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I SEMINARIO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM PRISÃO
02/10/2015 São Paulo SP
USP Faculdade de Direito
GT 13 Racismo e Prisão
Memória carcerária: intimidade tutelada e discursos eugênicos.
Elisa Maria dos Anjos UFRRJ; Fábio Vicente Gonçalves Queiroz UNIRIO
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho se propõe a discutir a presença e o impacto dos ideários eugênicos
que se manifestam no discurso dos atores no interior das prisões. As perspectivas eugênica no
Brasil são marcadamente atravessadas de um pertencimento a uma matriz racialista que elabora,
constitui e operacionaliza as práticas e discursos no interior dos espaços carcerários.
Parto da premissa que, a convivência no interior do espaço prisional impõe,
particularmente aos detentos, mas não exclusivamente a eles, uma identidade discursiva que 1
retroalimenta a memória social produzida nesses espaços como um dispositivo de manutenção 2
de específicas pertenças identitárias a distintos atores.
O dispositivo, neste estudo, é àquele especificado por Michel Foucault e, auxilia na
compreensão de que o ideário eugênico, embora nascido em um outro contexto intelectual
permanece na “memória do espaço” prisional como representação do melhor entendimento sobre
questões endógenas ao universo prisional e exógenas ao público comum. Tal entendimento é de
fundamental importância, não somente, para a compreensão do modelo de memória que é
elaborada no interior do espaço prisional, mas para a percepção de que é essa memória que
propicia sustentação ao mesmo e, justifica a “cultura prisional”.
Serão os diversos dispositivos que, “tutelados” pela memória social estabelecerão a teia de
sentidos que, ao longo do tempo, apesar das inúmeras, e justíssimas críticas outorgadas ao
espaço prisional, contribuem para assegurar não apenas sua manutenção mas, sobretudo, a
longevidade dos mesmos. É pela existência desses dispositivos que os ideários, muitas vezes
cientificamente ultrapassados, se sustentam e emergem nos discursos, nas práticas ou mesmo,
se metamorfoseiam e fornecem o aporte ideológico para ações, atitudes, prerrogativas e
justificativas, criando, algumas vezes, autênticos simulacros de ordem e justiça no interior do
espaço prisional.
É, nessa perspectiva também que as “curvas de visibilidade” ou de “enunciação” 3
presentes nos dispositivos nos fornecem as rupturas, fissuras e os “entremeios” através da qual a
tessitura das relações é construída, fragmentada, reconstruída, amalgamada, num movimento
entre os “mecanismos linguísticos e não linguísticos” (AGAMBEN, 2009, p.35), ou, mais
precisamente, entre o que é dito e o que é calado mas que, sobretudo, entre o que é vivenciado.
Estes mecanismos, constituem os sujeitos no interior desses espaços de interação, sujeitos
esses, que, no dizer de Foucault são concebidos “sujeitados” (FOUCAULT, 2012, p. 95) dentro
dessa lógica operacional.
1 Utilizo aqui uma aprorpiação do conceito de “fachada” do Goffman, para ilustrar que os atores criam diferentes identidas no interior do espaço prisional e que cada uma dessas identidades é manifestada pelo discurso e no momento das interações. 2 O dispositivo, segundo Foucault constituise em um conjunto multidimensional de sentidos e significados sobre discursos, instituições, organizações arquitetônicas, leis, medidas administrativas, regulações administrativas, proposições de caráter moral, científico, filosófico, filantrópicos. O dispositivo, assim, constituise numa rede que amalgama esses elementos. 3 O dispositivo possui três perspectivas: saber, poder e subjetivação.
Entretanto, quero chamar a atenção para o fato de que, o modelo em que essa lógica
institucional hoje se manifesta, contribui para esse processo de assujeitamento não apenas dos
apenados mas também daqueles que, em tais espaços, são responsaveis tanto pela tutela
segura, quanto pela integridade física e psicológica dos indivíduos em seu interior. É no sentido de
“libertar” para usar uma expressão feliz de Marx, o “opressor” e “oprimido”, revelando a dupla face
desse processo, que é importante problematizar as políticas implementadas e as ações
reproduzidas nesse espaço.
A memória, nesse sentido, constituise no “fio condutor” pelo interior do “labirinto”
carcerário, “esclarecendo” e “demonstrando” os pontos de afetividade no sentido do que nos
afeta que orienta as ações, os discursos e as identidades neste ambiente. Será na memória,
através das narrativas dos atores que essas pertenças denunciam o elo com o referencial
eugênico seja na forma de inspiração, seja na manifestação concreta destes ideários.
Assim, a partir deste escopo conceitua, busco entender como a visita íntima, uma política
institucional elaborada especificamente para o sistema prisional, pode contribuir e se,
efetivamente contribui para o processo de ressocialização do apenado uma vez que,
objetivamente, ela é operacionalizada em meio a uma “rede” que, no interior do espaço prisional,
mais parece desconstruir do que fortalecer os “laços sociais” dos apenados que ela se propõe a
manter.
Assim, é a partir dessas premissas que pretendo construir a análise aqui proposta sobre
essa política idealizada para o espaço prisional.
2. A MEMÓRIA SOCIAL
A memória social vai tangenciar e se constituir como “pano de fundo” sobre o qual toda a
análise vai se organizar e se desenvolver. Ainda que a palavra “memória” pareça, muitas vezes,
expressar uma concepção um tanto abrangente e fluida, o conceito de memória social, entretanto,
nos permite objetividade operacional e científica para análise. Ele é caracterizado por sua
transdisciplinaridade, que atravessa diferentes campos de saber sem se “aprisionar” a nenhum
deles mas produzindo, precisamente nestes entrecruzamentos, problematizações que constituem
o escopo explicativo fornecido pela memória. Assim, uma primeira questão precisa ser entendida:
a percepção de que toda memória social é política, não se constituindo, portanto, como um
fenômeno espontâneo ou “natural”, mas, como fenômeno histórico, produzido dentro do contexto
que o constitui e como elemento de disputas de poder e de sentidos no interior desses processos.
Essas disputas refletem “os donos do poder” estabelecendo os aspectos de precisão e
objetividade como campo conceitual. Nesse processo de tangenciamento a memória social
elaborase, necessariamente, dentro de uma perspectiva ética e política uma vez que a toda
memória social “é tecida por nossos afetos e por nossas expectativas diante do devir” (GONDAR;
DODEBEI, 2005, p.16) e, ao ser produzida pelo que nos afeta, a memória social reflete outra de
suas pertenças que é a sua própria construção processual que demonstra que a mesma não é um
fragmento do passado mas um constructo que se desenvolve e continua a se desenvolver no
processo não se reduzindo, dessa forma, apenas a uma cristalização de alguns de seus aspectos
ou meramente uma lembrança tão somente, mas inclusive, a proposições de futuro. Essas
propriedades pertinentes à memória social é que permitem percebêla com a objetividade
científica e que nos fazem perceber que as problematizações que a mesma desenvolve abrange
um conjunto de novos significados e novas pertenças sobre fenômenos diversos que se
manifestam na sociedade.
Na perspectiva de se discutir a memória social cumpre também destacar que o espaço e
identidade são categorias que alicerçarão o trajeto da memória que se busca apontar neste
estudo. Assim, partimos do pressuposto que, no caso do presente estudo, existe no sistema
prisional
[...] de uma lado, uma memória oficial que atua no sentido de viabilizar a manutenção das
estruturas sociais, que seleciona, ordena e classifica os fatos segundo critérios próprios, e
se constrói considerando ou não silêncios, sombras, esquecimentos, repressões e
estratégias de exclusão. De outro, há várias memórias sociais subterrâneas que,
empenhadas em viabilizar as mudanças reclamadas pela sociedade, transmitem,
conservam, produzem lembranças e comportamentos proibidos, desqualificados ou
ignorados pelos discursos e pelas representações predominantes (MORAES, Nilson Alves
de, 2005, p. 98)
A memória social, dessa forma, reflete, na maioria das vezes, a “verdade” de quem está
no comando, quem dita as regras. Entretanto, como destaca Pollack, as “memórias subterrâneas”
presente nas relfexões, discursos e pertenças dos indivíduos “sujeitados”, muitas vezes, emergem
de sua forma “latente” e se manifestam na objetividade do momento. Segundo esse autor, tais
“manifestações” ocorreriam em momentos de crise em que as estruturas sofrem algum tipo de
pressão externa e que permite que tal evento aconteça. No presente estudo estou me apropriando
do conceito de Pollack sobre memórias subterrâneas e realizando uma inferência pessoal, na qual
reputo que no interior de uma “instituição total” (GOFFMAN, 2013), lugar em que as tensões
sobre as disputas de poder tornamse mais evidente e mais constante que em outros espaços
sociais, a manifestação das memórias subterrâneas acontecem de forma mais cotidianizada
emergindo no bojo presente nos embates das interações “face a face” (GOFFMAN, 2011) e na
necessidade, imposta dentro deste espaço específico, da demarcação identitária constante de
cada ator.
Nesse sentido, reputo que o corpo funcional do sistema prisional também se encontra
dentro da concepção foucaultina de “assujeitamento” uma vez que opera as políticas idealizadas
para esse espaço, na maioria das vezes, de forma mecanizada, sem dimensional o alcance ou a
eficácia da proposta, boicotando, de diferentes maneiras, sempre que possível a operacionalidade
de tais políticas.
Uma percepção que poderia ser explorada é o fato de que, em um ambiente
marcadamente atravessado pela questão da hierarquirzação das identidades e do poder, a
memória do apenado, enquanto sujeito de direitos, é expressa pelo viés institucional. A sua
companheira entretanto, poderia ser percebida como uma guardiã mais autêntica do que a
instituição prisional da memória desses indivíduos. Ela incorpora, consciente e inconscientemente
a “memória subterrânea” desse apenado para quem a “crise” que promove a emergência dessa
memória subterrânea não é experienciada.
Outro elemento conceitual a partir do qual procuro desenvolver a sustentação discursiva
do trabalho associado à noção de memória espacial, é a concepção de dispositivo elaborada por
Michel Foucault. Essa ferramenta metodológica conceitual, inicialmente, vai aparecer na obra
“historia da sexualidade”, particularmente no livro primeiro “a vontade de saber” em que esse autor
começa a discutir sobre uma nova forma de disciplina política para o controle dos corpos dos
indivíduos que ele denominou de “biopoder” e que se estendia para diversos campos dentro dos
aspectos de interação social. Tal disciplina, no interior dos espaços prisionais, dialoga com a
instância jurídicodiscursiva, impondo aos indivíduos a elaboração de um discurso sobre si
calcado em princípios que Foucault denominou como “relação negativa” cuja percepção se
promove pela de recusa ou exclusão e, nesta concepção, possui como principal proposta a
objetivação rigorosa da noção de limite.
O outro aspecto do dispositivo foucaultiano é a “instância da regra” que promove uma
redução à percepções binárias que se dicotomizam entre o lícito e o ilícito. Assim, o “ciclo de
interdição” operaria com a ameaça de um castigo que promoveria a suspensão de “algo” dentro
da “lógica da censura” que em seu modelo operacional desenvolve três distintos aspectos:
“afirmar que algo não é permitido, impedir que se diga alguma coisa e negar que algo exista”
(FOUCAULT, 2012, p. 93). Esses aspectos, que em um primeiro momento, parecem impossíveis
de se harmonizaremse, desenvolvem contudo, um sentido que promove a ligação do que não
existe, o que não poder dito e o que não é permitido criando o que Foucault denominou como
“inexistência na nãomanifestação” e que esta muito presente no interior do espaço carcerário
tanto nos discursos quanto nas interações .
Deleuze (1990, p.155) é um dos autores que vai discutir que as premissas de construção
do dispositivo, saber, poder produção de formas de subjetivação não delimitam sistemas
homogêneos e que as linhas que as definem tanto se aproximam quanto se afastam umas das
outras. Giorgio Agamben também busca fornecer um sentido sobre o dispositivo foucaultiano e
aponta que o dispositivo possui três características gerais que é ser um conjunto híbrido
constituído linguisticamente e não linguisticamente como primeiro aspecto. O dispositivo possui
como segunda característica a propriedade de posicionarse de forma estratégica em relação a
um dado campo de formas e, por último, que o dispositivo é o produto do cruzamento dessas
relações de saber e poder (AGAMBEN, 2009, p. 29).
São os confrontos, as disputas que deflagram os dispositivos e estabelecem a dimensão
que vai caracterizar o dispositivo. Portanto, existem diversas derivações e linhas de entendimento
e de seus contornos. As primeiras dimensões que Foucault destaca sobre os dispositivos são as
“curvas de visibilidade” e as “curvas de enunciação”. A primeira, tem relação com a apropriação e
distribuição do poder entre o visível e o invisível. No presente estudo, por exemplo, o dispositivo
panóptico, por exemplo, elaborado para espaços de acautelamento, como se caracteriza o espaço
prisional, exprime com eloquência essa proposta: uma estrutura para se ver sem ser visto. O outro
aspecto, ou “curvas de enunciação” vão se caracterizar como as diversas “linhas” ou
possibilidades de enunciação. São as variáveis presente no saber sobre as possibilidades das
transformações.
3. DISCURSO JURÍDICO
Metodologicamente, discutir o desenvolvimento dos aspectos jurídicos constituise em uma
necessidade para quem tenha decidido abordar o tema do sistema penitenciário, já que, esta
instituição e tudo o que a constitui é permeada pelos fundamentos do campo do saber jurídico. 4
Independente deste aspecto contudo, a normatização que determinou a concessão da visita
íntima, objeto deste presente estudo, foi elaborada dentro do escopo da Lei de Execuções Penais
criada pela esfera jurídica no contexto de sua reformulação, na década de 1980 do século
passado, justificando assim essa abordagem.
Observando com cuidado o organização do sistema penitenciário é possível perceber os
inúmeros aspectos em que a instância jurídica interfere diretamente no exercício do cumprimento
da pena não se limitando apenas ao “julgamento” como o senso comum imagina. Seja na fase
inicial, via definição e titulação do ato infracionário que vai implicar no acautelamento do indivíduo
na instituição prisional e, em qual das unidades dessa instituição , seja na “definição” do indivíduo, 5
a partir da especificação do seu delito criando uma tipologia que liga a “criatura” ao “ato criado”
como um Frankstein “às avessas” e que prende o apenado em um “outro tipo de prisão” a
tipologia do seu delito, seja na matematização do tempo da penalidade, que determina o ônus do
dano causado á sociedade e a “quantidade” da pena a ser cumprida em função do dano
suscitado, seja na forma como esse tempo será exercitado no interior espaço prisional, em
unidades de regime aberto, semiaberto ou fechado, perto ou longe da residência da sua família,
etc. Enfim, todos esses aspectos envolvem a instância jurídica em alguma medida.
A relevância histórica sobre a prisão e os aspectos que a definem se impõe ao longo dos
séculos por ser esta, uma instituição presente na quase totalidade das sociedades ao longo dos
séculos. Entretanto, no caso brasileiro, na atualidade, justificase, especialmente, pelo triste fato
4 Reflito aqui a partir do conceito de “campo científico” como proposto por Pierre Bourdieu que o considera como um espaço de relações de força, disputas de monopólios e estratégias de interesses de capacidades técnicas em perspectivas específicas. Para saber mais ver O poder simbólico; Usos das Ciências Sociais. 5 Existem vários elementos que interferem na determinação do acautelamento do apenado; origem, delito, ligação com facção criminosa são algumas delas.
de hoje, segundo dados fornecidos pelo Infopen, estarmos situados como quinta potência no que 6
tange ao efetivo carcerário de apenados no mundo, constituindo, assim, uma população carcerária
de cerca de meio milhão de pessoas. Esse quadro contribui para nos enquadrarmos na
denominação proposta por Loic Wacquant de “Estado Carcerário”, nomenclatura que este
pesquisador atribui à países que apresentam um crescimento exorbitante da população
encarcerada. Também relevante, academicamente, é a adoção da ideologia da “tolerância zero ” 7
como forma de resolver os conflitos sociais e carcerários que vem sendo adotada pelo Estado
brasileiro e que, a maioria dos pesquisadores da atualidade, aponta como principal causa de
duplicação de efetivos carcerários, sem resultado aparente em diminuição de criminalidade.
Dessa forma, todos esses aspectos, alguns, paradoxais, já constituem justificativa social de
relevância enquanto tema de pesquisa.
Dentro desse contexto apontado, o Sistema Prisional do Rio de Janeiro não se constitui
exceção aos demais estados da União: muitas unidades prisionais no Brasil apresentam grandes
concentrações de contingentes humanos, para além da capacidade dos estabelecimentos de
mantêlos. Entretanto, como fenômeno interessante, e divergente desse quadro, o sistema
penitenciário carioca tem buscado, através de políticas prisionais, estabelecer uma nova relação
com o apenado e com seus cônjuges. Nesse aspecto em particular, podemos destacar a
concessão da visita íntima para os apenados que cumprem pena em todas as unidades prisionais,
e não apenas algumas poucas unidades, como se constituía a prática anterior a 2011. Ainda
nesse rol de novas relações, a concessão de visita íntima para casais de orientação homoafetiva,
ou a luta pelo fim da “revista vexatória” impostas aos familiares de apenados, por exemplo, parece
nos indicar que esse caminho está se abrindo em novas formas de apreensão desse modelo de
“intimidade tutelada”.
Entretanto, qual o alcance dessas medidas no plano politico e no plano objetivo? Qual o
seu efeito na população carcerária? Qual o seu impacto na sociedade civil? Como o corpo de
funcionários reagem a esse novo modelo de política prisional? O que de fato está mudando no
sistema prisional? o que permanece? qual o “preço” das mudanças e quem “paga” por ele?
A introdução de “novas regras no jogo”, acarreta, muitas vezes, resistências, retrocessos
e, dependendo da situação violência nas interações. Como isso se processa nesse momento de
concessão de visita íntima em caráter “universal” em relação ao espaço prisional?
São muitos questionamentos e este trabalho não se propõe a discutir todos eles. Assim,
nos deteremos na discussão de um desses aspectos: a visita íntima e o preconceito sustentado
por ideários eugênicos dentro do espaço carcerário.
4. SISTEMA PRISIONAL
6 Infopen é a sigla do Sistema de informação Penitenciária. Esta é um órgão que está ligado ao Ministério da Justiça. 7 Tolerância zero ou teoria da “vidraça quebrada” constituise em uma corrente de pensamento sobre a questão da criminalidade e seus “remédios”. Mais adiante no trabalho vamos nos aprofundar mais pormenorizadamente sobre esse aspecto.
O espaço carcerário é marcado por um jogo de pertenças identitárias com as quais as
pessoas a ele subordinadas são estigmatizadas (Goffman, 1963). Entretanto, o estigma que
acompanha o apenado quando de sua entrada no ambiente prisional, não é o mesmo que o
acompanha em seu interior. Tais “marcas” são reificadas no contato prolongado e nas interações
“face a face” (Goffman, 2011) em que as narrativas institucionais modelam e tipificam o indivíduo
enquadrandoo em um sistema simbólico de violência de onde não chega “alvará de soltura ”. 8
Assim, apurar, examinar e questionar as respostas sobre as consequências políticas, econômicas
e sociais de propostas que nos estão levando a “novos estágios” da política carcerária, tornase
fundamental para entendermos como tais aspectos tangenciam na nossa sociedade e, que
reflexos eles produzem na mesma.
O entendimento objetivo sobre espaço prisional existe há muitos séculos. O uso que se fez
e que se faz até os dias atuais, da prisão entretanto, foi profundamente alterado, principalmente
pelo desenvolvimento das instituições sociais e através das mudanças das concepções do
imaginário social do que deveria ser constituído e executado no interior desses espaços e, para as
pessoas submetidas aos mesmos, na sociedade que os compreendia. A troca da perspectiva da
transitoriedade uma vez que o espaço prisional em sua origem era um espaço de “transição” em
que o apenado aguardava o cumprimento da pena pela da fixação pena privativa de liberdade
e, a posterior transformação desta, em punição propriamente dita, vai demonstrar o caminho
percorrido pela “penalização” que impactará transformando a própria “função de uso” atribuída ao
espaço prisional.
As penalidades impostas aos transgressores compreendiam um arsenal de ações que, na
maioria das vezes se configurava como alguma modalidade de castigo corporal que, tinha por
objetivo dar visibilidade à pena e provocar que o temor por este destino desmotivasse a prática
que poderia conduzir ao mesmo.
É interessante ressaltar que, na sociedade ocidental, as concepções sobre os significados
e objetivos da pena e da penitência estão imbricados em ideologias de cunho moral e ético. Nesse
sentido, a lógica dos costumes e a crítica do conteúdo dos mesmos são continuamente
atravessadas pelo embate entre esses dois aspectos: no primeiro, como conjunto de atitudes que
que se impõe aos membros de uma sociedade, coletivamente e, ao individuo, em particular. No
segundo, a crítica da conduta humana através da teorização sobre a concepção maniqueísta do
que é certo ou errado para o conjunto da mesma sociedade. É esta moralidade dicotômica que
está implícita nesses ideários de bem e mal que situa para a sociedade a própria concepção do
que pode ser entendido por justiça social (MOTTA, 2011).
Assim, a concepção de “justiça social” faz emergir outra no bojo da socidedade: a
concepção de merecimento. Esse “merecimento” constituise em um conceito paradoxal uma vez
que se aplica em situações diversamente proporcionais: tanto para o que “merece” o castigo,
8 Alvará de soltura é uma ação judicial que determina a libertação de uma pessoa mantida sob cautela do Estado.
quanto para aquele que “merece” o prêmio ambos imersos em sentimentos sociais
manifestamente fortes.
É sobre esse pressuposto que Foucault (2005) discute sobre a mudança de mentalidade
com a transposição da concepção de “vingança” para “punição” abandonadose a posição de
vingança pessoalista, desmedida e tendenciosa, para punição, objetiva e racional imposta pela
sociedade contra aquele que cometeu um erro na comunidade social.
Para ilustrar no campo do pensamento jurídico o processo de desenvolvimento dessa
memória contida no imaginário social a Escola positiva do Direito apresentou como seu maior
representante o italiano Cesare Lombroso que fundou o campo da Antropologia Criminal
atribuindo características biologizantes para o fato criminológico. Para esse pesquisador o crime é
um fenômeno natural e social que deve ser estudado pelo método empírico. Assim, a principal e,
mais conhecida obra de Lombroso “O Homem Delinquente” constituiuse em uma proposta de
“defesa social” pois, na visão desse autor, os trabalhos sobre o direito penal centravam como
objeto o criminoso e se esqueciam da sociedade que sofria o impacto das ações dos infratores.
Mais do que uma teoria obtida como resultado objetivo de suas pesquisas nos hospitais
psiquiátricos e instituições prisionais da Itália, sua proposta expressava um “sentimento social”
que, estava sendo colocado em evidência como reflexo das transformações desencadeadas, quer
pelo adensamento de pessoas nos centros urbanos, quer pela lógica do capitalismo emergente,
em que a estrutura econômica e social, atreladas aos sistemas de poder da sociedade estavam
sendo perturbadas e, como uma das medidas de resolução de conflitos. Assim seus estudos
constituíram todo um arsenal de tipificação criminológica em que “avaliações biológicas e sociais
estão misturadas: sinais de maldade são fisicamente perceptíveis” (BRETAS, p. 193, 2009) e,
essas percepções forneciam o fundamento científico e psicológico que justificava o apartamento
dos elementos causadores das “desordens” na sociedade e que se reflete nas considerações a
seguir.
5. A EUGENIA
Pelas colocações anteriores podemos perceber como uma filosofia do direito, e uma
“prática carcerária” dialogam no tempo e no espaço mediados pela memória social refletindo as
pertenças identitárias de cada contexto histórico em que se manifesta. Um desses contextos é o
emergência dos pressupostos idealizados pela teoria eugênica. A eugenia, enquanto proposta
científica, foi criada por Francis Galton, utilizando a lógica discutida pelo seu primo, Charles
Darwin para a evolução das espécies, com a apropriação de metodologias matematizantes para a
“produção” de “espécimes humanos” eugenizados, ou de “bom nascimento”.
A segunda metade do século XIX também vai manifestar uma tentativa de se entender a
sociedade, suas mazelas e o individuo pelo crivo da patoligização dos problemas. Será também
no século XIX na esteira da Independência americana e da Revolução Francesa que se
complexificam as discussões sobre quem, de fato, é o cidadão, O trabalho organizado em termos
capitalista faz emergir no discurso liberal a questão do “peso social” e a legitimidade cidadã.
Nesse contexto de decisão de quem era “útil” e quem deveria ser excluído como peso à
sociedade, as propostas eugênicas foram acolhidas com grande entusiasmo. Tais propostas
agregavam três perspectivas: uma pretensão de ciência e, assim sendo, um raciocínio ratificado
pela lógica; uma ideologia já que se propunha a justificar, cientificamente, a intervenção na
sociedade e por último, uma crença difundida entre seus propositores de “fazer o melhor” para a
sociedade pois como expressou o eugenista britânico Wicksteed Armstrong “há três métodos para
a redução da perigosa fertilidade dos inadequados: a câmara de morte, a segregação e a
esterelização” (STEPAN, 2005, p. 36). Assim, só nos Estados Unidos as propostas eugênicas foi a
responsável direta, através de legislação pertinente, da esterelização de grandes contingentes
constituindo um percentual de cerca de 40.000 pessoas entre homens e mulheres considerados
“disgênicos” (DIWAN, 2012). Na Europa esse número também é representativo: na Suécia,
Nouruega, Finlândia cerca de 60 mil pessoas foram esterilizadas por ordem judicial nestes países
entre a década de 1910 e 1930 (DIWAN, 2012). Entretanto, vai ser na America Latina que a
eugenia vai apresentar uma variação do modelo desenvolvido nos Estados Unidos e Europa: ela
vai expressar a especificidade de cada território . Não é o objetivo deste trabalho, contudo, se 9
demorar na análise desses outros diversos modelos mas, discutir o caso brasileiro.
A eugenia no Brasil se amalgamou com um outro elemento constitutivo do nosso processo
de construção de identidade nacional: o racismo. No processo de eliminação do escravo, nossa
sociedade precisou lidar com um novo ator social: o negro, entretanto, este, foi entendido como
“resíduo” (FERNANDES, 1972) de um sentimento social amalgamado no racismo.
Concorrendo com essa pertença, duas categorias profissionais ganham protagonismo
nessa empresa: junto com os médicos, os advogados foram os grupos com maior impacto na
construção da identidade nacional e, a associação desses dois campos de saberes foi profícua
para o desenvolvimento do modelo de eugenia construído no Brasil. O campo da medicina legal
tornouse uma das principais instancias de multiplicação do conhecimento eugênico no interior
dos institutos de medicina legal, uma vez que muitos do professores eram juristas e não médicos
(STEPAN, 2005).
Em 1920 vai acontecer o primeiro congresso brasileiro de eugenia que ajudou o ideal
eugênico a se desenvolver e a buscar universalizar no território brasileiro a proposição e
ratificação de novas legislações sobre o matrimônio (STEPAN, 2005), educação, imigração, entre
outros exemplos exitosos da ação eugênica no Brasil que se constituíram em leis, nessa época.
É neste contexto que Afrânio Peixoto, professor da cátedra de higiene na faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, discorda dos cientistas europeus sobre a tese do clima tropical como
9 Para saber mais sobre a eugenia na America Latina ver Stepan, N.L. A hora da eugenia e Hochman, G, Armus, D.Cuidar, controlar e curar.
elemento explicativo da “degeneração” brasileira e ratifica a necessidade da imigração branca
para “higienizar” a população brasileira demonstrando assim, mais um aspecto do trajeto de
desenvolvimento da eugenia no Brasil: “sanear é eugenizar”. Assim saneamento, higiene e
eugenia, muitas vezes expressaram a partir de vocábulos diferenciados a mesma proposta em
termos de ação política e o mesmo entendimento com relação aos “disgênicos” da nossa
sociedade.
É essa mesma lógica de percepção calcada em uma memória que “retrata” uma imagem
negativa de um passado elaborado em meio a um processo de escravidão que deixaram marcas
profundas nas relações societais que, Olivia Maria da Cunha em seu livro “intenção e gesto”,
destaca ao apontar que as primeiras fichas de identificação judicial no Brasil em que “se baseava
em uma pedagogia de leitura dos retratos orientada por representações estéticas, concepções
científicas e é claro, muito de impressão e senso comum” (CUNHA, 2002, p.26) na percepção de
uma “ligação intrínseca” entre o negro e a degeneração hereditária.
Nesse contexto também figuram personagens, como por exemplo, Nina Rodrigues que,
como nos afirma a antropologia, deve ser entendido como um homem do seu tempo que
acreditava no potencial pernicioso que a influência do negro estava causando na sociedade
brasileira mas, cujo foco principal de investigação era a questão da saúde pública, da
criminalidade e da alienação mental. Entretanto, quando sobrepomos tais preocupações como o
elemento de fundo que fornece sustentação para o aprofundamento nos respectivos focos de
interesse, voltamos à questão do negro na sociedade brasileira que está na base de tais
preocupações.
É importante ressaltar que, ao destacar a questão racial que subjáz ao pensamento de
personagens destacados de nossa memória intelectual, não estou me propondo nem à falácia da
crítica fácil a posteriori, nem a um anacronismo míope que não percebe o indivíduo imerso em seu
próprio tempo e contexto sociohistórico. A proposta constituise, tão somente em levantar o véu
da negação e reconhecer a influência, no campo das mentalidades, quando falamos de memórias
e, principalmente, memórias de indivíduos cuja trajetória impactou nas demais.
Negar tais influências é incorrer em equívoco e ajudar a reforçar os discursos que afirmam
não haver racismo no Brasil. Pois o racismo não apenas existe, como precisamos “escavar” suas
diferentes origens e ramificações, problematizálas e desnaturalizálas nos discursos cotidianos.
E nisso não se propõe nenhum demérito a Nina Rodrigues enquanto pesquisador. É
exatamente, em virtude do seu zelo intelectual que é possível perceber a extensão e o
aprofundamento sobre a questão racial no Brasil.
Não podemos deixar de destacar a influência e força de tais pensamentos impactando em
contingentes não populares, mas os de formação acadêmica que fornecem as diretrizes “válidas”
ou permeadas pela legitimação do conhecimento, para os pensamentos populares.
É evidente que, o desenvolvimento e o processo que constituiu a Segunda Guerra
Mundial e a exacerbação dos ideais eugênicos nos abomináveis resultados conhecidos por todos,
criaram um “clima” de negação aos aspectos que serviam de suporte filosófico e social à eugenia.
Entretanto, se na academia tais elementos foram, com toda a justiça, desqualificados, nos
sistemas prisionais, uma avaliação mais cuidadosa pode estabelecer o nexo causal com os
ideários eugênicos muito claramente pois são elementos como esses supracitados que
compartilhados na memória social, emergem ainda hoje no “calor” das interações no interior do
sistema penitenciário.
Ainda com relação ao banimento acadêmico desses ideários, a desqualificação da eugenia
como ciência não inviabiliza a sua prática “nos subterrâneos” das ações. De fato, não é possível
negar a influência desses ideários na elaboração de leis, curriculos escolares e acadêmicos,
assim como práticas sociais que reproduzem condutas sobre um grupo específico da sociedade
eleito para “resolver” pela exclusão da sociedade e da vida a questão da desigualdade social em
nossa sociedade.
É importante entender que a sociedade é um “organismo social” e como tal expressa “vida”
e “movimento”. Nem sempre a direção é para frente como queria a ingenuidade da crença no
progresso constante. Os fenômenos sociais, salvo exceções muito chocantes, como o caso do
nazismo, anteriormente citado, precisam, às vezes de muito tempo e reflexão de diversos
intelectuais para se identificar suas consequências deletérias.
Outras vezes, essas consequências são abafadas, caladas, invizibilizadas e, com o passar
do tempo, as vezes, as pessoas apenas dizem que não existiu, ou que os acontecimentos estão
sendo “ilustrados” de formas muito “exageradas”.
Uma dessas consequências que insistem em negar como se não tivesse existido ou como
se seus efeitos ainda não persistissem em ambientes específicos e para públicos específicos são
os discursos eugênicos para a população carcerária e seus cônjuges.
6. A PALESTRA E A VISITA ÍNTIMA
A visita íntima, uma política estatal para o ambiente carceário com a premissa de contribuir
para o processo de “ressocialização” do individuo sob a tutela Estatal configurase como uma
concessão do Estado ao apenado e a seu cônjuge. Esta política foi oficializada pela Lei de
Execução Penal nº 7. 210 de 11 de julho de 1984. A lei veio regularizar uma prática muitíssimo
presente dentro do espaço prisional e, utilizada, inclusive, como medida de manutenção da
sanidade dos apenados como podemos observar na defesa pela visita íntima elaborada por Astor
Guimarães Dias
O instinto sexual é ainda mais presente, ainda mais forte à medida que se desce na escala
social. O homem menos esclarecido, menos espiritualizado, está mais próximo das
solicitações sexuais que o artista, o filósofo ou o cientista. O criminoso, geralmente espírito
menos burilado, ainda um tanto primitivo ainda meio embrutecido, ouve indiscutivelmente
com muito eloquência o grito da carne. No silêncio da cela, no isolamento das quatro
paredes, esse grito se amplia e se multiplica e transforma a existência do segregado num
tormento sem limites (1955, p.21).
Esse relato eloquente deste pesquisador que ganhou, inclusive, um prêmio por este
trabalho, retrata admiravelmente a concepção da função social para a visita íntima dentro do
espaço carcerário no contexto histórico desta referida pesquisa. Este trabalho está baseado em
um estudo anterior, com o mesmo título de Gabriel de Lemos Brito em que o autor discute sobre a
necessidade de refletir sobre essa temática para promover uma possibilidade de manutenção da
lucidez do apenado. Assim, nessas concepções, a visita íntima demonstra ter relação com
distintos aspectos: a saúde mental e física, educação do apenado. Uma outra concepção a ser
destacada é a manutenção da ordem do espaço prisional como nos demonstra o relato do texto a
seguir
Quando perguntamos aos diretor do 35º Distrito Policial de São Paulo que opções ele tinha
para manter a disciplina [entre detentos] ele não exitou: “As visitas. A maior preocupação
deles é que alguém proíba a visita das namoradas [...] Entrevista à Human Rights Watch,
diretor do 35º Distrito Policial, São Paulo, 1977 (BEATIE, 2009. p. 215).
Assim, em consonância com o que já discutimos, anteriormente, o sistema penitenciário do
Rio de Janeiro apresenta uma reverberação, na atualidade, de questões muito semelhantes às
ocorridas há décadas anteriores. Observe que um texto de Lemos Brito é de 1934, o de Astor
Guimarães é de 1955 e o da entrevista á Humans Rights de 1977 e, mesmo com um lapso
temporal de 43 anos do primeiro para o último texto, a função social da visita íntima continua a
mesma destacando, inclusive a reincidência da instituição em não cumprir os pressupostos da
instituição carcerária, que ressoa na reincidência dos apenados em voltar a estes
estabelecimentos, como uma espécie de “eco simbólico”, assim como em uma perspectiva de
apenado desprovido de humanidade, ou pelo menos, da humanidade plena, na medida em que é
“reduzido” (GOFFMAN, 1982) a uma máquina portadora de insasiáveis e incontroláveis apetites
sexuais.
Podemos, também inferir, por esses exemplos, que os dispositivos institucionais em
ambos os períodos, impõe, mediados pela memória social uma práxis com relação à visita íntima
a partir da perspectiva de funcionalidade de caráter moral e da manutenção da ordem com relação
à visita íntima para além do gozo da mesma por parte dos apenados e seus cônjuges. Assim.
tanto os apenados que estão sob a tutela do Estado como seus cônjuges que não estão sob
tal tutela, encontramse ambos imbricados uma ação que não tem fim neles mesmos mas, resulta
em uma estratégia da instituição para manter suas propostas: tutela segura, reduzindo os
apenados à categoria de “prisioneiros” de seus apetites sexuais de tal forma que, somente a
saciedade dos mesmos garantiria a ordem e o status quo no interior do espaço prisional e que
conforma os operacionalizadores de tais políticas, na percepção dos apenados a partir de uma
perspectiva biologicizante.
A prática institucional da visita íntima, como hoje se opera, promove, no interior dos
espaços prisionais uma percepção equivocada sobre a sua proposta. Aproveitando a reflexão que
discute um “tom” funcionalista para a visita íntima, inferimos que ela agrega também uma
discussão quanto ao mérito de sua ação, particularmente, sobre o corpo dos funcionários da
segurança, mas não exclusivamente, uma vez que um contingente, bastante significativo, de
profissionais da saúde da mesma forma que os funcionários da segurança, questionam o mérito
de tais políticas e a compreendem apenas sob a perspectiva da “instância da regra e da censura”
(FOUCAULT, 2012) sem levar em conta outros aspectos que a caracterizam.
No que diz respeito ao Sistema Prisional do Estado do Rio de Janeiro, inicialmente as
visitas íntimas não eram concedidas para os apenados de todas as unidades prisionais. Em 21 de
março de 2011, contudo, foi sancionada pelo Secretário de Estado de Administração
Penitenciária, o senhor César Rubens Monteiro de Carvalho, uma Resolução da SEAP (Secretaria
de Administração Penitenciária), com o número de 395, que regulamentava a visitação aos presos
custodiados nos estabelecimentos prisionais e hospitalares da SEAP incluindo também a visitação
de caráter íntima.
O elemento também inédito, inserido nesta resolução foi que, além de permitir a visita
íntima para todas as unidades prisionais, incluindo as hospitalares, a proposta da resolução
também estabelecia o reconhecimento e o direito á visita íntima para casais de orientação
homoafetiva. Tal resolução representa, sem dúvida, um avanço no caminho da transformação das
relações entre instituição e sujeitos “sujeitados”. Contudo, existe um hiato bastante significativo
entre a normatização proposta e, a realidade objetiva de usufruir do conteúdo de que a mesma
versa. Nas unidades hospitalares, por exemplo, até a presente data, nenhum apenado pôde
usufruir deste benefício oficialmente e, entre os casais de orientação homoafetiva apenas uma 10
apenada e sua companheira, puderam, até o presente momento, usufruir deste benefício.
Dentro de todos esses processos, a palestra de visita íntima constituise em um evento
interessante do ponto de vista da investigação acadêmica pois nela vão “desembocar” as
questões pertinentes ao interior e exterior acerca do espaço prisional representado pelos
apenados e seus cônjuges, respectivamente. Estas palestras constituemse como a última etapa
para a concessão da visita íntima. Nela, tanto apenados nas unidades onde cumprem suas penas,
quanto seus cônjuges, no auditório do antigo Hospital Penal Hamiltom Agostinho , são orientados 11
quanto à prática do sexo seguro e sobre os mais difundidos métodos anticonceptivos. No
decorrer das palestras as companheiras, muitas vezes, narram as diversas modalidades de ações
10 Digo oficialmente para me referir ao processo de concessão de visita íntima pois inúmeros relatos apontam para a visitação de caráter íntimo para além da norma institucional e os hospitais não se constituem em exceção nesse caso. 11 As palestras continuam no mesmo espaço mas a denominação do hospital é que mudou. Hoje ele funciona como uma unidade de atendimento pericial e para desinternação de pacientes que necessitam de atendimento para a saúde mental..
que viabilizam a intimidade, seja ela para sexo ou não. É nesse momento também que é possível
uma relação de maior proximidade institucional para as mesmas uma vez que a palestra se
estabelece, na atualidade como uma relação com um perfil mais dialógico onde, inclusive, as
participantes, algumas vezes, podem se colocar e produzir questionamentos e, ,muitas vezes, até
para o esclarecimento de dúvidas.
Uma outra questão pertinente para se entender a dinâmica carcerária pelo prisma da visita
íntima é a questão de relatos que apontam para a existência organizações funcionam em
algumas unidades prisionais onde a visita íntima tanto é mediada pela via institucional, quanto
pela via financeira. Desta maneira, para além da questão oficial existe também a forma “oficiosa”
onde os próprios apenados se organizam de acordo com o que os casais possam dispor
financeiramente. Diferentes meios de “fornecimento de condições de intimidade” são, dessa
forma, viabilizados e outras das marcas da sociedade brasileira emergem: o “jeitinho” . Essas
práticas extraoficiais e articulações para a visita íntima variam de uma unidade para outra sendo
que em algumas, o fato de haver uma relação com os nomes dos beneficiários, com data
agendada, o alojamento e horários, nos leva a acreditar que, também alguns inspetores de
segurança possivelmente participem dessa modalidade de “economia delinquente” (COELHO,
1987, p.54), uma vez que tais procedimentos, como mencionados anteriormente, são pagos, na
maioria das vezes em dinheiro e no ato da contratação do “serviço” e mobilizam toda uma rede no
interior das unidades prisionais.
Entre os casais homoafetivos do sexo masculino, até o momento, sequer houve uma
solicitação para fosse realizada a palestra de visita íntima. E isso é mais representativo ainda
quando temos conhecimento de que, numericamente falando, estes casais existem dentro do
Sistema Penitenciário em maior número do que os casais femininos. Assim, percebemos duas
situações em que o direito chegou mas não pode ser usufruído: por apenados instalados em
Unidades Prisionais Hospitalares, ou que possua orientação homoafetiva masculina. Estes
exemplos ilustran casos “oficiais” de contingentes que não puderam se beneficiar dessa referida
lei.
Dessa forma chamamos a atenção para dois elementos desse processo que necessitam
de uma explicação mais ampla: o primeiro diz respeito a forma como essa referida concessão de
visita íntima é estabelecida em termos legais e o segundo em como ela é percebida pelos atores
diretamente envolvidos no processo. Em um primeiro momento, somente os apenados do sexo
masculino possuíam o direito para o gozo da visita íntima. O que já estabelece uma diferença no
que tange ao público encarcerado por gênero.
Da perspectiva da maioria dos funcionários com quem conversei a respeito, a visita íntima
é explicita pelas seguintes expressões: “absurdo, equívoco, erro, inaceitável e desperdício”. Essas
foram as definições que mais apareceram nas falas de profissionais de diversas categorias que
atuam dentro do sistema penitenciário do Rio de Janeiro. Dentre todas essas, a expressão
“desperdício” me chamou a atenção e nela pude observar um dos pressupostos apontados por
Michel Foucault sobre a penalização do criminoso. Segundo esse autor, com o fim dos suplícios
públicos e a criação das penas privativas de liberdade, a população ficou privada da sua
“vingança social” contra aquele que “quebrou” o pacto da sociedade. Para Foucault, essa “ânsia
social” é expressa nas expectativas de que o castigo nunca é o suficiente e tem implicações direta
na “ânsia de justiça X ânsia de fazer justiça” (CUNHA, 2002).
Entretanto, a visita íntima tem uma dupla área de ação: ela não reflete apenas a
“necessidade” do apenado, mas também ao desejo de ambos os cônjuges da possibilidade de
troca de intimidade, não exclusivamente sexual. Contudo, a falta de um entendimento da questão
subjetiva que é a manutenção das pertenças identitárias do apenado “antes” da sua entrada no
sistema prisional, não é plenamente entendida, percebida ou corroborado pelos
operacionalizadores dessas políticas. Assim, qualquer comportamento que “fuja” da norma é
penalizado mesmo que não haja, efetivamente, a previsão da pena
“o que me chocava nas CTCs que eu participava é que havia muitas punições por causa da sexualidade dos internos [...] Se um preso for pego namorando [...] mesmo com a esposa […] num cantinho, vai ser punido. Se ele tiver na sela [… ] vai ser punido, se tiver com um homem também vai ser punido e o mais interessante é que não tem nada na Lei de Execuções Penais referente à sexualidade [… ] então... como é que é feita a punição? Eles eles encaixam dentro de alguns ítens [...] o mau comportamento ligado à sexualidade. Então eles encaixam dentro do que tem lá … uma interpretação pra punir [...]” 12
Esse relato, revela os simulacros de justiça e também demonstram uma demanda do
Estado, em instrumentalizar os operadores das políticas para que elas de fato, possam, em
alguma medida contribuir para o que se propõe. Assim, corroborando com a assertiva foucaultiana
entendemos que a justiça, enquanto instituição, ainda que exista entre outras coisas, para manter
os direitos individuais, opera, entretanto, para a sociedade em termos coletivos. Nesse sentido, é
difícil satisfazer as duas partes. Nem o infrator, nem a vítima, normalmente ficam inteiramente
satisfeitos com a decisão judicial até por isso a justiça opera a partir da concepção de ideal de
justiça que não devem ser reduzidos a “arremedos” dela.
A palestra de Visita Íntima, na atualidade, pode ser compreendida como um espaço não
formal de aprendizagem, na medida em que funciona como um “curso” de 1 dia, com duração de
duas horas, voltado para ensinar a prática do sexo seguro, transmitir o conhecimento sobre a
prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, os métodos contraceptivos disponíveis,
gestação saudável, questões de “cidadania social” e o empoderamento da mulher.
O objetivo institucional está relacionado à uma perspectiva tecnoburocrática, onde a
palestra funcionaria como um “passe” para o acesso à visita íntima. De forma pragmática, os
apenados querem “fazer sexo” e o Estado impõe essa palestra como condição sine qua non para
esta finalidade seja concedida. As esposas ou companheiras precisam ser admitidas por este
ritual administrativo para a concessão de uma “intimidade tutelada”.
12 Relato de uma funcionária da área tecnica do Sistema Prsisional do Rio de Janeiro.
Tendo em vista que a visita íntima foi implantada oficialmente no sistema penitenciário, no
território nacional a partir de 1984, é importante destacar que o processo é semelhante ao que é
executado para uma visita comum acrescido de um documento que comprove a união ou uma
declaração assinada por duas testemunhas no caso de “união estável”. Existe uma exigência de
que o casal assine um documento denominado “Termo de Responsabilidade” em que ambos
concordam em assumir as consequências decorrentes da prática de relações sexuais e que
aceitam os termos no que tange às questões referentes à segurança da unidade prisional no qual
o apenado se encontra acautelado. Os apenados assistiriam a palestra no interior das unidades
prisionais onde cumpririam suas respectivas penas e as cônjuges dos no auditório do Hospital
Heitor Carrilho na região central do Rio de Janeiro em um prédio do antigo Complexo Frei
Caneca.
Uma questão expressiva que transparecia no decorrer das palestras era a violência
simbólica presente no discurso pois a palestra era dividida em duas partes: na primeira parte as
companheiras dos apenados deveriam assistir a um vídeo em que o Superintendente de Saúde,
na época, Dr. Edson J. Biondi apareceria em uma gravação falando sobre doenças sexualmente
transmissíveis e os métodos anticonceptivos. Na segunda parte, uma profissional do sistema
prisional falaria novamente sobre as mesmas doenças agregadas agora de fotos bem chocantes,
sobre contracepção e a necessidade de se evitar filhos e a AIDS.
É justamente neste aspecto que existe um continuum não rompido com o pressuposto
sobre o indivíduo na condição de apenado. A exortação positiva no sentido de evitar a gestação,
criando, inclusive, a categoria “filhos da cadeia” para crianças que nasceram durante o período de
cumprimento de pena do pai ou da mãe, os discursos proferidos, principalmente, mas não
exclusivamente, pelos inspetores de segurança, mas também por médicos, enfermeiros, auxiliares
de enfermagem, dentistas, assistentes sociais entre outros, sobre a hereditaridade dos “delitos”
nos remetem à lógica da reflexão eugênica, como postulado de pretensão científica para
explicação do desvio desses indivíduos e seus cônjuges na sociedade.
Nesse sentido, a palestra, enquanto evento, é permeada de práticas ainda pautadas em
ideais de uma sociedade patriarcalista repletos de ações de violência simbólica seja nos
discursos, seja nas atitudes. A ação dos diversos contingentes profissionais é mediada por um
conjunto de pertenças simbólicas de difícil acomodação pois a prisão vive uma fase de ruptura
com as propostas para seu ambiente em uma realidade “pósconvencional”. A dificuldade de
aceitação de práticas funcionais para esse espaço deriva tanto da incapacidade que este,
enquanto instituição, apresentou no passado e no presente de realizar seus pressupostos. Outro
aspecto diz respeito à reprodução de uma conduta de “remendos” em que a lógica operacional é
voltada, principalmente, para sanar distúrbios causados por demandas não atendidas. Por esse
motivo, muitas vezes, as novas normas se chocam com as regras antigas incorporadas na
memórias dos antigos funcionários e que as exortam aos mais novos como elementos de
manutenção da ordem funcional.
8 CONCLUSÃO
O racismo enquanto prática social é perceptivel, vizibilizado, explícito em muitas ocasiões
e ainda assim, negado. É espantoso! É impossível não “ver” que o público carcerário tem “cor”. É
impossível observar uma palestra para companheiras de apenados e não observar o mesmo
fenômeno. Assim, falar do sistema penal é implicita e explicitamente falar da questão racial no
Brasil. Basta, por exemplo, destacarmos o aspecto dos encarceramentos desproporcionais
(FLAUSINA, 2006) entre negros e brancos. Assim falar de sistema prisional é falar na
continuidade das políticas de esterilização e de extermínio que no Brasil ficou vinculado à questão
racial.
O extermínio aqui discutido possui duas dimensões: a primeira é a imediata, realizada com
a morte biológica do corpo do indivíduo. A segunda dimensão demanda mais tempo, contudo
possui uma abrangência maior na medida em que não apenas atua “afastando” os indesejáveis
para o interior dos espaços carcerários o que efetivamente, em alguns casos resulta no processo
anterior, ou seja, na morte do individuo, mas também implica na “morte lenta”, na morte social, e
na assunção, em muitos casos, de uma “natureza” criminosa que “mata” as expectativas de um
devir de integração na sociedade.
Foi triste perceber numa das palestras, uma das companheiras expressar no final, o
quanto aquela situação era assustadora para ela. Uma outra companheira fez a seguinte
colocação: “é triste eu sei! E imagino que seja pior para você. Eu já estou acostumada. Isso
aconteceu com meu irmão, e é a segunda vez do meu marido. Está no sangue”. Só estão eu
percebi que ela mesma fazia referência à sua própria cor como elemento distintivo de
pertencimento ao “mundo carcerário” e como por oposição, para sua interlocutora, isso seria
diferente já que a mesma era caucasiana e, portanto, “estranha” à ambiência carcerária.
Certamente, a observação desta última não estava equivocada. O ambiente carcerário tem
cor. O equívoco, perversamente confirmado nos discursos e no processo social, é a aceitação
que, por uma questão “de cor” esse ambiente é um destino “natural” a esses indivíduos.
Assim, a mesma lógica aplicada a uma possível “desordem” do espaço promovida pela
“natureza” do apenado, é aplicada também ao “novo” representado pelas novas leis e
normatizações, elaboradas para um espaço em que os atores que determinam as ações em seu
interior operam dentro de um referencial imaginário de que as “coisas” e as pessoas não mudam.
Apesar de atualmente a palestra permitir a fala das companheiras ela ainda é
operacionalizada dentro destes pressupostos, anteriormente citados. Portanto, tal proposta
educativa “perde” muito do seu potencial pedagógico e da dimensão socializadora ao “reafirmar”
implícita e explicitamente referenciais deterministas calcados em uma concepção de
hereditariedade delituosa e marcadamente racializada, que deve ser evitada como demonstra as
exortações de não concepção implicando na crença de que quanto menos “filhos da cadeia”
menos bandidos na sociedade.
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Criminologia Crítica e o boom do encarceramento étnico no
Espírito Santo de 2006 a 2014.
Critical Criminology and the boom of ethnical incarceration on Espírito
Santo from 2006 to 2014
Vernon A. Corrêa Simões
Resumo:
O presente estudo tem por objeto a analise crítica da evolução da população carcerária
do Espírito Santo, no período de 2006 a 2014, com enfoque étnico racial. Os dados
utilizados são os fornecidos pelo Ministério da Justiça, através do INFOPEN, e foram
analisados sob uma leitura teórica crítica da criminologia. Em 2006, a população
carcerária do estado era de 236,9 em 100 mil habitantes, dentre os quais
aproximadamente 106,1 em 100 mil habitantes eram negros e pardos (67,8%) e
aproximadamente 34,8 em 100 mil habitantes eram brancos (22,2%). Quase dez anos
depois (2014), a população carcerária era de 417,9 em 100 mil habitantes, dentre os
quais aproximadamente 324,2 em 100 mil habitantes eram negros e pardos (77,6%) e
aproximadamente 88,1 em 100 mil habitantes eram brancos (21,1%). Somente através
de análise por uma ótica da criminologia crítica na realidade espírito-santense, dos fatos
que moldaram suas políticas de segurança pública, exploradas pela mídia e se tornaram
foco das disputas eleitorais, é que podemos começar a compreender a real natureza
desse boom no encarceramento étnico.
Palavras chaves: Criminologia Crítica, Racismo Institucional, Encarceramento,
Espírito Santo.
Abstract:
The current study has as an object the critical analysis of the evolution of the
incarcerated population of Espírito Santo, in the period of 2006 to 2014, focusing on
racial ethnic issues. The used data were provided by the Justice Ministry, through
INFOPEN, and were analyzed under a critical theory of criminology read. In 2006, the
state incarcerated population were 236,9 in 100 thousands people, in which about 106,1
in 100 thousand people are black and brown (67,8%) and about 34,8 in 100 thousand
people are white (22,2%). Almost ten years later (2014), the incarcerated population
were 417,9 in 100 thousands people, in which about 324,2 in 100 thousand people are
black and brown (77,6%) and about 88,1 in 100 thousand people are white (21,1%).
Only with an analysis through critical criminology of Espírito Santo reality, the facts
that molded its public security politics, explored by the media and became the focus of
electoral disputes, that we may start to understand the real nature of the ethnic
incarceration boom.
Keywords: Critical Criminology, Racism Institucional, Incarceration, Espírito Santo.
GUERRA A CRIMINALIDADE E O ENCARCERAMENTO ÉTNICO NO
ESPÍRITO SANTO
Antes de nos adentrarmos aos números que nos importam para o mapeamento do
encarceramento étnico do Espírito Santo, é necessário informar que a procedência de
todos os dados analisados é do INFOPEN1 – Sistema de Informações Penitenciárias do
Ministério da Justiça. É importante ressaltarmos essa informação por causa da carência
com que os dados foram apresentados, carência decorrente da falta de colaboração de
alguns estabelecimentos prisionais no repasse de dados e do gap de relatórios entre os
anos de 2012 e 2013.
Tal carência resultou na necessidade de adotarmos categorias não absolutas, mas
limitadas aos dados informados, como a não utilização do número total de encarcerados,
mas sim do número total de encarcerados cuja etnia foi informada. Caso essa
substituição não fosse feita, não seria possível comparar as diferenças dos dados entre o
encarceramento de brancos e de negros e pardos2.
A falta de especificação dos dados apresentados nos relatórios do INFOPEN também se
mostrou um grande limitador para a pesquisa da realidade do encarceramento étnico
espírito-santense, pois informações de grande importância acabaram por ser omitidas,
como: tempo de encarceramento médio e tipo penal por etnia. Com essas informações
seria possível um melhor aprofundamento crítico do fenômeno, diminuindo espaço para
os theoretical guesses.
Contudo, apesar da carência de informações apresentadas nos relatórios, é possível a
análise criminológica dos dados, a fim de entendermos o reflexo do racismo
institucional no encarceramento massificado. Em tal ponto, o Espírito Santo se mostrou
um verdadeiro laboratório ao encabeçar políticas rigorosas de segurança pública que,
infelizmente, passaram a fazer parte da cultura do estado.
1 Link para acesso: <http://http//www.infopen.gov.br/>
2 Apesar do IBGE e dos pesquisadores considerarem a população parda como negra, os relatórios do
INFOPEN apresentaram os dados separando as etnias, motivo pelo qual também separamos.
Aqui destacamos que, no período em estudo (de dezembro de 2006 a junho de 2014), a
população carcerária com etnia informada saiu de 4.851 para 16.234 pessoas, um
aumento expressivo de 235% em apenas sete anos e meio. A título de comparação, a
população espírito-santense cresceu apenas 25% no mesmo período3.
Vejamos que o encarceramento espírito-santense não acompanhou o crescimento da
população carcerária brasileira, que, no período em estudo, saiu de 239.026 para
607.731 pessoas, aumento de 154%.
Deve-se ressaltar que, ao longo do governo Hartung, essa expansão do
encarceramento teve uma clara orientação de classe e de cor. O número
absoluto dos encarcerados é pobre e cometeram delitos patrimoniais, porém,
o mais espantoso foi o aumento da população negra e parda nas prisões em
uma proporção cada vez maior frente à população branca. Seria possível
dizer que houve no Espírito Santo o que Wacquant chamou de ‘política de
ação afirmativa carcerária’.4
A fala do professor e pesquisador RIBEIRA JÚNIOR em seu estudo sobre o cárcere
espírito-santense é acertada ao dizer que o encarceramento massificado teve orientação
étnico racial, resultando em um disparate no encarceramento de negros e pardos frente
ao encarceramento de brancos. Basta olharmos os números dos relatórios do INFOPEN
para percebermos o acompanhamento do crescimento da população carcerária negra e
parda com a população carcerária total.
O encarceramento de negros e pardos se mostrou com maior força quando comparado
com o encarceramento total e com o encarceramento de brancos. A população carcerária
negra e parda saiu de 3.289,00 em dezembro de 2006 para 12.5975 em junho de 2014,
um aumento de 283%. Comparando o crescimento da população carcerária negra e
parda com o crescimento populacional, temos um salto de 106,19 presos por 100 mil
habitantes em 2006 para 324,26 presos por 100 mil habitantes em 2014.
A população carcerária branca, no entanto, saiu de 1.078 pessoas em 2006 para 3.4256
em 2014, o que representou um aumento de 218%. Quando comparada com o
33
Informações sobre demografia fornecida em estudo realizado pelo OPE SOCIAIS. Link para acesso:
<http://www.opesociais.com.br/#!demografia/cx9e> 4 RIBEIRO JÚNIOR, 2010, p.54.
5 Aproximadamente em razão do INFOPEN apenas divulgar o valor percentual de 77,6%.
6 Idem.
crescimento populacional, temos um salto de 34,81 presos por 100 mil habitantes em
2006 para 88,17 presos por 100 mil habitantes em 2014.
Em termos absolutos, a população carcerária branca ganhou 2.347 pessoas, enquanto a
população carcerária negra e parda ganhou 9.308 pessoas no período de sete anos e
meio.
Gráfico 1 – Evolução do encarceramento étnico de 2006 a 2014
Ao observarmos o gráfico 1, é possível percebermos e compararmos em números totais
a evolução da população carcerária no Espírito Santo, e compararmos a população
carcerária branca com a negra e parda.
Para entendermos melhor o que significado dos números apresentados, decidimos
também por comparar as populações carcerárias (branca - negra e parda) espírito-
santense no que tange as suas proporções frente à população carcerária total com etnia
informada do estado.
Assim, em 2006 a população carcerária negra e parda representava 67,8%, e em 2014
ela passou a representar 77,6% da população carcerária com etnia informada. Enquanto
a população carcerária branca representava 22,2% em 2006 e passou a representar
21,1% da população carcerária com etnia informada em 2014. O gráfico 2 esboça a
comparação.
Gráfico 2 – Comparação da porcentagem da população carcerária branca com a
negra e parda frente a população carcerária com etnia informada de 2006 a 2014
É possível ver que, não só em termos de quantidade, mas também em termos de
representatividade, o processo de encarceramento massificado no Espírito Santo, entre
2006 e 2014, teve orientação étnico-racial.
Para explicar esse disparate no encarceramento espírito-santense é necessário
recorrermos à criminologia crítica, que, ao analisar a atuação das forças de controle do
estado sobre a população (negra e parda), apontará as categorias e aparatos
institucionais responsáveis pela alimentação da política criminal de encarceramento
racista.
A primeira década do novo século foi particularmente marcante para o Espírito Santo,
tendo protagonizado noticiários nacionais e internacionais em diversas ocasiões, como
no assassinato do juiz Alexandre Martins7 em 2003, no caso dos grampos ilegais em
telefones da maior rede de jornais local autorizados pelo então Secretário de Segurança
em 20058, quando o alcançou o índice de 57,3 homicídios a cada 100 mil habitantes em
20099 e quando foi denunciado na ONU pelo caso dos containers-prisões em 2009
10.
7 Link de acesso: < http://www.conjur.com.br/2003-mar-23/juiz_vara_execucoes_penais_assassinado
_tiros > 8 Link de acesso: < http://observatoriodaimprensa.com.br/caderno-da-cidadania/grampos-telefonicos-na-
rede-gazeta/ > 9 Link de acesso: < http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_web.pdf >
10 Link de acesso: < http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2010/03/15/violacao-de-direitos-
humanos-em-presidios-do-es-sera-discutida-na-onu.htm >
Todos eventos que influenciaram na criação de uma cultura política e popular
fortemente vinculada a segurança pública. A pauta se revestiu de caráter comercial ao
ser explorado incessantemente pela mídia local, bem como destacou a luz do “palco
político” sobre segurança pública, aumentando a quantidade de empreendedores morais
querendo o brilho do palco.
O caso do assassinato do juiz Alexandre Martins em 2003 foi responsável por viabilizar
a transformação da política de segurança pública em uma caça a organizações
criminosas capitaneada pelo então governador Paulo Hartung. Houve um primeiro
fortalecimento dos aparatos de repressão.
Pelo menos até o episódio da infame autorização de instalação de grampos ilegais na
maior rede de jornais local em 2005, o que resultou no afastamento do então Secretário
de Segurança, Rodney Miranda. Fato que, sem dúvidas, contribuiu para a necessidade
política de buscar uma nova pauta que justificasse a manutenção dos rigorosos aparatos
de repressão e “defesa social” e do “palco político” de segurança pública.
Nas palavras do pesquisador espírito-santense, RIBEIRA JÚNIOR,
Deve-se recordar que em maio de 2007, Rodney Miranda, o ex-secretário
exonerado pela crise dos grampos, retomou a pasta de Segurança Pública e
Defesa Social com a missão de combater a violência difusa. Todavia, foi
neste mesmo ano que o índice de homicídios entre jovens saltou de 92,5 para
103,9 por 100 mil habitantes, alcançando 129,2 em 2009 11
Assim, de 2006 para 2007, a cultura de fetichismo da segurança pública, e as vantagens
que ela trazia para determinados políticos, conseguiu finalmente colocar como foco de
governo o combate à “criminalidade ou violência difusa”, havendo um novo e maior
fortalecimento do aparato de repressão. Fato que pesou fortemente para a escolha do
período em estudo.
Também, com o advento da nova lei de drogas (lei 11.343/06) no final de 2006,
reacendeu-se o foco popular e político sobre a questão das drogas como política de
segurança pública no país, tomando o “palco político” e se tornando o foco das políticas
11
RIBEIRA JÚNIOR, 2010, p. 50-51.
de segurança pública no Espírito Santo em 200912
. O que contribuiu para especializar o
combate à “criminalidade difusa”, transformando finalmente a “guerra ao tráfico” na
principal política de segurança pública do estado.
Ademais, nota-se que entre dezembro de 2005 e junho de 2009 o aumento da
população negra e parda encarcerada dava-se a uma média de 410 presos por
semestre (820 por ano). No entanto, apenas entre dezembro de 2009 e junho
de 2010 houve um salto súbito de 1.923 novos negros e pardos presos. Neste
mesmo período a população carcerária branca aumentou em 336, uma
diferença proporcional de 5,72 vezes.
Curioso que neste mesmo semestre, os únicos crimes que tiveram um
aumento numérico tão grande como o total de encarceramentos foram
aqueles relacionados ao tráfico de entorpecentes.13
A relação desses fatos com o boom no encarceramento de jovens negros pode não
parecer óbvia, mas, como mostrado por RIBEIRA JUNIOR ela existe. A importância
que a política de segurança pública tomou no “palco político”, transmutada de uma
política de combate a organizações criminosas para o simples combate a violência
difusa e a guerra ao tráfico, nos mostra o efeito sombrio do sistema de justiça penal
vigente. Para entendermos melhor, buscamos a palavra do professor CARVALHO:
Não se trata, portanto, de postular, por óbvio, a existência de relações de
causalidade entre pobreza, cor e violência; o que se quer expressar, aqui, é
precisamente a visualização do sistema de justiça penal como mecanismo de
gestão da subcidadania, ou seja, como forma de vigilância, controle, punição
e mesmo banimento sistemático dos subintegrados, por um lado, e a garantia
da impunidade para os sobreintegrados, de outro.14
O protagonismo do combate à violência e a guerra ao tráfico no âmbito público
alimentou o sistema de justiça penal e o resultado apareceu em números: o
encarceramento de negros e pardos teve um crescimento absurdo, tanto quantitativo
quanto representativo.
12
Em entrevista dada por Rodney Miranda ao Blog Crimes no Brasil, ele afirma que “No primeiro
semestre, a gente fechou a 35 e 36 por 100 mil na Região Metropolitana de Vitória. Não sei se a gente vai
conseguir segurar no segundo. Estamos tendo muito homicídio no interior. No mês passado, nós
registramos homicídios em 28 municípios do interior, coisa que nunca aconteceu. Por causa do crack. O
crack está se espalhando. Essa droga é uma praga. Estou alertando para isso faz um ano.” – Link de
acesso: < http://blogs.estadao.com.br/crimes-no-brasil/tag/crime-organizado/ > 13
RIBEIRO JUNIOR, 2010, p. 56. 14
CARVALHO, 2014. p. 212.
Mas o como e o porquê do sistema de justiça penal ter esse efeito étnico-racial somente
são compreendidos quando passamos a ver que a população negra e parda sofreu e sofre
um processo de subintegração no Espírito Santo – e no país.
Não vamos nos adentrar no processo de subintegração da população negra e parda no
país, o que envolveria um estudo sobre o racismo de complexidade que é mais bem
tratada com aprofundamentos histórico nacional. Todavia, não podemos deixar de
perceber o direcionamento local decorrente desse processo de subintegração, quando
apontamos o fato de que, em um espaço de dez anos, o foco político mudou do combate
a organizações criminosas estruturadas para um combate a uma criminalidade mais
subjetiva.
A criação de uma cultura política focada na segurança pública, a exploração da mídia,
de políticos e de empreendedores morais sobre a temática, exaurem o campo do senso
comum, que, prostituído, busca constantemente assimilar um alvo do aparato
repressivo. Neste sentido, BOLDT ensina:
Os mercados da audiência, do poder político dos formadores de opinião e dos
lucros da publicidade, estimulam a concorrência e aumentam a influência dos
meios de comunicação sobre as demais agências, principalmente sobre as
judiciais. Mediante a manipulação dos medos e a indução do pânico, a mídia
reforça falsidades, conferindo-lhes caráter dogmático, apela para campanhas
de lei e ordem e, através de sua retórica, promove a criminalização e a
repressão.15
Do crime organizado, cuja figura de inimigo público se materializa no político ou
servidor corrupto ou corruptor, passamos para o ladrão e homicida até chegarmos ao
traficante.
Não se deve acreditar que a transposição de figuras de inimigos públicos é a única
responsável pelo disparate, mas sim vê-la como consequência da hipertrofia política da
segurança pública e do sistema de justiça penal. O problema é sistemático e axiológico,
como bem assevera CARVALHO:
(...) a própria legislação penal, que busca coibir a disseminação das práticas
discriminatórias, carrega uma ambiguidade intrínseca. (...) Essa lei está
menos preocupada em punir efetivamente tais condutas, geralmente
15
BOLDT, 2013. p. 85
realizadas por pessoas de elevado nível social, e mais em alimentar tanto a
invisibilidade da desigualdade brasileira como o mito do direito penal
igualitário, e ainda realizar a pacificação das consciências dos movimentos
sociais que não conseguem mergulhar profundamente no torvelinho e na
opacidade das opressões penais, percebendo os seus conteúdos concretos,
porém, ocultos.16
Aqui sentimos necessidade de ressaltar que acreditamos não importar quem é o inimigo
público em determinado momento do tempo, pois, a partir do momento em que a
segurança pública se tornar a “pauta da vez” no “palco político”, os aparatos de
repressão irão sofrer um fortalecimento que só se sustenta como arcabouço enquanto
novos inimigos forem criados.
Nessa cadeia viciosa, o “elo mais fraco”17
da sociedade ira aparecer em tempo como
inimigo, sendo estereotipado pelos meios de controle (meios jurídicos e meios de
comunicação), a fim de se perpetrar um modelo de segurança falacioso. Nestas linhas,
BOLDT corrobora:
Ao disseminar o discurso jurídico oficial, a mídia confere ao direito penal
uma aparência de neutralidade e deixa de apresentar a realidade concernente
ao controle penal.
(...)
Quanto aos estereótipos, a criação destes é peça fundamental no
funcionamento das agências do sistema penal. Formada principalmente por
“pessoas feias”, essa parcela da população torna-se público-alvo do sistema
penal e sofre a consequência mais evidente da criminalização secundária(...)18
Ainda que o estado jamais retire o olhar punitivo dos negros e pardos, em algum
momento o olhar terrível do estado fixa os olhos nessa parcela da população, e esse
momento é inevitável enquanto trabalharmos com estruturas fortalecidas de controle e
repressão em um país institucionalmente racista.
O fixar do olhar punitivo do estado nos negros e pardos pode ser percebido com a
criminalização de elementos culturais, como é histórico no Brasil, ou com a
concentração das agências de repressão em estereótipos na busca por resultados19.
16
CARVALHO, 2014, p. 216. 17
Aqui a população negra e parda apenas deve ser entendida como elo mais fraco em razão de sua
subintegração frente às instituições públicas. 18
BOLDT, 2013, p. 86. 19
CARVALHO, 2014, p. 212.
A concentração das agências de repressão (secretária de segurança, polícias, ministério
público e varas criminais) em estereótipos talvez tenha sido a responsável por triplicar a
população carcerária negra e parda no Espírito Santo, aumentando sua
representatividade no cárcere em quase 10% (de 67,8% em 2006 a 77,6% em 2014), ao
passo que a população carcerária branca “apenas” dobrou, diminuindo sua
representatividade no cárcere em 1% (22,2% em 2006 a 21,1% em 2014).
As decisões cotidianamente tomadas no âmbito da justiça criminal,
notadamente pelas polícias, são injustificadamente mais severas para os
negros do que para os brancos. O braço da repressão legítima do Estado – por
vezes, veículo até de execuções sumárias – atinge majoritariamente os jovens
negros.
É comum que policiais trabalhem de forma discriminatória ao buscarem sua
“clientela”, com base em estereótipos que têm na cor da pele dos “suspeitos”
seu elemento principal. Dentro das sociedades democráticas, este tipo de
orientação torna-se um dos elementos mais polêmicos da atuação policial.20
A constatação feita pelos pesquisadores do IPEA corrobora a tese pensada, pelo menos
quanto à atuação da policia como agência de repressão. Longe de atribuir à polícia a
culpa exclusiva pelo fenômeno ocorrido no estado, já que para operar o sistema de
justiça penal é necessária a cumplicidade de diversos outros agentes repressivos.
Mais que isso, demonstram como a discriminação contra os negros e a
violência da polícia contra estes fazem parte da própria estrutura de
segurança pública. Nesse sentido, torna-se desafiadora a tarefa de
identificação de discriminações que, por fazerem parte da dinâmica social,
seus efeitos são vistos como algo natural, necessário e legítimo.21
Essa naturalidade com qual é tratada a discriminação decorre também da aceitação do
direito penal com o conceito de inimigo, estereotipado e subintegrado, fato que foi
reconhecida até mesmo por ZAFFARONI22, que entende ser possível purgar esses
complementos autoritários do direito penal. No entanto, aceitar a desvinculação do
direito penal de complementos autoritários, quando ele mesmo é autoritário, seria uma
contradição em termos.
20 OLIVEIRA JUNIOR; LIMA, 2011, p. 24-25. 21
SANTOS, 2012, p. 108. 22
ZAFFARONI, 2007, p. 25-26.
Entender que a população negra e parda é o principal alvo dos sistemas penais no estado
é compreender que o que podemos chamar de uma política criminal de segurança
pública é orientada racialmente. Assim, quanto maior o rigor nessas políticas, maior vai
ser a representatividade da população negra e parda encarcerada.
Destaca-se que a relação de causalidade que se observa entre os fatos descritos e o
boom no encarceramento étnico não é direta. Mas a hipertrofia das políticas de
segurança pública serve para apontar a existência de um alvo dessa repressão, ao
colocar um highlight na discrepância das variações de números do encarceramento.
Por fim, conclui-se que o boom ocorrido nada mais é do que uma variação decorrente
do aumento no rigor de uma política criminal de segurança pública direcionada ao
combate da criminalidade difusa, em razão do caráter discriminatório – racista das
instituições de repressão do estado.
REFERÊNCIAS
BOLDT, Raphael. Criminologia Midiática: do discurso punitivista à corrosão
simbólica do garantismo. Curitiba: Juruá, 2013.
CARVALHO, Thiago Fabres de. Criminologia, (in)visibilidade, reconhecimento: o
controle penal da subcidadania no brasil. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2014.
RIBEIRO JUNIOR, Humberto. Encarceramento em massa e criminalização da
pobreza no Espírito Santo: as políticas penitenciárias e de segurança pública do
governo de Paulo Hartung (2003-2010). Vitória: Cousa, 2010.
OLIVEIRA JUNIOR, Almir de; LIMA, Verônica Couto de Araújo. Segurança Pública
e Racismo Institucional. Boletim de Análise Político-Institucional / Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada. – n.1. Brasília : Ipea, 2011.
SANTOS, Tiago Vinicius André dos. Racismo institucional e violação de direitos
humanos no sistema de segurança pública: um estudo a partir do Estatuto da
Igualdade Racial. Dissertação, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo –
São Paulo, 2012 – 200 fls.
ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no direito penal. –2ª ed. - Rio de Janeiro: Revan,
2007.
I Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão
02 de Outubro de 2015, São Paulo
GT Racismo e Prisão
O poder simbólico da instituição policial: o racismo institucional por trás do
discurso da ordem
Marília Monteiro Silva1
Resumo
O presente artigo tem como objetivo primordial discutir as nuances que permeiam a
reprodução da violência simbólica do Estado por parte da instituição policial, tomando
como principal referência a obra do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Partindo do
princípio de que a legitimidade de origem estatal configura-se como uma das
características definidoras do comportamento policial - também respaldado pela
sociedade civil -, visa analisar os fatores que culminaram na formação de um habitus
de polícia fundamentado no exercício do poder simbólico e na manutenção de uma
ordem que favorece interesses particulares e discrimina minorias sociais e raciais,
bem como que reflete o paradigma do racismo institucional, diante do extermínio da
população negra. Com base nisso visa, ainda, observar que a violência simbólica
exercida pela polícia por vezes ultrapassa a esfera dos limites de sua função,
causando o seu desvirtuamento pela violação do devido processo legal, dos Direitos
Humanos - a exemplo dos casos de tortura e de execuções extrajudiciais – e do
Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Violência simbólica – Polícia – Racismo
Introdução
1 Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e Graduanda em História pelaUniversidade Federal de Pernambuco
As indefinições e contingências políticas características das transições entre
regimes de governo refletem-se, naturalmente, nas disposições das instituições de um
Estado. No contexto latino-americano, mais particularmente no Brasil, essas
instituições atravessaram décadas sem se estabelecerem de forma efetivamente
sólida na organização política estatal. Já no início da constituição do estado nacional
brasileiro, durante a República da Espada, o setor militar buscou um alinhamento com
os poderes oligárquicos. Da mesma forma, a ditadura militar da segunda metade do
séc. XX servia aos interesses imperialistas, dos poderes econômicos e das elites
nacionais, doutrinando a “ordem” e o “progresso” em nome de uma parcela
insignificativa e pouco representativa da sociedade brasileira, em detrimento da
soberania de seus cidadãos.
Atualmente, mesmo com o fim do estado de exceção e a consolidação do
Estado Democrático de Direito, o autoritarismo da instituição policial, bem como seus
contornos e limitações, tem garantida permanência na estrutura social brasileira, sob
condutas arbitrárias e ilegais - resquícios refletidos e incutidos no estado burocrático.
Isto é, as indefinições e contingências políticas do novo estado ainda encontram-se
em processo de assimilação, a democracia está em vias de consolidação e, por
conseguinte, a polícia como instituição enquadrada no sistema estatal necessita
reconfigurar-se consoante o contexto de transição democrática.
Partindo desse ponto é que o presente artigo tem como premissa
primeiramente analisar as características do poder simbólico estatal, para então
compreender como o discurso da ordem e o monopólio da força física reproduzem o
racismo institucional. Levando em consideração a especificidade do passado do
Estado brasileiro e os fatores que levaram à sua conformação atual, busca analisar o
exercício de uma violência simbólica que reflete exatamente aqueles resquícios
autoritários: através do habitus funcional do seu braço armado, a instituição policial.
A representação de tal poder simbólico, no entanto, é o que se objetiva
fundamentalmente destrinchar neste trabalho: a violência simbólica exercida pela
polícia não apenas serve a interesses de grupos particulares; além disso, tem como
bode expiatório a população negra, principal alvo de arbitrariedades, de modo que tal
fato nos põe a questionar o efetivo papel social da polícia, bem como suas falhas
internas e estruturais. Tais fatores remetem a estruturas de poder responsáveis pelo
racismo institucional e pela criminalização da pobreza, nas quais o Estado de Direito,
os Direitos Humanos e o devido processo legal são profundamente violados pelo
próprio aparato estatal.
O Estado e a instituição policial: o exercício da violência simbólica
É bem sabido que as estruturas sociais e as instituições de um determinado
Estado constituem-se e definem-se em conformidade com o seu desenvolvimento,
bem como que as suas contradições e consequentes transformações são suscitadas
pelo seu processo histórico. No caso do Brasil, certas características e práticas
estatais particulares perpetuam-se, ainda que sob diferentes contextos, tanto no
sistema político, quanto no âmbito da sociedade civil. Essas características e práticas
remetem a um autoritarismo típico da formação social e política brasileira.
Como diversos outros países latino-americanos, o Brasil desenvolveu-se desde
os primórdios da sua formação como estado nacional sobre instituições enfraquecidas
e débeis, determinadas mais pelo contexto das relações sociais de dominação e
exploração remanescentes da estrutura colonial do que propriamente pela soberania
popular. Isto é, essas instituições conservaram-se, com o passar do tempo, sem
estabelecerem-se de forma efetivamente sólida na organização política estatal,
perpetuando desigualdades e injustiças. O projeto de importar uma ordem político-
institucional da Europa e dos Estados Unidos, portanto, tinha fracassado: o sistema
democrático constitucional sempre se limitou ao aspecto formal, uma vez que o peso
do poder dos grupos dominantes e da própria estrutura sócio-econômica vigente abria
espaço para a conservação de uma ordem fundada em interesses particulares.
A primeira ditadura militar brasileira, no final do século XIX, já refletia esse
quadro: a busca de alianças entre o setor militar e os poderes oligárquicos admitiu a
manutenção do status quo de tais elites, assim como um servilismo por parte dos
militares. A ditadura militar do século XX, por sua vez, reproduziu o alinhamento com
as classes dominantes, servindo aos interesses imperialistas, dos poderes
econômicos e das elites nacionais, perseguindo dissidentes políticos e violentando e
exterminando cidadãos, sob a bandeira da “ordem” e do “progresso”. Da mesma
forma, prerrogativas militares constitucionais sempre influenciaram a potencialidade do
poder militar no sistema político, mesmo nos governos civis, também possibilitando o
intercâmbio de influências entre esses setores2.
Em todos esses processos, o poder dominante sustenta-se sobre práticas
autoritárias recorrentes, através de um aparelho repressivo consolidado, como forma
de manter as hierarquias dentro da estrutura social e as relações de poder que
viabilizam a dominação e a exploração das minorias. As indefinições e contingências
2 Alfred Stepan vai discorrer sobre as prerrogativas militares em vários momentos da história brasileira.STEPAN, Alfred. As prerrogativas militares nos regimes pós-autoritários: Brasil, Argentina, Uruguai eEspanha. In: STEPAN, Alfred. (Org.). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
políticas características das transições entre os regimes de governo, porém, são o que
trazem à tona, com mais intensidade, as contradições dessas práticas e hábitos,
pondo em dúvida a efetivação da restauração democrática3.
É importante observar, no entanto, que as fragilidades e indefinições dessas
instituições e as resistências estruturais autoritárias que asseguram os sistemas de
hierarquia e as formas de dominação independem da mudança de regime político4. Ou
seja, as permanências dessas relações de poder são fortemente influenciadas por
uma cultura política que, por sua vez, lida com uma multiplicidade de variáveis
determinantes dentro da sociedade. Assim, independentemente do fim de uma
ditadura militar, as relações de força entre as classes permanecem, não suscitando o
estabelecimento imediato da cidadania política. Portanto, tal fato nos faz concluir que a
transição democrática - que ainda está em vias de consolidação - não culminou
efetivamente na pacificação das arbitrariedades cometidas pelos militares, levando-se
em conta o fato de que a instituição policial hoje é fortemente militarizada56.
Guillermo O’Donnell fundamenta essa questão ao caracterizar o Estado
Burocrático-Autoritário7. Para o autor, o Estado não age de cima, alheio à sociedade:
ele é parte da sociedade e, como tal, age dentro do seu campo de forças, garantindo e
organizando as relações sociais capitalistas de dominação e exploração. Faz-se como
representante do interesse geral, mas esse mostra-se como um caráter de ficção, uma
vez que tende a assegurar tais relações visando interesses de setores particulares.
O’Donnell utiliza-se do conceito de microdespotismo para a compreensão do
funcionamento do Estado Burocrático-Autoritário no âmbito microsocial: o
autoritarismo de Estado penetra através de práticas pontuais no espaço social, sob o
discurso hegemônico da ordem, da autoridade e do paternalismo. As relações sociais
3 Guillermo O’Donnell, um dos maiores estudiosos sobre o processo de transição democrática na AméricaLatina, aponta as novas democracias como “débeis, institucionalmente pobres e até agora incapazes dealiviar, para não dizer resolver, as enormes injustiças e desigualdades que vêm historicamente de longe eque os respectivos regimes burocrático-autoritários, que promoveram ou não algum crescimentoeconômico, só as tornaram mais agudas.” In: PINHEIRO, Paulo Sérgio. Transições Cum Autoritarismo. In:Revista Novos Estudos, CEBRAP, Nº 31, Outubro de 1991, pp. 189.
4 Ibid., pp. 192.
5 Para Guillermo O’Donnell, a transição definitiva pode nunca ocorrer: “novas democracias podemregredir para o regime autoritário, ou elas podem atolar-se numa situação frágil e incerta. Essa situaçãopode ser duradoura, pode inclusive não abrir caminhos para a realização de formais maisinstitucionalizadas de democracia.” O’Donnell, Guillermo. Democracia delegativa? In: Revista NovosEstudos, CEBRAP, Nº 31, outubro 1991, pp. 32.
6 Durante a ditadura militar (1964-1985), o Ministério do Exército realizava o controle e a coordenaçãonacional das Polícias Militares.
7 O’Donnell, Guillermo. Análise do Autoritarismo Burocrático. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990.
arcaicas legadas dos tempos coloniais, que remetem a uma estrutura social típica que
se atualiza de acordo com as transformações, perpetuam-se. Ou seja, não somente
articulações institucionais do Estado reproduzem práticas autoritárias, como essas se
observam inseridas e consolidadas no aparelho social, o que justificaria a atuação do
Estado dentro do campo de forças da sociedade8.
O autoritarismo do poder estatal em O’Donnell segue o conceito de poder
simbólico elaborado pelo sociológo Pierre Bourdieu: visando assegurar certas relações
sociais e interesses particulares sob a égide do interesse comum, o Estado, detentor
do monopólio do poder simbólico, ergue-se como reprodutor da violência simbólica
sobre as suas instituições e sobre a sociedade em geral. As classes dominantes
dependem da violência física aberta; além da violência como recurso comum, a
violência ilegal contribui pra manutenção das formas de dominação.
Para alcançar a fundo a concepção do Estado na qual aqui se pretende focar,
faz-se imprescindível destacar a análise elaborada por Bourdieu na sua obra, bem
como os fundamentos que sustentam todo o seu trabalho teórico: os conceitos de
violência simbólica, poder simbólico e a lógica das diversas formas de capital
simbólico, bem como os seus reflexos na estrutura social9.
Segundo o autor, não é possível compreender as relações de força
fundamentais da ordem social sem se abranger a dimensão simbólica dessas
relações. É certo que, se as relações sociais fossem apenas baseadas em força física
ou econômica, elas poderiam ser mais facilmente transformadas. No entanto, essas
relações são permeadas de uma violência simbólica invisível, que só consegue existir
no mundo social justamente pelo fato de ignorar-se a sua existência, e que subsiste
com a cumplicidade de quem a ela se submete, de forma inconsciente.
As relações de força, destarte, são relações de comunicação: Bourdieu mostra
que não há incompatibilidade entre as visões fisicalista e simbólica do mundo social,
pois as relações de força mais brutais são também simbólicas. De fato, as formas
simbólicas são princípios de construção da realidade social. São essas formas
simbólicas que são basilares ao papel das instituições na manutenção da ordem social
8 Para entender o micropoder das relações sociais e das instituições autoritárias podemos nos remeter aFoucault: "Trata-se [...] de captar o poder em suas extremidades, lá onde ele se torna capilar; captar opoder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que,ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em instituições,corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos de intervenção material, eventualmente violentos."FOUCAULT, Michel. Soberania e Disciplina. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979,p. 182.
9 Ver BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
e, consequentemente, ao discurso que legitima a força e o poder policial, braço
armado do Estado.
É preciso pontuar a dificuldade dessa noção de Estado, ou seja, qual é
propriamente o seu significado, e as desconstruções que requer: a ideia primordial é a
de que não passa de uma fictio juris. O Estado, portanto, seria um objeto impensável,
uma entidade teológica, sustentada por uma fé irredutível; uma realidade ilusória e,
contraditoriamente, bem fundamentada. É amparado por uma crença quase mágica:
penetra o consciente e o inconsciente dos cidadãos, sendo por eles sustentados e
fazendo parte deles mesmos. Ou seja, o Estado tem como efeito a crença de que não
há um problema do Estado; seus atos são dotados de validade, legalidade e
legitimidade irrefutáveis.
Nesse sentido, mostra-se o quão espantoso é o que é justamente banalizado
pelo senso comum, no caso, o fato de ser o poder estatal (e consequentemente a sua
legitimidade) inquestionável. “Tentar pensar o Estado é expor-se a assumir um
pensamento de Estado, a aplicar ao Estado categorias de pensamento produzidas e
garantidas pelo Estado e, portanto, a não compreender a verdade mais fundamental
do Estado.”10
Faz-se preciso, então, enfrentar a dificuldade da ruptura com o pensamento de
Estado e colocar em questão todos os pressupostos e pré-construções inscritas na
realidade a ser analisada e no próprio pensamento de quem trata do Estado. Trata-se
de semear a dúvida, de atacar toda espécie de conformismo e de estruturas
fundamentais de pensamento. Essa ideia abre espaço para pensar o Estado de forma
subjetiva: apesar de ter sido aos poucos objetivado, a sua constituição remete a
fatores provenientes de estruturas lógicas socialmente construídas, isto é, instituídas.
Daí a necessidade de questionar o poder que o sustenta, o seu fundamento e, por
conseguinte, os seus atos e atores.
Pode-se afirmar, desse modo, que o que sustenta as relações de força físicas,
militares ou econômicas – considerando-se a polícia como braço armado do Estado e
o Estado como representante dos interesses das classes dominantes e do poder
econômico – é justamente a sua dimensão simbólica. A visão soberana do Estado
como possuidor do monopólio da força física apenas existe pois este é tido como
único detentor da violência simbólica legítima, de modo que ao Estado é resguardado
todo o poder e o domínio, que são irredutíveis, sobre a realidade.
10 BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 2007, pp. 91.
Quando se fala do objeto Estado, para Bourdieu, é necessário acima de tudo
apurá-lo como objeto quase não identificável, isso porque penetra toda a estrutura
social, está presente nas microcenas, de forma complexa e particular. Essa presença
só é possível pela força e pela legitimidade que adquiriu - ou impôs - através da
acumulação e concentração do poder simbólico. Para compreender o reflexo dessa
lógica no processo do desenvolvimento do Estado é preciso entender a acumulação
inicial de diversas formas de capital, quais sejam, o capital econômico, o capital
cultural (de informação), o capital social e o capital simbólico. Essas espécies de
capital têm crucial importância na constituição do poder simbólico estatal. A
concentração do capital específico que está na origem do Estado, o capital simbólico,
se observa através das estruturas cognitivas que estabelecem relações de sentido de
modo a atribuir valor a esse capital determinado. Nas palavras do autor:
Por capital simbólico entendo essa forma de capital que nasce
da relação entre uma espécie qualquer de capital e agentes
socializados de maneira a conhecer e reconhecer essa espécie
de capital. O capital simbólico, como a palavra diz, situa-se na
ordem do conhecimento e do reconhecimento. Para explicar,
pego um exemplo simples que expus longamente nos anos
anteriores: a força, assim como Pascal a analisa. A força age
como tal, pelo constrangimento físico, mas também pela
representação que aqueles que a sofrem têm dessa força; a
força mais bruta e a mais brutal obtêm uma forma de
reconhecimento que vai além da simples submissão ao efeito
físico da força. Mesmo no caso mais extremo em que a espécie
de capital é a mais próxima da lógica do mundo físico, não há
efeito físico que não se acompanhe, no mundo humano, de um
efeito simbólico. A estranheza da lógica das ações humanas
faz com que a força bruta não seja jamais apenas força bruta:
ela exerce uma força de sedução, de persuasão, que decorre
do fato de que consegue obter certa forma de
reconhecimento.11
O capital simbólico, desse modo, acompanha as mais diversas formas de
capital a elas atribuindo um reconhecimento pela sua própria essência: o valor
econômico, o valor cultural, o valor social (dos dominantes nas relações de poder), etc.
11 BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, pp.259.
É a forma que adquire o capital quando é observado através das categorias de
percepção (julgamento, valorização), resultado da incorporação das divisões ou das
oposições inscritas na distribuição desse tipo de capital. Ou seja, por capital simbólico
entende-se essa forma de capital que tem origem na relação entre uma espécie de
capital e agentes socializados de modo a atribuir um valor, um reconhecimento a essa
espécie de capital.
Por conseguinte, determinados sujeitos detém mais capital simbólico que
outros e, portanto, impõem a violência e o poder simbólicos sobre os demais. O
processo de concentração do capital, por sua vez, tem origem na autonomização de
um espaço no qual se estabelece uma razão de Estado - detentor máximo do capital
simbólico - de modo que as várias dimensões do capital unem-se, constituindo-se o
monopólio estatal fundamentado na universalização.
Assim, o Estado seria detentor de uma espécie de meta capital, específica e
propriamente estatal, que concentra um campo de poder em cujo espaço os
detentores dos diferentes tipos de capital lutam pelo seu domínio; é uma espécie de
“banco central de capital simbólico”, segundo Bourdieu. Nessa luta, as classes
dominantes vencem e têm como representantes de seus interesses o Estado e a
instituição policial, que atuam sob o discurso fictício da ordem pública e do interesse
geral, legitimando a imposição da violência simbólica e da força física.
Levando tal premissa em consideração, pode-se entender que o Estado é um
espaço de estruturas mentais e formas de classificação como instrumentos de
controle. Como forma de manter coesa a ordem que impõe ao mundo social através
da totalização, o Estado nomeia o inimigo comum: o que foge à “ordem” pública e ao
interesse “geral”. Em outras palavras, o Estado funciona como agente mantenedor de
relações de força que impedem a emergência das classes dominadas enquanto
sujeitos políticos diferenciados e soberanos. As classes dominadas representam o
perigo que fere os interesses da ordem, e por tal motivo devem ser controladas dentro
da “lógica” do interesse público e do risco coletivo.
Desse modo, o poder policial constitui-se como aparelho repressivo que se
utiliza de uma tecnologia do poder para assegurar relações sociais de dominação e
exploração, bem como diferenças de classe legadas de tempos coloniais, que por sua
vez detêm o peso da herança da escravidão. Se nos regimes de exceção o inimigo
comum era o dissidente político, nas novas democracias, sumamente elitistas, este
inimigo é a população pobre e negra, a quem sempre foram negadas a tutela estatal e
a garantia de direitos.
A manutenção da ordem: contradições do papel social da polícia e as falhas das
organizações policiais
Como foi visto, o monopólio da violência legítima – que só foi alcançado com a
concentração de capital simbólico – convalida a coerção social e protege o sistema
estatal de transgressões e resistências; é o domínio inquestionável desse monopólio
que legitima o controle policial como forma de garantir a ordem no mundo social.
No entanto, aderindo à proposta de Bourdieu de pensar o Estado fora do
pensamento de Estado, compreendendo a sua verdade essencial, cabe aqui
questionar: o poder policial atua conforme os princípios e dentro dos limites do Estado
Democrático de Direito no Brasil?
É certo que as estruturas autoritárias remanescentes do período ditatorial ainda
permeiam a instituição policial: repressão e medo permanecem como modus operandi
dos estados democráticos. No entanto, resta-nos questionar até que ponto pode-se
legitimar o monopólio da força física por parte da polícia, uma vez que a própria se
fundamenta sobre práticas ilegais12.
O Estado, fazendo-se representar pelas classes dominantes, utiliza-se da
violência física aberta para a manutenção das formas de dominação. Entretanto, não
apenas a violência como recurso comum respaldado pela sociedade civil, mas
também a violência ilegal assegura a sustentação das relações de poder. As práticas
do Estado, do aparelho repressivo e do poder dominante sempre foram permeadas de
ilegalidade, e a presença das garantias constitucionais não alterou esse fato:
sobrevivem, portanto, a toda forma de regime, autoritário ou constitucional.
Atualmente, mesmo com o fim do estado de exceção13 e a consolidação do
Estado Democrático de Direito, o autoritarismo da corporação policial, bem como seus
contornos e limitações, tem continuação sob operações rotineiras, condutas arbitrárias
e ilegais - resquícios refletidos e incutidos do estado burocrático. O legado autoritário
atualiza-se e transforma-se, mas, inevitavelmente, permanece. Como bem observou
O’Donnell, as resistências autoritárias que asseguram as formas de dominação
independem de regime político.
12 “O poder simbólico é concentrado e, ao mesmo tempo, espalha-se e penetra em toda a sociedade(metáfora da fonte, do jorro). A tirania sobrevém quando esse poder central acaba por perder o controlede si mesmo.” BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, pp. 293.
As práticas policiais, assim, são herdadas de um ranço colonial e refletem o
racismo institucional vinculado aos atos estatais. O patrimonialismo, o clientelismo, o
paternalismo e o favoritismo que corrompem o espaço público – já que esse satisfaz
os interesses das classes dominantes - refletem-se na instituição policial. Agindo sob
um poder totalizante, a polícia transmite a lógica estatal da criminalização da pobreza
e do extermínio da população negra, na qual o discurso da “ordem” transforma-se no
do aniquilamento e genocídio dessa parcela da população. Com relação às formas de
classificação instituídas pelo Estado e seguidas pela polícia como meio de efetivar a
“ordem” desejada, Maria Stela Porto afirma:
[...] a discriminação seletiva das características que podem
estar associadas a esses indivíduos (sujeitos e suspeitos de
crimes) (cor, roupas, marcas corporais, local de residência,
modo de andar, origem social, etc.), baseadas seja em “regras
de experiência”, que alimentam os “roteiros típicos” seguidos
pela polícia, seja em estereótipos estabilizados em “tipos
sociais”, é apresentada e justificada como um critério
preventivo de controle social.14
Assim, configura-se um corpo hierarquizado, um habitus de polícia coeso e
bem disciplinado, sustentado por um senso comum e pelo respaldo da parcela
dominante da sociedade civil. Por meio da realização de procedimentos codificados,
os atos excessivos da polícia ou do guarda prisional fazem parte de uma hierarquia e
cadeia de legitimidade, e por esse motivo não são considerados atos de violência
arbitrária. As funções dos diferentes agentes existem numa complementaridade
funcional dinâmica.
13 Giorgio Agamben problematiza o estado de exceção ao afirmar que o mesmo tornou-se permanente,uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos democráticos: fez-se paradigmade governo. Agamben denuncia a possível raiz comum entre democracia e totalitarismo, de modo acoexistirem num vínculo de dependência recíproca. “O estado de exceção, hoje, atingiu exatamente seumáximo desdobramento planetário. O aspecto normativo do direito pode ser, assim, impunementeeliminado e contestado por uma violência governamental que, ao ignorar no âmbito externo o direitointernacional e produzir no âmbito interno um estado de exceção permanente, pretende, no entanto, aindaaplicar o direito. Não se trata, naturalmente, de remeter o estado de exceção a seus limites temporal eespecialmente definidos para reafirmar o primado de uma norma e de direitos que, em última instância,têm nele o próprio fundamento. O retorno do estado de exceção efetivo em que vivemos ao estado dedireito não é possível, pois o que está em questão agora são os próprios conceitos de ‘estado’ e de‘direito’.” AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011, pp.131.
14 PORTO, Maria Stela. Violência e representações sociais. In: DE LIMA, Renato Sérgio e RATTON,José Luiz. (orgs.). Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014.
Nesse jogo de interesses, a função social da polícia mostra-se profundamente
comprometida, o que nos põe a questionar a validade que lhe é conferida. A
corporação policial, a qual é resguardada o dever de zelar pela ordem pública, pela
incolumidade das pessoas e do patrimônio e de combater a ilegalidade15, é quem
primeiro viola as normas constitucionais no exercício dos atributos de sua própria
função.
A violação dos Direitos Humanos por parte do Estado e da polícia mostra-se
rotineiramente. Na maior parte das vezes, não possui nem mesmo o pretexto da
culpabilidade das vítimas, uma vez que, em sua maioria, são absolutamente
inocentes. A arbitrariedade e o terror imperam nas operações policiais; prova
irrefutável disso são os altos índices de letalidade policial, de incursões deliberadas
nas favelas, da prática de tortura, de desaparecimentos forçados, entre outros crimes.
Um dos exemplos mais recentes e significativos é o do caso Amarildo de
Souza16. Em julho de 2013, o ajudante de pedreiro foi perseguido por policiais da
Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha, no Rio de Janeiro, que consideravam-no
detentor de informações sobre o porte de armas e drogas por traficantes. Amarildo foi
levado a uma das bases da UPP e desde então encontra-se desaparecido.
Investigações concluíram que houve a prática de tortura por meio de descargas
elétricas, sufocamento com sacos plásticos e afogamento num balde durante quase
duas horas. Vinte e cinco policiais militares foram denunciados por tortura seguida de
morte, dos quais dezesseis também respondem por ocultação de cadáver.
Outro exemplo é o do caso Cláudia Silva Ferreira17, ocorrido em 2014, na
cidade do Rio de Janeiro. A auxiliar de limpeza levou dois tiros de policiais por suspeita
de envolvimento com o tráfico de drogas; após ser baleada, foi levada pelos PMs para
o hospital e, durante o percurso, teve seu corpo dilacerado ao ser arrastada por
trezentos e cinquenta metros por uma viatura policial.
Nesse casos, e em muitos outros, os princípios da presunção de inocência, do
devido processo legal, do respeito aos Direitos Humanos e às normas constitucionais
do Estado Democrático de Direito foram por completo ignorados pelos policiais
criminosos.
15 Artº 144 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
16 Fonte: Globo. Disponível em:< http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/06/pms-do-bope-podem-falar-sobre-caso-amarildo-esta-semana.html> Acesso em: 11 de Outubro de 2015.
17 Fonte: Globo. Disponível em: < http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/03/arrastada-por-carro-da-pm-do-rio-foi-morta-por-tiro-diz-atestado.html> Acesso em: 11 de Outubro de 2015.
Além dos casos pontuais, os crimes em massa cometidos pela polícia também
são desde sempre recorrentes: a Chacina de Acari (1990), o massacre do Carandiru
(1992), a chacina da Candelária e Vigário Geral (1993), o massacre de Eldorado dos
Carajás (1996), a Operação Castelinho (2002), a Chacina da Baixada Fluminense
(2005), a reação das forças de segurança aos ataques do PCC em São Paulo (2006),
além da mais recente Chacina de Osasco e Barueri (2015) são apenas alguns
exemplos.
A diferença na taxa de homicídios entre jovens brancos e negros no Brasil é
alarmante: segundo relatório da Anistia Internacional18, no ano de 2012, a taxa de
homicídios de jovens brancos no Recife foi de 13,9, enquanto que a de jovens negros
chegou a 185; em Maceió, as taxas foram de 24,3 e 327,6; em João Pessoa, de 14,4 e
313; e, em Belém, de 10,7 e 134,6. Segundo o mesmo relatório, apenas no estado do
Rio de Janeiro, entre 2005 e 2014, um total de 8.466 pessoas foram vítimas de
homicídios decorrentes de intervenção policial. Entre 2010 e 2013, esse mesmo tipo
de homicídio teve um total de 1.275 casos na cidade do Rio de Janeiro, dos quais
79,11% tinham pessoas negras como vítimas. Enquanto a taxa de homicídio de jovens
brancos caiu 26% entre 2002 e 2011, a morte de jovens negros por arma de fogo
aumentou 24%, no mesmo período. Além disso, existe uma tendência crescente dessa
mortalidade seletiva. Ou seja, as diferenças e desigualdades de cor, no que se refere à
vitimização, tendem a aumentar19.
A grande maioria dos homicídios contra os jovens negros são cometidos pelas
organizações policiais: policiais em serviço são responsáveis por boa parte do total de
mortes no Brasil. Além das execuções extrajudiciais por policiais em serviço ou no
sistema prisional, existem aquelas cometidas quando os mesmos não se encontram
em serviço, por esquadrões da morte, grupos de extermínio e milícias. Em 2007, em
São Paulo, os policiais em serviço mataram uma pessoa por dia. No Rio de Janeiro,
no mesmo período, os policiais em serviço foram responsáveis por quase 18% do
número total de mortes, matando cerca de três pessoas a cada dia20.
18 Dados fornecidos pelo relatório da Anistia Internacional “Você matou meu filho”, de 2015. Disponívelem: < https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2015/07/Voce-matou-meu-filho_Anistia-Internacional-2015.pdf> Acesso em: 11 de Outubro de 2015.
19 Dados fornecidos pelo Mapa da Violência 2013: homicídios e juventude no Brasil. Disponível em:<http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2013/mapa2013_homicidios_juventude.pdf > Acesso em: 11 deOutubro de 2015.
20 Dados do Relatório do Relator Especial de execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias dasNações Unidas. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/abc/onu/r_onu_philip_alston_2008.pdf> Acessoem: 11 de Outubro de 2015.
Além disso, a cor da pele é, de fato, o principal motivo de suspeição policial,
segundo eles próprios: de acordo com pesquisa realizada por Geová da Silva Barros21,
cerca de 65% dos policiais entrevistados admitiram que pretos e pardos são
priorizados na abordagem policial.
Os índices vão muito além dos aqui relatados, alertando para a crise profunda
no que diz respeito à efetivação, por parte do Estado, dos princípios do Estado
Democrático de Direito, por meio do aparelho repressivo policial.
Segundo Maria Stela Porto:
Além desses episódios de uso abusivo da força policial de
maior repercussão midiática, é importante ressaltar que tais
condutas não são excepcionais, tratando-se, em muitos
aspectos, de práticas constitutivas do modo pelo qual as forças
de segurança lidam com os desafios impostos pela
necessidade – e a sua incapacidade – de impor a lei e a ordem
nos marcos do Estado de Direito.
Não obstante as profundas mudanças experimentadas pela
sociedade brasileira nas últimas décadas e que, de alguma
forma, desorganizaram as relações tradicionais de comando e
autoridade e afetaram os modelos de legitimação da ordem
social, não é menos certo que o uso abusivo da força física
como forma de controle da ordem pública participa,
decisivamente, dos obstáculos que impedem o Estado de
deter, de maneira efetiva, o monopólio do poder de governar,
julgar e punir a violência.22
Pode-se dizer, portanto, que as organizações policiais valem-se do seu capital
simbólico, bem como da presunção de veracidade própria de sua função pública para
cometer, de forma deliberada, agressões físicas, incursões arbitrárias nas
comunidades, a prática de tortura, execuções sumárias, arbitrárias e extrajudiciais,
usando a força de forma excessiva e discricionária. A polícia, como braço armado da
21 Filtragem racial: a cor na seleção do suspeito. Disponível em:<http://revista.forumseguranca.org.br/index.php/rbsp/article/viewFile/31/29> Acesso em: 11 de Outubro de2015.
22 PORTO, Maria Stela. Violência e representações sociais. In: DE LIMA, Renato Sérgio e RATTON,José Luiz. (orgs.). Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014.
violência simbólica, utiliza-se do discurso da ordem e da justiça para cometerem
ilegalidades.
Como se viu, tais violações não se resumem apenas aos períodos de regime
de exceção legal, mas também aos regimes democráticos, por meio de um terrorismo
de Estado que alternou o alvo de suas arbitrariedades - antes cometidas contra
dissidentes políticos - para as classes dominadas, a camada pobre e negra da
população.
A esses fatos soma-se o fator da tolerância aos crimes cometidos por esses
agentes: a sistemática não investigação e consequente impunidade dos casos
registrados com designações genéricas, como autos de resistência, fazem com que
policiais militares usem este registro administrativo como forma de encobrir a prática
de execuções extrajudiciais2324.
Tal fato traz à tona as contradições do papel social da polícia e as falhas das
organizações policiais. Constituindo um corpo hierarquizado e agindo através de um
habitus coeso e bem disciplinado e de procedimentos codificados, a instituição policial
atua dentro de uma cadeia de legitimidade que deve ser questionada pela violência
arbitrária que lhe é característica. Não representa a sociedade como um todo, e
atende aos interesses de uma parcela dominante da população.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos afirmar, assim, que a continuidade de um autoritarismo burocrático
na estrutura social e no âmbito estatal mesmo após a transição democrática suscitou a
dificuldade de reformar a violência ilegal que domina a esfera da instituição policial,
que permanece sob condutas arbitrárias e excessivas.
23 Segundo a Anistia Internacional, do total de 220 registros de homicídios decorrentes de intervençãopolicial na cidade do Rio de Janeiro em 2011, até abril de 2015, mais de 80% dos casos permaneciamcom a investigação em aberto e apenas um deles foi denunciado à justiça pelo Ministério Público.Relatório da Anistia Internacional “Você matou meu filho”, de 2015. Disponível em: <https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2015/07/Voce-matou-meu-filho_Anistia-Internacional-2015.pdf>Acesso em: 11 de Outubro de 2015.
24 O Projeto de Lei nº 4.471/2012 cria procedimentos para garantir a investigação adequada de crimesde morte violenta ocorridos em ações com envolvimento de agentes do Estado, no entanto, ainda não foiaprovado. Da mesma forma, ainda não foram incorporados no ordenamento os princípios e os parâmetrosinternacionais sobre o uso da força, em particular os previstos no “Código de Conduta da ONU para osFuncionários Responsáveis pela Aplicação da Lei” e nos “Princípios Básicos da ONU sobre o Uso daForça e de Armas de Fogo por Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei”.
. A tradição sociocultural e política do enorme hiato existente entre as classes
reflete o vigor das relações sociais arcaicas ainda existentes. Acaba por definir, por
consequência, uma democracia elitista que existe para atender aos interesses de uma
parcela dominante da sociedade e que fundamenta a violência simbólica e o
monopólio da força física que exerce através do discurso fictício da ordem e do
interesse comum.
As ilegalidades cometidas por agentes da corporação policial dizem respeito a
um habitus funcional que expõe o profundo racismo institucional incutido na estrutura
estatal: o poder simbólico policial serve a interesses de grupos particulares e elege
como “inimigo público” a população negra, principal alvo de arbitrariedades. A
criminalização da pobreza por meio de um policiamento preventivo e ostensivo,
incursões aleatórias nas comunidades, torturas e maus-tratos como forma de obter
informações e assassinatos frequentes cometidos por policiais nos põem a questionar
o efetivo papel social da polícia.
Traduzindo as relações de força de dominação e exploração em detrimento da
cidadania política efetiva e da soberania popular, o aparelho repressivo do Estado
viola o próprio Estado de Direito, os Direitos Fundamentais resguardados pela
Constituição e o devido processo legal.
Faz-se necessário, portanto, ir além das macrocenas para entender a falência
do Estado: crise que se revela como do Estado na sociedade, repercutindo a nível de
suas instituições, mais profundamente, a instituição policial.
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