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ANDHEP – Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós- Graduação Núcleo de Estudos do Crime e da Pena da Escola de Direito da FGV I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM PRISÃO Grupo de Trabalho 3: Direitos Humanos, Empresas e Prisão MÉTODO APAC: UMA SAÍDA PARA O CAOS DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO Autor: Marcos Ferreira da Silva Comissão de Direito do Terceiro Setor – OAB/SP 02/10/2015 Faculdade de Direito da USP – São Paulo/SP

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ANDHEP – Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-

Graduação

Núcleo de Estudos do Crime e da Pena da Escola de Direito da FGV

I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISA EM PRISÃO

Grupo de Trabalho 3: Direitos Humanos, Empresas e Prisão

MÉTODO APAC: UMA SAÍDA PARA O CAOS DO SISTEMA PENITENCIÁRIO

BRASILEIRO

Autor: Marcos Ferreira da Silva

Comissão de Direito do Terceiro Setor – OAB/SP

02/10/2015 Faculdade de Direito da USP – São Paulo/SP

MÉTODO APAC: UMA SAÍDA PARA O CAOS DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO 1. INTRODUÇÃO

Inicialmente cumpre ressaltar breves considerações acerca de algumas questões

voltadas ao sistema penitenciário brasileiro, direitos humanos e o Terceiro Setor. Qual a

relação que existe entre essas três áreas?

O sistema penitenciário brasileiro sabidamente é um grande violador dos direitos

humanos e essa situação se arrasta desde seus primórdios até os dias atuais. Se uma das

funções da pena é a ressocialização do condenado, essa função não é cumprida, na medida

em que os índices de reincidência sempre foram altíssimos – superior a 75%, segundo o

Conselho Nacional de Justiça e o Departamento Penitenciário Nacional – e isso é um dos

fatos que explica a superencarceramento no Brasil.

Hoje ostentamos o 4º lugar mundial em número de presos, somente ficando atrás de

Estados Unidos, China e Russia. Se considerarmos os presos em regime domiciliar,

passamos para o 3º lugar.

Se um estabelecimento prisional é o local onde o condenado vai cumprir a sua pena

(privativa de liberdade), esse local também deve proporcionar todas as condições para que

esse condenado se recupere, se ressocialize, para quando for reinserido na sociedade não

volte a cometer crimes.

E, se estamos tratando da pena privativa de liberdade, esse direito – a liberdade –

deveria ser o único direito que deveria ser restringido aos condenados, mas o que vemos é

que vários outros direitos são violados, tais como a dignidade, o respeito, a salubridade,

segurança, o direito ao voto, direito ao trabalho e à educação, etc. São direitos humanos

que passam longe da população carcerária.

Alguns desses constrangimentos estendem-se aos seus familiares quando das

visitas, pois estes – principalmente as mulheres – devem se submeter à humilhante revista

íntima. Todas essas violações só pioram a situação do encarcerado.

Em suma, o sistema penitenciário brasileiro, tal como se encontra é um violador

contumaz dos direitos humanos e esse fato, como já referido alhures, torna-se uma das

causas do alto índice de reincidência dentro desse combalido sistema.

Por outro lado o Terceiro Setor – assim entendido todas aquelas organizações da

sociedade civil, sem fins lucrativos ou econômicos – vem ocupando, cada dia mais, um

papel fundamental e de destaque dentro da sociedade, prestando relevantíssimos serviços,

especialmente nas áreas da assistência social, saúde, educação, cultura, direitos humanos

e meio ambiente.

O Terceiro Setor hodiernamente vem se profissionalizando e especializando cada

vez mais para fazer frente às crescentes demandas pelos seus serviços de relevante

utilidade pública.

Cada vez mais vemos as organizações da sociedade civil ocupando com maestria os

espaços que outrora era ocupado pelo Estado e, com isso, vemos relevantes melhoras nos

resultados.

Exemplo dessa enorme diferença nos resultados é na área da saúde, quando

entramos num hospital ou posto de saúde gerido pelo poder público e em outros geridos por

uma dessas organizações.

A Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2.014, prevista para entrar em vigor no início de

2.016, traz importantes mudanças nas parcerias entre o Poder Público e as organizações da

sociedade civil, trazendo mais transparência no trato com o dinheiro público e com as

prestações de serviços.

Regras mais claras e maior fiscalização haverá nos contratos envolvendo os órgãos

públicos e as organizações e isso, sem dúvida, irá levar à uma maior seletividade das

organizações, pois aquelas que não se profissionalizarem e especializarem, tanto nas áreas

de gestão e controle, com atenção especial na parte contábil e jurídica, quanto na parte

operacional, através da capacitação permanente dos profissionais envolvidos nas suas

atividades, irão desaparecer com o tempo.

Isso é bom e a sociedade ganhará em termos de qualidade dos serviços prestados,

ao passo em que a máquina pública diminuirá, incumbindo-lhe a fiscalização dos contratos

dessas parcerias e, consequentemente, os desvios de dinheiro, a corrupção, o nepotismo

irá diminuir e por que não desaparecer com o tempo.

O protagonismo do Terceiro Setor tem crescido a passos largos ultimamente, na

medida em que vemos os órgãos públicos incapazes de prestarem serviços dignos diante

das crescentes demandas da sociedade.

É nesse contexto – de um sistema penitenciário público, como grande violador dos

direitos humanos e com índice de reincidência em torno de 80% e a importância e o

protagonismo da sociedade civil, buscando melhores soluções para uma vida mais justa e

fraterna – que passaremos a apresentar uma alternativa eficaz na área da execução penal:

trata-se do Método APAC que existe há mais de 40 anos no Brasil, com baixíssimo índice de

reincidência (em torno de 10%) e está muito presente em Minas Gerais e já foi “exportado”

para aproximadamente 30 países.

Especialmente por esses três fatores: longo tempo de experiência comprovadamente

com grande sucesso, baixíssimo índice de reincidência e a presença em tantos países é que

podemos perceber a importância que devemos dar a esse Método APAC.

2. APAC - ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS

A Associação de Proteção e Assistência aos Condenados é uma organização da

sociedade civil, sem fins lucrativos ou econômicos, que atua nas atividades de execução

penal, fazendo cumprir as disposições da sentença criminal e recuperando os condenados

para uma sadia e digna vida após a reinserção na sociedade.

O trabalho da APAC é baseado em método de valorização humana, para oferecer ao

condenado condições de se recuperar. Busca também, em uma perspectiva mais ampla, a

proteção da sociedade, a promoção da Justiça e o socorro às vítimas.

Atua em parceria com a comunidade, compartilhando responsabilidades na

administração de seus Centros de Reintegração Social com os próprios presos, buscando a

todo custo a aplicação literal da Lei de Execução Penal, sem a presença de armas e

agentes de segurança.

A metodologia APAC, criada por inspiração do advogado Dr. Mario Ottoboni,

caracteriza-se pelo compartilhamento de responsabilidade no cumprimento da pena

privativa de liberdade, com disciplina rígida, respeito ao próximo, ordem, trabalho,

espiritualismo e envolvimento da família do sentenciado. Tem alcançado excelentes

resultados com índices mínimos de reincidência e custo de construção e manutenção bem

inferior às demais unidades prisionais.

As APAC's são subordinadas à Fraternidade Brasileira de Assistência aos

Condenados (FBAC) – órgão filiado a “Prison Fellowship International” que atua como

entidade consultiva para assuntos penitenciários junto à Organização das Nações Unidas

(ONU).

O fundamento legal para que uma organização da sociedade civil (privada, portanto)

possa participar das atividades de execução penal encontra-se, de forma expressa, no

artigo 4º da Lei de Execução Penal - Lei nº 7.210/84, o qual transcrevo a seguir: “o Estado

deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da

medida de segurança.” (grifos nossos)

Note que o verbo está na forma imperativa, onde o legislador impôs ao Estado uma

obrigação, qual seja, a de recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de

execução da pena e da medida de segurança.

Somente envolvendo-se a comunidade nas atividades de execução penal é que se

conseguirá diminuir o estigma que os egressos carregam consigo. Na contramão desse

entendimento estão os programas policialescos da televisão, que apenas pregam o caos e

reforçam sempre o preconceito com a população carcerária, sem pensar que essas pessoas

um dia vão alcançar a liberdade e precisam de uma nova chance na sociedade.

O envolvimento da comunidade, assim entendida a sociedade civil organizada

exerce papel fundamental na ressocialização dos privados de liberdade, diminuindo o

estigma dos privados de liberdade e, consequentemente, aumentando enormemente as

chances de uma reinserção digna na sociedade, de forma a não reincidirem na vida

criminosa.

Aliás, esse é o primeiro passo na implantação de uma unidade da APAC em uma

comarca. Uma APAC não é implantada em uma determinada comarca sem antes haver

várias audiências públicas esclarecendo e conscientizando a comunidade local sobre a

finalidade, funcionamento, objetivos, etc, do trabalho que pretender realizar naquela

comarca.

Somente após essas audiências públicas – com a conscientização e concordância

da comunidade local – é que se instala uma unidade da APAC numa comarca. Tais

esclarecimentos e aceitação por parte da comunidade se traduz numa convivência

harmônica, saldável e consciente da cidadania que todos devemos exercer, pois os privados

de liberdade saíram do seio da sociedade e para lá voltará um dia.

2.1. História do surgimento das APACs no Brasil e no Mundo

A primeira APAC surgiu em 18 de novembro de 1972, na cidade de São José dos

Campos, interior de São Paulo, idealizada pelo advogado e jornalista paulista Mário Ottoboni

e um grupo de voluntários cristãos que se denominava “Amando o Próximo, Amarás a

Cristo” (APAC). A ideia de exercer um apostolado junto aos presidiários surgiu da

participação de um Cursilho de Cristandade no início do mesmo ano, onde passaram a

visitar regularmente a Cadeia Pública de São José dos Campos após obter a permissão da

autoridade policial.

Tudo era empírico e objetivava tão somente resolver o problema da

Comarca, cuja população vivia sobressaltada com as constantes

fugas, rebeliões e violências verificadas naquele estabelecimento

prisional. O grupo não tinha parâmetros nem modelos a serem

seguidos. Muito menos experiência com o mundo do crime, das

drogas e das prisões. Mesmo assim, pacientemente foram sendo

vencidas as barreiras que surgiam no caminho. (FRATERNIDADE

BRASILEIRA DE ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS-FBAC, acesso

em 04/09/15).

Em 1986, a APAC se filiou a Prison Fellowship Internacional – PFI, órgão consultivo

da Organização das Nações Unidas - ONU para assuntos penitenciários. A partir dessa

data, o método passou a ser divulgado mundialmente por meio de congressos e seminários.

Existem atualmente 30 APACs espalhadas pelos seguintes países: Estados Unidos,

Chile, Latvia, Nova Zelândia, Equador, Costa Rica, Modolva, Antigua e Barbuda, Austrália,

Belarus, Bulgária, Canadá, Kyrgyzstan, Lituânia, México, Nigéria, Paquistão, Rússia,

Senegal, Uganda, Ucrânia, Uruguai, Zimbabwe, Alemanha, Noruega, Singapura, Guiné,

Bolívia, Hungria e Colômbia.

2.2. O Método APAC e sua tríplice finalidade

Segundo Ottoboni (1997), a APAC possui uma tríplice finalidade, a saber:

● É órgão auxiliar da Justiça, subordinado ao Juiz das Execuções, destinado a

preparar o preso para voltar ao convívio social. Aplica metodologia própria, cumprindo,

assim, a finalidade pedagógica da pena.

● Protege a sociedade, devolvendo ao seu convívio apenas homens em condições

de respeitá-la. Fiscaliza o cumprimento da pena e opina sobre a conveniência da concessão

de benefícios e favores penitenciários, bem como sobre sua revogação.

● É órgão de proteção aos condenados, no que concerne aos direitos humanos e de

assistência, na forma prevista em Lei, desenvolvendo um trabalho que se estende, à medida

do possível, aos familiares, eliminando a fonte geradora de novos criminosos e evitando que

os rigores da pena extrapolem a pessoa do condenado.

2.3. Porque o método APAC é inovador?

Algumas diferenças entre o sistema penitenciário comum e a APAC fazem desta uma

metodologia inovadora e eficaz, capaz de dissipar as ‘mazelas das prisões’, ressocializar os

condenados e inseri-los na sociedade.

Porque o Método Apac é inovador:

- Todos os recuperandos são chamados pelo nome, valorizando o indivíduo;

- Individualização da pena;

- A comunidade local participa efetivamente, através do voluntariado;

- É o único estabelecimento prisional que oferece os três regimes penais: fechado,

semiaberto e aberto com instalações independentes e apropriadas às atividades

desenvolvidas;

- Não há presença de policiais e agentes penitenciários, e as chaves do presídio ficam em

poder dos próprios recuperandos;

- Ausência de armas;

- A religião é fator essencial da recuperação;

- A valorização humana é a base da recuperação, promovendo o reencontro do recuperando

com ele mesmo;

- Os recuperandos têm assistência espiritual, médica, psicológica e jurídica prestada pela

comunidade;

- Além de frequentarem cursos supletivos e profissionais, os recuperandos praticam

trabalhos laborterápicos no regime fechado; no regime semiaberto cuida-se da mão de obra

especializada (oficinas profissionalizantes instaladas dentro dos Centros de Reintegração);

no regime aberto, o trabalho tem o enfoque da inserção social, pois, o recuperando trabalha

fora dos muros do Centro de Reintegração prestando serviços à comunidade;

- Oferecem assistência à família do recuperando e à vítima ou seus familiares;

- Há um número menor de recuperandos juntos, evitando formação de quadrilhas,

subjugação dos mais fracos, pederastia, tráfico de drogas, indisciplina, violência e

corrupção;

- A escolta dos recuperandos é realizada pelos voluntários da Apac.

Como destacado acima, nos Centros de Reintegração Social não há agentes

policiais ou agentes penitenciários, sendo administrado por funcionários e voluntários sem

armas. Os reeducandos são co-responsáveis pela sua recuperação, organizando-se através

dos Conselhos de Sinceridade e de Solidariedade (CSS), um para cada regime, e por

coordenadores de cela. Os Conselhos cuidam da administração, limpeza, manutenção,

disciplina e segurança. Problemas internos de disciplina são resolvidos pelos próprios

reeducandos, pelos CSS e pela direção.

3. ELEMENTOS FUNDAMENTAIS PARA O DESENVOLVIMENTO DO MÉTODO APAC

Todas as APACs criadas devem seguir uma mesma metodologia. Para que o

trabalho funcione de fato, é necessário que todos os 12 elementos fundamentais sejam

cumpridos, como salienta Ottoboni (2001):

São 12 os elementos fundamentais do Método APAC, os quais

surgiram após exaustivos estudos e reflexões para que produzissem

os efeitos almejados. É importante destacar que a observância de

todos eles na aplicação da metodologia é indispensável, pois é no

conjunto harmonioso de todos eles que encontraremos respostas

positivas. Não se deve procurar executar este ou aquele item dos

elementos fundamentais, mas preparar a equipe de modo

suficientemente adequado para que nada falhe na aplicação do

Método. (OTTOBONI, 2001, p.63).

3.1 – Participação da Comunidade

Para que o método apaqueano seja eficaz é de suma importância a participação da

sociedade. A APAC desenvolve ações que possibilitem à comunidade conhecer o

funcionamento e metodologia aplicada, como o curso de formação de voluntários,

seminários, bem como parcerias com órgãos públicos e sociais. Acredita-se que o

acompanhamento da comunidade no processo de recuperação, atuando de forma

acolhedora e sem discriminações é fundamental para que o recuperando possa se reinserir

na sociedade e não cometer novos delitos.

3.2 – Recuperando ajudando o recuperando

O ser humano nasceu para viver em comunidade. Por essa razão, existe a imperiosa

necessidade do preso ajudar o outro preso em tudo o que for possível, para que o respeito

se estabeleça, promovendo a harmonia do ambiente. É por esse mecanismo que o

recuperando aprende a respeitar o semelhante.

Por meio da representação de cela e da constituição do CSS – Conselho de

Sinceridade e Solidariedade, composto tão somente de recuperandos, busca-se a

cooperação de todos para a melhoria da segurança do presídio e para as soluções práticas,

simples e econômicas dos problemas e anseios da população prisional, mantendo-se a

disciplina.

3.3 – Trabalho

O trabalho deve fazer parte do contexto e da proposta, mas não deve ser o único

elemento fundamental, pois somente ele não é suficiente para recuperar o preso. Se não

houver reciclagem de valores, se não melhorar a autoestima, fazendo com que o cidadão

que cumpre pena se descubra e enxergue seus méritos, nada terá sentido. Assim afirma

Ottoboni (2001):

Existem muitas pessoas que pensam, de forma equivocada, que tão-

somente o trabalho recupera o ser humano. Mas isso não é verdade.

Se o fosse, muitos países do primeiro mundo, sobretudo aqueles que

instituíram as prisões privadas, teriam encontrado a solução para o

problema. Ocorre que, apesar das modernas instalações e do trabalho

efetivo realizado no interior dessas prisões, o índice de reincidência

continua indesejável, sinalizando que não está apenas no trabalho a

solução para a emenda do infrator. (OTTOBONI, 2001, p.69-70).

Os trabalhos realizados são proporcionais ao regime de cumprimento de pena,

conforme modelo adotado pela legislação federal.

No regime fechado, a APAC se preocupa tão somente com a recuperação do

sentenciado, promovendo a melhoria da autoimagem e fazendo aflorar os valores intrísecos

do ser humano através dos trabalhos laborterápicos (artesanais) e outros serviços

necessários ao funcionamento do método, todos voltados para ajudar o preso a se reabilitar.

No regime semiaberto, cuida-se da formação de mão-de-obra especializada, através

de oficinas profissionalizantes instaladas dentro dos Centros de Reintegração, padaria,

marcenaria, fábrica de blocos e de sandálias, dentre outros anteriormente citados no item

relacionado à estrutura física da APAC, respeitando-se a aptidão de cada recuperando.

No regime aberto, o trabalho tem o enfoque de inserção social, já que o recuperando

presta serviços à comunidade, trabalhando fora dos muros do Centro de Reintegração. Este

trabalho se dá através de parcerias estabelecidas entre a APAC e a algumas empresas do

município.

Existem ainda o acompanhamento dos que se encontram em livramento condicional

para os ex-recuperandos que manifestem necessidade.

3.4 – Religião

A religião está intrinsecamente ligada à perspectiva de recuperação do preso. Porém

deve ser pautada pela ética, levando à transformação moral do recuperando, conforme

elucida Ottoboni (2001):

A religião é fator primordial; a experiência de Deus de amar e ser

amado, é de uma importância incomensurável, desde que pautada

pela ética e dentro de um conjunto de propostas em que a reciclagem

dos próprios valores leve o recuperando a concluir que Deus é o

grande companheiro, o amigo que não falha. Essa experiência de vida

deve nascer espontaneamente no coração do recuperando para que

seja permanente e duradoura. (OTTOBONI, 2001, p.78).

Na APAC não há uma religião específica a ser seguida. Todas são respeitadas, de

modo que seja em prol do recuperando. São realizadas missas e cultos evangélicos pelo

menos uma vez por semana. Há também um coral formado por recuperandos que cantam

músicas ecumênicas durante os períodos destinados à oração dentro da APAC, bem como

em palestras e cursos realizados pela mesma, participando também de eventos externos

quando convidados, como asilos, fóruns, creches, dentre outros. Os recuperandos que

cumprem pena nos regimes aberto ou semi-aberto (aberto para o trabalho externo) tem

autorização para participarem das missas realizadas na paróquia do bairro onde está

instalada a APAC aos domingos, bem como os recuperandos evangélicos podem participar

dos cultos.

3.5 – Assistência Jurídica

Uma das maiores preocupações do condenado, se não a primeira, está relacionado

ao andamento de seu processo judicial.

O método APAC recomenda uma atenção especial a esse aspecto do

cumprimento da pena, advertindo que a assistência jurídica gratuita

deve restringir-se somente aos condenados que manifestarem adesão

à proposta apaqueana e revelarem bom aproveitamento. (PROJETO

NOVOS RUMOS NA EXECUÇÃO PENAL, 2009, p. 22-23).

A APAC conta com um setor responsável pela assistência jurídica onde todos os

pedidos de progressão de pena e demais dúvidas sobre o andamento processual são

elaborados por estagiários e repassados posteriormente para o advogado da instituição para

o parecer final.

3.6 – Assistência à Saúde

Segundo o Regulamento Disciplinar da APAC (2011, p.1) “a assistência à saúde será

de caráter preventivo e curativo, compreendendo o atendimento médico, farmacêutico,

odontológico e psicológico, dentro do Estabelecimento ou Instituição da comunidade,

quando o caso indicar sua necessidade”.

A APAC de Itaúna conta atualmente com um médico disponibilizado pela prefeitura

que atende uma vez por semana na instituição. Um enfermeiro também contratado pela

prefeitura, na qual trabalha em horário integral na instituição e repassa os medicamentos

para o recuperando responsável pela farmácia, para que o mesmo possa direcioná-los aos

recuperandos que precisarem ou fazem uso contínuo de medicação. A APAC também

possui um psicólogo que faz os atendimentos duas vezes por semana, onde o mesmo é

pago com recursos da própria instituição. Há também um consultório odontológico instalado

na APAC, onde já está sendo providenciada a contratação de um dentista.

Quando os recuperandos precisam de atendimento emergencial, ou mesmo para

controle de doenças através de consultas com especialistas e realização de exames

laboratoriais, há a escolta, sem policiais, feita geralmente por voluntários, ao pronto socorro

local.

“O atendimento a essas necessidades é vital, já que, se não atendidas, criam um

clima insuportável e extremamente violento, foco gerador de fugas, rebeliões e mortes”.

(PROJETO NOVOS RUMOS NA EXECUÇÃO PENAL, 2009, p.23).

3.7 – Valorização Humana

É a base do método APAC, uma vez que ele busca “colocar em primeiro lugar o ser

humano, e, nesse sentido, todo o trabalho é conduzido de modo a reformular a autoimagem

da pessoa que errou”. OTTOBONI (2001, p.85).

A educação e o estudo fazem parte deste contexto de valorização humana, uma vez

que, é grande o número de presos que têm deficiências neste aspecto. Na APAC as aulas

de valorização humana são ministradas toda semana em dias alternados por voluntários,

funcionários e convidados. Estas aulas geralmente são realizadas através de palestras e

dinâmicas

Além disso, a melhoria das condições físicas do presídio, alimentação balanceada e

de qualidade, chamar o recuperando pelo nome, assistência a saúde e a seus familiares e

demais serviços, são também formas de valorização humana.

3.8 – A família

“No método APAC, a família do recuperando é muito importante, por isto, existe a

necessidade da integração de seus familiares em todos os estágios da vida prisional, como

um dos pilares de recuperação do condenado.” (PROJETO NOVOS RUMOS NA

EXECUÇÃO PENAL, 2009, p.23).

“É preciso saber que preparar o recuperando convenientemente e depois devolvê-lo

à fonte que o gerou, sem transformá-la, com certeza vai dificultar a reinserção social

daquele que cumpriu pena. É necessário, pois, mudar também o ambiente do qual ele

emergiu.” (OTTOBONI, 2001, p. 87). Ainda segundo o autor, para atender a esse objetivo a

APAC desenvolve as seguintes atividades:

(...) o método APAC oferece aos familiares Jornadas de Libertação

com Cristo (retiros espirituais) e cursos regulares de Formação e

Valorização Humana, buscando ainda proporcionar todas as

facilidades possíveis para o estreitamento dos vínculos afetivos.

Nesse sentido, é permitido ao recuperando manter correspondência e

contatos telefônicos diários com os familiares. São ainda, incentivadas

visitas especiais no Dia das Crianças, no Dia dos Pais, no Dia das

Mães, no Natal, na Páscoa etc. Aos familiares é dada a orientação

sobre a forma de se relacionar com os recuperandos, evitando

assuntos que provoquem angústia, ansiedade e nervosismo, que

acabam sempre influindo na disciplina do preso. Além dessas, são

tomadas muitas outras medidas que buscam facilitar o encontro do

recuperando com sua família. (...) Quando a família se envolve e

participa da metodologia, é a primeira a colaborar para que não haja

rebeliões, fugas etc., ajudando a proteger a própria entidade e, como

consequência, a população prisional. (OTTOBONI, 2001, p. 87-88)

3.9 – O voluntário e sua formação

O trabalho apaqueano é baseado na gratuidade, no serviço ao próximo como

demonstração de amor e carinho para com o recuperando. A remuneração deve restringir-se

apenas e prudentemente às pessoas destacadas a trabalhar no setor administrativo.

Em sua preparação, o voluntário participa de um curso de estudos e

formação de voluntários, durante o qual há de desenvolver suas

aptidões para exercer esse ministério com eficácia e em observância

de um espírito estritamente comunitário. O curso normalmente é

desenvolvido em 42 aulas de uma hora e trinta minutos de duração

cada uma. (...) O importante é que todos tenham consciência de que o

trabalho a ser desenvolvido com os recuperandos foge dos padrões

normais, por se tratar de contatos com pessoas de múltiplos

problemas, não sendo plausível nem admissível improvisar voluntários

que não conheçam a realidade dos presos e do sistema penitenciário.

(OTTOBONI, 2001, p. 92-93).

A grande maioria dos recuperandos tem uma imagem negativa do pai, da mãe ou de

ambos ou mesmo daqueles que os substituíram em seu papel de amor. É nesse aspecto

que se insere os voluntários denominados de “casais padrinhos”, que têm a tarefa de ajudar

a refazer as imagens desfocadas e negativas dos pais e que acabaram se refletindo em sua

fragilidade moral. Somente quando o recuperando estiver em paz com estas imagens,

estará apto e seguro para retornar ao convívio da sociedade.

“Isso será possível mediante uma presença constante e

desinteressada, com a manifestação de gestos de amor, de carinho e

de confiança ao recuperando e sua família. (...) Quando estiver em

paz com essas imagens e os vínculos plenamente fortalecidos, estará

apto a voltar à liberdade. (...) Sempre de acordo com a experiência e a

disponibilidade, cada casal padrinho receberá um ou mais

recuperandos como afilhados e a escolha será por sorteio sem

nenhuma interferência dos interessados.” (OTTOBONI, 2001, p. 94-

95).

3.10 – Centro de Reintegração Social – CRS

A APAC criou o Centro de Reintegração Social e, nele, dois pavilhões – destinados

aos regimes, semiaberto e aberto, não frustrando, assim, a execução da pena.

O estabelecimento do CRS oferece ao recuperando a oportunidade de cumprir a

pena próximo de seu núcleo afetivo: família e amigos. Isso facilita a formação de mão- de-

obra especializada, favorecendo a reintegração social e respeitando os direitos do

condenado.

3.11 - Mérito

A vida prisional do recuperando é minuciosamente observada, no sentido de apurar

seu mérito e a consequente progressão nos regimes.

O método APAC, ao estudar exaustivamente a matéria e sentir os

resultados de sua aplicação, viu como plenamente válida a condução

do recuperando ao regime menos agro de cumprimento de pena, em

razão de seu mérito, aferido com muita seriedade nas inúmeras

atividades que ele desempenha na prisão. Não se vale, portanto, do

fato de ele ser “obediente” ou não às normas disciplinares. Isso é

muito vago e de pouca validade, já que nas prisões comuns a

obediência às normas disciplinares é uma imposição coercitiva do

sistema. (...) O método, por outro lado, deseja vê-lo prestando

serviços, em toda a proposta socializadora, como representante de

cela, como membro do CSS, na faxina, na secretaria, no

relacionamento com os companheiros, com os visitantes e com os

voluntários. Vê-se, pois, que não se trata apenas de uma conduta

prisional, mas de um atestado que envolve o mérito do cumpridor da

pena. (OTTOBONI, 2001, p. 97).

Complementando a afirmação acima tem-se também os dizeres de Mirabete (1987):

(...) como já foi visto, a progressão depende de adaptação provável ao

regime menos rigoroso. Mérito, no dicionário, significa aptidão,

capacidade, superioridade, merecimento, valor moral. Na sua

concepção filosófica, méritos, nos termos da Exposição de Motivos,

são “o critério que comanda a execução progressiva. (MIRABETE,

1987, p. 249).

Através do cumprimento da pena de maneira justa e eficiente, tanto o recuperando

quanto a sociedade estarão protegidos. Para tanto, é imperiosa a necessidade de uma

Comissão Técnica de Classificação – CTC – composta por profissionais ligados à

metodologia, seja para classificar o recuperando quanto à necessidade de receber

tratamento individualizado, seja para recomendar, quando possível e necessário, os exames

exigidos para a progressão dos regimes e, até mesmo, cessação de periculosidade,

dependência toxicológica e insanidade mental. Atualmente a CTC da APAC é composta:

pelo presidente, médico, psicólogo, diretor de disciplina, representante das obras sociais da

comunidade, diretor de metodologia e auxílio social, diretos de educação e analista jurídico.

Os nomes dos membros da comissão geralmente são indicações da APAC, ficando o juiz de

execuções penais responsável pela comarca, apenas a designação e oficialização dos

mesmos.

3.12 – A Jornada de Libertação com Cristo

Constitui-se no ponto alto da metodologia. É um encontro anual estruturado em

palestras - misto de valorização humana e religião – meditações e testemunho dos

participantes, cujo objetivo é provocar no recuperando a adoção de uma nova filosofia de

vida, através de quatro dias de reflexão e interiorização de valores.

A Jornada se divide em duas etapas: a primeira preocupa-se em

revelar Jesus Cristo aos jornadeiros. Sua bondade, autoridade,

misericórdia, humildade, senso de justiça e igualdade. Para Deus

todos são iguais e titulares dos mesmos direitos. A parábola do filho

pródigo é o fio condutor da Jornada, culminando com o retorno ao seio

da família, num encontro emocionante do jornadeiro com seus

parentes. A segunda etapa ajuda o recuperando a rever o filme da

própria vida, para conhecer-se melhor. A Jornada de Libertação

promove, nessa etapa, o encontro do recuperando consigo mesmo,

com Deus e com o semelhante, para voltar aos braços do Pai com o

coração pleno de amor. (OTTOBONI, 2001, p. 99).

Os recuperandos dos três regimes (fechado, semiaberto e aberto) deverão participar

da Jornada em algum momento do cumprimento da pena, preferencialmente durante o

regime fechado.

CONCLUSÃO

É indiscutível que a situação carcerária no Brasil é angustiante, caótica e tal como

está, administrado pelo Poder Público, é grande violadora dos direitos humanos e merece

urgente e especial atenção de todos nós: Poder Público e sociedade civil organizada.

O Terceiro Setor vem desempenhando importantes serviços de utilidade pública para

a sociedade, especialmente às pessoas em situação de maior vulnerabilidade social e com

a entrada em vigor da Lei nº 13.019/14, o Terceiro Setor se tornará mais forte.

É nesse sentido que as organizações da sociedade civil têm legitimidade e

capacidade muito melhor que o Estado para atuar na área da execução penal. As APACs de

Minas Gerais são exemplos disso.

A participação da comunidade é um dos desafios, pois, romper com os preconceitos

demanda um preparo da equipe de trabalho, bem como dos voluntários, juntamente com

uma discussão com a comunidade sobre qual a responsabilidade de cada um. Ressalte-se

que a conjugação de esforços de todos os envolvidos (Poder Judiciário, Poder Executivo

(estadual e municipal), Ministério Público, comunidade – empresários, comunidades

religiosas, voluntários – etc.) é fundamental para que o projeto dê certo.

O método apaqueano tem transformado os reeducandos em cidadãos, reduzindo a

violência dentro e fora dos presídios, consequentemente, diminuindo a criminalidade e

oferecendo à sociedade a tão sonhada paz.

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Privatização das prisões: contexto político e econômico

O fortalecimento da proposta de privatização do Sistema Penitenciário brasileiro se deu na

década de 1990 num contexto de reformas neoliberalizantes e a partir de um julgamento

seletivo da experiência internacional. Pretendemos, com este trabalho, entender como a

proposta de privatização do Sistema Penitenciário se ajusta ao receituário neoliberal de criação

do Estado Mínimo visando gerar novos espaços de acumulação e de investimento para os

capitais privados, considerados mais eficientes. Para tanto, remontaremos às décadas de 1960

e 1970, período em que se deu o advento do modo de acumulação flexível, no qual o

neoliberalismo funciona como base ideológica, em face ao esgotamento do modo fordista de

produção a fim de entender como a ideia de que o Estado é ineficiente e, por isso, deve ceder

espaço à iniciativa privada, regida pela mão invisível do livre mercado, ganhou ampla aceitação.

O fortalecimento do ideário neoliberal, no Brasil, se deu a partir da década de 1990, no Governo

Collor, e, aliado ao contexto de aprofundamento dos problemas do Sistema Penitenciário, em

face à centralidade do encarceramento como política de segurança pública, implicou na

formalização da proposta de privatização das prisões já em 1992. Deste modo, pretendemos,

com este trabalho, situar essa proposta num contexto de transformações políticas, sociais e

econômicas mais amplas.

Palavras-chave: Privatização; Prisões; Neoliberalismo.

Introdução

De acordo com Harvey (2011), quando a configuração do capitalismo em determinado

momento histórico, denominada regime de acumulação, se esgota surge a necessidade de sua

reconfiguração. Essa reconfiguração do capitalismo não atinge apenas o universo produtivo.

Surgem novas representações, ideologias, valores que têm por objetivo fazer com que os

comportamentos de todos os indivíduos – capitalistas, trabalhadores, funcionários públicos,

financistas e outras espécies de agentes político-econômicos – sejam coerentes com o novo

regime de acumulação e o mantenha funcionando (HARVEY, 2011).

Assim, tendo por base a transição do regime fordista de produção para o regime de

acumulação flexível, que teve início entre as décadas de 1960 e 1970, e nas transformações no

modo de regulamentação política e social decorrentes desta transição, pretendemos, com este

trabalho, situar o processo de privatização do sistema penitenciário, em expansão no Brasil e no

mundo, no quadro de transformações impulsionadas pela ascensão do modo de acumulação

flexível e pela ampla aceitação do neoliberalismo, base ideológica do referido padrão de

produção. Assim, faremos uma discussão acerca dos preceitos desse novo padrão de

acumulação que resultaram na ampla aceitação da proposta de privatização das prisões como a

melhor solução para os problemas do sistema penitenciário, sendo que, na primeira seção, será

discutida a ascensão do padrão de acumulação flexível em face ao esgotamento do regime

fordista de acumulação.

Na segunda, faremos uma breve explanação acerca do processo de emergência de uma

vigoroso Estado Penal como complemento ao Estado Mínimo que substituiu o Estado de bem-

estar social nos países capitalistas centrais. Nesta seção, veremos que o fortalecimento da força

coercitiva do Estado se fez como resposta à redução da presença do Estado na esfera social. A

pobreza e seus problemas deixam de ser tratados com políticas sociais e passam a ser tratados

com políticas penais. Já na última seção, antes das considerações finais, falaremos de algumas

especificidades do contexto brasileiro no que se refere à adoção do ideário neoliberal, base

ideológica do padrão de acumulação flexível e disseminador dos valores que sustentam o Estado

Mínimo, à emergência, na década de 1990, de um Estado Penal, e ao fortalecimento da proposta

de privatização das prisões como solução para os problemas do Sistema Penitenciário.

Crise do fordismo e ascensão do modo de acumulação flexível

Dado que o objetivo deste trabalho é enquadrar o processo de privatização do Sistema

Penitenciário brasileiro num contexto de transformações econômicas, a saber a ascensão do

padrão de acumulação flexível frente ao esgotamento do padrão de produção fordista que

implicou em grandes transformações nas maneiras de se conceber o indivíduo, as funções do

Estado e do mercado, faremos, nesta seção, uma breve contextualização histórica acerca deste

período.

O fordismo foi a forma de organização do universo produtivo que vigorou entre o final

da Segunda Guerra e a década de 1970. Se caracterizava pela produção em massa – que

implicava no consumo de massa e na padronização dos produtos -, centralização do capital e

relativo equilíbrio de forças entre o capital e o trabalho, gerando uma rigidez no mercado de

trabalho em termos de alocação e de contrato (HARVEY, 2011). Este padrão de produção não se

constituiu apenas enquanto um modo de organização do trabalho, salienta Luiz Filgueiras (2006,

p. 51), mas significou, sobretudo, “uma forma de organização da sociedade capitalista que

implicou a inclusão social de grande parcela da população que até então estava marginalizada

do consumo e dos direitos de cidadania”, sendo compatível com os preceitos do Estado de bem-

estar social, fruto do consenso keynesiano.

O Estado de bem-estar vigorou, nas economias capitalistas centrais, entre o fim da

segunda Guerra Mundial e o início da década de 1970. Esse ordenamento político-econômico

gerou, a partir de políticas redistributivas, controles à livre mobilidade do capital, ampliação dos

gastos públicos, intervenções ativas na economia, além de algum grau de planejamento do

desenvolvimento, elevadas taxas de crescimento econômico nos países capitalistas centrais

durante os anos 1950 e 1960 (HARVEY, 2008).

Assim, após a Segunda Guerra Mundial foram implantadas, na Europa e nos Estados

Unidos, variadas formas de governo que aceitavam que

o Estado deveria concentrar-se no pleno emprego, no crescimento econômico

e no bem-estar de seus cidadãos, e de que o poder do Estado deveria ser

livremente distribuído ao lado dos processos de mercado – ou, se necessário,

intervindo ou mesmo substituindo tais processos – para alcançar esses fins,

políticas fiscais e monetárias em geral caracterizadas como 'keynesianas' foram

implantadas extensamente para suavizar os ciclos de negócio e assegurar um

nível de emprego razoavelmente pleno (HARVEY, 2008, p. 20).

No início da década de 1970, contudo, o Estado de bem-estar social mostrava sinais de

esgotamento. As economias capitalistas centrais apresentavam altas taxas de desemprego e

inflação, redução dos níveis de produtividade e de crescimento, elevação dos déficits públicos

“desencadeando uma fase global de estagflação”, que duraria por boa parte dos anos 1970”

(HARVEY, 2008, p. 22).

A crise do fordismo/keynesianismo é, segundo Netto (2007), expressão da curva

decrescente da eficácia econômico-social da ordem do capital, evidenciando que a dinâmica do

capitalismo alçou-se, naquele momento, a um nível no qual a sua reprodução tende a requisitar,

progressivamente, a eliminação das garantias sociais e dos controles mínimos a que o capital foi

obrigado no arranjo fordista.

O fordismo foi substituído, então, pelo modo de acumulação flexível, mais afeito às

novas necessidades de acumulação e exploração do capital e que tem no neoliberalismo sua

base ideológica.

O neoliberalismo é, como definiu Harvey (2008, p. 12),

uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar

humano pode ser melhor promovido liberando-se as necessidades e

capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura

institucional caracterizada por sólidos direitos à propriedade privada, livres

mercados e livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura

institucional apropriada a essas práticas […] Deve estabelecer estruturas e

funções militares, de defesa, da polícia e legais requeridas para garantir direitos

de propriedade individuais e para assegurar, se necessário pela força, o

funcionamento dos próprios mercados.

O ideário neoliberal tem seu apelo ideológico na liberdade do indivíduo, caracterizando

este último como a célula elementar de constituição da sociedade, cuja iniciativa e ação não

podem ser contrariadas pelo Estado, tendo total liberdade econômica e política (FILGUEIRAS,

2006). Harvey (2008, p. 17) salienta, ainda, que o pressuposto de que as liberdades individuais

são garantidas apenas em condições de liberdade de mercado e de comércio é um elemento

vital do pensamento neoliberal. O mercado se apresenta como a instância mediadora

societal elementar e insuperável, e se incumbiria de compatibilizar e harmonizar as ações e os

comportamentos individuais alicerçados no egoísmo e no interesse particular, partindo da livre

concorrência entre todos, resultando na preservação do interesse geral (FILGUEIRAS, 2006).

O Estado mínimo ou Penal

Eram características do regime fordista/keynesiano, nos países capitalistas centrais, a

presença de uma ampla rede de proteção social, estabilidade no emprego e ganhos salariais

acima da inflação. Seu esgotamento e a consequente ascensão do regime de acumulação flexível

implicou em diversas transformações no âmbito da proteção social e das relações de trabalho,

tendo em vista que o Estado cuja missão era suavizar os ciclos recessivos da economia de

mercado, protegendo as populações mais vulneráveis e reduzindo as desigualdades mais

gritantes, foi sucedido por um Estado neo-darwinista, baseado na competição (WACQUANT,

2007, p. 31).

A desregulamentação das leis trabalhistas, a fim de reduzir o custo e ter mais

flexibilidade no uso do fator trabalho, é um dos requisitos para o bom funcionamento do

capitalismo em sua nova configuração. Assiste-se à expansão do uso das formas precarizadas de

trabalho como a terceirização, os contratos temporários, o trabalho de meio período, os

subempregos, etc. Segundo Organista (2006), está em curso um processo de dualização do

mercado de trabalho. De um lado, em queda, estão os trabalhadores que ainda possuem alguma

estabilidade no trabalho e que estão ligados diretamente ao núcleo central produtivo. De acordo

Wacquant (2007), este grupo é composto principalmente por homens e brancos. Do lado oposto

está a parcela, em expansão, de trabalhadores precarizados, ligados indiretamente ao núcleo

central produtivo, mas extremamente funcional a ele. Predominam os negros, as mulheres, os

jovens e os imigrantes (ANTUNES, 1999; FILGUEIRAS, 2006; WACQUANT, 2007).

Cada indivíduo, sob a nova configuração do capitalismo, é considerado responsável por

suas próprias ações e bem-estar, sendo o sucesso e o fracasso individuais interpretados em

termos de virtudes empreendedoras ou de falhas pessoais ao em vez de serem atribuídos às

propriedades inerentes ao sistema de produção (HARVEY, 2008). Logo, o culto à

responsabilidade individual resultou na disseminação das críticas aos programas do Estado

voltados às populações marginalizadas (WACQUANT, 2007), visto que acredita-se que esse tipo

de ação por parte do Estado alimenta uma conduta parasitária e comodista por parte das

populações beneficiárias.

Diante do cenário de aprofundamento das questões sociais suscitado pelo recuo do

Estado diante das populações mais vulneráveis e da precarização das relações de trabalho, fruto

da flexibilização das leis trabalhistas, emerge um Estado bastante fortalecido em suas funções

repressoras, voltado para a contenção e repressão das pequenas práticas delituosas, tratando a

pobreza com políticas criminais e não sociais (AMORIM, 2007).

O Estado Penal não se apresenta como uma contradição do Estado Mínimo,

materialização do ideário neoliberal, sendo, antes, complementar a ele. Há a exigência de um

Estado mínimo, a fim de liberar espaço para a mão invisível do mercado e submeter os

despossuídos aos estímulos da competição, e erige-se, simultaneamente, um Estado máximo

para assegurar a “segurança” do cotidiano. É compreensível, segundo Wacquant (2007, p. 48) a

existência de um Estado penal quando “o Estado se livra de qualquer responsabilidade

econômica e tolera, ao mesmo tempo, um elevado nível de pobreza e uma pronunciada

ampliação da escala das desigualdades”. Assim, podemos afirmar que a expansão do Estado

Penal constitui a contrapartida necessária do seu enxugamento na esfera social (MINHOTO,

2002).

Wacquant (2007) afirma que a utilidade do aparelho penal do Estado na era do emprego

inseguro se apresenta de três formas: dominação das frações da classe operária que reagem à

disciplina das formas precarizadas de trabalho, aumentando o custo das estratégias de fuga na

economia informal ou ilegal; neutralização e armazenamento de seus elementos mais

desagregadores ou tornados totalmente supérfluos no mercado de trabalho; e reafirmação da

autoridade do Estado na vida cotidiana, no domínio restrito ao qual tem acesso a partir de então.

O encarceramento recupera sua missão histórica, segundo o autor, de regular, se não perpetuar,

a pobreza e armazenar os dejetos humanos do mercado.

O fortalecimento do aparato repressor estatal implicou, nos Estados Unidos, por meio

do endurecimento da legislação – estendendo a pena de prisão a uma série de crimes e delitos

que até então não incorriam em reclusão , como as infrações menores, a legislação sobre

entorpecentes e os atentados à ordem pública (WACQUANT apud AMORIM, 2007) -, diminuição

da concessão de liberdade condicional e avanço das técnicas de vigilância, numa elevação da

taxa de encarceramento de 109 por 100 mil habitantes, em 1950, para 478 por 100 mil, em 2000.

Em 1975, o número de presos estadunidenses era 379.393. Em 2000, esse número chegava a

1.931.850 (WACQUANT, 2007). Em 1996, um estadunidense a cada 163 estava preso e 2,8% de

toda população adulta estava sob alguma forma de controle no âmbito do sistema correcional

(MINHOTO, 1997)

Importante ressaltar aqui que o aumento do encarceramento não foi uma resposta a

um aumento efetivo da criminalidade: o número de crimes violentos estava numa trajetória

decrescente quando a política de encarceramento em massa foi empreendida. Neste sentido,

Amorim (2007) afirma que a evolução do nível de encarceramento de uma sociedade não é

diretamente relacionado à sua taxa de criminalidade, mas sim às decisões políticas e culturais.

Estamos a apresentar dados e informações referentes aos Estados Unidos pelo fato deste país

representar, desde a década de 1930, o centro irradiador de políticas a serem adotadas pelos

demais países, principalmente pelos países periféricos.

A política de encarceramento em massa provocou, nos Estados Unidos, o

aprofundamento dos problemas apresentados pelo sistema penitenciário, como a

superpopulação, a degradação das condições de alojamento, que resultou em diversas

intervenções judiciais no sistema, além de elevar drasticamente os gastos do Estado com o

aparelho penal. Este cenário, aliado a exigência de penas mais duras por parte da população

que, ao mesmo tempo, recusava-se a autorizar os recursos necessários para a construção de

novos estabelecimentos (MINHOTTO, 1997), representou campo fértil para a proposta de

privatização das prisões e, em 1983, foi fundada a Corrections Corporation of America, empresa

privada com a função de solucionar os problemas da esfera carcerária e obter lucros ao mesmo

tempo (ROCHA, 2012), levando-nos a concluir que o encarceramento em massa funciona não

apenas isolando os indesejáveis como gerando uma lucrativa indústria das prisões, um mercado

que dobra a cada 2 anos (WACQUANT, 2007).

Neoliberalismo, Estado penal e privatização das prisões no Brasil

No Brasil, a adoção e disseminação do receituário neoliberal se deu na década de 1990.

Segundo Filgueiras (2006), a força que os movimentos sociais tinham alcançado na década

anterior impediu que essa adoção fosse antecipada. O fracasso das políticas de estabilização de

cunho ortodoxo e heterodoxo, na década anterior, abriu margem para que as ideias e políticas

neoliberais se desenvolvessem e alcançassem o poder com a vitória de Collor, em 1989. Collor

iniciou o processo de abertura da economia e privatização e adotou a taxa de câmbio flexível,

uma das bases do tripé neoliberal.

O Plano Real, seguindo as medidas propostas pelo Consenso de Washington – que

dispunha sobre os caminhos que os países de economia periférica deveriam percorrer para

alcançar a estabilização econômica e o desenvolvimento –, continuou e aprofundou as reformas

de caráter neoliberal iniciadas por Collor. Aprofundamento da abertura econômica, apreciação

do Real frente ao dólar – por meio da âncora cambial -, quebra dos monopólios estatais e

reformas administrativa - que reduzia as funções do Estado -, previdenciária, tributária e

trabalhista foram algumas das medidas adotadas.

Tal processo implicou numa reconfiguração do mercado de trabalho brasileiro, tendo

em vista que a economia sofreu um choque de competitividade que forçou as empresas que

aqui estavam a adotar novas técnicas de gestão/organização da produção que resultou no

aumento do desemprego e do uso de formas de trabalho precarizadas.

Outro movimento se dava concomitante a este processo: o desenvolvimento de um

vigoroso Estado Penal, que tem no desenvolvimento de uma política de segurança pública

centrada no encarceramento seu principal traço. Segundo Salla (2003), essa política resultou

num aumento substancial das taxas de encarceramento na década de 1990: em 1988 a taxa de

encarceramento era de 65,2 por 100 mil habitantes, em 1995, essa taxa era de 95,4 presos por

100 mil habitantes e já em 2002, essa taxa passou para 146,5 para cada 100 mil habitantes.

Segundo o autor, esse quadro se explica pelo aumento efetivo nas taxas de criminalidade que

resultou no aumentou da sensação de insegurança por parte da sociedade que, por sua vez,

passou a exigir políticas de controle social mais rígidas. Esse processo levou a um incremento da

população carcerária na ordem de 380% entre 1992 e 2012 (CARTA CAPITAL, 2014).

De acordo com Salla (2003), medidas alternativas à pena privativa de liberdade foram

pouco utilizadas: em 1995, 1,4% da população carcerária cumpriam penas alternativas; em

1998, 0,8%; só em 2002 é que essa taxa passou para 8,7%. Em 2000, apenas 1,5% do montante

investido pelos Estados na esfera prisional foi utilizada no apoio a penas alternativas enquanto

que os recursos investidos na construção e reforma de presídios representavam 93% do

montante.

Vale enfatizar que, também no Brasil, vimos emergir simultaneamente o Estado Mínimo

e o Estado Penal. Assim, onde o Estado deixa de exercer suas funções sociais e de

regulamentação das leis trabalhistas há o fortalecimento de seu braço punitivo.

A centralidade do encarceramento como política de segurança pública implicou no

aprofundamento dos problemas do Sistema Penitenciário como a superpopulação, a má

qualidade dos serviços oferecidos aos presos e a elevada taxa de reincidência. Diante deste

cenário e considerando que neste período estava em voga a crença na eficiência do mercado e

na necessidade de o Estado, ineficiente e demasiadamente burocrático, abrir espaço ao

primeiro, é fácil entender como a proposta de privatização das prisões tomou força já em 1992,

quando foi formalmente proposta pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Justiça. Para

Minhoto (1997), essa proposta, além de vir em meio a diversas outras de caráter

neoliberalizante, também é fruto de um julgamento seletivo da experiência internacional.

Em 2014, segundo dados da Pastoral Carcerária (2014), havia cerca de 30 prisões

privatizadas no Brasil, que abrigavam em torno de 20 mil presos, divididas em dois modelos de

privatização: a cogestão e as Parcerias Público-Privadas. Sob um contrato de cogestão, o Estado

assume a direção e as guardas interna e externa da unidade enquanto o setor privado se

responsabiliza por toda a operacionalização da unidade. Já nos contratos de Parceria Público-

Privada, feito nos moldes da lei de Parcerias Público-Privadas (Lei 11.079/2004), haveria a

privatização total da prisão, visto que ao setor privado caberia o projeto, construção,

financiamento e operacionalização das unidades por um período de 30 anos (período de vigência

do contrato de concessão do serviço no Brasil) (PASTORAL CARCERÁRIA, 2014).

Segundo Moraes Filho (2008), diante da dificuldade do Estado em administrar o sistema

prisional e garantir os direitos humanos mais elementares, a privatização aparece como umas

das soluções viáveis para a crise instalada, reduzindo gastos, aumentando a qualidade dos

serviços ofertados e criando condições para a reabilitação dos presos por meio do trabalho,

através da introdução de técnicas de gestão empresarial no universo penitenciário. Na mesma

linha de raciocínio, Muraro (2012) argumenta que a privatização das prisões geraria o aumento

de vagas no sistema prisional, o cumprimento da pena de maneira mais digna ao preso,

estabelecimento de parcerias com a sociedade para proporcionar trabalho ao preso e facilitar

sua ressocialização, além de desonerar o Estado no que se refere aos investimentos de curto

prazo.

Diante do exposto, podemos afirmar, como fez Minhoto (1997), que a legitimação da

adoção das prisões privadas se dá por meio do argumento de que a introdução da competição

e o emprego das técnicas e estratégias do setor privado na esfera penitenciária reduziria seus

custos e elevaria a qualidade de seus serviços. O Estado seria incompetente para gerenciar o

aparelho prisional visto sua irracionalidade quanto ao orçamento, gasto com pessoal, lentidão

do aparelho governamental para solucionar problemas emergentes e incapacidade para

desenvolver programas de trabalho satisfatórios (SALLA, 1991). Essa crença na superioridade e

eficiência do mercado em relação ao Estado é uma das bases do pensamento neoliberal e as

prisões privadas ajustam-se perfeitamente, no plano política-institucional, ao projeto neoliberal

de redução da presença do Estado na esfera do bem-estar e de ampliação das estratégias da lei

e da ordem, representando um meio de controle altamente lucrativo dos perdedores globais

(MINHOTO, 2002)

Minhoto (1997) aponta para uma redução economicista dos problemas do sistema

prisional, que são concebidos em termos físicos e monetários não se colocando, em nenhum

momento, a problematização do papel da prisão enquanto mecanismo de controle social. A

despeito da falência histórica da prisão em sua função corretiva, não há uma refutação

ontológica do tratamento carcerário para o crime (NICOLI, 2008).

Podemos entender tal fenômeno constatando que a acusação de tal fracasso traz

sempre implícita a avaliação de que as técnicas utilizadas pela instituição prisional são

rudimentares, insuficientes, não adequadas e mal aplicadas. A delinquência e a reincidência são

apresentadas como resultado de uma aplicação imperfeita da técnica penitenciária (SALLA,

1991). Assim, aperfeiçoar estas técnicas, imprimindo à prisão uma maior racionalidade, tornou-

se a tônica de qualquer proposta reformadora desta instituição.

Considerações finais

Intentamos, com este trabalho, situar o processo de privatização do sistema

penitenciário no Brasil e no mundo num contexto de mudanças políticas e sociais causadas pelo

esgotamento do padrão fordista de produção e ascensão do padrão de acumulação flexível.

Como afirmamos no início deste trabalho, quando da emergência de um novo regime de

acumulação são alimentados novos valores e representações a fim de que o comportamento de

todos os agentes econômicos, sociais ou políticos sejam coerentes com o novo regime. A

privatização das prisões é coerente com a crença na ineficiência e na necessidade de corte de

gastos do Estado. É coerente, também, com o culto ao livre mercado.

É coerente com o Estado penal e sua política de encarceramento em massa. Política de

encarceramento que, por sua vez, é coerente com o culto às liberdades individuais,

considerando cada um, individualmente, responsável pelo seu sucesso ou fracasso.

Chamamos a atenção para o fato de que está em curso um processo de deslocamento

do tratamento social da pobreza para seu tratamento penal. Além disso, e o que é muito

preocupante e deve ser alvo de pesquisas mais aprofundadas, a proposta de privatização das

prisões, ao olhar os problemas da esfera prisional como fruto da má administração do Estado,

colocando a reincidência e a delinquência como problemas de uma má aplicação da técnica

penitenciária, desvia a atenção do fracasso histórico da prisão em sua função de ressocialização.

O fracasso da prisão nesta função, sob o olhar de quem advoga a favor de sua privatização, não

se deve ao fato de sua técnica implicar no isolamento social do indivíduo para que, então, ele

aprenda a viver em sociedade.

Deve-se pensar a respeito de quem lucra neste processo. Deve-se, também, ter cautela

a respeito da exploração da mão-de-obra do preso e da precarização do trabalho do agente

penitenciário neste contexto, como relatório da Pastora Carcerária (2014) aponta. Além disso, e

principalmente, deve-se problematizar a possibilidade de a privatização das prisões representar

a continuação do encarceramento em massa, dado que o mercado das prisões, para ser

lucrativo, pressupõe a manutenção de altas taxas de encarceramento.

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SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE

PESQUISA EM PRISÃO (ANDHEP)

São Paulo, 02 de outubro de 2015

Faculdade de Direito - USP

GT03: Direitos Humanos, Empresas e Prisão

A transferência da execução penal ao privado no complexo penal público-privado de Ribeirão das Neves/MG

Carolina Brognaro1

RESUMO: O complexo penal público-privado de Ribeirão das Neves é a primeira experiência de parceria público-privada prisional no Brasil. Tanto a construção quanto a gestão de tal complexo foram objetos do contrato de concessão firmado entre o estado de Minas Gerais e o consórcio privado Gestores Prisionais Associados. O presente artigo pretende discutir a divisão de responsabilidades entre o parceiro privado e o Estado, que resulta em uma transferência do direito de punir ao particular, além de gerar entraves na assunção de responsabilidade em questões internas. O consórcio privado assume a gestão do presídio em sua totalidade, havendo apenas um diretor público por unidade penal e um diretor público geral. A figura do diretor público é usada, nos discursos oficiais, como evidência da presença estatal em tal complexo. Entretanto, pelas suas atribuições, percebe-se que sua presença cotidiana no complexo penal serve mais para blindar o modelo prisional público-privado de críticas relativas à privatização de presídios do que para propiciar uma real atuação do Estado. Afinal, é impossível a uma única pessoa gerenciar todos os funcionários e presos, por si só. Assim, o diretor público estatal é dependente da equipe que atua internamente dentro do complexo penal, equipe que é privada. A equipe privada é a responsável por todos os atendimentos dos presos, sendo determinante para a concessão de direitos relativos à execução penal, desde trabalho, estudo, visitas, até a progressão de regime.

PALAVRAS-CHAVE: Parceria público-privada; execução penal; prisão.

1. Introdução

O presente artigo é fruto da dissertação de mestrado intitulada “As duas faces

da parceria público-privada prisional: uma análise do complexo penal público-privado

de Ribeirão das Neves”, cujo objetivo foi analisar o complexo penal público-privado de

Ribeirão das Neves/MG, no intuito de problematizar a política de privatização de

presídios, com foco em duas questões centrais que envolvem tal política: interesses

econômicos e transferência da execução penal ao particular.

A escolha desse complexo penal se deu pelo fato de ser ele o primeiro presídio

construído e gerido em PPP do Brasil e, por isso, marco desse novo modelo prisional

que vem sendo instalado no país, a gestão prisional através de parceria público-

privada.

Para a referida análise, foram realizadas uma visita técnica ao complexo penal

público-privado e entrevistas com atores diversos ligados à PPP prisional: funcionários

do consórcio privado gestor do complexo penal (assistentes sociais, psicóloga e

1 Graduada em Direito pela UFMG. Mestre em Sociologia e Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF.

agente de monitoramento), o diretor geral privado do complexo penal e um defensor

público atuante em tal presídio. Além disso, o edital de licitação e o contrato de

concessão são importantes fontes da pesquisa, bem como notícias veiculadas sobre a

PPP prisional de Ribeirão das Neves, entrevistas, relatórios oficiais e discursos dos

representes do governo mineiro e do parceiro privado.

2. Complexo penal público-privado de Ribeirão das Neves/MG

Em 2013, a primeira penitenciária construída e gerida em parceria público-

privada do Brasil foi inaugurada em Ribeirão das Neves, Minas Gerais. Tal PPP é fruto

do contrato assinado em 16 de junho de 2009 entre o governo de Minas Gerais e o

consórcio vencedor da licitação realizada, GPA (Gestores Prisionais Associados),

composto por cinco empresas. São elas: CCI – Construções S/A, Construtora Augusto

Velloso S/A, Empresa Tejofran de Saneamento e Serviços, N.F Motta Construções e

Comércio e o Instituto Nacional de Administração Prisional (INAP).

O prazo da vigência da concessão administrativa é de 27 anos, podendo ser

prorrogado desde que respeitados os limites da legislação aplicável, e o valor

estimado do contrato, com base em valores de 2008, é de R$ 2.111.476.080,00 (dois

bilhões, cento e onze milhões, quatrocentos e setenta e seis mil e oitenta reais). O

valor da vaga dia disponibilizada e ocupada proposto pela concessionária e adjudicado

na licitação foi de R$74,63 na data-base da proposta econômica. Na entrevista

realizada em abril de 2015, o diretor geral do consórcio privado informa que o valor

está em R$100,00 por dia por preso.

O edital de licitação prevê a construção de 3.040 vagas, divididas em cinco

unidades, que deveriam ter sido construídas em dois anos e meio após a assinatura

do contrato de concessão. Entretanto, quando da inauguração, realizada em janeiro de

2013, com grande atraso, apenas uma unidade estava pronta e, até o momento,

apenas três unidades funcionam efetivamente, sendo duas unidades de regime

fechado e uma unidade de regime semi-aberto, esta última inaugurada em junho de

2014.

A PPP instalada em Minas Gerais possui características bem semelhantes ao

modelo terceirizador ou de co-gestão existente em prisões de outros estados do Brasil,

como Ceará, Espírito Santo e Paraná, especialmente no que diz respeito às

responsabilidades do Estado e do parceiro privado.

3. Divisão de responsabilidade entre o Estado e o consórcio privado

A divisão de responsabilidades entre o Estado e o parceiro privado demonstra

que a gestão interna do complexo penal fica a cargo do consórcio privado, com pouca

atuação do Estado nas tarefas cotidianas da prisão.

Pela análise do contrato de concessão, na PPP prisional, o Poder Público é

responsável pelas atividades de segurança armada nas muralhas e pela segurança

externa à unidade, além da escolta dos presos em ambiente externo quando

necessário. Os diretores públicos, presentes em cada unidade do complexo penal, têm

exclusivamente, na previsão contratual, as responsabilidades de monitorar e

supervisionar a gestão interna do presídio, além de aplicar eventuais sanções

administrativas aos presos.

Por sua vez, a concessionária deve realizar todos os serviços relacionados à

obra, seguindo as diretrizes construtivas do contrato, e todos os serviços relacionados

à operação e gestão do complexo penal. A prestação de serviços nas áreas jurídica,

psicológica, médica, odontológica, psiquiátrica, assistencial, pedagógica, esportiva,

social e religiosa, educação básica e média aos internos e treinamento profissional e

cursos profissionalizantes é de responsabilidade integral da concessionária.

Assim, a segurança externa e das barreiras físicas (muralhas, alambrados,

etc.) é responsabilidade do Poder Público, enquanto a segurança interna é

responsabilidade da concessionária, que a exercerá através dos agentes de

monitoramento interno. Tais agentes de monitoramento interno podem utilizar tonfas,

apesar de ser vedado o uso de armas de fogo.

O controle da entrada e saída de pessoas do complexo penal e todos os

procedimentos daí decorrentes, inclusive a revista íntima vexatória, também são

exercidos pela concessionária, conforme previsão contratual. Quando da realização da

visita técnica ao complexo penal, a vistoria, tanto do carro quanto pessoal, foi

realizada por funcionários do consórcio GPA.

Os prontuários dos sentenciados são confeccionados e/ou atualizados pelos

funcionários contratados da GPA, uma vez que neles constam as informações

pessoais, jurídicas, sociais, escolares, relativas a trabalho, à saúde e informações

disciplinares, todas elas de conhecimento do consórcio privado, tendo em vista que a

gestão interna do complexo penal é de sua responsabilidade, fazendo com que o

contato cotidiano com os presos seja realizado pelos funcionários privados, que,

portanto, são aqueles que possuem as informações necessárias à feitura dos

prontuários. Isso foi confirmado em todas as entrevistas realizadas.

Há também previsão expressa no caderno de encargos da concessionária,

atribuindo ao consórcio privado a responsabilidade do preparo das certidões de

comportamento carcerário e demais documentos referentes à execução penal, que

devem ser encaminhadas ao diretor público da unidade.

A CONTRATADA deverá: (...) preparar atestados, certidões de comportamento carcerário e outros documentos referentes à execução penal direcionando-os, necessariamente, ao SUBDIRETOR PÚBLICO DE SEGURANÇA DA UNIDADE PENAL; (...) coletar e preparar os dados solicitados pelas demais seções assistenciais ou de segurança, bem como aqueles destinados à instrução de exames classificatórios ou procedimentos disciplinares; (...) assessorar e apoiar às reuniões do Conselho Disciplinar e da Comissão Técnica de Classificação (CTC) por meio do preciso e adequado fornecimento de informações; (MINAS GERAIS, 2009a)

Assim, certidões de comportamento carcerário, atestados psicológicos, e

demais documentos que embasam decisões judiciais, e influem diretamente na

concessão de progressão de regime, livramento condicional, saídas temporárias, entre

outros direitos do preso no âmbito da execução da pena, também são de

responsabilidade da concessionária, que, com isso, influencia diretamente na

manutenção ou não da restrição da liberdade do preso.

Tal previsão contratual é lógica, uma vez que as informações necessárias para

a confecção de tais documentos estão nos prontuários dos presos, que são

preenchidos e atualizados pelo consórcio privado. Afinal, os profissionais que

acompanham os presos, em todas as áreas, todos os dias, são funcionários privados.

Segundo o caderno de encargos, a concessionária deve efetuar:

(...) a realização de exame criminológico, de investigação disciplinar e de perfil psicológico, elaborando boletins informativos, sempre que requisitados pela CTC e/ou pelo DIRETOR PÚBLICO DO COMPLEXO PENAL; (...) a promoção de levantamentos para instruir a realização de exames criminológicos, de investigações para o CONDISC (inclusive no que se refere a endereços de familiares) bem como de solicitações de escopo judicial; (MINAS GERAIS, 2009a)

A Comissão Técnica Classificatória (CTC) define a aptidão ou inaptidão dos

presos para o trabalho e o estudo, enquanto o Conselho Disciplinar (Condisc) julga as

faltas disciplinares cometidas pelos presos dentro do complexo penal.

A CTC ocorre semanalmente, participando dela profissionais de todas as áreas

(saúde, jurídico, educação, trabalho, segurança), todos eles contratados pelo

consórcio GPA, além do diretor público estatal, que é o presidente da CTC.

O Conselho Disciplinar é também composto, em grande parte, por funcionários

privados: um assistente social, um agente de monitoramento e um advogado. Além

disso, há também o diretor público e um agente penitenciário estatal.

A decisão, tanto da Comissão Técnica Classificatória quanto do Conselho

Disciplinar, se dá por voto, como informado nas entrevistas. Apenas em caso de

empate é que o diretor público tem a palavra final.

Assim, tem-se uma efetiva participação dos funcionários privados na Comissão

Técnica Classificatória e no Conselho Disciplinar, o que resulta em uma influência

direta e determinante do consórcio privado na seleção dos presos que trabalham e

estudam, e nas punições disciplinares aplicadas aos presos.

Apesar de não ser o foco do presente artigo, importante mencionar que o

número de presos que trabalham e estudam repercute diretamente no valor repassado

à concessionária pelo Estado, uma vez que quanto mais presos trabalham e/ou

estudam, maior o valor que o consórcio privado recebe. E, para o cálculo dessa

remuneração, considera-se como número total de presos apenas os presos aptos ao

trabalho/estudo, excluindo-se os inaptos de tal cômputo. Assim, se do total de 100

presos, apenas 50 são considerados aptos, o consórcio recebe 100% do valor relativo

ao indicador de desempenho trabalho/estudo se 50 presos trabalham/estudam. Dessa

forma, o consórcio privado, ao influir diretamente na classificação dos presos entre

aptos e inaptos ao trabalho/estudo influi também diretamente em sua própria

remuneração.

Em relação à definição das faltas cometidas pelos presos e às punições

disciplinares aplicadas a eles, há também um grande poder nas mãos do parceiro

privado, uma vez que ele é responsável tanto por informar o cometimento das

infrações disciplinares quanto por julgar a existência e a gravidade de tais faltas ao

participarem do Conselho Disciplinar.

Necessário dizer que a definição das faltas disciplinares repercute tanto

administrativamente quanto judicialmente, uma vez que o relato e a decisão do

Conselho Disciplinar e da Comissão Técnica Classificatória são encaminhados ao

Juízo da Execução Penal, servindo de base ou, ao menos, de indício para a prolação

de decisões judiciais, como, por exemplo, aquela relativa à regressão de regime de

cumprimento de pena. Eis a fala de uma das entrevistadas:

“Sim, a própria juíza solicita, às vezes, o laudo da CTC diante de uma sentença que ela for dar, de uma concessão de um benefício, de uma condicional, de uma progressão. Então em determinados casos sim. Já foi tão bem construído, tão bem amarrado, que a juíza se baseia muito na CTC. Então cada área tem uma cópia da CTC. A juíza hoje faz uma leitura para determinar na condenação ou na concessão de benefício para o preso. Além da importância interna da unidade prisional quanto ao trabalho e estudo, ela tem uma importância jurídica também.” (ASSISTENTE SOCIAL 2, 2015)

Apesar desse cenário, o discurso oficial do governo mineiro nega haver

privatização, à semelhança do que ocorre com os discursos oficiais relativos aos

presídios ditos terceirizados, apoiando-se, especialmente, na figura do diretor público,

que permanece internamente dentro de cada unidade do complexo penal.

O governo de Minas Gerais alega que a PPP não gera uma privatização, mas

sim uma parceria entre o governo e a empresa privada, uma vez que o Estado

continua presente na gerência da prisão. Quando da assinatura do contrato, o

governador de Minas Gerais, Aécio Neves assim afirmou:

“O poder público mantém as suas responsabilidades constitucionais, no que diz respeito à segurança externa e a própria direção de segurança interna do presídio. Agregamos uma empresa privada que vai auxiliar o estado, obviamente, na garantia da segurança para a sociedade e para os próprios presos. O que estamos contratando não são vagas apenas no sistema prisional, que eventualmente poderia levar à impressão de que haveria privatização desse setor. Ao contrário, estamos contratando resultados.” (MINAS GERAIS, [2014?]a)

O secretário de Estado de Defesa Social à época, Maurício de Oliveira Campos

Júnior, discursou no mesmo sentido:

Não cobraremos do parceiro processos de gestão, cobramos dele resultados da gestão. Queremos presos trabalhando, presos estudando, queremos uma gestão que permita uma excelência no processo de humanização e o estado permanece junto, com um diretor público que está presente e com toda gestão que envolve a disciplina interna e a segurança externa. (MINAS GERAIS, [2014?]a)

No caderno de encargos da concessionária, há a previsão das atribuições do

diretor público estatal, que inclui a promoção da execução penal dos sentenciados, a

aplicação de sanções e penalidades definidas no Conselho Disciplinar, autorização

para trabalho, para emissão de carteiras de visitas, fiscalização das atividades da

contratada, entre diversas outras. No complexo penal, há um diretor público geral e um

diretor público em cada unidade penal. Vale lembrar que cada unidade penal possui

mais de 600 presos e dezenas de funcionários. É evidente que uma única pessoa não

conseguirá acompanhar a execução de pena de cada preso, e a atuação de cada

funcionário.

Para exercer suas funções, o diretor público necessita dos relatos e

documentos produzidos pelo consórcio privado, que, com isso, é quem tem o real

controle da execução penal. Apesar de os atestados carcerários e demais documentos

oficiais serem assinados pelo diretor público estatal, são os funcionários privados que

os confeccionam, baseados no dia a dia de seu trabalho, que não é acompanhado

lado a lado pelo Estado.

Podemos dizer assim que, pela divisão das responsabilidades acima elencada,

a presença do Estado na gestão interna da PPP prisional e, especialmente, nas

atividades relacionadas à segurança e acompanhamento diário dos presos é mínima,

reduzindo-se à presença de um diretor público em cada unidade prisional do

complexo, além de um diretor geral.

Pela previsão contratual, a concessionária pode e deve realizar a segurança

interna da unidade prisional. Assim, pelo fato da segurança interna ser realizada

exclusivamente pela concessionária, através dos agentes de monitoramento, as

questões disciplinares são monitoradas e denunciadas majoritariamente por eles

também, o que resulta em grande influência relativa à punição dos presos por faltas

cometidas como dissemos, além de atribuir ao consórcio privado grande poder de

controle sobre os presos, inclusive em relação à sua integridade física e psíquica.

Apesar da existência de câmeras, existem locais não monitorados em sua inteireza,

como as entrevistas realizadas relatam, além do fato das câmeras registrarem

imagens, mas não sons, podendo acontecer ofensas verbais e ameaças dos agentes

de monitoramento não detectadas, ou ofensas perpetradas por presos registradas em

ocorrência, mas nunca cometidas.

A revista em celas também acontece cotidianamente e é realizada pelo

consórcio privado, sendo prevista no caderno de encargos da concessionária, e

realmente efetivada conforme relatos das entrevistas, em especial do agente de

monitoramento entrevistado, que informa que são os monitores que fazem o bate-cela.

Quando encontram algum produto ilegal durante o bate-cela, são os próprios

monitores que conversam com os presos e que registram a ocorrência, exercendo um

poder de investigação e de intimidação, uma vez que devem descobrir o responsável

pela quebra da disciplina.

Monitor: “É uma responsabilidade. Caso a gente ache alguma coisa, a gente já fala “aqui ó preso, você vai ter que me falar de quem que é”. Aí como os presos tem essas coisas de “ah eu não trabalho com (...) eu não sou X-9,” aí eles lutam “ah não quero ficar aqui não quero ficar de conferente não,” aí a gente tem que selecionar um, ‘ah mas cê não quer mas cê vai ter que ficar’ ” Carolina: Aí vocês mesmo escolhem? Monitor: “Aí a gente mesmo escolhe e se eles não elegem um, a gente mesmo, a gente pega um e elege.” (...) Monitor: “Quando é... vamos supor que foi uma coisa, uma coisa leve, um risco na parede, uma pichação. Aí a gente só faz o comunicado à cela, só tira fotos na parede e comunica. Vamos supor que seja uma coisa mais grave, vamos supor que a gente achou um celular na vivência. (...) Igual já aconteceu, anteriormente achamos o celular, aí a gente pega a cela toda e fala assim “ó cês tem dois minutos para me falar quem achou, para falar de quem que é isso aqui, se não achar vai todo mundo para o latão”, é bem direto, o papo é reto, ou

aparece um ou todo mundo vai pagar; Aí nós, a gente sai, dá uma volta e deixa eles discutindo, aí é lá conversando entre eles lá, aí quando a gente volta ou eles falam ou algum/ou alguém assume o objeto ou, se ninguém assume, vai todo mundo para o castigo.” Carolina: Aí vai a cela toda? Monitor: “A cela inteira e nesse caso é falta grave.” (...) Carolina: E quem conversa com eles? São vocês mesmo? Monitor: “Nós mesmos” Carolina: E o Estado junto ou não? Monitor: “Não, o Estado não.” Carolina: São vocês mesmo que fazem essa parte? Monitor: “O Estado ele só, ele só vem na unidade, só entra na unidade, tipo assim na área interna, só para fazer alguma manutenção, só nesse caso ou pra contribuir para algum procedimento mais de alto risco.” Carolina: Entendi Monitor: “Mas fora isso ele não entra.” (MONITOR, 2015)

Vemos claramente que a manutenção da disciplina interna e todos os

procedimentos e poderes necessários para tanto são exercidos por funcionários do

consórcio privado.

Além disso, o contrato de concessão da PPP prisional desrespeita frontalmente

as atribuições da Defensoria Pública, órgão estatal, uma vez que a equipe jurídica do

consórcio privado, pela previsão contratual, deveria exercer diversas das funções

próprias da Defensoria Pública, como a defesa dos presos judicialmente. Entretanto,

conforme relato do defensor público entrevistado, foi realizado um acordo entre o

governo mineiro, o consórcio privado GPA e a Defensoria Pública de Minas Gerais,

nos autos de uma ação civil pública impetrada pelo Ministério Público mineiro, para

que houvesse uma limitação da atuação da equipe jurídica privada, vedando uma

atuação judicial desses profissionais, que passaram a ter a atribuição de atendimento

dos presos internamente para prestar informações e esclarecimentos, além de

acompanhamento do tempo de pena.

Essa limitação e o posterior acordo só ocorreram devido à atuação da

Defensoria Pública e do Ministério Público, e não por iniciativa do governo mineiro.

Pelo projeto da PPP prisional, haveria, portanto, privatização até mesmo do

acompanhamento jurídico do preso, que seria realizado pelo consórcio privado,

responsável pela gestão do complexo penal. Assim, a empresa privada que lucra com

a estadia do preso em seu recinto, seria a responsável também por solicitar ao Poder

Judiciário todos os direitos dos presos relativos à execução penal.

Por essa análise, percebemos que a execução penal, no modelo da PPP

prisional, é transferida ao particular, que se torna responsável por todas as suas

etapas, inclusive as atividades-fim. Em outras palavras, ocorre efetiva privatização.

Na privatização, as atividades exercidas pelo Estado são transferidas ao

particular. No caso analisado, a execução penal, atividade que deve ser exercida pelo

Estado, é transferida ao particular através da parceria público-privada. O fato de haver

um diretor público em cada unidade penal não se mostra suficiente para elidir essa

transferência da execução penal. Assim, apesar dos discursos oficiais dos

representantes do governo de Minas Gerais, na prática, o que se tem é uma

privatização, que se legitima formalmente pela figura legal da parceria público-privada.

4. Transferência da execução penal ao privado

Nesse cenário, uma importante discussão é a (im)possibilidade do Estado

transferir o direito de punir, em uma de suas fases, ao particular. Afinal, a execução da

pena é uma das etapas do exercício do direito de punir estatal.

Pelo contratualismo, em termos gerais, o Estado se faz necessário para

impedir a guerra permanente entre as pessoas, ainda que autores contratualistas,

como Hobbes, Locke e Rousseau, divirjam sobre os motivos que levariam a tal guerra.

Assim, é realizado um pacto social (ou contrato social), que transfere o uso da força ao

Estado, para que ele garanta os direitos de todos, sendo o único legitimado a utilizar a

força física para a preservação de tais direitos.

Dessa maneira, em teoria, o contrato social, para ser legítimo, deveria garantir

a igualdade de todos, ao preservar os direitos de cada um, possibilitando uma

convivência harmônica. Entretanto, a sociedade em que vivemos, longe de ser

harmônica, é conflituosa. Há uma violência estrutural, uma vez que os direitos de

muitos não se encontram resguardados pelo Estado. Não podemos falar de um Estado

“sem paixões nem interesses”, posto que ele é conduzido, de fato, pelo interesse dos

dominantes. Aliás, não é isso que nos revela a origem do Estado? Foram grupos

vencedores militarmente que fundaram o Estado, que é fruto, portanto, da dominação

de alguns sobre outros.

Entretanto, ainda que o conflito social seja a tônica da sociedade, refletido

inclusive na seletividade do sistema penal, ao falarmos da transferência da execução

penal ao privado, necessário discutirmos a (im)possibilidade de tal transferência com

foco na sociedade almejada, na qual haja igualdade formal e material entre as

pessoas, e no Estado Democrático de Direito, que deve ser buscado, ainda que

inexistente na prática.

Assim, optamos, nesse momento, por uma análise da (im)possibilidade da

transferência do direito de punir ao particular, considerando-se ser aceita, em especial

jurídica e legalmente, a existência do monopólio do uso legítimo da força pelo Estado,

sem adentrar nas discussões da teoria política.

Dito isso, podemos afirmar que o Estado não pode transferir atos de império,

que implicam em uso da força, ao particular, sob o risco de se criar uma organização

estatal dentro do próprio Estado, uma vez ser o único ente legitimado a utilizar-se da

violência.

Nos dizeres de Cordeiro:

Enfim, delegar à iniciativa privada o poder de manter o homem preso sob sua guarda é algo de difícil aceitação, pois o poder exercido por um indivíduo contra o próprio indivíduo se trata de um poder ilegítimo. Não possui o Estado qualquer legitimidade para transferir a um particular o poder de coação que lhe foi conferido. (CORDEIRO, 2006, p. 76)

No mesmo sentido, temos a teoria weberiana, segundo a qual a formação do

Estado moderno vincula-se à nítida separação entre público e privado, resultando em

uma ampliação do público, que expropria os meios privados da violência, do poder e

da dominação. Dessa maneira, o uso do aparato repressivo é o meio de manutenção

do poder do Estado.

Aliás, a própria Lei 11.079/04, que regulamenta a parceria público-privada,

prevê expressamente a indelegabilidade do poder de polícia:

Art. 4o Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes: (...) III – indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado; (BRASIL, 2004)

No direito administrativo, a execução penal é tida como um serviço público

essencial e, portanto, indelegável, por exigir, ou poder exigir, o uso da força em

relação aos administrados, devendo ser exercido, portanto, apenas pelo Estado.

Ainda que se afirme que, na parceria público-privada prisional, o Estado se faz

presente, pela análise da realidade fática da PPP prisional e do contrato de

concessão, demonstramos que a presença do Estado é mínima. Equipes estatais

como o Grupo de Intervenção Estratégica (GIR) entram apenas em situações

específicas, sendo que a manutenção da disciplina interna é feita pelo parceiro

privado. Na entrevista com o monitor, ele relata que foi necessária uma reunião com

os agentes de monitoramento para diminuir o uso da tonfa, que estava sendo utilizada

de maneira excessiva. Assim, abusos físicos e também psicológicos ocorrem na PPP

prisional, havendo violência de um particular contra outro particular, em um ambiente

isolado como o prisional, de difícil fiscalização.

Importante salientar que a PPP prisional de Ribeirão das Neves, por ser a

primeira penitenciária formatada em parceria público-privada no Brasil, tem sido

acompanhada de perto por órgãos estatais como Ministério Público e Defensoria

Pública, além da própria mídia, que promoveu reportagens e programas sobre tal

penitenciária. E, ainda assim, diversos problemas podem ser encontrados na gestão

privada de tal complexo penal. Se tal modelo se espalhar e tornar-se comum, o

controle será menor e mais esporádico, permitindo ainda mais abusos por parte do

privado.

Outra importante questão relativa à divisão de responsabilidades e tarefas

entre público e privado, mencionada nas entrevistas, diz respeito à assunção de

responsabilidade dentro do complexo penal. Por mais que o contrato de concessão

seja extenso, e que haja previsão de objetivos e metas a serem cumpridos pelo

parceiro privado nas diferentes áreas da atuação prisional, existem lacunas e falhas.

Tais lacunas e falhas precisam ser sanadas no decorrer da gestão do complexo penal

e isso acaba acarretando longas discussões, que resultam em atrasos no

cumprimento dos objetivos ou simplesmente no não cumprimento de alguns desses

objetivos.

O próprio Hamilton Mitre, diretor geral do consórcio privado, admite que

existem lacunas, relatando que quando isso acontece, o consórcio privado e o Estado

se reúnem para decidir de quem é a responsabilidade. O defensor público entrevistado

alega que um dos maiores problemas da PPP prisional a seu ver é a assunção de

responsabilidade pelo privado ou pelo público, que geram discussões infindáveis. Dá

como exemplo a compra do body scan, que apesar de prometida, ainda não estava

efetivada.

“Eu acho que é um problema, um dos maiores problemas realmente, eu posso dizer assim, da parceria público-privada, é essa dificuldade de assunção de responsabilidades. Que lá tanto o privado, o público, até vamos dizer, o que é responsabilidade de um ou do outro, a gente cai numa discussão que é quase infindável”. (...) “Essa questão da revista vexatória, ela é constante lá na unidade prisional, justamente porque desde o início da implementação foi uma cobrança que a gente fez pesado, e acredito que o Ministério Público tenha feito também, no sentido de instalação de né, de equipamentos eletrônicos para fins desse monitoramento com um constrangimento menor. E isso foi uma discussão eterna entre o parceiro privado e o estado, de quem seria o responsável pela contratação desses equipamentos.” (DEFENSOR PÚBLICO, 2015)

E em outras falas dos entrevistados, essa falta de definição entre público e

privado se faz presente. A psicóloga entrevistada, por exemplo, relata a dificuldade

que tinha para reportar algum problema ao diretor, não sabendo se ia ao privado ou ao

público, além de haver alta rotatividade dos diretores públicos: “Lá é assim. Você fica

doidinha. Numa hora é com um que você tem que falar, na outra hora é com outro. É

muito chefe mandando. Ou seja, a gente ficava meio desorientado.”

Assim, além da transferência da execução penal ao particular, a divisão de

responsabilidades entre público e privado traz um problema adicional aos problemas já

existentes em qualquer gestão prisional: identificar o responsável pela execução de

determinada tarefa, gerando, com isso, entraves diversos para o bom funcionamento

do complexo penal.

5. Considerações finais

A PPP prisional de Ribeirão das Neves surge em um momento no qual a

política de privatização de presídios vem sendo colocada como a solução para o caos

do sistema carcerário no Brasil. A adoção da política neoliberal no Brasil a partir da

década de 1990 resultou, como em outros países, em uma hipertrofia do Estado penal

e no consequente aumento massivo do encarceramento.

O aumento exponencial do número de presos nas últimas décadas trouxe

como efeito, por óbvio, condições ainda mais degradantes de encarceramento, com

penitenciárias superlotadas, insalubres e violentas, além de exigir maior investimento

de recurso público, tendo em vista que temos hoje, no Brasil, aproximadamente 600

mil presos.

A partir disso, o discurso da redução economicista da crise do sistema

penitenciário, para utilizarmos a adequada expressão de Minhoto (2000), tem ganhado

espaço no atual cenário brasileiro e foi utilizado pelo governo mineiro para justificar o

contrato de concessão da PPP prisional.

O discurso da redução economicista da crise do sistema penitenciário consiste

em um diagnóstico comum da crise das prisões em diversos países ocidentais:

superpopulação e custos crescentes, o que resulta na necessidade da geração de

mais vagas prisionais que, por sua vez, demanda maiores gastos, impossíveis de

serem suportados pelo orçamento dos estados.

O encarceramento massivo passa a ser tratado como uma questão meramente

econômica, buscando-se, com isso, uma solução meramente econômica para tal crise,

qual seja, recursos financeiros para o aumento do número de vagas prisionais e para a

melhoria das condições de encarceramento. O parceiro privado aparece, nesse

discurso, como a melhor, ou quase única, possibilidade de mudança, por possuir o

capital necessário à construção de prisões e por ainda ser mais eficiente do que o

público na gestão, outro forte mito existente nesse mesmo discurso.

A prisão como mecanismo de controle social, a seletividade do sistema penal e

prisional, a política de encarceramento em massa e a impossibilidade de se construir

vagas prisionais no mesmo ritmo de encarceramento não são colocados em debate.

Um problema complexo, que envolve escolhas políticas, desde o momento de se

definir o que configura crime até o momento de previsão e aplicação de penas,

passando pela perseguição e execução penais, é reduzido a um problema econômico,

qual seja, a carência de recursos para vagas prisionais decentes. A solução está dada

pelo discurso oficial e envolve, necessariamente, a participação do privado na gestão

das prisões brasileiras.

A contextualização do momento no qual foi formatado e executado o projeto da

PPP prisional de Ribeirão das Neves, feita acima, é importante para podermos

problematizar as consequências da adoção de tal modelo de gestão prisional,

especificamente em relação à transferência da execução penal ao privado, objeto de

análise deste artigo.

A política de privatização de presídios, ao transferir a gestão interna do presídio

para o privado, pode resultar em uma normalização do poder de punir nas mãos de

alguns poucos particulares, com o declarado objetivo de proteção da sociedade

harmônica ameaçada, mas com os camuflados objetivos de lucro e de manutenção da

ordem social desigual existente.

Com a privatização de presídios, o privado passa a gerir a população presa e a

influir, ainda mais diretamente, nas políticas punitivas, tanto em sua elaboração,

quanto na aplicação diária de tais políticas, seja internamente dentro do presídio, seja

em suas relações cotidianas com o Poder Judiciário e outros órgãos/entes estatais.

A influência das relações pessoais nas políticas públicas consolida-se, com o

privado penetrando ainda mais concretamente o âmbito público, sendo atuante na

elaboração e na aplicação de leis, para garantir seu objetivo principal, qual seja, o

lucro. No caso das prisões, lucro obtido através da restrição da liberdade de seres

humanos.

A política de privatização de presídios traz, portanto, a possibilidade de uma

abertura da transferência da soberania para empresas privadas, que poderão decidir

sobre a restrição de liberdade das pessoas que, junto da decisão sobre a morte, é o

maior poder que alguém pode ter. Algo que ainda precisa ser disfarçado e rodeado de

justificativas, a soberania nas mãos de poucos, se tornará comum e, com isso, mais

sólido, pois, ao se transferir a execução penal, transfere-se também a soberania ao

particular.

E, a partir do momento em que se criam mecanismos para escamotear a

transferência de tal poder, como a parceria público-privada, abre-se uma primeira

brecha, legal, para que ocorra essa efetiva transferência. E se hoje a soberania nas

mãos do particular é excepcional, o que não arriscamos afirmar, em pouco tempo

pode se tornar regra consolidada.

O Estado, aquele teórico, guardião do bem comum e de todos os seus

cidadãos, ficará ainda mais fragilizado. Ao compactuar com a política de privatização

de presídios, o Estado fortalecerá, ainda mais, o poder político e econômico que já se

encontra nas mãos do privado, que passará a exercer também o poder de punir,

controlando diretamente a vida de milhares de pessoas, em breve milhões, além de se

tornar um ator central da política penitenciária e penal, tudo isso de maneira

legalmente estabelecida.

No Brasil, historicamente marcado por práticas autoritárias e violentas de

controle social, legalizar o uso da violência privada, o que ocorre com a transferência

da execução penal ao particular, pode ser ainda mais perigoso. Afinal, as relações de

dominação pessoal e de favores ainda prevalecem na estrutura social brasileira,

inclusive no âmbito público, fazendo com que, muitas vezes, regras impessoais de

direito cedam lugar a regras de autoridade. Com a privatização, tal característica

perpetua-se com ainda mais facilidade. Concordamos com Minhoto, quando ele afirma

que as prisões privadas no Brasil atraem também pela sua

(...) funcionalidade a um continuum de práticas formais e informais explicitamente autoritárias de gestão do problema da violência, do crime e da punição, que parecem demandar soluções privadas como extensão e reprodução de um processo histórico preexistente, estruturalmente marcado pela acomodação tensa, precária e complementar entre um “Estado da Violência” e o Estado de Direito. (Minhoto, 2000, p. 192)

Assim, com as prisões privadas, podemos afirmar que as possibilidades de

resistência ao sistema penal excludente e violento ficam ainda mais rarefeitas, por ser

essa uma política capaz de legitimar o poder de punir nas mãos dos dominantes,

fazendo com que qualquer defesa dos interesses minoritários, através de regras

democráticas, se torne ainda mais árdua. É preciso agir, antes que a privatização de

presídios torne-se regra no sistema prisional brasileiro.

REFERÊNCIAS

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Ribeirão das Neves. Belo Horizonte, 02 de abril de 2015. Entrevista concedida a

Carolina Brognaro.

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Ribeirão das Neves. Belo Horizonte, 02 de abril de 2015. Entrevista concedida a

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