Patrick Gert Bange

a mortalha de laertes:

Este trabalho se inclui no contexto do projeto de pesquisa “À

Imagem de Proust: Traduzir Walter Benjamin”, que desenvolvo sob

orientação da professora Flávia Trocoli, do Departamento de Ciên-

cia da Literatura da UFRJ. O ensaio de Benjamin ao qual me dedico

se chama “Zum BildeProusts”, em português: “À Imagem de Proust”,

segundo a tradução que proponho. Benjamin convoca a presença de

Homero ao segundo parágrafo do ensaio:

Man weiß, daß Proust nicht ein Leben wie es gewesen ist in

seinem Werke beschrieben hat, sondern ein Leben, so wie der,

der‘s erlebt hat, dieses Leben erinnert. Und doch ist auch das

noch unscharf und bei weitem zu grob gesagt. Denn hier spielt

für den erinnernden Autor die Hauptrolle gar nicht, was er

erlebt hat, sondern das Weben seiner Erinnerung, die Penelo-

pearbeit des Eingedenkens. Oder sollte man nicht besser von

einem Penelopewerk des Vergessens reden?1 (benjamin, 1991:

311, grifo meu)

1 Sabe-se que Proust não descreveu uma vida em sua obra como ela aconteceu, mas uma vida como aquele que, tendo-a vivido, se lembra dessa vida. E mesmo isso é também ainda nebuloso e, de longe, dito de maneira muito primária. Pois aqui o que desempenha o papel principal para o autor que lembra não é absolutamente o que ele viveu, mas o tecido de seu lem-brar, o trabalho de Penélope da rememoração. Ou não seria melhor falar da obra de esquecimento de Penélope? [Tradução minha].

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O véu de Penélope, a metáfora, através da qual Benjamin rela-

ciona Homero e Proust, não custa lembrar2, deverá servir como mor-

talha para o cadáver de Laertes, pai de Odisseu. A leitura cerrada do

trecho benjaminiano coloca alguns elementos à mesa. Primeiro, a

primazia do “tecido [Weben] do lembrar” sobre o vivido. O lembrar,

aqui, possui autonomia em relação às coisas vividas. Possui outra tex-

tura, que é feita de outro material. Feita por quem? Em segundo lugar,

Benjamin, explica: o agente é Penélope, essa espécie de tecelã que, na

tradição homérica, cria o artifício de tecer a mortalha durante o dia

e desfazê-la durante a noite com o intuito de postergar a escolha de

um pretendente, como conta Antínoo na Odisseia, pela voz do poeta

(cf. homero, 2001: 44). Trata-se, em terceiro lugar, de uma engenha-

ria enganadora, portanto. Benjamin põe em cena o tecido do lembrar

como o produto de um agente enganoso, que pretende postergar algo,

em nome de alguma coisa. Penélope posterga a escolha de um novo

marido, em nome da espera de Odisseu, de seu marido em memó-

ria. Daí Benjamin chamar esse trabalho de Penélope de um trabalho

de rememoração [Eingedenken]. A operação mais grave, em quarto

lugar, é a que vem em seguida: “ou não seria melhor falar da obra de

esquecimento de Penélope?”. A palavra “oder” [ou] não é ingênua. Ela

marca, com o mesmo tom que adotamos em conversas informais,

uma súbita percepção: a de que o tecido do texto proustiano, em lugar

de falar mais de uma rememoração, fala de um esquecimento. Ben-

jamin fala desse outro lado da imagem de Penélope: o da engenharia

enganadora, que quer fazer esquecer a escolha de um pretendente

como marido. A imagem do engano é ambígua, ou dialética: serve à

rememoração e ao esquecimento ao mesmo tempo. Mas parece que

2 Quem me lembra é Jeanne Marie Gagnebin (gagnebin, 2011: 5).

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a faceta que quer relembrar já está sabida. Resta investigar que forma

estética alcança o esquecimento na Odisseia, como na Recherche, a

partir de Benjamin, para retornar a ele em seguida.

Que esquecimento há em Homero? Volto ao texto homérico,

àquele trecho em que se fala do véu. São palavras de Antínoo, o mais

violento dos pretendentes:

ἡ δὲδόλοντόνδ᾽ ἄλλονἐνὶφρεσὶμερμήριξε:

στησαμένη μέγαν ἱστὸν ἐνὶ μεγάροισιν ὕφαινε,

λεπτὸν καὶ περίμετρον: ἄφαρ δ᾽ ἡμῖν μετέειπε:

κοῦροιἐμοὶμνηστῆρες, ἐπεὶθάνεδῖοςὈδυσσεύς,

μίμνετ᾽ ἐπειγόμενοι τὸν ἐμὸν γάμον, εἰς ὅ κε φᾶρος

ἐκτελέσω, μή μοι μεταμώνια νήματ᾽ ὄληται,

Λαέρτῃ ἥρωι ταφήιον, εἰς ὅτε κέν μιν

μοῖρ᾽ ὀλοὴ καθέλῃσι τανηλεγέος θανάτοιο,

μή τίς μοι κατὰ δῆμον Ἀχαιϊάδων νεμεσήσῃ.

αἴ κεν ἄτερ σπείρου κεῖται πολλὰ κτεατίσσας.

‘3

3 No mais recôndito soube engendrar o seguinte artifício: / Tendo estendido no quarto uma tela sutil e assaz grande, / pôs-se a tecer. A seguir nos engana com estas palavras: / Jovens, porque já não vive Odisseu, me quereis como esposa. / Mas não insteis sobre as núpcias, conquanto vos veja impacientes, / até que termine este pano, não vá tanto fio estragar-se para mortalha de Laertes herói, quando a Moira funesta / da Morte assaz dolo-rosa o colher e fizer extinguir-se. / Que por qualquer das Aquivas jamais cen-surada me veja, / por enterrar sem mortalha quem soube viver na opulência. (homero, 2001: 44) [O texto original em grego foi retirado do site Perseus

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O primeiro verso, na tradução de Carlos Alberto Nunes,

demonstra que, na Odisseia, estamos diante de uma obra cuja enun-

ciação é clara: o “mais recôndito” vem à tona sem qualquer rodeio. O

fato de Penélope ter engendrado um artifício, a sós consigo mesma,

está posto à superfície do enunciado. O crítico que aborda a questão

da claridade do “texto” homérico é Erich Auerbach, em seu clássico

Mimesis. Segundo Auerbach, os poemas homéricos não têm talento

para ocultamentos, de modo que não se pode interpretar Homero, no

máximo analisá-lo (cf. auerbach, 2009: 10). Desse modo, o oculta-

mento de Penélope não pode ser anunciado com um artifício enga-

noso, mas como um artifício enganoso sabido, descoberto. O fazer

esquecer que Penélope engendra não pode se dar, em texto, como

esquecimento, isto é, o enunciado não pode esquecer a enunciação,

ambos ligados intimamente. Um aspecto decisivo do estilo homé-

rico consiste nessa estética sem furo na enunciação, a estética de um

mundo em que os deuses estão vivos e em que versos são sabidos de

cor. O tecer a mortalha, por isso, não comporta metáforas. Benjamin

é quem convida Penélope para o âmbito metafórico, ambíguo. Não à

toa, pois que o assunto em questão é Proust. Mas antes de passar a

Proust, cumpre comentar o final do trecho homérico. Penélope não

poderia deixar de tecer a mortalha a Laertes, pai de Odisseu, uma vez

que ele vivera “na opulência” (homero, 2001: 44). O que está em jogo

aqui, portanto, é uma lei. Posso falar também em uma baliza divina,

que serve de argumento para que o tecer a mortalha seja aceito pelos

pretendentes, mesmo que plenos de desejos.

Digital Library, sob o endereço http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0135%3Abook%3D2%3Acard%3D84 (acesso em 28 de outubro de 2013)]

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Voltando a Proust, exponho o final do trecho em que a memória

involuntária é disparada pela célebre madeleine:

Et comme dans ce jeu où les Japonais s’amusent à tremper dans

un bol de porcelaine rempli d’eau, de petits morceaux de papier

jusque-là indistincts qui, à peine y sont-ils plongés s’étirent,

se contournent, se colorent, se différencient, deviennent des

fleurs, des maisons, des personnages consistants et reconnais-

sables, de même maintenant toutes les fleurs de notre jardin et

celles du parc de M. Swann, et les nymphéas de la Vivonne, et

les bonnes gens du village et leurs petits logis et l’église et tout

Combray et ses environs, tout cela que prend forme et solidité,

est sorti, ville et jardins, de ma tasse de thé.4

Benjamin, como se viu, aproxima Proust mais do esqueci-

mento do que da memória, de modo que a estética das frases prous-

tianas funciona como agente do esquecimento: o leitor sabe que, a

cada frase longa de Proust, o sentido do que se está a dizer se esquece,

o fôlego do sentido se perde. Benjamin, no mesmo ensaio, chama

atenção para o ritmo da sintaxe proustiana, comparando-a a de um

asmático. Já aqui há uma diferença com relação ao ritmo do poema

4 E, como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia de água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se colorem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as nin-féias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez saiu, cidade e jardins, da minha [xícara] de chá. (proust, 2006: 74 [tradução ligei-ramente modificada]) [O texto original em francês foi retirado do site http://alarecherchedutempsperdu.org/, sob o endereço http://alarecherche-dutempsperdu.org/marcelproust/009 (acesso em 28 de outubro de 2013)]

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homérico, altamente metrificado, que cabe em canto e em memória.

O trecho de Proust que expus é o final do episódio da madeleine, no

início do qual o narrador, que ainda não tem nome – tão diferente dos

nomes e dos epítetos prontamente introduzidos por Homero –, sente

uma sensação de prazer, um êxtase5 que se anuncia, “invadira-me um

prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa” (proust, 2006: 71).

Depois, o êxtase falha, o prazer não se dá, “retrocedo pelo pensamento

ao instante em que tomei a primeira colherada. Encontro o mesmo

estado, sem nenhuma luz nova” (proust, 2006: 72). Só no terceiro

tempo é que há o êxtase da linguagem, em que toda uma Combray

irrompe a partir da xícara de chá. Daí ser possível dizer que, se há, na

Recherche, uma linguagem oculta, não sabida, metaforizada nos peda-

cinhos de papel japonês, se o narrador tanto se esforça para chegar a

ela, é porque há um conteúdo latente, encoberto, que demora a che-

gar à superfície do enunciado. Esse momento de revelação, esse exer-

cício de “fazer sair da penumbra” (proust, 2004: 158), é uma busca do

narrador proustiano e é também uma ideologia estética (cf. proust,

2004: 158). Aliás, essa ideologia é de uma estética futura, o livro por vir

que temos em mãos. A Recherche encena, portanto, um triplo descom-

passo, um triplo engano, um fio desfeito em três: o conteúdo latente

em descompasso com o conteúdo manifesto, isto é, o enunciado, em

descompasso com a enunciação. Em Proust, não há nada da claridade

homérica, que tece um “texto” com esse fio triplo em total harmonia,

um fio uno.

5 A ideia de trabalhar com as categoria “êxtase / não-êxtase / êxtase da linguagem” surge em conversa, como sugestão de minha orientadora, Flavia Trocoli.

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De volta a Benjamin, e por fim, cumpre perguntar por que ele

monta esse cenário teórico. Como se viu, o véu de Penélope tem uma

função: servir de mortalha ao pai de Odisseu, Laertes. Se Benjamin,

ao falar de Proust, fala da queda de um modelo tradicional de nar-

ração e de fazer arte, qual o cadáver a que servirá o véu da Penélope

proustiana? “Não tem resposta” (proust, 2006: 55). É o que a mãe do

narrador lhe transmite, enquanto ele sofre por um beijo de boa noite,

essa metonímia da questão moderna da morte de Deus, do furo no

significado, da queda da baliza divina, ainda plena em Homero. Não

creio ser melancólica a noção, segundo a qual o que resta é a feitura

de uma obra de arte, que, em Proust, equivale a uma obra do espírito.

Qual baliza resta? Na última página da Recherche, o narrador denuncia

essa baliza moderna: trata-se da possibilidade da morte: “se ao menos

me fosse concedido um prazo para terminar minha obra [...]” (proust,

2004: 292). Em Proust, Penélope tece sua própria mortalha para tentar,

via obra de arte, enganar, ou esquecer a morte.

referências bibliográficas:

AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na litera-

tura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2009.

BENJAMIN, Walter. „Zum Bilde Prousts“. In: _______. Gesammelte

Schriften II – 1: Aufsätze, Essays, Vorträge. Frankfurt am Main:

Suhrkamp Verlag, (1972) 1991, p. 310-324.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin.

São Paulo: Perspectiva, 2011.

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HOMERO. Odisséia. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro:

Ediouro, 2001.

PROUST, Marcel. No caminho de Swann. São Paulo: Globo, 2006.

_______. Tempo redescoberto. São Paulo: Globo, 2004.

Página com o texto original homérico:http://www.perseus.tufts.

edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0135%3Abook%-

3D2%3Acard%3D84 (acesso em 28 de outubro de 2013).

Página com o texto original proustiano: http://alarecherchedutemps-

perdu.org/marcelproust/009 (acesso em 28 de outubro de 2013).

nota biográfica:

Patrick Gert Bange é graduando em Letras (Português e Litera-

turas) na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desenvolve projeto

de pesquisa sobre Walter Benjamin e Marcel Proust, sob orientação da

professora Flavia Trocoli, com apoio da Fundação Carlos Chagas Filho

de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). E-mail:

[email protected].

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Eu to te explicando pra te confundir

Tô te confundindo pra te esclarecer

Tô iluminado pra poder cegar

Tô ficando cego pra poder guiar

(Tom Zé)

Nem tudo o que acontece acontece.

Mas às vezes o que não acontece acontece.

(Helder Macedo)

Investigo neste trabalho, sob o viés da ironia romântica, o

romance Tão longo amor, Tão curta a vida, publicado em 2013 no

Brasil, e tecido por Helder Macedo, escritor de terras lusitanas, voz

expressiva da literatura de língua portuguesa contemporânea.

Na antiga comédia grega, por volta de 400 a.C., Aristófanes

introduziu em suas peças a parábase, momento em que o coro se

desligava da ação dramática e transmitia ao público a palavra do dra-

maturgo, em uma interação sério-jocosa com a plateia. Assim, o coro

veiculava a metalinguagem crítica, que o comediógrafo inseria na

a narrativa sem calçadas de helder macedo

Mariana Braga

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trama das ações. O momento da parábase servia ao autor e ao público

como processo de auto-irrisão e de pensar crítico sobre questões prá-

ticas e teóricas da peça em si, da dramaturgia e da arte em instâncias

mais amplas, além de atentar a plateia para a ficcionalidade da ação

ali desenvolvida. Quando utilizado no processo de criação artística, o

movimento parabático permanente dá origem a obras de arte constru-

ídas sob o princípio da ironia romântica, ou seja, do profundo e inces-

sante questionar ou, ainda, auto-questionar, metaficcional, de modo

a visitar o quiasmo ficção-realidade, repensando a ficção enquanto

realidade e, como desdobramento, a realidade enquanto ficção.

1

A gravura acima faz parte da mostra O Brasil é o meu abismo,

do artista pernambucano Daniel Santiago. Nela, o autor transforma a

criação em tema, coloca em palavras o processo de composição artís-

1 SANTIAGO, Daniel. Gravura da coleção O Brasil é o meu abismo.

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tica da própria obra, entrega seu modus operandi: “É possível que o

branco, aqui, tenha boa visibilidade”. A frase, escrita em branco sobre

um fundo vermelho, torna explícito o pensar do artista na construção

da imagem, o processo criativo por trás do quadro exposto – a sobre-

posição de cores, por exemplo. Ao se deparar com tal obra, o público

tem a atenção chamada para o fato de que esse quadro é uma repre-

sentação, e de que, consequentemente, não só o quadro, mas a mos-

tra e a arte como um todo são representações da realidade, e não o

real. A gravura de Daniel Santiago reflete sobre si mesma, torna-se

sujeito além de objeto, num processo de metalinguagem parabática,

indo além da representação e se credenciando como forma de conhe-

cimento. A função crítica do princípio irônico de construção seria,

assim, converter a ilusão da consciência na consciência da ilusão.

Já na arte narrativa, voltando, portanto, à arte literária, é o nar-

rador que assume a função crítica da parábase. Ele se apresenta expli-

citamente como narrador e chama constantemente a atenção do leitor

à sua presença, para que a consciência se sobreponha à ilusão. A insis-

tente intromissão do narrador no texto narrado assegura, ou ao menos

procura proporcionar, o desfacelamento da ilusão ficcional e a des-

construção irônica da motivação realista. O narrador autoconsciente,

que problematiza sua obra, por vezes se desviando do enredo, acaba

por exigir a participação ativa do leitor, também autoconscientizado,

na construção de sentido da obra. Paulo Ricardo Kralik Angelini faz

referência ao “narrador desestabilizador, que atrai o leitor para den-

tro do texto e exige que ele o reconfigure”.2 Em sua tese de doutorado,

2 ANGELINI, Paulo Ricardo Kralik. Capelas imperfeitas: o narrador na construção da literatura portuguesa do século XXI. 2008, 184 f. Tese (Dou-

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Capelas imperfeitas: o narrador na construção da literatura portu-

guesa do século XXI, Angelini revisita Paul Ricoeur, no terceiro volume

de Tempo e narrativa, e, anteriormente, Wayne Booth, em A retórica

da ficção, que utiliza os termos “narradores não-dignos de confiança”3

ou “canalhas sedutores”,4 conceito aprofundado por Ricoeur:

o narrador não-digno de confiança não é apenas aquele que vai

na contra-mão do autor da narrativa, mas sim aquele em quem

o leitor não pode confiar e, ao mesmo tempo, por quem não

consegue deixar de ser seduzido5

Angelini completa que: “Essa espécie de desamparo é extrema-

mente produtiva por obrigar o leitor a decifrar o texto a partir dessa

desconfiança instaurada”.6 Assim, ao romper o contrato narrativo,

assumindo o caráter ficcional e não realista de sua obra, tal qual fazia

o coro no momento da parábase, e ao trapacear o leitor constante-

mente, assumindo o papel de canalha sedutor, o autor o põe alerta.

Tomo como metáfora a fala do escritor Gonçalo M. Tavares sobre seu

livro Canções Mexicanas (2011), em que nos conta suas impressões

acerca de Marrakesh e da Cidade do México:

Só há duas coisas na cidade antiga árabe, que são: o espaço pri-

vado, a casa, e a rua. E a rua não tem passeios, calçadas, como

vocês [brasileiros] dizem. Então, o que acontece? O que eu senti

em Marrakesh é que, quando se sai à rua, estamos imediata-

torado em Literaturas Brasileira, Portuguesa e Luso-Africanas). Instituto de Letras - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. P. 7.

3 Idem, p. 33.4 Ibidem, p. 13.5 Ibidem, p. 34.6 Ibidem, p. 34.

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mente em perigo, porque as ruas da Medina de Marrakesh são

muito estreitas, e por lá passam milhares de pessoas, e moto-

cicletas a grande velocidade, e burros, e cavalos, e pessoas a

correr. E a questão é que, por exemplo, numa cidade europeia,

uma pessoa pode ser atropelada em dois sentidos. Ali, pode ser

atropelada em quarenta sentidos. O que eu senti em Marrakesh

e na Cidade do México também é que, por exemplo, crianças:

uma criança que nasce e vive em Marrakesh. Ela, quando sai de

casa, sai sempre num estado de tensão, porque, realmente, se

nós nos distrairmos durante um segundo em Marrakesh, somos

atropelados. Enquanto, por exemplo, nas cidades europeias, o

que eu senti quando regressei a Lisboa, eu dei outro valor à cal-

çada, ao passeio: nós, em princípio, na estrada, corremos algum

risco, mas, quando chegamos à calçada, descansamos. Há ali

um relaxamento.7

A literatura parabática se faz rua sem calçadas, lugar de descon-

fiança e desamparo constantes. O leitor, ao abrir o livro, abre a porta

de casa e dá diretamente numa estrada de possíveis engodos, trope-

ços, atropelamentos. Exige-se do leitor, bem como do pedestre, aten-

ção permanente. Não há possibilidade de descanso ou relaxamento;

podam-se as possibilidades de ilusão. Em sua leitura, em especial de

obras metanarrativas, que por si só se repensam e se questionam, é

preciso ser criança nascida em Marrakesh, sempre em estado de ten-

são, a evitar ser atropelada pelo que nem se viu.

Chego, enfim, a Tão longo amor, Tão curta a vida, publicado

em 2013 por Helder Macedo, cujo título ecoa quase sem modificações

7 TAVARES, Gonçalo M. Internet: http://www2.camara.leg.br/cama-ranoticias/tv/materias/SEMPRE-UM-PAPO/454410-SEMPRE-UM-PAPO-RECEBE-O-ESCRITOR-GONCALO-TAVARES.html)

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versos de um soneto de Camões. O narrador do romance é um escri-

tor português que vive em Londres, e, certa noite, recebe a inesperada

visita de um antigo conhecido, de que se diz “tão amigo quanto é pos-

sível ser a partir de certa idade”.8 Victor Marques da Costa, seu leitor

e compatriota diplomata, parecendo inquieto e assustado, e com a

manga da camisa suja de sangue, começa a divagar sobre sua carreira,

Portugal, seus pais e sua criação, questões filosóficas, literárias e musi-

cais. Conta-lhe sobre a temporada em que viveu na Alemanha orien-

tal, sobre sua relação com Otto, funcionário da embaixada, e com a

cantora de ópera Lenia Nachtigal, alemã, possivelmente filha de Otto,

com quem tem um relacionamento romântico e musical até a queda

do Muro de Berlim, quando ela o abandona e “atravessa a desbloque-

ada Porta de Brandenburgo para o outro lado da sua vida”.9 Conta-lhe

de seu recente encontro com uma mulher desconhecida, ou não reco-

nhecida, em um teatro em Londres, duas décadas após os acontecidos

na Alemanha, e alega ter sido por ela sequestrado, não se sabe bem se

de forma consensual ou não. O narrador, tendo acabado de começar

a escrever um novo romance, deixa-o de reserva e toma as histórias

inconclusivas de Victor Marques da Costa para lhes preencher as lacu-

nas, já que este apareceu de repente em sua casa “a oferecer-se como

personagem [...] a querer que eu [o narrador-personagem] fosse uma

espécie de autor fantasmático da sua vida”.10

A dedicatória do romance, já de início, denuncia sua inconclu-

8 MACEDO, Helder. Tão longo amor, Tão curta a vida. 1 Ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2013, p. 12

9 Idem, p. 5010 Ibidem, p. 78.

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sividade: “À S, para que o emende”.11 O apelo destinado à S, disfarce do

nome Suzette, esposa de Helder Macedo, e também personagem de

Tão longo amor, Tão curta a vida, se estende para quem quer que se

disponha a abrir a porta de casa para essa perigosa estrada. Bem como

o narrador se prontifica a completar a narrativa de Victor Marques da

Costa, o autor nos delega a tarefa de preencher as lacunas de seu pró-

prio romance, cabendo ao leitor lidar com suas inconclusividades e

trabalhá-las, emendá-las. Helder Macedo assume criticamente a não

unidade, a não completude de seu texto, fugindo ao dogmatismo lite-

rário. Em Sem nome (2005), outro romance do escritor, o personagem

Carlos Ventura afirma que “Só podemos construir capelas imperfeitas.

Para os leitores poderem acabá-las”,12 de onde vem o título da tese de

Paulo Ricardo Kralik Angelini.

Sobre a inserção de dados biográficos do autor na obra, carac-

terística que perpassa a literatura de Helder Macedo – vide Partes de

África, Vícios e Virtudes, Pedro e Paula, etc –, Angelini afirma que ela

“visa a um embaralhar de expectativas: um possível autor empírico

incorporado como narrador, manipulando conscientemente seus

personagens (e por eles sendo manipulado), e, consequentemente,

seus leitores”,13 e ainda reporta em seu texto o comentário do escri-

tor: “O disfarce autoral serve para solicitar a cumplicidade do leitor, 11 Ibidem, p. 5. 12 MACEDO, Helder. Sem nome. 1 Ed. Rio de Janeiro: Record,

2006, p. 71.13 ANGELINI, Paulo Ricardo Kralik. Capelas imperfeitas: o nar-

rador na construção da literatura portuguesa do século XXI. 2008, 184 f. Tese (Doutorado em Literaturas Brasileira, Portuguesa e Luso-Africanas). Insti-tuto de Letras - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. p. 116.

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que acompanha o escritor no próprio processo da escrita. Uma pis-

cadela de parte a parte”.14 Embaralhamento e cumplicidade, jogo de

manipulação e pacto selado a piscadelas: duplicidades que funda-

mentam o princípio irônico de composição, base de uma ambivalên-

cia que afirma aspectos contraditórios de uma aparente unidade, e,

quando instalada no próprio sujeito, se torna em autodesdobramento.

O sujeito se desdobra, se bifurca, porém sem jamais se separar de si

mesmo, em eu-sujeito pensante e eu-objeto pensado, criador e cria-

tura, de modo que se auto-recria incessantemente. Torna-se, ainda,

num infinito diferir de si mesmo, sendo o eu-sujeito condição a priori

de existência de qualquer eu-objeto, propulsão transcendente que o

leva para além do finito sensível, em direção ao infinito inteligível.

Condição alegorizada pelo “pequeno universo simultaneamente con-

finado e propiciador de amplas vidas imaginadas num inespecificado

lá fora de expectantes possibilidades”15 em que Victor Marques da

Costa vive com seus pais. O autor se dobra sobre sua obra e sobre si

mesmo, colocando-se como narrador, como personagem, se plurali-

zando:

A minha única preocupação é não estar sempre a escrever o

mesmo livro sobre a mesma gente, a vistoriar o vistoriado. Não

tenho muita paciência para eu ser sempre o mesmo, quanto

mais as minhas personagens. Nem sequer quando as disfarço

nas minhas próprias circunstâncias para poder ser quem não

sou.16

14 Idem, idem.15 MACEDO, Helder. Tão longo amor, Tão curta a vida. 1 Ed.

Rio de Janeiro: Rocco, 2013, p. 19.16 Idem, p. 13.

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Friso também a consciência do autor-narrador mencionada por

Angelini, que acarreta a conscientização dos leitores e – por que não?

– dos personagens, e a participação do leitor no processo de escrita,

referida pelo escritor.

A começar por S, pessoa e personagem – realidade e ficção –, a

quem Helder Macedo dedica a maioria de seus livros – “À S., para que

o emende”; “Para a S., no tudo que é tudo” (Pedro e Paula); “Para a S

contadora de histórias” (Natália); “Para ti. Já sabias” (Vícios e virtu-

des); etc –, o autor coloca em seus romances dados que coincidem com

sua vida para além da literatura. Em Tão longo amor, Tão curta a vida,

S aparece como esposa do narrador, que, por sua vez, é um escritor

português, professor acadêmico de literatura portuguesa, residente na

mesma rua da antiga casa de Freud, em Londres, ex-jogador do pré-

juniores do Benfica. Todas características condizentes com a biografia

do escritor, de tal modo que se estremece a fronteira – o limiar – entre

realidade e ficção. A presença de S tanto na epígrafe quanto dentro

do romance resulta no imbricamento de texto e paratexto, de modo

que não se sabe ao certo quando começa e quando termina a narra-

tiva, quem é pessoa e quem é personagem. Para além de S, o autor-

narrador provoca essa mistura mais vezes: no capítulo “A pneumonia”,

a narração é desenvolvida por cinco parágrafos sem que a doença

seja citada, até que o sexto parágrafo se inicia com a indagação “E a

pneumonia?”.17 O narrador, portanto, dialoga com o título do capítulo,

a princípio, paranarrativo –– sendo “para”, etimologicamente, o que

está “junto a”, “ao lado de”, que não se encontra ou mistura, bem como

“parábase” significa “movimento paralelo”–, assumindo a postura de

17 Ibidem, p. 96.

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quem sabe que está a narrar um romance. Efeito parecido é obtido

quando, ao iniciar “Repetições”, o autor-narrador retoma a fala final de

uma personagem do capítulo anterior: “Agora chegou a minha vez”,18

diz a personagem no capítulo VI; “Chegou a sua vez de quê?”,19 argui o

narrador, no VII. Em ambos os casos, a metanarratividade se salienta,

a voz narrativa conversa com o próprio texto.

Retomando a imagem do (des)dobramento, busco a voz de Cle-

onice Berardinelli em seu ensaio “Nas dobras do texto”:

Dobrada é, pois, a palavra que não é o que parece, é falsa,

portanto. Eticamente má, não o é, porém, na criação artística.

Dobrado é o discurso de Helder Macedo quando vela e revela

fatos e gentes, atribuindo-se, e ao leitor, a dúvida, e acrescen-

tando-a ao fingir esclarecê-la; quando nos apresenta Um drama

jocoso cujo autor aparece e desaparece, e cuja autoria é questio-

nada mesmo antes que o texto se inaugure; quando, com fina

ironia, ‘falando a verdade a mentir’, encaixa ardilosamente os

pedaços de seu enganoso mosaico com espelhos, deixando-se,

por fim, apanhar nas malhas da rede que lançou e desvelando-

se no último momento.20

Velar e desvelar, criar dúvidas e fingir esclarecê-las, apresen-

tar um drama ao mesmo tempo jocoso, aparecer e desaparecer, falar

a verdade a mentir: contradições consentidas e cultivadas na dialé-

tica poética da ironia romântica, em que toda oposição polar se trans-

18 Ibidem, p. 141.19 Ibidem, p. 143.20 BERARDINELLI, Cleonice. “Nas dobras do texto”. In: A

experiência das fronteiras. Organização e apresentação de Teresa Cristina Cerdeira. Niteroi: EdUFF, 2002, p. 30.

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forma em oposição complementar. Tese e antítese constituem uni-

dades irredutivelmente duais, não sendo admitidas nem a separação

nem a síntese dos contrários. Pensando a ironia como limiar e o limiar

como ironia, esta se traduz em primado da contradição e da “incon-

clusividade”, palavra que aparece inúmeras vezes nas linhas de Tão

longo amor, Tão curta a vida.

Victor Marques da Costa dizia que, por serem inconclusivos21 é

que gostava dos romances do narrador. Este, por sua vez, acusa aquele

de lhe usar como “testemunha adiada de seus amores inconclusivos”,22

de precisar “legar a alguém essa sua inconclusividade”,23 caracteriza a

vida do diplomata como “inconclusa”24 e se aborrece com seu relato

embaraçado: “Pois é, e sou eu que conto histórias inconclusivas”.25

Novamente, já no final do romance, torna a se zangar com a reação

de Victor Marques da Costa de como preencheu as lacunas de suas

inconclusividades – criando mais lacunas e mais inconclusividades, a

bem dizer – transformando-lhe em personagem:

Você tinha lido os meus livros, mencionou as minhas perso-

nagens... como é que você disse? ... inconclusivas. Bom, sim, e

também falou de livre-arbítrio e de ter sempre se beneficiado

de circunstâncias alheias à sua vontade, como se as duas coi-

sas fossem a mesma. Eu, como autor de ficções que duvidam de

si próprias, inconclusivas, como você lhes chama – e aliás não

concordo, acho que só as certezas são inconclusivas –, eu para

21 MACEDO, Helder. Tão longo amor, Tão curta a vida. 1 Ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2013, p. 12.

22 Idem, p. 78.23 Ibidem, p. 91.24 Ibidem, p. 88.25 Ibidem, p. 104.

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isso dava-lhe jeito.26

Helder Macedo refuta a onisciência tradicionalmente confe-

rida ao narrador – e por ele consentida –, que o faz senhor das ações,

pensamentos e sentimentos dos personagens. Não só transparece, e

deliberadamente escancara, a presença de uma mão narrativa e auto-

ral por detrás do texto, como dialoga com o leitor, num movimento

parabático permanente – e apela à sua participação no processo de

construção de sentidos, para além da necessária atribuição de signi-

ficados aos significantes. Na tessitura de seu romance, o autor deixa

acontecimentos e personagens a serem remendados, emendados.

Tão longo amor, Tão curta a vida é uma narrativa de hipóteses, “histó-

rias de talvez”,27 em que até as certezas são inconclusivas. Nem escrita

nem romance se perfazem.

O texto pode ser dividido em dois planos principais. No pri-

meiro, a ação consiste na interação entre o narrador e Victor Mar-

ques da Costa: a visita inesperada, o relato do personagem – feito,

entretanto, de modo indireto pela voz do narrador – e seu encontro

final, em que se discute o modo como o escritor tratou de compor o

mosaico de inconclusividades apresentado, ou seja, o segundo plano.

Neste, portanto, o narrador resgata os personagens do passado de

Victor Marques da Costa, na Alemanha Oriental, e desenvolve suas

histórias até que se unam ao presente do primeiro plano narrativo.

A saber: após atravessar a Porta de Brandenburgo em direção à Ale-

manha Ocidental, às vésperas do natal de 1989, Lenia Nachtigal segue

26 Ibidem, p. 193.27 Ibidem, p.129.

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para Paris, onde, após uma confusão com quartos de hotel, conhece

a brasileira Lenia Benamor, filha do “brasileiro-turco da Palestina”28

Almir Benamor. Devido às suas viagens de inverno, Lenia Nachtigal

adoece. A pneumonia a impede de voltar a cantar, e ela, enfraquecida,

passa a morar com os Benamores, com quem vive uma espécie de tri-

ângulo incesto-amoroso, primeiro em Paris, depois em Londres. Otto,

com quem estabelecem contato por um tempo, morre em Jerusalém.

Anos depois, é Lenia Benamor que vai à Lisboa às voltas com a pos-

sibilidade de um encontro romântico com Victor Marques da Costa.

Tais acontecimentos, entretanto, são hipóteses levantadas pelo

narrador a fim de conferir verossimilhança ao discurso do protago-

nista do primeiro plano, e ligar o começo de sua história ao que lhe

contam – a respeito da presença de ambulâncias e polícias – na porta

do Museu Freud, localizado na mesma rua em que Victor Marques da

Costa alega ter estado sequestrado:

[...] já temos um início possível e uma possível conclusão. Não

se sabe é de que história. O Victor Marques da Costa contou o

início, o compatriota do Museu Freud contou o fim, e eu escrevi

tudo tal e qual. A parte inconclusiva da história seria portanto a

que ficou escondida no meio29

Para além do recorrente uso de tempos verbais e expressões que

indicam incerteza – “teria ido”,30 “não lhe bastaria”,31 “Julgo igualmente

28 Ibidem, p. 99.29 Ibidem, p. 91.30 Ibidem, p. 95.31 Ibidem, idem.

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que”,32 “Digamos em todo o caso que”,33 etc –, em seu diálogo com o

leitor, o autor-narrador pondera opções que melhor assegurem não

apenas a coerência interna do romance, mas a destreza narrativa dele

mesmo, e chama a atenção a possíveis redundâncias que, sem que ele

salientasse, o leitor não teria notado. Salienta, porém. E, com isso, cha-

coalha-o pelos ombros e provoca o riso, num jogo sério-jocoso:

E a pneumonia? Aconteceu em Viena, para onde teria ido por ter

contato com gente da ópera? Não, já decidi que a ópera estava

adiada por uns tempos. Talvez Paris. E Paris por duas razões

funcionais. A primeira é que conheço Paris melhor do que

Viena, sinto-me mais à vontade para contar como foi. A outra

é que há lá muitos portugueses, com quem eventualmente ela

poderia ter tido algum contato que facilitasse uma futura ida a

Portugal, caso assim decidisse. Além de que também daria jeito

por me permitir deixar latente uma relação implícita com a fan-

tasia do Victor Marques da Costa sobre o cerimonioso motorista

francês. Se vier a ser útil, já lá fica. Se for redundante, ninguém

terá notado34

Em outra passagem, no começo do capítulo “Igual e diferente”,

o narrador põe em xeque o capítulo anterior e, por extensão, a verossi-

milhança do romance inteiro:

Mas posso estar enganado. Posso estar a presumir erradamente

que Lenia Benamor foi a Lisboa para arranjar modo de conhe-

cer o Victor Marques da Costa e eventualmente estar com ele

como se em substituição da amiga.

32 Ibidem, p. 96.33 Ibidem, p. 165.34 Ibidem, p. 96.

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A presunção derivou, é claro, de o Victor Marques da Costa

me ter contado o seu encontro no teatro com uma mulher que

seria uma espécie de versão transposta de Lenia Nachtigal que

ele continuara a recordar em esquecimento. Eu a querer impor

uma lógica de plausibilidade ao que só como implausível pode

fazer algum sentido, a querer deduzir uma possível verossimi-

lhança das inverossimilhanças que o Victor Marques da Costa

me contou35

O que Helder Macedo tenciona é dizer ao leitor: “É possível que

o branco, aqui, tenha boa visibilidade”. Tal qual o artista Daniel San-

tiago, revela – e desvela – o modus operandi de sua obra.

Tão longo amor, Tão curta a vida é um romance sobre muros.

Sobre o Muro de Berlim, que dividia o espaço, sobre o muro de Jeru-

salém, que dividia o tempo,36 sobre um homem, Victor Marques da

Costa, que desenha mapas de países imaginários, a fazer e desfazer

fronteiras, a modificá-las, sobre um país – Portugal – e uma mulher

– Lenia Nachtigal – que têm em comum o estado de latência, “tempo

de permeio entre ter não sido e ir não ser”.37 Um romance sobre limia-

res espaciais e temporais, sobre o limiar entre ficção e realidade, entre

o original e a cópia. Traz, em uma de suas epígrafes, através de um

poema de Mário Cesariny, o limiar encarnado na existência:

Pomo-nos bem de pé, com os braços muito abertos

e os olhos fitos na linha do horizonte

Depois chamamo-los docemente pelos nomes

35 Ibidem, p. 165.36 Ibidem, p. 57.37 Ibidem, p. 14.

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e os personagens aparecem38

Horizonte, encontro de contrários, recinto de uma abissalidade

que convida à investigação sem fim. Sendo uma linha imaginária e

real que, ao mesmo tempo, existe e não existe, faz-se umbral, limite

entre visível e invisível, entre alcançável e inalcançável. De um lado, o

autor a chamar pelos personagens, que, do outro, acenam.

Em seu romance, Helder Macedo esfumaça fronteiras, as desfaz

em espuma:

Também lhe contara um sonho angustiado que tinha tido, já em

Berlim, em que as paredes da casa onde vivera com os pais se

desfizeram como se fossem de espuma, o cão, que andava sem-

pre com ele, tinha ficado dentro de casa, o pai tinha tentado sal-

vá-lo mas o cão também era de espuma e desfez-se quando o

pai pegou nele.39

Usa, também, da linguagem anedótica para, mais uma vez, de

forma jocosa, tratar de questões sérias, tais como a contradição para-

doxal que norteia a ironia romântica, entendida, aqui, como limiar e

textualmente materializada na conjunção “e”:

Sorriu ao lembrar-se da confusão do empregado da recepção

[do hotel], quando lhe disse que queria um quarto de frente.

‘Os quartos são todos iguais, minha senhora.’

‘Bom, sim, tudo bem, mas eu queria um de frente.’

38 Ibidem, p. 7.39 Ibidem, p. 38.

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‘Ah isso então não temos.’

Tentou outra vez. O mesmo resultado, agora com impaciência

de ambas as partes.

Até que ela entendeu. Tinha, é claro, pronunciado à maneira

brasileira as palavras ‘dji frente’ e o rapaz entendera, à maneira

portuguesa, ‘dif’rente’, a significar ‘diferente’ com as vogais

fechadas. Mas assim ela ao menos conseguiu um quarto que era

ao mesmo tempo igual e diferente.40

Continuando no campo semântico da limiaridade, quando os

Benamores e Lenia Nachtigal se mudam para Londres, para que ela

possa cuidar de sua saúde vocal, a clínica recomendada se situa “pro-

piciadoramente a meio caminho entre o Freud Museum e a Central

School of Speech and Drama e o Hampstead Theatre. A meio cami-

nho entre a psicologia e a expressão dramática, portanto”.41 Ou, ainda,

a meio caminho entre a racionalidade crítica e o entusiasmo criador

em que se auto-desdobram artistas guiados pelo princípio irônico de

composição, em um intercâmbio dialógico entre razão e paixão.

A estrutura de mise en abyme do romance – novamente, a ideia

da abissalidade que nos traz o horizonte – também promove o ques-

tionamento do quiasmo ficção-realidade. Se ampliarmos a divisão

dos níveis que Tão longo amor, Tão curta a vida contém e pelo qual

é contido, temos: o nível real, da pessoa Helder Macedo, autor do

romance publicado; o nível do narrador, que recebe Victor Marques

da Costa em sua casa, e cujas características coincidem com dados

40 Ibidem, p. 168.41 Ibidem, p. 144.

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bibliográficos de Helder Macedo; o nível do relato de Victor Marques

da Costa, pela voz do narrador; o nível do assumidamente inventado

preenchimento de lacunas, também por parte do narrador, do relato

inconclusivo do diplomata; e, ainda, o nível das óperas repetidamente

mencionadas no romance, Otello e Traviata, esta interpretada pela

cantora Lenia Nachtigal.

A princípio, a “narrativa em abismo” – juntamente com a ques-

tão autor-narrador da obra de Helder Macedo já por mim referida

– causa no leitor a sensação de embaralhamento entre realidade e

ficção. Onde e quando começa e termina a narrativa? Se, dentro do

romance, há outro romance, não será também o leitor personagem de

uma história narrada em outro nível? Indo além, a partir do momento

em que algum dos níveis narrativos – ou o nível real, histórico – tem

a veracidade ameaçada, o estranhamento se espraia colocando todos

os outros sob suspeita. Algumas passagens do romance explicitam tais

questionamentos.

Enquanto conversa com o narrador, Victor Marques da Costa

diz ter se incomodado ao assistir a Traviata, protagonizada por Lenia

Nachtigal, pois se lhe confundiu a separação entre representação e

verdade:

A récita teve lugar na sexta-feira 22 de setembro de 1989 e foi

um considerável sucesso. E sim, todos concordaram que Lenia

Nachtigal tinha conseguido exprimir a sensual vulnerabilidade

da personagem como se fosse a sua própria natureza – olhos de

criança triste, lábios de mulher expectante, beleza cansada de

si própria – revelando-se não apenas a cantora de extraordiná-

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ria promessa que já se sabia que era mas também uma notável

atriz, como não teria sido possível prever porque essas coisas só

acontecem no palco.

‘Totalmente diferente do seu afirmativo comportamento habi-

tual, portanto. E foi isso que me deixou mais perturbado. Não

perceber quando ela estaria a representar. Se era quando estava

a sós comigo ou se era quando estava no palco à frente do públi-

co.’42

Discute-se também, no romance, a credibilidade da história:

“[...] a História, aquilo que depois vem a ser a História, nunca é o que

está a acontecer enquanto acontece mas o que depois se percebe ter

acontecido, mesmo que não tenha sido bem assim”.43 Salienta-se a fra-

gilidade do limiar entre realidade e ficção, entre história e arte, e os

níveis da estrutura se misturam. No final do romance, Victor Marques

da Costa, antes enraivecido com as hipóteses usadas pelo narrador

para completar seu relato, passa admiti-las como verdadeiras. A cópia

– a criação literária – se antecipa ao original.

Quando narrador e protagonista se põem a discutir a obra, a

personagem S se abstém:

Fomos para o meu escritório. A S preferiu ficar na sala a ler um

livro como deve ser, daqueles que têm princípio meio e fim, à

inglesa, em vez de participar neste. E eu? Eu a achar que quanto

mais rapidamente encontrasse um fim plausível para este tanto

melhor para a minha saúde mental.44

42 Ibidem, p. 45.43 Ibidem, p. 61.44 Ibidem, p. 197.

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O encontro entre narrador e autor, bem como o uso do pronome

demonstrativo “este”, indicam que é sobre o livro Tão longo amor, Tão

curta a vida que se está a falar. A personagem S pede demissão do pró-

prio romance de que faz parte.

Construções em abismo, inconclusividades, confusão entre

as instâncias autor-narrador-personagem – a serviço do desdobra-

mento do eu em sujeito e objeto – autoconsciência e conscientização

do leitor, metaficcionalidade que possibilita o conversar com e sobre

o próprio texto, duplicidades contraditórias, narrativa de hipóteses e

limiares. Tais características evidenciam a tessitura do romance sob

a égide do princípio irônico de composição artística. Transformando

seu texto em parábase permanente, Helder Macedo repensa e discute

com o leitor temas e questões que se estendem à literatura e à arte de

modo universal, como também à história atual, que comparece em

datas simbólicas como a Queda do Muro, Maio de 1968, ditaduras de

direita e de esquerda que assolaram o Ocidente do século XX, ou a

crise da Palestina que dá conta do presente da narração.

referências bibliográficas:

ANGELINI, Paulo Ricardo Kralik. Capelas imperfeitas: o narrador na

construção da literatura portuguesa do século XXI. 2008, 184 f. Tese

(Doutorado em Literaturas Brasileira, Portuguesa e Luso-Africanas).

Instituto de Letras - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto

Alegre.

BERARDINELLI, Cleonice. “Nas dobras do texto”. In: A experiência das

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fronteiras. Organização e apresentação de Teresa Cristina Cerdeira.

Niteroi: EdUFF, 2002.

MACEDO, Helder. Tão longo amor, Tão curta a vida. 1 Ed. Rio de

Janeiro: Rocco, 2013.

MACEDO, Helder. Sem nome. 1 Ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.

MELO E SOUZA, Ronaldes. O romance tragicômico de Machado de

Assis. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2006.

SANTIAGO, Daniel. Gravura da coleção O Brasil é o meu abismo.

TAVARES, Gonçalo M. Internet: http://www2.camara.leg.br/camara-

noticias/tv/materias/SEMPRE-UM-PAPO/454410-SEMPRE-UM-PA-

PO-RECEBE-O-ESCRITOR-GONCALO-TAVARES.html

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1introdução

A modernidade não pode ser entendida sem o processo colo-

nial. Para compreendermos como se formaram as nações que antes

se encontravam sob o domínio imperialista europeu devemos ter

em mente que o processo de constituição dessas nações passou por

sua reafirmação identitária e resgate da condição de humano negada

pelos preceitos europeus.

Como justificar a violência colonial? A erradicação cultural de

uma sociedade e sua desumanização? O colonialismo, indispensável à

modernidade, para formular tal justificativa, sustentou uma lógica de

perversidade com as sociedades ditas “atrasadas”. Os valores moder-

nos defendidos pelas culturas europeias como auge do desenvolvi-

mento humano estigmatizaram todos os povos colocando-os à mar-

gem do sistema.

O mito da civilidade europeia e sua “missão civilizatória”

1 Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Bolsista PIBIC pelo CNPQ com a pesquisa “A geografia como geopolítica do conhecimento: diálogos pós-coloniais”, sob a orientação do pro-fessor Guilherme Ribeiro.

mayombe em volta da fogueira:

luta anticolonial e construção nacional em angola.

João Victor S. da M. Machado

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encontram seus limites no decorrer do avanço colonial. O colonizado

não mais acredita na superioridade de seus “amos”, a máscara erigida

na modernidade cai com a crescente exploração e marginalização

inerente ao próprio sistema. Em outras palavras, aquilo que se enten-

dia como o ponto mais alto do desenvolvimento humano, se mostra

o lugar mais baixo da barbárie. Não se entende mais a colonização

como um movimento filantrópico, mas sim com a figura do aventu-

reiro, do mercador, uma ação do interesse econômico defendida por

uma ideologia falsa. (césaire, 1978)

Com desgaste do processo e dos valores coloniais, as socieda-

des colonizadas, antes condenadas à marginalização, lutam por seu

reconhecimento. Esse processo de luta deu-se de forma violenta em

algumas ocasiões. O objetivo do presente trabalho é analisar tal pro-

cesso de construção do que seria o imaginário das comunidades sob

domínio colonial. Tal processo será visto segundo os escritos de Frantz

Fanon e Amílcar Cabral para que seja compreendida a luta armada não

somente como formuladora de cultura, mas como um ato de cultura

em si, assim como a atuação das lideranças intelectuais e da literatura

(no caso de Fanon) responsáveis pelo processo de emancipação dos

povos colonizados.

Para tanto, usarei como objeto de análise o livro de Pepetela,

Mayombe, para entendermos o papel do intelectual e da literatura de

combate (assim como formulado pro Fanon em seu livro Os Condena-

dos da Terra) na constituição do imaginário de nação das sociedades

colonizadas.

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luta anticolonial na angola e a consti-tuição do MPLA

Na virada do século xix para o xx a Europa expandiu seu poder

sobre o continente africano, enfrentando diversas resistências, porém

nada como os contornos das lutas políticas nacionais que tiveram ini-

cio em meados do século xx. Depois de meio século de dominação, a

colonização europeia enfrentou um desejo mais pungente por liber-

dade por parte das sociedades africanas, o que suscitou em uma inadi-

ável realidade depois da Segunda Guerra Mundial, especialmente a

partir da década de 1950.

Através das análises de Marcelo Bittencourt, podemos compre-

ender como as elites políticas das novas nações africanas foram quase

inevitavelmente oriundas das áreas de maior contato com a explora-

ção colonial, em grande parte urbanizadas e capazes de implementar

uma perspectiva nacional. Sendo o contato com o colonialismo fun-

damental para constituição dessas elites em seus respectivos territó-

rios.

Um sentimento de identidade nacional seria improvável nos

anos 1950 e 1960 entre os moradores das áreas rurais. Nesse sentido

há o embate entre “desenvolvimentistas” e “tradicionalistas”, o qual

se caracterizava pela desvalorização dos enfrentamentos de caráter

local (considerados conservadores e tribais) em comparação com a

modernidade dos partidos políticos e movimentos de libertação que

já defendiam uma perspectiva nacional.

A busca pela independência em sua perspectiva anticolonial

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tem como foco tanto o cenário de luta política quanto de luta mili-

tar. A luta política seria a negociação com a metrópole que reconhecia

seu poderio e relações comerciais existentes com as colônias. Já a luta

militar ocorria pela falta de diálogo, quando a metrópole considerava

inviável a perda de sua colônia e, com as vias políticas negadas, não

restaria opção além do conflito militar. (bittencourt, 2008b)

Mesmo ocorrendo, o número de conflitos anticoloniais pro-

longados na África foi pequeno. Para além da Argélia, os casos mais

conhecidos são das colônias portuguesas. Os conflitos em Angola,

Guiné-Bissau e Moçambique tiveram desfechos mais prolongados,

iniciando respectivamente em 1961, 1963 e 1964. O império português

foi o último a sair do continente, somente após o esgotamento de suas

tropas nas três frentes de batalha.

Quem seriam os doutores e quem seriam os boçais? A aná-

lise de Bittencourt expõe os debates entre a força de independência

e a força colonizadora a respeito de quem estaria de fato levando a

modernidade até a Angola. Seriam os portugueses responsáveis pelo

desenvolvimento da sociedade angolana? Ou os movimentos de liber-

tação que lutavam contra o atrasado sistema colonial?

Os movimentos nacionalistas angolanos são bastante comple-

xos em suas constituições, fragmentados em diferentes organizações e

segmentos sociais, lutando contra os militares portugueses, mas tam-

bém entre si. Assim, pode-se indagar a qual Angola tais movimentos

representavam.

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No caso do Movimento Popular de Libertação de Angola

(MPLA), esse se inicia com a agitação anticolonial no final da década

de 1940 e é ampliado na de 1950. Sua constituição tem bases de duas

correntes nacionalistas, formado por polos que estavam na colônia

(“os do interior”), perto, portanto, dos pontos mais antigos da coloni-

zação, e pelos que estavam na metrópole e em outros países da Europa

(“os do exterior”). Uma composição diversificada desde o princípio.

A parte do movimento que militava no interior agia de acordo

com “vínculos de solidariedade”, limitando-se quase sempre à publi-

cação de panfletos condenando o colonialismo português, e a convo-

cação de novos adeptos e reuniões para discussão sobre a movimen-

tação independentista na África. Eram indivíduos de diversos grupos,

e a existência de estruturas de sociabilidade (associações culturais,

clubes desportivos, igrejas), gerava maior compreensão entre esses

segmentos, o que no início de 1960 seria importante para facilitar a

união desses indivíduos sob a bandeira do MPLA.

A composição dos grupos urbanos atuava basicamente em

Luanda e contava com a participação de negros, mestiços e brancos.

Quanto à filiação religiosa, havia católicos e protestantes; tinham fun-

cionários públicos, comerciantes, enfermeiros, estudantes, monitores

agrícolas e operários. Destacavam-se os jovens estudantes no exterior

e seus contatos com organizações internacionais, o que constituía a

imagem desse movimento como nacional, anticolonial, a-racial e

multiétnico.

Com o tempo e a internacionalização da luta em Angola, a orga-

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nização ganha suas cores de movimento de esquerda, com objetivo de

uma modernidade angolana alternativa, com um discurso recorrente

em muitos países africanos nos anos 1960 e 1970 sobre a necessidade

de criação de um indivíduo novo para que se pudesse criar uma nova

sociedade.

Nesse sentido, a ideologia e propaganda do MPLA garantiu sua

imagem como movimento libertador à esquerda, radical e defensor

de uma modernidade alternativa para Angola. Dessa forma, o MPLA

seria reconhecido pela Organização da Unidade Africana e a partir de

1966 se transformaria no oponente militar mais destacado do colonia-

lismo português. (bittencourt, 2008a)

A constituição multiétnica inerente ao movimento revolucio-

nário, assim como seu teor esquerdista, já determina o que estaria

presente na formação de Angola. Como será demonstrado na obra de

Pepetela, essa constituição levantava diversos dilemas e conflitos no

corpo do próprio MPLA, o que o autor deixa claro através dos teste-

munhos das personagens e seus diálogos. Pepetela se debruça sobre

as incertezas e problemáticas que circulam temas como guerra, nação,

política e etnia, de forma a descrever os desafios para que fosse imagi-

nada a nação angolana.

A crítica ao colonialismo e aos preceitos europeus de moderni-

dade é um ponto chave para entendermos a teoria pós-colonial. Nos

escritos de Frantz Fanon e Amílcar Cabral temos expostas suas visões

a respeito desse processo e o entendimento de que somente a luta

armada por emancipação nacional resgataria a dignidade dos povos

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colonizados, assim, podemos traçar um paralelo entre a produção

literária de Pepetela e essas teorias.

A formação do MPLA, como descrito por Bittencourt, junta-

mente com o romance Mayombe, nos ajuda a perceber como esse

processo de descolonização tem um papel chave na elaboração de um

projeto nacional. Nesse caso, a teoria fanoniana também reconhece

no intelectual um agente de mudança e resgate identitário, sua aná-

lise, como veremos, trata da produção cultural como um processo de

elaboração da cultura nacional, sendo a terceira fase (literatura de

combate) a que usaremos como referência para entendermos o papel

da obra literária e do autor para a nação.

luta armada e identidade nacional: as te-orias de amílcar cabral e frantz fanon

Embora Frantz Fanon e Amílcar Cabral esbocem pensamentos

muito próximos sobre a ideia de nação e cultura nacional no que tange

o imaginário da importância das lutas pela libertação como forma de

constituir tais elementos, ambos partem de pressupostos conside-

ravelmente distintos para elaboração de suas respectivas linhas de

raciocínio.

Fanon trabalha o processo de construção de um ideário de cul-

tura nacional a partir da ação dos homens de cultura colonizados. O

colonialismo “por uma espécie de perversão da lógica, […] se orienta

para o passado do povo oprimido, deforma-o, desfigura-o, aniquila-o’’

(fanon, 1968, p.175), e assim consegue justificar seu papel de retirar

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essa sociedade das trevas. Na luta contra tal perversão inerente ao

sistema colonial, no que tange a produção cultural, a busca por uma

identidade prévia ao período colonial torna-se o primeiro passo do

processo de construção de uma identidade nacional, com isso começa

a ser reivindicada uma identidade cultural própria dentro da socie-

dade colonizada.

Porém, tal princípio cultural constitui-se de forma universal,

generalizando o movimento identitário em caráter continental com

objetivo de contrariar o imaginário racista do sistema colonial que

retirava do colonizado sua humanidade. A identidade cultural nunca

era resgatada em nome de uma única nação. Para Fanon, a identidade

nacional só se constitui quando o intelectual colonizado deixa de pro-

curar nas suas origens uma forma geral de cultura para se lançar ao

combate direto contra o sistema colonial em seu próprio país e, a par-

tir desse combate que aconteceria de forma violenta, poderia ser edi-

ficada a cultura nacional.

O sistema colonial força o povo oprimido, através das diversas

práticas de opressão cultural, à marginalidade, fazendo-o aceitar a cul-

tura da força imperialista. Não há como ter dinâmica cultural nacional

legal nesse cenário, ela torna-se clandestina. Há certa resistência que

pode ser considerada manifestação nacional no momento que essa

clandestinidade se apresenta, contudo essa manifestação é anulada

pela lei da inércia e falta de ofensiva. Após alguns anos de dominação,

a manifestação logo se torna irrisória. (fanon, 1968)

A constante repressão do povo, juntamente com o surgimento

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de novas tensões no plano nacional e internacional, repercute no

plano cultural, reaquecendo as formas de produção literária, por

exemplo. O progresso de uma consciência nacional demanda do inte-

lectual essa produção cultural e logo o força a representar esse grito

nacional por liberdade. O intelectual é capaz de andar junto à massa

para fazer valer as necessidades da mesma no que diz respeito à cons-

trução de identidade nacional.

A partir daí pode-se falar de cultura nacional, a literatura de

combate reflete como o intelectual junta-se ao povo pela construção

da nação. Segundo Fanon, “a luta organizada e consciente empreen-

dida por um povo colonizado para restabelecer a soberania da nação

constitui a manifestação mais plenamente cultural que se possa

imaginar” (fanon, 1968, p.205). Nesse sentido, a cultura nacional se

desenvolve paralelamente ao movimento pela libertação nacional.

Amílcar Cabral parte de um pressuposto marxista para anali-

sar o processo de construção da cultura nacional a partir do sistema

colonial. Para ele, dominar um povo significa paralisar sua vida cultu-

ral. Sendo assim, a política mais utilizada de supressão cultural seria a

negação da cultura do povo dominado.

Cabral correlaciona a capacidade de desenvolvimento da his-

tória, e consequentemente da cultura, com a detenção dos meios de

produção e das forças produtivas: “Como a história, ou porque é a his-

tória, a cultura tem como base material o nível das forças produtivas

e o modo de produção.” (cabral, 1978, p. 224) Assim, o objetivo da

libertação nacional é reaver os meios de produção controlados pelo

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país imperialista, propiciando ao povo a capacidade de estruturar sua

própria cultura nacional através do processo de desenvolvimento das

forças produtivas nacionais.

O movimento de libertação é considerado expressão política

organizada da cultura do povo, sendo sua responsabilidade determi-

nar os valores culturais nacionais que contestariam a cultura do domí-

nio colonial para além da uniformidade cultural da sociedade, valo-

res esses que seriam mais bem determinados, segundo o autor, pela

expressão cultural da fração social representada pelos trabalhadores

rurais e urbanos, incluindo a “pequena burguesia” nacionalista reafri-

canizada. (cabral, 1978)

Ocorre um processo de alienação cultural a partir das políticas

imperialistas, em que grande parte da população adere automatica-

mente à cultura do país que tem o controle, sendo necessária a recon-

versão das mentalidades para uma verdadeira integração do movi-

mento libertário. Tal reconversão inicia-se antes da luta, porém, só se

completa no decurso dela. Parte dessa população influenciada pela

cultura do colonizador pode tentar utilizar-se da libertação de forma

oportunista para fazer valer seus interesses, cabendo ao movimento

garantir que a verdadeira cultura da classe operaria prevaleça na cons-

trução da identidade nacional e definir que parte constituinte dessa

cultura deveria fazer farte da nação e qual deveria ser descartada.

Finalmente, a luta armada pela liberdade da nação seria a con-

figuração última do esforço pelo fim do imperialismo colonial, a união

das camadas sociais pela resposta à violência do opressor colonialista

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edificaria uma cultura nacional equilibrada, sem os valores negativos

do antigo sistema e a continuidade dos positivos. Segundo Amílcar

Cabral “a luta armada de libertação é não apenas um fato cultural mas

também um fato de cultura’’. (cabral, 1978, p. 232)

Por mais que sigam caminhos distintos para avaliar a proble-

mática da nação e da cultura nacional, ambos os autores reconhecem

a reciprocidade entre o processo de luta armada contra o regime colo-

nialista e a constituição dessa cultura. A formação de qualquer tipo

de identidade antes passa pelo processo de independência da própria

nação e, mais do que consequência desse processo, a cultura de uma

sociedade sustenta e solidifica-se durante o mesmo.

a problemática nacional em mayombe: o au-tor na linha de frente.

Os guerreiros do Mayombe, no enclave de Cabinda, ficavam

isolados, sem apoio da população e muitas vezes lutando contra a

mesma. O livro Mayombe, da autoria de Pepetela, foi escrito no perí-

odo em que o autor participou da guerra pela libertação de seu país

integrando o MPLA.

O livro é um romance de trincheira, é escrito durante e após os

conflitos na floresta do Mayombe. A visão do autor serve como refe-

rência para observarmos questões pertinentes ao movimento e os

conflitos inerentes ao mesmo. Mesmo livrando-se dos portugueses,

ainda haveria questões presentes na própria constituição do MPLA

que demandariam reflexões sobre a constituição da sociedade ango-

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lana, seriam as diferenças étnicas dentro das próprias trincheiras.

Os diferentes problemas são apresentados nas várias vozes pre-

sentes no romance, suas aflições são reveladas quando suas narrativas

ocorrem. A polifonia do romance permite que entremos em contato

com diversas ideologias e pontos de vista das personagens, além de

servir como símbolo da possibilidade de voz para um povo que antes

não a possuía. O multiculturalismo então torna-se recorrente nas falas

das personagens, o que seria levantado durante todo o livro como o

empecilho do “tribalismo”.

A narrativa de Teoria, por exemplo, exemplifica o maniqueísmo

presente na sociedade angolana. Por ser mestiço, ele reconhecia-se

como o “talvez” em um movimento entre o “sim” e o “não”. A ferida de

Teoria, nesse sentido, seria muito mais profunda do que a que ele sofre

em combate, e sua persistência nas ações de guerrilha serviam para a

personagem como forma de tentativa para apagar a marca do mestiço:

“Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num universo de

sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez.” (pepetela, 2013,

p. 14)

O dia e a noite são representados no romance, o dia para o com-

bate e a noite para a história. Os portugueses não guerreavam durante

a noite e assim ela servia para as conversas em volta da fogueira, uma

forma que o autor encontrou para resgatar os motivos do combate e

o “tribalismo”. Na constituição do que seria uma “comunidade ima-

ginada”, o entendimento de um tempo homogêneo de vivencia dos

indivíduos, no que se pode compreender a situação colonial, seria

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transcrita nos momentos de embate ideológico das personagens. Os

manifestos do homem da bazuka, Milagre, servem como forma de

percebermos ao que Marcelo Bittencourt se referia ao falar das lide-

ranças intelectuais e a diversidade étnica do movimento:

Os intelectuais têm a mania de que somos nós, os campone-

ses, os tribalistas. Mas eles também são. O problema é que há

tribalismo e tribalismo. Há tribalismo justo, porque se defende

a tribo que merece. E há o tribalismo injusto, quando se quer

impor a tribo que não merece ter direitos. (pepetela, 2013, p.

47)

De fato, as falas de Milagre são capazes de exemplificar ques-

tões levantadas por Marcelo Bittencourt a respeito da constituição do

MPLA. As lideranças intelectuais “de fora” são criticadas na fala da

personagem após o julgamento de Ingratidão, o que seria mais um

elemento dissonante na organização do movimento:

Quem decidiu? O Comandante. Quem fez pressão para que

fosse condenado? O Comandante, sempre o Comandante. Um

intelectual, que nada conhece da vida, que nada sofreu, um

homem desses é que pode condenar-nos?” (pepetela, 2013, p.

64)

Porém, o que é defendido por Amílcar Cabral é justamente a

ação das lideranças dentro da luta anticolonial como forças capazes

de compilar os valores positivos e negativos no momento de consti-

tuição da identidade nacional, mantendo os primeiros e condenando

os outros. Por mais que lideranças “de fora” não fossem bem vistas por

parte dos guerrilheiros, por não terem sentido na pele os problemas

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do sistema colonial (pepetela, 2013, p. 47), para Cabral, o papel des-

ses intelectuais seria justamente a reeducação da população como

forma de apagar os valores coloniais e desprender o imaginário de

civilidade europeia constituído durante o domínio. Sendo assim, a

escrita de Pepetela encontra-se no que seria o terceiro período de pro-

dução literária de insurgência africana contra a dominação colonial,

seria o autor que anda entre as massas. Segundo Fanon:

num terceiro período, chamado de combate, o colonizado,

depois de ter tentado perder-se no povo, perde-se com o povo,

vai, ao contrário, sacudir o povo. Em vez de privilegiar a letargia

do povo, transforma-se em despertador do povo. Literatura de

combate, literatura revolucionária, literatura nacional. No curso

dessa fase, um grande número de homens e mulheres que até

então jamais haviam pensado em fazer obra literária, agora que

se veem colocados em situações excepcionais, na prisão, nas

matas ou aguardando execução, sentem a necessidade de falar

de sua nação, de compor a frase que exprime o povo, de se fazer

porta-voz de uma realidade de atos. (fanon, 1968, p. 185)

Benedict Anderson reflete sobre os elementos capazes de insti-

tuir a nação, para ele, a nação é imaginada

porque os membros da mais minúscula das nações jamais

conhecerão, encontrarão ou nem sequer ouvirão falar da maio-

ria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a

imagem viva da comunhão entre eles (anderson, 2008, p.32).

Sendo assim, os elementos demonstrados pelo livro de Pepetela, são

pertinentes para compreensão das problemáticas presentes ao se

imaginar a nação angolana.

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O entusiasmo de Sem Medo com a mobilização dos revolu-

cionários no episódio do suposto ataque à base do MPLA demonstra

a preocupação do autor em demonstrar a superação do sentimento

de “tribalismo” que parecia enfraquecer as bases do que poderia vir

a ser a constituição de uma comunidade angolana. Não obstante, a

luta como fato de cultura responsável pela formação da identidade

nacional, assim como explicitado por Fanon e Cabral também pode

ser observada no contexto:

-E que reforço! Viste como todos se ofereceram? Esqueceram as

tribos respectivas, esqueceram o incomodo e o perigo da ação,

todos foram voluntários – bateu na perna de Vewê. – É por isso

que faço confiança nos angolanos. São uns confusionistas, mas

todos esquecem as makas e os rancores para salvar um compa-

nheiro em perigo. É esse mérito do Movimento, ter conseguido

o milagre de começar a transformar os homens. Mais uma gera-

ção e o angolano será um homem novo. O que é preciso é ação.

(pepetela, 2013, p. 203)

Na medida em que o movimento mais proeminente na luta

anticolonial enfrenta em sua própria constituição conflitos e assime-

trias, não poderia ser menos complexo compreendermos a configu-

ração social de Angola. Porém, o que o autor acaba formulando em

seu trabalho é o entendimento de superação dessas assimetrias pelo

movimento, o levante contra a poder imperialista e camaradagem

entre aqueles que sofreram juntos a ferida colonial torna-se um pro-

cesso doloroso, porém necessário, para a edificação do sentimento de

pertencimento nacional e dignidade humana.

Enfim, para além dos debates sobre a constituição nacional de

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Angola, o papel do autor como formador do imaginário nacional, tor-

na-se essencial no momento em que se precisa expor as aflições pre-

sentes nas diversas camadas da população. Seguindo este caminho,

o livro de Pepetela seria um expoente vital para compreendermos

a constituição de Angola e os problemas enfrentados durante a luta

anticolonial do MPLA. Um romance escrito no calor da batalha, capaz

de exprimir toda dificuldade enfrentada naquele momento.

conclusão

A identidade imaginada por uma comunidade que tenha sofrido

o colonialismo nos séculos xix e xx com a expansão europeia, não

pode ter esse processo constitutivo analisado como as comunidades

europeias que se constituíram anteriormente. O que devemos ter em

mente é que, desde o século xvi, com o advento da expansão colonial,

a Europa se colocou como o lócus de enunciação geo-histórico global,

o que Walter Mignolo caracterizou como “ocidentalismo”, teve como

ponto de sustentação a “retórica da modernidade”, responsável por

legitimar a relação de dominação com o pressuposto de conduzir os

povos “bárbaros” ao nível de civilização. (mignolo, 2005)

Após a Segunda Guerra Mundial, o que era entendido como

auge da civilização humana, o padrão europeu, não mais conseguia

sustentar seus valores como “civilizados”, segundo Appiah:

A lição que os africanos aprenderam com os nazistas – a rigor,

com a Segunda Guerra Mundial como um todo – não foi o perigo

do racismo, mas a falsidade da oposição entre uma ‘moderni-

dade’ europeia humana e o ‘barbarismo’ do mundo não branco.

(appiha, 1997, p. 24).

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A separação entre os conceitos de natureza e cultura foram aplicados

para marginalizar as sociedades colonizadas, estigmatizando-as como

desprovidas de cultura ou civilidade.

Nesse sentido, os autores da matriz pós-colonial têm como

objetivo desmascarar a retórica moderna, contestando o papel da

Europa como lócus de enunciação. As análises de Frantz Fanon e

Amílcar Cabral oferecem uma releitura do processo histórico de luta

anticolonial não como pressuposto de desenvolvimento natural da

humanidade, mas como um resgate da condição humana aos povos

colonizados, a luta armada como fato de cultura, e a produção cultural

(no caso do presente trabalho, a literatura) como indispensável para

revelar a perversidade por trás de todo colonialismo.

O livro de Pepetela, se seguirmos uma linha fanoniana de aná-

lise, pode ser entendido nesse contexto como inserido no que Fanon

considera a terceira fase de produção cultural dos povos colonizados,

sendo o papel das lideranças intelectuais diretamente ligados a tal

processo. Considerando a análise de Marcelo Bittencourt a respeito da

constituição do MPLA, podemos perceber o papel dessas lideranças

no processo de emancipação, sendo assim, Pepetela assume o papel

reconhecido por Fanon como essencial para consolidação da nação

angolana.

Percebermos esse processo de luta armada e desenvolvimento

cultural é reconhecer as feridas causadas pelo processo colonial. As

análises de matriz moderna, recorrentes do lócus de enunciação euro-

peu, frequentemente silenciam os povos colonizados, negando-lhes

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mesmo uma história, encarando os povos à margem do sistema euro-

peu como objetos da história universal, e não como sujeitos. Através

da literatura e dos processos de emancipação, se resgata as histórias

locais suprimidas por séculos de dominação política, social, cultural

e econômica.

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origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras,

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Este trabalho1 é um segundo passo numa caminhada interpre-

tativa da obra complexa de Franz Kafka. Inicialmente nos debruçamos

sobre a afirmação do autor Gunther Anders que no tocante as mulhe-

res, na obra de Kafka, diz serem “uma fenda na muralha que separa o

estranho do resto do mundo”. A respeito desta asserção, observamos:

que muralha seria essa, qual a função da referida fenda e consequen-

temente dessas mulheres nas obras do autor. Escolhemos para pri-

meira análise o romance O Processo no qual verificamos a existência

e formação da referida muralha através dos autos judiciais a que a

personagem Josef K. era submetida e consideramos que as mulheres,

nesta obra, alimentavam um fio de esperança de saída para K.

O que pretendemos com este trabalho não é fugir da proposta

do primeiro, mas enriquecer nossa interpretação ao comparar o

romance de Kafka ao poema “José” de Carlos Drummond de Andrade.

Visto que suas personagens não têm controle sobre suas próprias

vidas. Ambos se aproximam pelo nome, já que Joseph seria uma espé-

cie de José: sem voz, sem lugar no mundo, sem escolha quanto ao seu

1 Comunicação apresentada em seção da JICTAC UFRJ 2014 sob ori-entação da professora Flávia Trocoli do departamento de Ciência da Litera-tura da UFRJ.

e agora josef? observando drummond em kafka.

Thais Lima

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futuro. Entretanto, o que estreita a relação entre as obras, ainda mais,

é o fato de seus personagens viverem um conflito labiríntico, onde

há uma intensa procura pela saída, que para um é a morte, enquanto

para o outro nem isso é permitido. Assim, iremos observar mais de

perto a construção deste labirinto, sua representatividade nas obras e

sua saída.

Atentando inicialmente ao poema de Drummond, observa-

mos que a dureza do personagem se reflete na estrutura do poema

que também é marcada e poderíamos dizer seca. Constituído por seis

estrofes de versos de redondilha menor o poema já constitui o eterno

labirinto através de suas infindáveis repetições que prendem José e o

levam de um lado a outro do mesmo corredor através das perguntas

impostas que não o trazem respostas, pelo contrário, impõem que ele

continue a caminhada procurando por uma saída que é impedido de

achar. Não que José queira estar nesta situação, mas a pergunta que

lhe é imposta já no primeiro verso da primeira estrofe o introduz neste

labirinto sem fim: “E agora José?”, e a repetição deste questionamento

em toda a obra faz com que o algo sem saída seja desenhado, a cada

momento a situação se estreita para José e ele, imóvel, observando

toda essa situação pensa em querer sair, tem a chave, mas não tem a

porta.

Aproximando esta situação do personagem kafkiano, temos

Josef. Um sujeito que pouco conhecemos de sua história, temos pou-

cas informações de seus antecedentes, mas uma coisa nos é infor-

mada, assim como no poema de Drummond, o aniquilamento do ser

já se dá no primeiro período da obra: “Alguém certamente havia calu-

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niado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.”

(kafka, 2003. p.). E somos introduzidos, junto ao personagem, a

caminhar por um labirinto imposto por outrem, o qual não se sabe o

motivo, quem o caluniou e a que fim chegaremos. Não há nenhuma

saída. A única certeza que temos ao mergulharmos na obra é que o

labirinto formado em O Processo não é algo que se possa controlar,

entender é uma palavra inadequada para a situação, visto que cami-

nhar por entre os corredores formados pelos capítulos nos incomoda,

nos impacta, choca.

E assim, encontramos o ponto de convergência entre as obras:

o labirinto. Em muitos momentos, elas se estreitam e se afastam, mas

o que podemos constatar já de inicio é que ambas as personagens

foram colocadas neste imbróglio. A posição deles é acidentada, não

há linearidade, mas o fim que procuram é a saída, que não sabemos se

irá beneficiá-los ou destruí-los.

Observamos que as duas obras tem forças pressionadoras que

empurram as personagens José e Joseph cada vez mais para dentro do

labirinto. Em Drummond, há uma voz não identificada que o desa-

fia, questiona e mostra o quanto ele está encurralado e sem saída, ao

mesmo tempo em que pergunta por uma. Será essa voz de dentro da

consciência ou de fora? Que voz é essa? Não sabemos. Será a voz da

sociedade que faz de José um homem qualquer e retira toda a pos-

sibilidade de individualismo contida num nome? Ana Costa, em O

estranho e a letra em Kafka também observa a redução dos nomes no

autor tcheco a uma letra: K., a qual na gramática “é a redução maior

da linguagem a que se pode chegar” (costa, ). Seria José e K. redução

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estrema do ser ao inominável? Tratar de inomináveis, nos conduz a

outro poema drummondiano, bem sugestivo ao nosso propósito, inti-

tulado K:

K.

Uma letra procura

o calor do alfabeto

Uma letra perdida

no calor da estalagem.

Constante matemática

na teia de variáveis,

uma letra se esforça

por subir à palavra

que não se molda nunca

ou se omite à leitura

na câmara sombria

carvão cavado em dia.2

Mais do que nos remeter ao autor Kafka, assim como seus pró-

prios personagens, este poema nos mostra como interpretar as obras

em questão. A letra K., que “procura o calor do alfabeto” está solta das

outras letras e nos exprime o anseios das nossas personagens que tam-

bém estão solitários em sua caminhada labiríntica, visto que a socie-

dade próxima a eles é ao mesmo tempo distante, por estarem cercados

dos altos muros do labirinto, da muralha, que os impedem de “subir

à palavra”, ou seja, de fazer parte de uma sociedade. Eles são, simples-

mente, impedidos de existirem.

Um termo no qual Drummond se autodefine é gauche. Podería-2

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mos dizer que Franz Kafka se enquadra nessa definição: judeu, tcheco

e escrevendo em alemão, fora de uma sociedade a qual ele possa se

dizer pertencente, assim como Carlos3 que nasceu para viver na som-

bra, à margem. Mesmo que esses dados biográficos dos autores não

sejam cruciais na interpretação das obras por parte do leitor suscita

em nós uma reflexão a respeito das obras, visto que em O Processo

temos a construção de um personagem “estranho”, segundo Gunter

Anders, e em José temos um nome que, citando Drummond, “exprime

tudo e é nada”.

A forma do labirinto não está apenas no enredo das obras, mas

sim em sua forma. Se observarmos o poema de Drummond seus ver-

sos são constituídos por palavras que “puxam” outras palavras, o sig-

nificado dessas construções não é acidental, acreditamos que tudo

foi minimamente pensado e construído para que tanto a personagem

quanto o leitor fossem transferidos para esse ambiente “duro” e sem

saída do poema:

Com a chave na mão

Quer abrir a porta,

Não existe porta;

quer morrer no mar,

Mas o mar secou;

Quer ir para Minas,

Minas não há mais.

José, e agora?

Mesmo tão próximas uma da outra, há uma diferença crucial

3 Referência ao “Poema de sete faces” de Carlos Drummond de And-rade

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entre as obras: seu desfecho. José “quer morrer no mar” e a princípio,

na quinta estrofe, parece que seu desejo será realizado quando a hipó-

tese é suscitada em “se você morresse”, mas como em todas as outras

estrofes nada se concretiza, nada lhe é possível e a voz lhe lembra

mas você não morre,

você é duro José

Essa dureza a que tanto o poema se refere, essa estrutura dura, tal-

vez queira refletir uma resistência à sociedade. Uma resistência a ser

como os outros, a se tornar mais um na multidão, marchando rumo

a um lugar que nem o próprio sabe qual será o fim. Acredito que essa

seja a melhor interpretação para o poema: José está preso no labirinto

de si próprio, por se negar a ser como os outros estando

sem teogonia,

sem parede nua para se encostar,

sem cavalo preto que fuja a galope.

Joseph, este não queria morrer, inicialmente resistiu como um

bravo ante a situação final que lhe foi apresentada.

Não vou continuar andando disse K., para experimentar.

A isso os senhores não precisavam responder, bastava que não

afrouxassem a pressão e tentassem levantar K. do lugar, mas K.

resistia.” (kafka, 2003. p. 224)

E mais uma vez nos deparamos com a resistência que, neste caso,

é findada com o aparecimento de uma mulher que emerge de uma

rua situada no nível mais baixo. E assim como no poema temos uma

voz aprisionadora, a mulher significaria, nesta situação, para K. uma

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advertência de que sua resistência àquela sentença era inútil.

Eles agora toleravam que K. definisse o caminho, e ele o fazia

seguindo o caminho que a senhorita tomava à sua frente, não

porque quisesse alcançá-la, nem porque quisesse vê-la o mais

longamente o possível, mas só para não esquecer a advertência

que ela significava para ele (kafka, 2003. p. 225)

a irrelevância de sua resistência.

A que esses dois personagens, confinados dentro de um labi-

rinto que não nos é apresentado o motivo, resistiam? Cada um a sua

maneira nos apresenta um modo de resistir, mesmo que K. tenha se

entregue, finalmente, como um cão a morte lhe pareceu um ato de

resistência e bravura, demonstrando que não se tornara um homem

obtuso. Percebemos em vista disso que o drama psicológico das per-

sonagens é “materializado” e constituído fisicamente, mesmo que

imperceptível aos outros, por barreiras que impedem a interação das

personagens com o que lhe está ao redor, assim como o K. que mesmo

sendo uma letra não está totalmente inserida no alfabeto estão nos-

sos protagonistas, que mesmo sendo homens não estão inseridos na

sociedade tendo de viver de modo duro ou de morrer como um cão.

referências bibliográficas

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los Drummond de Andrade; organizada pelo autor - 53ª ed. - Rio de

Janeiro: Record, 2004.

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PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha: ensaios. São Paulo:

Companhia das Letras, 1990.

nota biográfica

Thais Lima é graduanda em Português Literaturas pela Univer-

sidade Federal do Rio de Janeiro e desenvolve projeto de pesquisa à

respeito da Obra de Franz Kafka sob orientação da Professora Flávia

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Trocoli.

Participa do corpo editorial desta Revista (Odara) e integra o

Projeto Fortuna ligado à PPG em Ciência da Literatura, sob coordena-

ção do Professor Ricardo Pinto, atuando como co-curadora do Portal

Franz Kafka BR situado em http://franzkafka.com.br/.

Na literatura o que mais lhe chama atenção é o feminino e por

isso há uma paixão inexplicável. Cristã, amante de artes e boa música,

se arrisca a cantar e escreve por amor.

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RE SE NHAS

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Considerando o círculo cromático, azul seria uma cor fria.

Leonardo da Vinci teorizou sobre a perspectiva1 afirmando que,

quanto mais longe um objeto se localiza na tela, mais azul deve conter

– azul corresponde à cor do ar; entre o espectador e o objeto longin-

quamente localizado, há grande proliferação de matéria aérea, logo,

muitos tons azulados devem comparecer.

O que Abellatif Kechiche consegue em La vie d’Adele (2013) –

traduzido no Brasil por Azul é a cor mais quente – é inverter o paradigma

cromático que rege a cor aérea. A película traz a lume o relaciona-

mento amoroso entre duas mulheres, a jovem Adele, que transita da

adolescência para a maturidade adulta, e Emma, a estudante de Artes

Plásticas que guarda nos fios azulados a metáfora do título traduzido.

As personagens atravessam-se pela primeira vez enquanto, ao troca-

rem de calçada, misturam-se entre pedestres. Ilumina-se, para Adele,

o matiz aéreo de Emma. A ligação entre as duas ascende: do olhar ao

sonho; do desejo à tensão da presença; da presença às cenas densas

de sensualidade. O amor apaixonado entre duas mulheres, o amor

apaixonado entre duas pessoas. Diante de tonalidades acentuadas de

1 Cf. PEDROSA, Israel. Da cor à cor inexistente. Rio de Janeiro: FENAME – Ministério da Educação e Cultura/ Léo Christiano Editorial Ltda., 1982.

muito mais quente

Thaís Seabra Leite

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calor, imagina-se o silêncio constrangido que paira sobre o cinema

pouco acostumado ao arrebatamento feminino e ardente pelo azul.

 Como no romance de Marivaux – a turma de Adele interpreta

La vie de Marianne em sala de aula –, o filme assume a primeira pes-

soa: o desenredo de amor pelos olhos de Adele. Por uma boca sem-

pre entreaberta, o mundo inteiro é tragado pelos sentidos – e arde. A

câmera aproxima-se tão intimamente do rosto da jovem francesa que

o espectador prova o macarrão que Adele mastiga; sente engrossarem

as lágrimas desamparadas da personagem; admira com sorriso lateral

os cabelos tingidos de Emma. Até vir a dor, o erro dos sentidos. Arre-

batada por Emma, todo o espaço de Adele contamina-se de azul desde

as paredes do quarto adolescente, até o destino impregnado de azul

royal no vestido que a adorna na derradeira cena da trama.

Adele encontra calor nos cabelos e olhos tão azuis da artista,

mas do relacionamento brotam manchas escurecidas de azul. Amplia-

se a distância entre os olhos de Adele e a presença de Emma, alarga-se

o ar. Desse espaço surge o vermelho entre elas; surgem colegas de tra-

balho. Adele era corpo pulsante para Emma, mas faltava-lhe um lado,

faltava-lhe a pintura. Emma continha Adele inteira em cada traço

sobre tela –Picasso também não teve suas fases? –. Mesclam-se preto

e azul: Emma permaneceria “se...” ou a partida seria inevitável? Adele

forte, Adele intensa, Adele amando ainda. Dilacerada, Adele mergu-

lha no mar e é possível ouvir o silêncio dormente. Também as águas

guardam seus azuis.

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Era para ser azul, mas a perspectiva foi aproximada demais. Era

para ser azul, mas os rostos avermelharam-se: a cor era de um azul

muito mais quente.

nota biográfica:

Doutoranda em Literatura Brasileira (UFRJ).

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CON TOS

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Aula de História, 1º de abril de 2014, um professor lembrou

do aniversário da ainda pavorosamente chamada “Revolução”, por

alguns. Ele, claro, jamais chamaria assim. Eu, de antemão, esperava a

colocação de alguém naquele dia sobre o assunto. Diferente dos meus

colegas, eu já sabia. No sentido mais completo da palavra.

A homenagem feita pelo caríssimo professor foi nada menos

que ler um relato dado à Comissão da Verdade por uma historiadora

presa e torturada na ditadura militar brasileira. (Me envergonha usar

este adjetivo pátrio para especificar aquela ditadura.) Quando o pro-

fessor anunciou, portanto, que o leria para nós em voz alta, comecei

a sentir um aperto, um incômodo que vinha do meio do meu ventre e

subia até a garganta numa espécie de sufocamento. Eu já sabia. E ele

começou logo a ler.

O relato começou e continuou. Em determinado momento,

que eu não saberia mais dizer qual foi, os choques elétricos perpas-

savam meu corpo e fiquei atordoada, com falta de ar. Não entendi o

que acontecia, mas não parou. A cada soco, pontapé e humilhação, eu

sentia no meu corpo nu, o que potencializava a dor. As primeiras vinte

abril de 14

Marina Albuquerque

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e quatro horas foram as piores da minha vida. O que eu pensava, se é

que conseguia pensar em alguma coisa, tomando choque no corpo

nu e molhado num pau-de-arara, era não permitir que aquilo acon-

tecesse com outro companheiro meu. Que eu sofresse calada. E assim

foi. Nem o soro da verdade, nem a raiva deles, nem o meu corpo quase

morto me fizeram falar. Mas não, não julgo quem falava. Naquelas

condições desumanas de dor extrema não é possível julgar nada nem

ninguém. Só quem as causava.

Na esperança de que aquilo acabasse, meu corpo semimorto

fez com que parassem, porque um cadáver daria mais trabalho para

eles (incinerar, arrancar dedos, arrancar dentes). Fui jogada numa cela

imunda e lá fiquei, de tempos em tempos voltando à sala de tortura.

Quando não estava mais nela, ou minha memória me levava de volta

ou me fazia ter medo de voltar, tornando a tortura mais constante do

que já era e mais dolorosa. Eu ofegava, tentando me controlar para

não soluçar alto.

Completamente em dor, encharcada e imóvel, vi o professor

terminar de ler. Alguns colegas choravam, mas se alguém sentiu como

eu, nunca vou saber. Pensei ter previsto. O aperto na minha garganta

no início era nada mais que um ridículo prenúncio, se comparado

ao interminável sofrimento do meu corpo. O professor dispensou, a

turma saiu. Eu fiquei. O choque me imobilizava de tantas dores.

Meses depois, ainda não recuperada, quando ando, sem nada

para me lembrar daquilo, sinto por vezes uma corrente elétrica atra-

vessar a minha espinha, sinto as pancadas, sinto um aperto na gar-

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ganta, sinto meu rosto de repente indistinguível, sinto esperança, sinto

orgulho, sinto.

Sinto vocês, companheiros.

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A pessoa que não consegue enfrentar a vida sempre precisa, enquanto viva, de uma mão para afastar um pouco de seu desespero por seu destino (...) mas com sua outra mão ela pode anotar o que vê entre as ruínas,

pois vê mais coisas, e diferentes do que as outras; afinal está morto durante sua vida e é o verdadeiro sobrevivente.

Franz Kafka, Diários, apontamento de 19 de out. de 1921

Foi mesmo naquela tarde quente úmida de suores incontidos e

febre incessante que quero ser um artista, sofrendo de terríveis dores

decidiu sair. Não antes de deixar bem escrito em folha de papel de pão

seu desejo. Não pôde escrever, pois seu próprio suor escorregadio ao

molhar a frágil folha impedia o risco da tinta e ao simples toque da

pena esfacelava-se o papel. Nem mesmo mover seu braço poderia,

pois o frio, efeito da febre de dias, o impedia de ter alguma, ainda que

uma mínima parte de seu corpo descoberta às ações do tempo quente

úmido que naquele dia persistia em fustigar-lhe a carne. Nem mesmo

levantar de sua cama parecia ser possível, pois a impiedosa fraqueza

imposta pelo tempo de jejum sem conseguir engolir ainda que um

bocado de pão embebido em leite morno e fresco o impossibilitava

de realizar o menor esforço. Mesmo que seu braço ou suas pernas lhe

prestassem obediência e o pudessem levar ao mísero alimento que lhe

quero ser um artistaLeonardo Alves de Lima

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servisse de ânimo e força para erguer-se de tão prostrada existência,

não o poderia, pois os dias em que a inspiração lhe abria as portas ao

entendimento e absolutamente e totalmente absorvido pela criação

do mundo e esquecendo-se de comprar para si seu próprio alimento,

nada em sua dispensa havia. Mesmo que naquele dia quente úmido

não houvesse suores nem arrepios febris ou frios intensos, mesmo que

houvesse força em seu braço ou suas pernas possuíssem a potência

de levá-lo ao mercado e mesmo que este mercado não lhe custasse

mais que um quarto de hora de uma caminhada calma a tranquila

sobre terreno plano, nada poderia comprar para si que lhe servisse

de alimento e força ou lhe fosse de ânimo e prazer, pois quero ser um

artista não possuía consigo nada que tendo valor a oferecer poderia

render-lhe ainda que fosse um pão que por haver sido feito há dois ou

três dias estivesse endurecido e que mesmo com algum, mesmo que

pouco bolor pudesse ser roído. Ainda que houvesse suficiente força

em seu corpo capaz de fazer-lhe erguer-se titanicamente das garras de

sua cama quente e pinicante, mesmo que a distância fosse vencida e

que quero ser um artista pudesse chegar ao mercado distante não mais

que um quarto de hora de caminhada tranquila, mesmo que houvesse

consigo valor suficiente para render-lhe um pão ou dois, comer não

poderia, pois sua boca desaprendera o sabor, esquecera sua língua

do gosto e seus dentes não sabiam perfurar a carne mesmo que bem

cozida e ainda que tal carne por mais bem cozida que fosse viesse a

ser, por ajuda de outrem, introduzida goela abaixo, seus buchos e tri-

pas não saberiam o que fazer com ela, tantos foram os dias de inércia,

anestesiado e despido de suas funções. Foi naquele dia quente úmido

de suores incontidos e febres ardentes que quero ser um artista deci-

diu sair, não antes de deixar bem escrito ou de dizer bem dito qual

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era seu desejo e que por mais desejado que fosse e que mesmo não

fazendo questão alguma de ocultá-lo e que parecesse claro e crista-

lino de modo que mesmo uma criança que por menos dias houvesse

vivido e que mesmo ao velho que por mais dias houvesse vivido lhes

fossem totalmente entendíveis, não o poderia dizer. Pois completa-

mente absorvido por sua arte e por ela seduzido, deslumbrado quero

ser um artista desaprendera a enunciar. Os significados lhe fugiam,

todos os signos lhe eram ocultos e pareciam mesmo dançar a sua volta

sem jamais tocar-lhe a face ou acarinhar-lhe a testa. Escorriam de seu

corpo qual o suor escorregadio que esfacelava o papel sobre o qual

fora incapaz de escrever. Logo viu que não havia nada a ser escrito,

pois ainda que possuísse papel suficientemente forte ao toque de seus

suores e seduzido habilmente pelo toque da ponta da pena, quero ser

um artista não possuía palavras em seus dedos e suas mãos desapren-

deram o desenho das letras. Foi mesmo naquele dia, embora se dia

claro ou noite escura quero ser um artista não poderia discernir, pois

se era luz do sol, chama de vela ou prateado lunar, seus olhos diante

de sua face e retraído de sua narinas fugiam de luz, fosse raio, facho ou

claridade de modo que a obscuridade que lhe era por vista era a vista

que via. Se fora o negro do véu noturno ou se mancha ocular, ver com

os olhos não poderia, pois ver via com olhos que queria e era por isso

que quero ser um artista imaginava, a imagem que lhe vinha, via.

Foi mesmo naquele dia ou noite de véu negro ou clarão solar

que quero ser um artista decidiu sair. Decidiu de decisão tomada, cál-

culo mental à base matemática de prós e contras de vento na cara e

poeira nos pés, fosse por desejo de ver o mundo mudado ou o mesmo

fosse pelo nojo de seu antro malcheiroso de latrina nunca limpa de

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vermes e estrumes. De comida apodrecida à mesa, café enxicarado

jamais sorvido, esquecido em tempo e fora do tempo cujas garras fin-

cadas em chão não varrido juntava poeira e toda espécie de aranhas em

suas teias geométricas tecidas em anti-horário, percevejos, besouros e

lacraias. Paredes bolorentas enegrecidas, descasquentas penetradas à

força por um único prego oxidado, sustentáculo de um quadro sus-

penso em barbante desfiado, tabuleta, sinal o que quer que fosse em

que se podia ler em perfeita tipografia: “Inspiração”. De fato aquele

quadro, tabuleta ou sinal que fosse, era o único mobiliário mesmo des-

provido de valor financeiro, que erguia-se imune as forças da sujeira,

ou o que quer que de podre poderia estender-se sobre aquele antro.

Foi mesmo naquele dia em que se pode notar que quero ser um artista

posicionou sua pequena cama ensopada de suores incontidos, odo-

res putrefatos de carnes descarnes no sentido perpendicular ao sinal

de forma que, deitado que estivesse desde que de barriga para cima

pudesse ver o que dizia o quadro, não que ver lhe fora possível, ainda

que por algum momento e de alguma forma em tempos imemoriais e

mesmo que de soslaio, foi-lhe o golpe fatal. Razão pela qual se deitou

e de lá nunca mais se levantou. Atou-se ao mastro de ouvidos atentos

ao canto de sua sereia tabuleta, sina sinal em parede encardida e cama

perpendicular, e houve tarde e manhã do primeiro dia. Viu, quero ser

um artista, que isso era bom. Foi mesmo naquele dia que, decidido

a conhecer sua musa Dafne perpendicular e flechado pela seta pra-

teada, não a poderia tomar. Dafne não foge não corre pela floresta é

signo invertido vertido em parede encardida, enfeitiçada permite-

se olhar. Veja, mas não toque. Toque, mas não tome. Tome, mas não

experimente. Experimente, mas não engula. Não é fruto que lhe sirva

a uma dentada, não há Éden que lhe faça jardim há inferno que se faça

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lar e lago congelado que se faça cama. E assim se fez. O mármore rijo

ao cinzel subvertido é, quero ser um artista em sua cama lago conge-

lado e Dafne, quadro inspiração parede perpendicular, não loureiro,

nada cresce naquele lugar, nem árvore nem jardim.

Foi mesmo naquele dia que quero ser um artista decidiu olhar,

ver de visagem vista a imagem que via perpendicular em sua parede,

mas inspiração signo invertido, Dafne enfeitiçada lhe era obscurecida

por olhos que não viam e ainda que lhe fosse a vista clara e crista-

lina não lhe havia pálpebras obedientes que subissem qual cortina em

espetáculo que descortina e desvela, quero ser um artista via a ima-

gem que via. Dafne fazia-se por vista sem nunca deixar-se ver, quero

ser um artista via em sua parede a imagem de sua visagem e pensava

que isso era ninfa, Dafne inspiração que via. Apolo sem musa, sem

ninfa tem sua lira, mas não sabe usá-la.

Naquele dia em que quero ser um artista deitou-se sem nunca

lembrar-se de onde viera ou o que fizera momentos antes de esque-

cer. Não que desejo houvesse em seu coração, de lembra-se é o per-

der-se, o esquecimento inócuo do minuto anterior que impulsionado

por sua ânsia de criar que o ensinara a esquecer. Esquecer para criar.

Criar sem memória. Foi mesmo naquele dia que quero ser um artista

esqueceu-se de lembrar e sem memória desaprendeu a aprender. Não

que incapaz fosse, nada é mais humano que a tolice, mas quero ser

um artista não se considerava humano, são deuses os artistas. Peque-

nos Apolos cujos falos jamais Dafne, incrustrados em pedra mármore

em casca de árvore de Bernini. Dias de riso rio-Deus Peneu que ri de

quero ser um artista do qual foge a inspiração atingida por flecha de

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chumbo, ri também o Cupido. Sorri Dafne inspiradora o riso de alí-

vio. Só quero ser um artista não sorri, sente-se abandonado. Doente

de amor. Há um desejo, a enunciação de um apocalipse. Fato incon-

tornável que quero ser um artista definha em deter. Tentou escrevê-lo,

não o pode, tentou lembrar-se, não o pode. Ele espera e ao esperar

espera criar a arte. A repetição da espera em leito sem fim. Foi mesmo

naquele dia que achou-se morimorto em cama pinicante. Não mais

vida, morte, não mais viço, opaco, não mais carne, ossos, não mais

ossos, horror. Foi mesmo naquele dia, ainda que se dia luminoso ou

noite desluarada, não se sabe encontrou-se em seu estrado roído por

unha e carne seu desejo e esqueceu-se tal palavra: Palco.

nota biográfica

Leonardo Apolinário Alves de Lima nasceu em Barra Mansa

cidade industrial do Sul do Estado do Rio de Janeiro - Brasil. Estudou

em escola pública ingressando ainda jovem na indústria metalúrgica

até se voluntariar em uma Organização Não Governamental de cunho

humanitário.

Casado, pai de dois filhos, atualmente é gestor de conheci-

mento.

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POE MAS

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Sobre o vidro das janelas

Ou num espelho molhado, elas,

Afastadas entre si,

Em qualquer leve bulir,

Encontram suas semelhantes.

São gotas d’água a valsar

Valsa da vida pulsante.

Essas gotas isoladas,

Cada uma encontra seu par.

Forma-se uma grande gota,

É grande a gota, e pesada.

Ela cai precipitada.

No resvalo, a outras gotas

Sorve, e, a cada sorvida,

É nova gota criada.

Ao chegar ao fim do vidro

Do espelho, ao fim da corrida,

Pinga…

valsa das gotas d’água

André Luiz Silva da Rocha

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No vazio…

Incerto…...Plic…

Fenece, falece em dura batida no chão:

E da morte da gota que nasceu da morte de outras,

Em breve vida,

Milhares de gotinhas, bebês, nascem.

E o compasso da valsa torna ao primeiro tempo.

12/01/2012.

nota biográfica:

André Luiz Silva da Rocha, aos 22 anos, é estudante concluinte

de Letras: Português -Literaturas pela UFRJ, morador de Ricardo de

Albuquerque, com pequena passagem por Marechal Hermes. Desen-

volve, atualmente, pesquisa em Poesia Portuguesa com intensão

de seguir ao mestrado na mesma área. Tem um gosto inegável pela

música, sendo um pianista razoável, mas com objetivos de ainda vol-

tar a estudar música seriamente. Simplesmente, não traça metas defi-

nidas, apenas segue caminhos esperando ver o que encontra, porque,

para ele, a vida se constrói vivendo e não planejando.

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quero morrer de amor

mas que não pare o coração!

que não faça órfãos os sentidos,

nem a indiferença me tome irmã. 

um rasgo na pele

é a memória perdida

é o esquecer do teu sorriso

me dando bom dia.

o anel que tu me deste não era de vidro,

mas de poesia.

às vezes voa pra longe

e esquece o caminho da partida.

Priscila Branco

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não chorei rios

nem um oceano.

tampouco alaguei lembranças

ao som de festas e corais.

caiu uma lágrima

tulipa solitária

pedaço fugidio de mim.

era ela

o abraço nunca dado

os segredos esquecidos

a dor do parto de se nascer felicidade e angústia.

lágrima Priscila Branco

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O sótão do mundo fora aberto.

Ventanias bocejantes entrecruzam-se no

mais virtuoso átimo de revelação.

Jovens fadas saem da escuridão,

cortam as esperanças com os raios de

navalha etérica.

Soam um canto concreto,

amarra-o na superfície esquecida do

céu.

Deus deu de tudo para os orvalhos não sumirem.

Raul Ávila de Agrelasótão

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Rapsodos das colinas descem o poema na direção

da ventania.

Procuram descobrir a tumba da música

onde está inscrito os sinais poemáticos

sugados nos

rolos azuis dos antigos habitantes das mesmas colinas.

Saibam!

Os utensílios das fadas são os

homens navegantes dos rios do Norte.

Homens esse que pulsam seus corpos

na batida encorpada dos tambores do mar,

eles gritam,

rosnam na mais altiva vociferação,

são homens que estão no cruzamento

delicado da terceira para quarta

dimensão (adeptos de Ouspensky, portanto).

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Tiktiktiktiktiktik booom!

Tiktiktiktiktiktiktiktik boom boom!

Guerras-d’águas!

Todos no Norte, sobretudo, fazem campanhas

para descobrir o sótão do mundo.

Os mapas estão na boca dos rinocerontes

das rainhas

das metrópoles incendiadas.

Tais mapas foram comidos ontem

no centro do sertão!

Os espíritos dos pássaros viram, saibam!

Os jovens deleitam-se no cair das maravilhas: lágrimas das fadas.

O cair das maravilhas é o canto poético da tarde

que

cobre as montanhas;

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e o oceano de

borboleta é o

manto da tranquilidade.

Guerras-d’águas!

Tiktiktiktiktiktiktiktik boom boom!

Tiktiktiktiktiktik booom!

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Meu amor ontem tomou um banho

de cor púrpura,

Molhou-se por completo seu corpo de música

silenciosa que apenas meus eus

podem captar.

Canta! Canta! Canta para mim, para mim

meu mar – anjo de

natureza pura.

A lua realmente descera alenta,

flutua entre o teu canto, e em

Raul Ávila de Agrela5 e 7 por 18

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nossos braços e alentos

vocais ela pode nos tocar.

A lua carcome nossas existências

A LUA!

em batidas noturnas que as florestrelas

nos apresentam.

Teus cabelos de prata tímida

transam às ventanias luzidias

e a lua – amassando-nos delicadamente – gira

seu espectro em torno de nós.

Púrpura interna, externa, oscilante,

caída em teu corpo de poeta nu – como um rei

de coroa subterrânea e celestial orgânica – cintila, então,

o púrpura em burburinho intensamente sobre tu: nós.

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O trono – relíquia do mar – espera-te;

o trono de areia molhada,

onde o amor vive o silêncio do universo,

onde nós vivemos,

onde nossa nudez, por fim inicialmente falando,

perpetua-se sorridente!

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Nas noites refletidas abaixo dos rios e pontes As terras chãs Cheiravam à flor do paraíso E qual duas palmas batidas num aplauso Fechavam as asas Doíam sem abrigo Na superfície era Julho, mês da Festa E o fluxo das águas trazia do planalto, o ruído Era o arder frígido da seresta Mulher alta, mulher feia, rapaz bonito Silenciosas, as aves não voavam Nem grudavam em casco do navio Não eram flores Não abriam o bico Não se inflamavam Se contorciam Ao som do triângulo E pia a roda, pia a gente e rodopiam À passarada, falsa flor lá no Rio

(04 de Julho de 2014)

flores falsasFernando Pereira Impagliazzo

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Carioca do Méier. Estudante concluinte de Literaturas na Uni-

versidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de Prova das nove, publi-

cado pela editora Multifoco. Inclinado pela música popular, pela poe-

sia brasileira e sobretudo pela cultura nacional. Não aceita rótulos de

“poeta” por acreditar que a poesia não é um exercício estéril mas um

estado de espírito, uma condição inerente da realidade, um mérito tão

oneroso quanto prazeroso. Como diria Manuel Bandeira, a partir de

Libertinagem: “me resignei à condição de poeta quando Deus é ser-

vido”.

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CRÔ NI CAS

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Sou um homem de frases! Encantam-me as frases feitas, as cli-

chês, as sábias, as que me garantem status, dignos ou indignos. Tudo é

questão de momento, questão de frases certas. Em uma conversa citar

Kant ou Marx... Do Marx sei aquela, a que termina o Manifesto comu-

nista: “Proletariado uni-vos”. Não sei se tenho alguma do Kant...

Nietzsche também é um autor excelente para citarmos, autor

da frase “Deus está morto”. Porém, a frase do polêmico filósofo já está

banalizada. Agora você deve fazer o seguinte, situar o seu ouvinte

antes da frase: “Quando Zaratustra, após se retirar em uma montanha

desce novamente à cidade... [Pausa Dramática ou Suspense Mode-

rado] ...antes passa pela floresta e encontra um pastor. [Olhar intelec-

tual] Percebe a religiosidade e o propósito da vida daquele homem e

diz: “Não sabe que Deus está morto!”. Mas você deverá explicar que

a questão é muita mais profunda do que se apresenta, já que a frase

do Nietzsche tomada como verdade é contraditória, pois Deus pre-

cisa nascer para morrer, precisa ser real, e sendo Deus ele não morre!

Sacou? Então, além de citar não deixe de explicar isso, para que não

passe vergonha diante de ouvintes que conhecem o Nietzsche.

sou um homem de frases

Pablo Rodrigues

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Uma coisa que me veio à cabeça agora é que para ser um bom

citador, você não precisa lembrar do primeiro nome dos autores de

referência. Exemplo: o próprio Nietzsche! Não precisa falar Friedrich.

Do Einstein, pode retirar o Albert. Do Kafka, o Franz... Sartre, sem Jean

-Paul... Bandeira, sem o Manuel... Pensar também que há casos parti-

culares.

O Manuel de Barros, falecido recentemente, é necessário man-

ter o Manuel, porque o Barros tem cara de Manuel de Barros, e sua

poética parece se unir ao seu nome: Barro... Terra... E isso é coisa de

Manuel mesmo.

Não use “Segundo Andrade”! Qual Andrade? O Carlos Drum-

mond...? O Oswald? O Mário? E Campos? Nesse caso é Haroldo e o

Augusto, “Os irmãos Campos”.

Há autores que são tão íntimos que podem ser citados pelo pri-

meiro nome, é o caso do próprio Oswald, Cecília e Clarice. Toda aten-

ção especial a Clarice! Nesse caso é muito pedantismo usar o Lispec-

tor, é vergonha na certa. Lembrei de outra: D. Cléo! Quem é? Cleonice

Berardinelli! Grande pesquisadora da Literatura portuguesa. Isso me

fez lembrar de mais uma coisa...

Tem autores que não terão frases certas, eles são mais biblio-

grafias ambulantes, validadores de conversas. Segundo “Foucault...

isso é punição” Mas calma! Não é para fazer isso em todo lugar e sem

nenhum rigor conversacional. Repito: Tudo é questão de momento,

questão de frases certas, de ouvinte.

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Já estou a terminar meu texto, “Vamos, não chores!”. Um verso

do Drummond! Viu? Não é Andrade!

Frases de autores desconhecidos, apesar de não chamarem

muito a atenção, são muito úteis. Alguns as nomeiam de ditados popu-

lares. São todas excelentes: “Não há um bom que não tenha defeitos”...

“Cada macaco no seu galho”... “Farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Um pouco egoísta essa última.

Bem… A vida é um inferno, ou melhor “O inferno são os outros”.

Sacou? Tem Sartre aí no meio. Mas da vida ser um inferno é questão

de perspectiva, isso é coisa de pessimistas. Caberia aqui um Schope-

nhauer também, mas sobre ele, eu “Só sei que nada sei!”, Sócrates.

“Eu só sei que nada sei” é usada para quase tudo! Para mãe que

pergunta ao filho sobre a notas: “Mãe eu só sei que nada sei”... A filha

que entrando na puberdade pergunta ao pai de onde vem os bêbes:

“Filha eu só sei que nada sei. Pergunta a sua mãe”. As vezes até esque-

cemos de dizer que é do Sócrates.

Deixe-me ir, preciso dormir, e sonhar... “Somos feitos das maté-

rias dos Sonhos”... Shakespeare, Ato 4, Cena 1! E do bardo é bom dizer

em qual peça e ato se encontra a frase, dá mais requinte a citação, e

claro, ao citador.

“Vou me embora”, e não para Pasárgada. Lá já está cheio de

gente que não estou afim de reencontrar. Grande abraço!

PS: Cuidado na função de citador, você pode incomodar e pare-

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cer não ter opinião formada. Passar por pedante e quem sabe perder

bons amigos. “Quem aviso amigo é!” “Faça isso com moderação”!

nota biográfica:

Pablo Rodrigues é estudante de Letras-Literatura da UFRJ e

desenvolve pesquisa na área de Teoria da Literatura. (pablorodri-

[email protected]).

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