HOJE É DIA DE MARIA BORRALHEIRA: Intertextualidades do … · 2014-11-28 · restritas às novelas...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras HOJE É DIA DE MARIA BORRALHEIRA: Intertextualidades do Roteiro da Microssérie Televisiva Myriam Pessoa Nogueira Belo Horizonte 2009

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Letras

HOJE É DIA DE MARIA BORRALHEIRA: Intertextualidades do Roteiro da Microssérie Televisiva

Myriam Pessoa Nogueira

Belo Horizonte 2009

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Myriam Pessoa Nogueira HOJE É DIA DE MARIA BORRALHEIRA Intertextualidades do Roteiro da Microssérie Televisiva

Dissertação apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Letras da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais, como

requisito para obtenção do título de

Mestre em Letras.

Orientador: Márcio de Vasconcellos Serelle Belo Horizonte 2009

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Myriam Pessoa Nogueira Hoje é Dia de Maria Borralheira: Intertextualides do Roteiro da Microssérie Televisiva Dissertação de mestrado da Faculdade de Letras – Departamento de Literaturas de Língua Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2009. --------------------------------------------------------------------------------------------------------- Prof.Dr.Márcio de Vasconcellos Serelle (Orientador) – Letras/Comunicação - PUC Minas Profa. Dra. Márcia Marques de Moraes – PUC Minas - Letras _____________________________________________________________________ Prof.Dr. Delfim Afonso Júnior – UFMG – FAFICH – Comunicação Social

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A meu pai, Professor José Nogueira da Silveira Reis, meu primeiro Mestre em Literatura.

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AGRADECIMENTOS Ao meu orientador, Prof.Dr.Márcio de Vasconcellos Serelle, que com tanta paciência e

detalhamento me guiou pelos caminhos da dissertação.

À minha mãe por ter suportado o período de “incubação”.

A Renata Soffredini, que tantos textos de seu pai me enviou, com presteza e paciência

e à SBAT(Sociedade Brasileira de Autores Teatrais), pelo contato com a filha de Carlos

Alberto Soffredini e por enviar-me uma de suas peças.

À Globo Universidade, por intermediar a entrevista por e-mail com Luís Alberto de

Abreu, e a este por sua boa-vontade. À Divulgação da Rede Globo, que por mais de vinte anos

me ajudou a entrevistar profissionais da área, e a todos os entrevistados de dez anos atrás, por

me concederem gentilmente seus depoimentos, os quais só agora utilizei.

À Pontifícia Universidade Católica e ao Departamento da Pós-Letras, que me deram a

chance de entrar num mestrado, e decidiram me conceder uma bolsa da CAPES para que eu

pudesse me concentrar na realização deste trabalho, e aos professores que me iluminaram o

caminho durante estes dois anos.

A Deus, por ter me dado paz de espírito em meio às tempestades e tempo para realizar

esta dissertação.

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LISTA DE ABREVIATURAS:

Cap. - capítulo

Cia. – Companhia

Color. – colorido

Dir. - direção

Ed. - edição

Gk – greek (grego)

Son. – sonoro

Min. – minutos

P&B – preto-e-branco

LISTA DE SIGLAS:

APCA – Associação Paulista dos Críticos de Artes.

CCBB – Centro Cultural do Banco do Brasil

DVD – Digital Versatile Disk, disco versátil digital.

EAD – Escola de Arte Dramática (da USP, ex-Alfredo Mesquita).

FLIP – Festa Literária de Paraty

INCE – Instituto Nacional de Cinema Educativo

NTSC – National Television System Comittee

SBAT – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais

SBT – Sistema Brasileiro de Televisão

SNT – Serviço Nacional do Teatro

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES:

FIGURA 1 Capa do livro.............................................................................................15

FIGURA 2 Avó/narradora..........................................................................................29

FIGURA 3 O Mascate.............................................................................................. ..32

FIGURA 4 Colcha de retalhos....................................................................................33

FIGURA 5 Maria lê livro da cabeça de Chico Chicote ..............................................38

FIGURA 6 Chove no sertão.......................................................................................45

FIGURA 7 Asmodeu Gato..........................................................................................48

FIGURA 8 Maria retorna ao lugar onde sepultara o morto.........................................54

FIGURA 9 Maria em “Xô Passarinho”.......................................................................63

FIGURA 10 Maria na estrada.......................................................................................67

FIGURA 11 Partitura “Xô Passarinho”......................................................................68

FIGURA 12 Madrasta e seu primeiro marido..............................................................76

FIGURA 13 Amado preso na gaiola...........................................................................77

FIGURA 14 Maria reflete de volta o feitiço................................................................78

FIGURA 15 Maria volta a um tempo anterior à estória................................................80

FIGURA 16 Emilia e Visconde de Sabugosa..............................................................82

FIGURA 17 Maria piano-baby e Soldado...................................................................83

FIGURA 18 Cavaleiro da Noite...................................................................................85

FIGURA 19 Maria e a Carvoeira..................................................................................87

FIGURA 20 Boneca.....................................................................................................91

FIGURA 21 Os Sete-Peles...........................................................................................94

FIGURA 22 Asmodeu Original....................................................................................95

FIGURA 23 Zé Cangaia e Maria..................................................................................96

FIGURA 24 Contracapa do livro...............................................................................100

FIGURA 25 Maria encontra as “franjas do mar”......................................................103

FIGURA 26 Gráfico da Curva Dramática da Primeira Jornada ................................117

FIGURA 27 Gráfico da Curva Dramática da Segunda Jornada.................................117

FIGURA 28 Dorso do livro.........................................................................................120

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RESUMO

Nesta dissertação estudamos as estratégias intertextuais de construção do roteiro da

microssérie Hoje é Dia de Maria, 1ª. e 2ª. temporadas, transposto para livro, de autoria de

Luiz Fernando Carvalho e Luís Alberto de Abreu. Para isso, identificamos as fontes literárias

– que vão de contos populares orais compilados por Sílvio Romero e Câmara Cascudo a

narrativas clássicas, tanto de nossa literatura como da universal – analisando sua articulação

na tessitura narrativa do roteiro do programa. Busca-se, assim, uma reflexão sobre o diálogo

entre literatura e televisão, que envolve uma base intertextual oriunda do universo

maravilhoso e mítico. O mosaico da trama desta minissérie tem como referência primordial a

adaptação da obra dramatúrgica de Carlos Alberto Soffredini e de seu modo de composição,

fundado na estilização.

PALAVRAS-CHAVE:

Literatura

Televisão

Minissérie

Adaptação

Intertextualidade

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ABSTRACT In this dissertation we studied the intertextual strategies of the miniseries Today is The

Day of Maria’s screenplay’s building, for the 1st and 2nd Journeys, which was translated into a

book by the authors Luiz Fernando Carvalho and Luís Alberto de Abreu. For that, we

identified the literary sources – from oral popular stories compiled by Sílvio Romero and Luís

da Câmara Cascudo to classic narratives, as much from Brazilian literature as from the

universal one – analyzing its articulation in the narrative texture of the show’s screenplay. We

search, then, for a reflection on the dialogue among literature and television, which involves

an intertextual basis, originated from the marvelous and the mythical universe. The plot’s

mosaic of this miniseries has as primary reference the adaptation of Carlos Alberto

Soffredini’s dramaturgical work and his way of composing, based upon stylization .

KEYWORDS:

Literature

Television

Miniseries

Adaptation

Intertextuality

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SUMÁRIO:

“NO SOL LEVANTE”(INTRODUÇÃO)...................... ....................................................12

CAPÍTULO 1 - “NAS TERRAS DO PÔR-DO-SOL”.....................................................16

1.1 - Intertextualidade, Dialogismo e polifonia...................................................................16

1.2 - Paródia, paráfrase e estilização....................................................................................22

1.3 - De como Carlos Alberto Soffredini se tornou o maior estilizador do teatro brasileiro

e como sua obra se tornou objeto de estilização da televisão

brasileira.................................................................................................................................25

CAPÍTULO 2 - “NO PAÍS DO SOL A PINO, EM BUSCA DA SOMBRA”...................34

2.1 – Formas Simples ou Formas Breves............................................................................34

2.2 – Características dos contos tradicionais.....................................................................36

2.2.1 – Oralidade e narrativas épicas....................................................................................36

2.2.2 – Concisão-intensidade-rapidez.....................................................................................40

2.3 – O maravilhoso.............................................................................................................43

2.4 – Características do conto maravilhoso.......................................................................45

2.4.1 – Repetição....................................................................................................................46

2.4.2 – Moral ingênua e indefinição histórica......................................................................46

2.4.3 – Descontinuidade entre causa e efeito........................................................................48

2.4.4 – Universalidade...........................................................................................................50

2.4.5 – Construção em abismo..............................................................................................50

2.5 – Mito do herói................................................................................................................51

CAPÍTULO 3 - “TERRA DOS SONHOS, ONDE O FIM NUNCA TE RMINA”.........55

3.1 – Roteiro, estrutura em movimento..............................................................................55

3.2 - Intertextualidades em Hoje é Dia de Maria..............................................................59

3.2.1 – Contos e cantos populares........................................................................................61

3.2.1.1 – Cinderela em Hoje é dia de Maria.......................................................................62

3.2.1.2 – A Madrasta em Hoje é Dia de Maria...................................................................63

3.2.1.3 – Dona Labismina em Hoje é Dia de Maria...........................................................65

3.2.1.4 – Outros contos-de-fadas em Hoje é Dia de Maria................................................66

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3.2.1.5 – Villa Lobos e o Cancioneiro Popular...................................................................68

3.2.2 – Literatura Brasileira em Hoje é Dia de Maria.......................................................69

3.2.2.1 – Cassiano Ricardo.................................................................................................70

3.2.2.2 – Mário de Andrade...............................................................................................71

3.2.2.3 – Drummond e Bandeira........................................................................................80

3.2.3.4 - Monteiro Lobato...................................................................................................82

3.2.3 – Literatura Universal em Hoje é Dia de Maria.......................................................84

3.2.3.1 – Lewis Carrol,Cervantes,Swift, Hugo, Silva.......................................................86

3.2.3.2 – Ésquilo/Dickens...................................................................................................87

3.2.3.3 – Shakespeare..........................................................................................................88

3.2.3.4 – Hoffman.................................................................................................................91

3.2.3.5 - O “duplo” em Hoje é Dia de Maria...................................................................92

3.2.3.6 – Brecht....................................................................................................................97

3.2.3.7 – Musicais americanos………………………………………………...................99

“NAS FRANJAS DO MAR”(CONCLUSÃO)................................................................101

REFERÊNCIAS..................................................................................................................104

APÊNDICE A (curva dramática).......................................................................................117

APÊNDICE B (entrevista com Luís Alberto de Abreu)...................................................118

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“NO SOL LEVANTE” – INTRODUÇÃO

“ e a agulha do real nas mãos da fantasia, fosse bordando ponto a ponto nosso dia-a-dia”

Gilberto Gil

Esta dissertação é um estudo da intertextualidade na minissérie da Rede Globo Hoje é

Dia de Maria por meio da análise dos diálogos propostos em seu roteiro televisivo publicado

em livro, envolvendo literatura e outras mídias. Não se trata de uma análise do produto

televisivo acabado, com suas leituras semióticas, com citações visuais e sonoras, embora não

seja de todo possível excluir estes signos, uma vez que nós, leitores, trazemos conosco toda

uma gama de informações adquiridas de várias formas e através de várias mídias. Nosso

objeto empírico é o livro publicado pela Editora Globo em 2006, com os dois roteiros das duas

partes da minissérie, exibidas respectivamente em 2005 e 2006. O livro do roteiro de Hoje é

Dia de Maria traz o contato com a narrativa escrita em formato dramatúrgico, apresentando

um texto da literatura contemporânea brasileira carregado de simbolismos, reconstruindo e

revitalizando o manancial das raízes do imaginário popular e seus contos orais maravilhosos.

A análise do roteiro possibilita o rastreamento mais preciso das relações intertextuais,

notadamente as literárias, que podem ter passado despercebidas, mesmo para um espectador

mais cultivado, quando da exibição da minissérie na TV ou, ainda, quando se assiste hoje ao

DVD.

Hoje é Dia de Maria é, para Luiz Fernando Carvalho, uma “tentativa de penetrar na

infância”1. Conforme nos conta Renato Cordeiro Gomes, (2006, p.2) “o universo mágico da

minissérie surgiu, em grande parte, dos esboços e textos criados pelo diretor em seus cadernos

de anotações”. Em Hoje é Dia de Maria temos a “legitimidade reforçada pelos intelectuais de

renome” (GOMES, 2006, p.4). Seus autores são: o dramaturgo falecido em 2001, Carlos

Alberto Soffredini2, o diretor Luiz Fernando Carvalho3 e o também dramaturgo Luís

Alberto de Abreu4.

1 Entrevista concedida para o making off do DVD de Hoje é Dia de Maria, 3 discos digitais; Rio:Globomarcas, 2006(556 min). 2 Carlos Alberto Soffredini formou-se em Letras pela Faculdade de Filosofia de Santos; em 1967 ganhou o Prêmio do Serviço Nacional de Teatro, SNT, pelo texto O Caso dessa tal de Mafalda, que deu o que falar, e acabou como acabou, num dia de carnaval. O subcapítulo 1.3 deste estudo é dedicado a sua obra, e o subtítulo faz juz ao humor contido no tamanho de seus títulos (de inspiração brechtiana). Escreveu uma novela para o SBT, Brasileiros e Brasileiras , juntamente com Walter Avancini. 3 Luiz Fernando Carvalho teve sua experiência em minisséries iniciada na década de 80, como parte da equipe de direção de O Tempo e o Vento e Grande Sertão:Veredas. Dirigiu a minissérie Riacho Doce e depois Os Maias.Adaptou Ariano Suassuna, desde especiais como A Farsa da Boa Preguiça, Uma Mulher Vestida de Sol,

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Antes desta minissérie, as experiências com o maravilhoso na TV eram praticamente

restritas às novelas escritas ou adaptadas por Dias Gomes, como Saramandaia e Roque

Santeiro – da sua peça O Berço do Herói; às minisséries, com aparições de orixás no

Pelourinho em Tenda dos Milagres e a presença de Vadico em Dona Flor, ambas adaptações

da obra de Jorge Amado, e Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, adaptado do universo

fantástico por Paulo José; aos seriados, nas aventuras do Sítio do Picapau Amarelo e do

Castelo Rá-Tim-Bum; e a alguns “casos especiais”, especialmente os dirigidos por Luiz

Fernando Carvalho. Mas, mesmo em face desses exemplos, é possível afirmar que a

dramaturgia da TV é predominantemente, assim como nossa ficção literária, voltada ao costeio

do real.

O recorte proposto para construção teórica e eixo analítico foi o da intertextualidade. O

roteiro de Hoje é dia de Maria não foi construído a partir de uma adaptação de uma obra

apenas, mas de um processo de reciclagem cultural (KLUCINSKAS; MOSER, 2007), presente

na estilização feita pelos autores da microssérie, adaptando à realidade e à cultura nacionais

elementos da cultura universal, e, ao mesmo tempo, resgatando da oralidade popular outros

elementos, tidos como folclóricos, e consagrando-os num padrão considerado elitista dentro da

TV brasileira, padrão este determinado já pelo horário de exibição (22h30), público a que se

destina e profissionais envolvidos. A ironia intertextual (ECO, 2003) – referência a outra obra

proposta ao leitor numa lógica de jogo intertextual – está presente nos diálogos e personagens

citados; quanto mais informação tiver o público, mais citações ele poderá ter o prazer de

desfrutar.

Outras possíveis análises deste material pertencem ao terreno da semiótica, ou da

hipertextualidade (no sentido de adaptação), uma vez que também na cenografia, no figurino,

na iluminação, na interpretação dos atores e na direção musical estão presentes elementos que

os profissionais da área chamam de “homenagem” aos grandes mestres da arte. Procuraremos,

no entanto, nos manter no terreno literário, que, por si só, já abre diversos caminhos para

investigação, demandando estudos, entre outros, acerca do conto maravilhoso e oral. Assim,

poderemos fazer uma reflexão sobre o diálogo entre literatura e televisão, sobre o fazer

literário e a escrita televisiva. Esta microssérie – termo usado para designar igualmente até a microssérie A Pedra do Reino, onde reafirmou sua pesquisa da linguagem épica em fusão com a dramaturgia lírica. 4 Com quase 30 anos de dedicação ao teatro, Luiz Alberto de Abreu é mais conhecido como o autor premiado de “Bella Ciao”, mas hoje tem sucessos como “O Livro de Jó”. Seus textos, como os de Soffredini, abordam a temática do teatro popular, especialmente a comédia. Escreveu os roteiros dos filmes “Kenoma” e “Os Narradores de Javé”cujo tema é a narrativa oral popular, ambos de Eliane Caffé. Estreou com Hoje é dia de Maria na TV.

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minissérie de TV de menos de oito capítulos – já foi bastante analisada pelos comunicólogos,

quando de sua exibição na TV, em 2005. Aos especialistas da área de Letras, porém, não

concerne pesquisar os efeitos do impacto de um programa televisivo através da análise

imediata, mas o seu efeito a longo prazo, tratando principalmente do interesse despertado no

público em relação à leitura de clássicos da literatura adaptados, ou, como é o nosso presente

caso, o caminho inverso, o da transformação de uma obra televisiva ou cinematográfica em

livro.

Dentre as cenas da microssérie que fazem homenagem à literatura, se destaca a

passagem em que Maria lê o livro de cabeça de Dom Chico Chicote, na intenção de avivar sua

memória. Essa é a grande metáfora da minissérie, podemos dizer até uma das “morais” da

estória – a passagem da literatura oral, representada pela figura da Narradora, à escrita,

simbolizada pela figura de D.Chico – e, por sua vez, à televisiva, pela própria condição de

produto audiovisual.

O nosso objetivo principal é, neste trabalho, identificar os contos orais populares, as

lendas, os poemas e demais fontes da literatura brasileira e universal presentes nesta obra, ou

seja, as intertextualidades presentes no livro de Luiz Fernando Carvalho e Luís Alberto de

Abreu, e compreender sua utilização na tessitura da obra.

No primeiro capítulo, fizemos uma revisão teórica sobre o tema da intertextualidade,

desde Bahktin e Gerard Genette, passando por Linda Hutcheon e Robert Stam, teóricos que,

transitando entre literatura e formas audiovisuais, apontam importantes questões acerca do

diálogo intermidiático. Ainda na primeira parte, vimos os conceitos de reciclagem cultural

(KLUCINSKAS; MOSER, 2007) e de ironia intertextual (ECO, 2003); na segunda parte do

primeiro capítulo, estudamos a classificação que Affonso Romano de Sant’Anna fez da

paródia, da paráfrase e da estilização, abrindo caminho para o estudo da obra do dramaturgo

paulista Carlos Alberto Soffredini e suas estilizações.

No segundo capítulo, realizamos uma incursão no terreno do maravilhoso, gênero

predominante de Hoje é dia de Maria, estudando suas teorias e conceitos, desde LeGoff a

Todorov, diferenciando-o do fantástico, do realismo maravilhoso estudado por Irlemar

Chiampi e do realismo mágico analisado por Wendy Faris. Entramos nas definições do conto

oral, desde as classificações de Luís da Câmara Cascudo e as categorizações de Vladimir

Propp via Haroldo de Campos, as características das formas simples (JOLLES, 1976), revistas

por Cortázar e Ítalo Calvino, até as modernas teorias das formas breves de Ricardo Piglia e

Jorge Luís Borges. Definimos o conto maravilhoso seguindo a moral ingênua e não-histórica

de André Jolles, procurando entender o que ele denomina de gesto verbal trágico na literatura,

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contrastando-o com o conceito de gesto social trágico do teatro brechtiano. Estudamos o mito

do herói como parte importante da fábula, com Joseph Campbell e Junito Brandão, via Jung, e

Flávio Kothe, que nos guiou no caminho das heroínas modernas e proletárias.

No terceiro capítulo, investigamos o processo de produção do roteiro da série,

desvendando os procedimentos literários, as estratégias narrativas utilizadas pelos autores.

Nosso objetivo, no capítulo três, foi identificar e refletir sobre as intertextualidades, a

articulação entre as obras apropriadas e os diversos sentidos gerados a partir dos diálogos

propostos pela obra. Foi analisada, na minissérie, desde a presença dos contos de Cascudo e

Sílvio Romero, até as canções de Villa Lobos; de Monteiro Lobato a Lewis Carrol, de

Bandeira a Drummond, de Shakespeare a Ésquilo, de Cervantes a Antônio José da Silva, de

Hoffmann a Jonathan Swift, de Cassiano Ricardo a Mário de Andrade, respeitadas as

subdivisões como categorias analíticas estabelecidas neste estudo, entre literatura oral,

literatura brasileira, literatura estrangeira e músicas. O duplo, característica da literatura

fantástica, foi também abordado aqui, já que encontrou grande repercussão em um

personagem desta microssérie, o diabo Asmodeu.

Os nomes dos capítulos foram dados seguindo os nomes dos quatro blocos do episódio

original de Soffredini e dos capítulos do roteiro de Abreu e Carvalho, numa busca de fusão

criativa com o objeto. É uma proposta metodológica que fará sentido na medida em que o

conteúdo for desenvolvido dentro de cada subdivisão.

Figura 1-Capa do livro da minissérie por Jackeline Sales com os personagens criados por Soffredini para a Primeira Jornada.

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CAPÍTULO 1- “NAS TERRAS DO PÔR-DO-SOL”:

“Com a minissérie ‘Hoje é Dia de Maria’, Luiz Fernando Carvalho conseguiu levar para a tela uma das coisas mais imponderáveis da narrativa: o maravilhoso(...)uma espécie de quarta dimensão, que é onde a obra de arte fala ao inconsciente de todos.”

Affonso Romano de Sant’Anna5

1.1 – Intertextualidade, dialogismo e polifonia

Para rastrear as fontes autorais de um roteiro de televisão, meio assumidamente

derivativo, teremos de voltar pelo caminho do cinema, da literatura local, da literatura mundial,

dos séculos, até dos milênios. Dentre as mais bem-sucedidas produções dramatúrgicas tanto da

televisão quanto do cinema estão as adaptações literárias.

“Adaptação” significa, em sentido amplo, o trabalho de adequação de um texto a outro

veículo. A obra de um autor literário, seja um só livro, ou todo o conjunto da obra, é

transmutada de suas fontes para outra mídia. Quando falamos, no entanto, como é nosso caso,

de uma colcha de retalhos de várias citações, tão ricas quanto for o universo do leitor, não é

uma única obra que está sendo revisitada, mas várias que, juntas, formam um amálgama ou um

mosaico, para usar imagem mais bela. Mesmo que, como afirma Hutcheon(2006, p.21), “as

adaptações são obviamente multilaminadas para o público – diretamente e abertamente

conectadas com outros trabalhos reconhecíveis, e esta conexão é parte de suas identidades

formais6” (tradução nossa) – o conceito de “adaptação” é ainda insuficiente em face do

compósito de Hoje é Dia de Maria, pois o próprio roteiro, como “hipotexto”, já é uma rede

intertextual. Devemos retomar, aqui, então, o termo intertextualidade, como desenvolvido por

Gerard Genette. Segundo Stam (2000, p.65), ele o definiu como “uma efetiva co-presença dos

dois textos” (tradução nossa), usando, ainda, os termos “metatextualidade, que seria a relação

crítica entre um texto e outro”; “ transtextualidade”, referindo-se “a tudo o que coloca um

texto em relação, seja manifesta ou secreta, com outros textos”; por fim, “hipertextualidade, a

relação entre um texto (hipertexto) e um texto anterior (hipotexto), que ele transforma,

modifica, elabora ou estende.” 7

5 Epígrafe do dvd Hoje é dia de Maria – 3 discos digitais; Globomarcas, 2006 (556min.) 6 No original: “For audiences, such adaptations are obviously multilaminated; they are directly and openly connected to recognizable other works, and that connection is part of their formal identity…” 7 Effective co-presence of two texts (...)metatextuality, the critical relation between one text and another. (…)transtextuality, all that which puts one text in relation, whether manifest or secret, with other texts.

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Como assinala Hutcheon (1985, p. 32), “o Palimpsestes de Gérard Genette é um dos

trabalhos mais importantes para o estudo da intertextualidade – das relações manifestas ou

secretas entre textos. Ele enfoca a hipertextualidade ou as relações de comentário de um texto

com outro anterior”.

Palimpsesto, do grego pálin (outra vez) psestós (raspado) significa “raspado

novamente8”. Algo que se usa como um mata-borrão, repetindo o anterior, mas, na idéia de

Genette, resultante de uma releitura. Ao lado da idéia do palimpsesto, o conceito de dialogismo

intertextual

(...) sugere que todo texto forma uma interseção com superfícies textuais; o dialogismo complexo e multidimensional, enraizado na vida social e na história, compreendendo ambos os gêneros primário (oral) e secundário (gêneros literários) que engendram a literatura como um fenômeno cultural (STAM, 2000, p.64) ( tradução nossa)9

Dialógico, do grego dialogikós, relativo a diálogo, implica, pelo menos, uma bi-

vocalidade. Não apenas o autor impondo seu ponto de vista, num monólogo, mas personagens

mostrando seu universo, e o leitor interagindo, como testemunha ou inserindo-se na trama

como confidente; tudo isso pertence ao universo polifônico. (Polifônico, relativo à polifonia, do

grego polyphonía, “variedade de tons”.10) A polifonia é um termo que Bahktin tomou

emprestado da música, para nos fazer perceber um universo estético harmonioso. “O autor

literário, como o eu concebido por Bakhtin, não é uma entidade estática, mas, antes, uma

energia disponível, que existe em interação com outros ‘eus’ e personagens.”(STAM, 1992,

p.18). Quando os personagens “falam”, “criam vida”, não permitindo, portanto, que a opinião

do autor se superponha, de modo único, às das personagens.

Em Hoje é Dia de Maria, há uma multiplicação das vozes, ora da narradora, ora dos

personagens contando a estória em tempo real, também multiplicando os pontos de vista,

numa polifonia dialógica; as mudanças que se dão no desenrolar da estória, as perspectivas

cruzadas, ora de Asmodeu, ora da narradora/madrinha, dão o tom polifônico do roteiro.

Podemos falar também, e é nosso caso aqui, da conversação entre textos e não apenas

da polifonia interna, entre narrador, personagens e autor. A intertextualidade então inclui esse

(…)hypertextuality, the relation between one text to an anterior text, which the former transforms, modifies, elaborates and extends. 8 Palimpsest, n. a parchment or the like from which writing has been partially or completely erased to make room for another text. L. palimpsestus Gk palimpsestos rubbed again. (WEBSTER, p.1397) 9 …suggests that every text forms an intersection of textual surfaces (…)complex and multidimentional dialogism, rooted in social life and history, comprising both primary (oral) and secondary (literary) genres _ which engendered literature as a cultural phenomenon. 10 GK.Variety of tones. See Poly-,-phony; WEBSTER, p.1501.

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conceito da polifonia quando o texto torna-se uma orquestração de vários outros textos da

história da literatura e da vida literária do autor.

“A visão carnavalesca do mundo se assenta, para o autor (leia-se Bakhtin), numa

cultura da qual decorrem grandes obras, como as de Cervantes ou o picaresco em geral,” nos

diz Diana Luz Pessoa Barros (FIORIN; BARROS, 2003, p. 7) (grifo nosso). O livro de

Cervantes serve como exemplo do carnavalesco para Bakhtin (1990), de polifonia e

dialogismo. Segundo Hutcheon, da união do romance de cavalaria com um novo interesse

literário pelo realismo cotidiano surgiram Dom Quixote e o romance: “É certo que os

formalistas russos utilizaram textos paródicos como modelos, e Dom Quixote é a obra que

melhor revela, segundo Foucault, a separação entre o epistema moderno e o renascentista:”

(HUTCHEON, 1985, p.12) Erlich, citado por Hutcheon, disse que “Dom Quixote era um das

obras preferidas por Sklovski11 porque a sua forma paródica coincidia com a sua própria teoria

e sobre o papel da paródia no desnudar ou desconstruir aquela” (HUTCHEON, p.14). Para

Hutcheon, o próprio livro de Cervantes já é, em si, “uma paródia às convenções do romance

épico e de cavalaria; interatua com a sátira daquele que acha que semelhante heroicização na

literatura é potencialmente transferível para a realidade”. (HUTCHEON, 1985, p.38) Cervantes

está localizado entre o Renascimento e o Barroco, sendo o picaresco seu estilo. Segundo

Campbell, para Ortega y Gasset, em “Meditações sobre o Quixote”, este foi o último herói da

Idade Média: “O herói se vê lutando contra um mundo duro, que não corresponde às suas

necessidades espirituais.” (CAMPBELL, 1996, p.138). Mas Quixote preservou a aventura para

si mesmo, com sua imaginação poética.

A literatura carnavalesca, descrita por Mikhail Bakhtin (1997), de Luciano a Rabelais,

de Swift a Dostoiévski, é usada extravagantemente, gastando seus recursos além de suas

necessidades referenciais. A mesma história é freqüentemente contada duas vezes, de dois

diferentes mundos, por mais de um narrador, num vertiginoso arranjo de detalhes e versões

conectados, e a mesma imagem é usada várias e várias vezes. Pensemos, como exemplo dessas

reiterações, as duas “jornadas” de Hoje é Dia de Maria. Este modo de escrever é um modo

barroco, de excesso, onde, como diria Lyotard, “a percepção da fantasia apodera-se da

realidade” (LYOTARD apud FARIS, 1997, p.186) (tradução nossa)12. Para Bahktin, os

espetáculos cômicos e as festividades carnavalescas construíam um outro mundo, uma vida

fora do socialmente estabelecido.

11 Um dos teóricos russos. 12 The realization of the fantasy to seize reality.

19

19

Outro exemplo de carnavalesco, dentro já da cultura brasileira, é Macunaíma, de Mário

de Andrade, “estudado por Suzana Camargo à luz das quatorze particularidades de Bakhtin”.

(STAM, 1992, p.39). Uma delas, que podemos destacar também em Hoje é Dia de Maria, é o

uso abundante de gêneros ‘intercalares’ – ou seja, a presença de piadas, canções, provérbios,

cartas, etc. O próprio Mário de Andrade, como nos diz Gomes (2006, p.8), classificou sua obra

como uma rapsódia, isto é,

(...) uma composição formada de diferentes trechos, ou de diversos cantos tradicionais e mitos do Brasil e da América, como um cantador (versão popular do rapsodo grego que contava com fragmentos de outros cantos épicos), que se apropria de material já existente para criar através da nova combinação.

Vemos muito do carnavalesco, que contribui para iluminar a base conceitual sobre a

intertextualidade, na minissérie Hoje é Dia de Maria. A rapsódia de Mário de Andrade serve

como paradigma estrutural, não apenas como intertextualidade para a minissérie – que

apresenta uma arquitetura com as estórias que nascem de dentro de outras estórias, com a

presença das canções que Villa-Lobos resgatou da cultura popular, os ditados, os desafios entre

Maria e o Diabo – todos muito caros ao nosso folclorista e grande intelectual paulistano.

Finalmente, tomando Bahktin como princípio, Stam nos revela uma teia de inter-

relações textuais que pode ser mais facilmente percebida na televisão em trabalhos

cuidadosamente produzidos, como acontece num romance de um grande autor ou nas nossas

minisséries de TV. Os estudos de narrativas, como veremos no capítulo dois, demonstram que

o conto oral é a origem de todos os contos, e é considerado primário, primordial por Bahktin e

a escola russa. De acordo com Linda Hutcheon, a teoria de intertextualidade pós-estruturalista

da qual a maior representante é a seguidora de Bahktin, Julia Kristeva, tem sido importante

para criar “desafios a noções pós-românticas dominantes de originalidade, autonomia e de

caráter único. Os textos são considerados mosaicos de citações que são visíveis ou invisíveis,

ouvidas ou silenciosas; eles são sempre já escritos ou lidos.” (HUTCHEON, 2006, p.21)

Para Walty, Paulino e Cury (1995, p. 21-22), Kristeva diz que “todo texto é uma

retomada de outros textos. Tal apropriação pode-se dar desde a vinculação a um gênero, até a

retomada explícita de um determinado texto”. O termo apropriação pode também significar

esse empréstimo de uma fonte anterior, cujo reconhecimento se dá no balanço

intertextual/irônico.

Outro termo em voga é o de reciclagem cultural. Segundo Walter Moser e Jean

Klucinskas (2007, p.17), a reciclagem, termo que resumiria as transformações hoje presentes na

produção cultural, caracteriza-se por “deslocamentos espaciais e temporais de objetos estético-

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20

culturais, abarcando um processo que consiste em várias fases de um gesto que comporta ao

mesmo tempo repetição e transformação.”

As bases da teoria da reciclagem estão nos Cultural Studies, que tentam descobrir uma

dinâmica entre a cultura erudita e a popular. Jean Baudrillard (apud KLUCINSKAS; MOSER,

2007, p.29) já teria previsto isso em seu livro A ilusão do fim ou a greve dos acontecimentos:

“Parece que estamos destinados à retrospectiva infinita de tudo o que nos precedeu. A arte atual

está a reapropriar-se das obras do passado com a invenção da pós-modernidade e da

reciclagem”. O precursor dessa estética seria o gênero literário de montagem de citações – em

francês, centone. Para Moser e Klucinskas (2007, p.20), “é forçoso constatar que a produção

cultural contemporânea está associada a esse gênero de procedimentos” – referem-se aqui à

paródia, reescritura, recriação, comparando-as com os remakes, revivals, e até aos plágios e

pastiches – o que, se não é o caso de Hoje é Dia de Maria, caracteriza grande parte da

programação televisiva (vale lembrarmos da frase cunhada por Abelardo Barbosa, o

Chacrinha, “na TV nada se cria, tudo se copia”).

Essa trama entre os textos e entre as linguagens é, então, ao mesmo tempo, como diria

Bassnett, “comunicação intercultural e intratemporal” 13 (BASSNETT apud HUTCHEON,

2006, p.16) ( tradução nossa), entre culturas através do tempo. Daí a famosa noção de diacronia

de Bakhtin, que, segundo Kristeva, tem em vista a escritura como “leitura do corpus literário

anterior, o texto como absorção e réplica a outro texto.” (KRISTEVA, 1974, p.67) A diacronia

é algo que ultrapassa as barreiras dos séculos e permanece no universo cultural de várias

gerações. É “o gênero como depósito da memória literária”. ( KRISTEVA apud LOPES, 2003,

p.64). Ou, como questiona Linda Hutcheon (1985, p.54), “o diálogo intertextual não é um

diálogo entre o leitor e a sua memória de outros textos, conforme são evocados pelo texto em

questão?” Ela estudou as hipóteses de Roland Barthes, que “define a intertextualidade como

uma modalidade da percepção, um ato de descodificação de textos à luz de outros textos. Para

Barthes, no entanto, o leitor é livre de associar os textos mais ou menos ao acaso, limitado

apenas pela idiossincrasia individual.” (idem, ibidem) Descodificar, aqui, significa determinar

os códigos.

De acordo com Klucinskas e Moser (2007, p.28), Benjamin nos remete à influência da

“concepção do espectador, da recepção de massa e à atitude da recepção” como determinantes

na “maneira pela qual as novas mídias determinam nossa experiência.” E quais seriam as

idiossincrasias do leitor/espectador das minisséries, notadamente as de Luiz Fernando

13 An act of both inter-cultural and inter-temporal communication .

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Carvalho? Com certeza não é um espectador que precise acordar cedo no dia seguinte, ou pelo

menos é alguém que pode gravar o programa para assistir a ele com mais calma depois. É um

público afeito às adaptações literárias; isso, com certeza.

Segundo Eco (2003, p.200), em seu texto Ironia Intertextual e Níveis de Leitura, “o

leitor moderno que for incapaz de reconhecer a citação intertextual é excluído da compreensão

do texto.” Ele fala de um banquete onde há diferentes salas-de-jantar para diferentes gostos,

onde a literatura erudita pode obter sucesso popular, mas com ressalvas:

A ironia intertextual não convida todos os leitores para um mesmo banquete. Ela os seleciona, e privilegia os leitores intertextualmente avisados, embora não exclua os menos avisados. (...) O leitor informado “pega” a referência e saboreia sua ironia – não apenas a piscadela que lhe dirige o autor, mas também os efeitos de enfraquecimento ou de mutação de significado (quando a citação se insere em um contexto absolutamente diverso daquele da fonte). (ECO, 2003, p.206)

Por ironia ele entende, de modo geral, não “o contrário do verdadeiro, mas o contrário

daquilo que se presume que o interlocutor acredita ser verdadeiro.”(ECO, 2003, p.217) Para

Eco ( 2003, p.204), “quem entende a alusão estabelece uma relação privilegiada com o texto

(ou com a voz narradora), quem não entende segue adiante da mesma forma”, mas perde a

ironia. Podemos utilizar a análise intertextual que Eco faz do Quixote de Pierre Menard, no

conto de Borges. Ele basicamente diz que, quem nunca ouvira falar de Cervantes, apreciaria

uma história com uma série de aventuras heróico-cômicas cujo sabor sobrevive. Quem, no

entanto, percebesse a remissão constante ao texto cervantino, captaria não apenas as

correspondências, mas também a constante e inevitável ironia. “A ironia intertextual, portanto,

coloca-se como relação de desafio entre o leitor e um texto, que solicita de alguma maneira a

descoberta de seu segredo dialógico”, completa Eco (2003, p.211).

Para Pasolini, a cooperação do leitor é uma exigência; este deve “pensar por imagens,

reconstruindo na sua cabeça o filme que é aludido como obra a fazer (...) na fantasia cooperante

e dotada de simpatia do leitor”. (PASOLINI, 1981, p.157-158) A ironia intertextual é um

seletor de classes. Quando um texto, no entanto, desencadeia a mecânica da ironia intertextual,

não se deve esperar que ele produza apenas o que o autor gostaria de remeter, pois a leitura

depende da “enciclopédia textual do leitor” (ECO, 2003, p.213), o que varia caso a caso. Como

disse Piglia (2006, p.204), a leitura é “a arte de construir uma memória pessoal a partir de

experiências e lembranças alheias”.

Há situações, inclusive, em que o leitor encontra alusões que o próprio autor ignorava, o

que não deixa de ser irônico. É o que acontece, possivelmente, em Hoje é Dia de Maria, onde

se encontram passagens de textos teatrais de Soffredini que, talvez de tão embutidas no

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inconsciente do leitor/espectador Luís Alberto de Abreu, um dos roteiristas da obra, não foram

conscientemente notadas quando da produção do texto, conforme veremos na entrevista com o

adaptador.

Porém, isso levanta um problema: a microssérie deveria obedecer à regra básica da

televisão, que é a inclusão do espectador médio. Nos perguntamos se o texto de Hoje é Dia de

Maria é capaz de transformar mesmo o mais ingênuo telespectador, que começaria a perceber

outros textos que precederam o programa a que ele está assistindo. Quantos destes

telespectadores poderiam captar as estratégias da ironia intertextual? Espectadores/leitores de

idades diferentes, por exemplo, podem assistir a um programa com censura 12 anos, mas a

bagagem cultural remete a antigas gerações. Podemos então dizer que o texto de Hoje é dia de

Maria, pelo feixe rico em referências, privilegia o leitor intertextual ao ingênuo, ao espectador

de TV comum, como acontece, na verdade, em todas as minisséries brasileiras.

1.2 – Paródia, Paráfrase e Estilização:

A TV brasileira tem origens na Atlântida, e esta citava, em suas chanchadas, peças

famosas e filmes de Hollywood através de paródias. “É dentro deste contexto carnavalesco que

a paródia aparece no cinema brasileiro, como crítica de alguns aspectos da sociedade. A

linguagem do carnaval e as inversões aparecem em uma grande maioria das paródias,

notadamente nas chanchadas.”14 (VIEIRA, 1982, p. 259) (tradução nossa). Para Vieira, era

com um certo complexo de inferioridade que as chanchadas brasileiras faziam uma releitura

dos filmes hollywoodianos; numa declaração de não se ter condições de fazer algo igual no

cinema nacional, ironizava a própria cultura. Não é o que acontece na TV brasileira de hoje,

que tem seus programas dentre os melhores do mundo. Esta minissérie, por exemplo, foi

premiada internacionalmente pela sua qualidade15, e, como veremos, trata-se de um jogo

paródico, de um jogo de espelhos, como em Alice no País do Espelho.

Segundo Fávero, “num único discurso podem-se encontrar duas orientações

interpretativas, duas vozes. Assim é o discurso parodístico, a estilização” (FÁVERO,2003,

p.53). Paródia vem do grego para- ode – literalmente, ao lado da canção. De acordo com o

dicionário de literatura de Brewer, “paródia significa uma ode que perverte o sentido de outra

ode.(...) Shipley registraria que o termo implicava a idéia de uma canção que era cantada ao 14 It is within this Carnavalesque context that parody appears in Brazilian cinema as critical of some aspects of structured society. The language of carnival and the inversions appear in a great majority of the parodies, and most notably in the chanchadas. 15 Indicação ao Emmy Awards e Prêmio APCA em 2005, de acordo com o site da minissérie, disponível em http://hojeediademaria.globo.com/. Acesso em 21de junho de 2008.

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lado de outra, como uma espécie de contracanto”(SANT’ANNA, 1985, p.11-12). Na

contemporaneidade, para Hutcheon, quando falamos de paródia,

(...) não nos referimos apenas a dois textos que se inter-relacionam de certa maneira. Implicamos também uma intenção de parodiar outra obra, ou conjunto de convenções, e é tanto um reconhecimento dessa intenção como a capacidade de encontrar e interpretar o texto de fundo na sua relação com a paródia. (HUTCHEON,1985, p.34)

Como modalidade intertextual, a paródia tem a força da crítica para Walty, Cury e

Paulino: “É uma forma de apropriação que rompe com o modelo, seja de forma sutil ou

abertamente” (PAULINO;WALTY;CURY,1995, p.36). Na paródia, as vozes provêm de

mundos diferentes; elas se fazem ouvir numa leitura polifônica, como na noção de bivocalidade

baktiniana:

Marca fundamental da paródia, o caráter polifônico a faz absorver um texto para depois o repelir, recriando-o num modelo próprio. Ela não se reduz a uma mera repetição do texto primitivo, mas soa como um eco deformado e as palavras do outro se revestem de algo novo, tornam-se bivocais. (LAURITI apud FÁVERO,2003, p.53)

Há, segundo Affonso Romano de Sant´Anna (1985), três tipos de paródia: a verbal, que

seria alteração de palavras; a formal, uma zombaria do estilo; e a temática, uma caricatura do

espírito do autor. Modernamente, para Romano, a paródia é definida como um jogo de

intertextualidades. Sobre os paralelos entre paródia e estilização, Sant´Anna transcreve o

conceito de Bakhtin, que considerava a paródia o ato de empregar a fala de um outro, mas com

uma intenção oposta; pode-se parodiar o estilo de outro num sentido diferente. Mas na

estilização, deve-se seguir o sentido original: “Um autor pode usar o discurso de um outro para

seus fins pelo mesmo caminho que imprime nova orientação e a conserva. Neste caso, esse

discurso deve ser sentido como o de um outro.” (BAKHTIN apud FÁVERO, 2003, p.53). Já o

conceito de paráfrase para Sant’Anna segue o de tradução ou transcriação (CAMPOS, 2004). A

paráfrase não contradiz o original, antes o cita, cria em cima sem anular o anterior, apenas

altera o necessário para adaptar para determinada situação. Seguindo ainda o raciocínio de

Sant´Anna (1985, p.36), “falar de paródia é falar de intertextualidade das diferenças. Falar de

paráfrase é falar de intertextualidade das semelhanças.” Para ele, o que o texto parodístico faz é

uma nova e diferente maneira de ler o convencional, é um processo de liberação do discurso,

uma tomada de consciência crítica. “Pode-se dizer que a estilização é o meio, o artifício (=

técnica), a paródia e a paráfrase são o fim, o resultado (= efeito). A paródia deforma, a

paráfrase conforma e a estilização reforma”. (SANT’ANNA, 1985, p 41)

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Para Stam (2000), a fidelidade, em se tratando de linguagens diferentes, ou melhor, de

sistemas semióticos diferenciados, como a TV ou cinema e a literatura, é uma noção

inapropriada. Na adaptação como processo cultural, o tradutor é um criador, e não um

traditore, como diziam os latinos. Segundo Seligman-Silva, “a tradução tece e revela tanto a

literatura como a história, o ‘próprio’ e o ‘outro’, como palimpsesto e

intertextualidade”(SELIGMAN-SILVA, 2005, p.203)16. Ele analisa a influência de Bakhtin e

Kristeva em Haroldo de Campos, da literatura como dialogismo, em que este fala de um

“movimento plagiotrópico da literatura”:

A plagiotropia, do latim plágios, de lado, que não é em linha reta, oblíquo, transversal, se resolve em tradução da tradição. Tem a ver com a idéia de paródia como ‘canto paralelo’, generalizando-a para designar o movimento não-linear de transformação dos textos ao longo da história, por derivação nem sempre imediata.(CAMPOS apud SELIGMAN-SILVA, 2005, p.200)

Seguindo a aproximação de John Dryden, “ o tradutor assume a liberdade, não apenas

de variar de palavra e sentido, mas até de abandonar ambos quando há oportunidade. Não

segue as palavras tão estritamente, senão o sentido”. (DRYDEN apud SANT´ANNA, 1985,

p.18). A tradução, então, é vista como invenção e estilização, podendo “não somente alterar o

jogo da ironia intertextual, mas também enriquecê-lo.” (ECO, 2003, p.216), Segundo

Hutcheon (2006, p.18) a paráfrase ou tradução de um outro texto é uma interpretação particular

da estória, pois,

como observou Wolfgang Iser, logo que nos ocupamos dos efeitos de um texto (os efeitos do escárnio irônico, avaliador, da reverência, etc.), bem como do seu sentido, estamos a tratar de uma utilização pragmática de sinais que envolvem sempre alguma espécie de manipulação, já que deve ser obtida uma resposta do recipiente dos sinais. (HUTCHEON, 1985, p.113)

Também para Linda Hutcheon, numa situação ideal, o leitor/espectador conheceria bem

as obras que serviriam de base ao palimpsesto. Ao ver ou ler, estaria completando o sentido da

paródia:

É esta partilha de códigos ou coincidência de intenção e reconhecimento na paródia, bem como na ironia, que cria aquilo a que Booth chamou ‘comunidades amigáveis’ entre codificadores e decodificadores. (HUTCHEON, 2006,p.112).

Ao leitor caberia o prazer intelectual de completar a sua parte no sentido da obra.

Segundo Hutcheon, isto torna a ironia e a paródia elitistas: “Poderá o produtor da paródia, hoje

em dia, pressupor suficientes conhecimentos culturais por parte da audiência que tornem a

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paródia mais do que um gênero literário atualmente limitado ou mesmo elitista?”

(HUTCHEON, 2006, p. 119).

No caso da audiência televisiva, a minissérie é considerada um produto para um público

mais sofisticado, que fica acordado até tarde, de um nível intelectual elevado, portanto,

virtualmente capaz de compreender as citações que lhe são confrontadas. Quando, em Hoje é

Dia de Maria, aparecem Copélius e a Boneca, por exemplo, só mesmo um leitor de Hoffmann

– do Homem de Areia – poderá identificar a origem destes personagens. Se considerarmos que

poderíamos estar tratando da paródia de uma obra de Monteiro Lobato, este autor não teria

parodiado Lewis Carrol e o próprio Cervantes, que por sua vez também foram parodiadores?

Esse é o encanto da paródia, um exercício intelectual. Não é fácil, é preciso ser muito criativo

para se parodiar, ter uma bagagem cultural vastíssima para parafrasear. Flávio Kothe faz uma

observação interessante sobre a estética da recepção:

A narrativa artística, tendencialmente questionadora dos valores da classe alta e da estrutura social, acaba sendo consumida entre nós mais pela classe alta.(...)Para ler o Dom Quixote, são necessárias cerca de duas semanas em tempo integral, que, somadas ao preço do livro e às dificuldades de acesso à formação acadêmica, tornam este clássico praticamente inacessível ao operariado. Isto não impede, porém, que este gaste dezenas de horas por semana à frente da televisão. (KOTHE,1987,p.85).

Como a televisão é o entretenimento mais barato para a classe trabalhadora, Kothe não

acredita que a TV comercial tenha interesse em promover a leitura, temendo concorrência.

Isso é, contudo, o oposto do que dizem os profissionais de TV, que argumentam que as

minisséries literárias, por exemplo, fazem que o telespectador compre os livros nos quais elas

se baseiam, uma vez que são relançados depois nas bancas17. Uma microssérie, porém, como

Hoje é Dia de Maria, introduz algo novo a esse público anestesiado pelas novelas e pelos

noticiários de TV. O que seria esse “novo”? Apesar do horário bastante avançado, das dez

horas – outras minisséries são exibidas ainda mais tarde, no verão – esta minissérie conseguiu

chamar a atenção por seu enfoque considerado diferente: sua proposta não-naturalista e a

relação declarada justamente com a literatura.

1.3 – De como Carlos Alberto Soffredini se tornou o maior estilizador do teatro

brasileiro e como sua obra se tornou objeto de estilização televisiva.

17 Entrevista concedida pelo ator Ney Latorraca em 1988 no Rio de Janeiro, para o vídeo Minisséries Brasileiras. A carreira de Ney começou ao lado de Soffredini, em Santos, e depois, na EAD.

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Carlos Alberto Soffredini , dramaturgo paulista premiado, monta, em 1972, na Escola

de Arte Dramática de São Paulo, uma adaptação da Farsa de Inês Pereira (VICENTE, 1974 ),

intitulada Mais Quero Asno que me Carregue que Cavalo que me Derrube. Este título foi o

mote que o teatrólogo português Gil Vicente teve de seguir para provar ser o autor de seus

textos. Tendo como guia a investigação da estrutura deste texto clássico da língua portuguesa,

Soffredini, em 1977, já com o Grupo de Teatro Mambembe, monta a própria Farsa de Inês

Pereira num processo de criação coletiva. Incorporando números de canto e dança inspirados

nas ‘revistas’ – teatro de variedades musical carioca do fim do século XIX e início do século

XX – entrando em cartaz no teatro João Caetano, Rio de Janeiro, em 1978. Soffredini introduz

a própria peça como “comédia quase opereta, cuja história também já foi contada pelo mestre

Gil Vicente” (SOFFREDINI, s.d., s.p.). A paródia está em adaptar a peça medieval para o

contexto cultural brasileiro popular, em pensar quem seria essa mocinha fantasiosa (Inês) no

Brasil do século XX. É dividida pelo autor em entrequadros, à moda dos autos vicentinos,

tendo prólogo (abertura) e epílogo (happy end). Poderíamos chamar Mais Quero Asno que me

Carregue que Cavalo que me Derrube de paródia, em termos de intertextualidade bakhtiniana

ou seria mesmo uma paráfrase? Ou estilização, engendrando tanto movimento de repetição

como diferença? O que vemos aqui, de todo modo, é uma transcriação: a transposição de época

e costumes, mas a moral e o humor da estória permanecem. Ele procura a revelação do

universo poético presente em Gil Vicente, fazendo uma ligação entre a herança cultural

portuguesa – os imigrantes portugueses no Brasil, em peças como Vacalhau e Binho, por

exemplo – e os signos da representação dos intérpretes populares televisivos. Para os textos,

pesquisava o sotaque português utilizando dicionários como o Schifaizfavoire, de Mário Prata

(1996). Outra incursão pelo universo vicentino feita por Soffredini foi o Auto de Natal Caipira,

baseado nos Autos de Natal de Gil Vicente, principalmente no Auto da Sibila Cassandra

(VICENTE,1963).

Até sua morte, em 2001, Soffredini teve como premissa a investigação dos signos e da

estrutura de textos famosos transpostos para o universo popular, como em Vem buscar-me que

ainda sou teu (SOFFREDINI,1979) – quando se inspirou na canção de Vicente Celestino,

“Coração Materno” e em peça homônima de Alfredo Viviani. Na dedicatória desta peça, que

começou a escrever em Salvador em 1978, ele diz: “Este trabalho é o resultado de um contato

sincero com o artista ambulante. Fui lá procurando a essência da linguagem teatral brasileira”

(SOFFREDINI, 1979, p.2). Outra peça adaptada é A vida do grande Dom Quixote de La

Mancha e do gordo Sancho Pança, estilização da peça de Antônio José da Silva, o Judeu , Dom

Quixote e Sancho Pança, feita originalmente para marionetes.

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Soffredini, sempre buscando, não a representação realista, mas a pesquisa do universo

poético da cultura popular brasileira, criou sua peça premiada Na Carreira do Divino

(SOFFREDINI, 1987), através de pesquisa de Antonio Candido (1964) e da obra de Amadeu

Amaral (1976) em Os parceiros do Rio Bonito e Dialeto Caipira, respectivamente. A busca da

oralidade dessa peça é explorada na versão para o cinema de Na Carreira... por André Klotzel,

em A Marvada Carne. Ao contrário de Luís Alberto de Abreu, co-autor de Hoje é Dia de

Maria, Soffredini já havia trabalhado para TV, no SBT, com a novela “Brasileiros e

brasileiras”, juntamente com Walter Avancini.

Como estudioso e experimentador, também fez incursões na literatura nacional,

recriando O Guarani de José de Alencar em versos brancos; na literatura estrangeira, com sua

peça O Pássaro do Poente, que tem origem na lenda japonesa A Mulher Grou, transcrita por

Ookawa Essei; e na música popular brasileira, com Trem da Vida, que tem como base

“Encontros e Despedidas”, canção de Milton Nascimento e Fernando Brant18. Podemos utilizar

para o trabalho de Soffredini a mesma expressão usada por Marques e Vidal (2005) sobre

Ariano Suassuna: ele promove um diálogo com as mesmas fontes populares aonde bebera. De

acordo com Renata Soffredini (2008), filha do autor, a dramaturgia soffrediana “se configura

nessa relação essencial com uma obra anterior, que ela não esconde, antes revela, e com a qual

dialoga em permanência”19 Segundo Renata, para Eliane Lisboa, que escreveu uma tese de

doutorado sobre Carlos Alberto Soffredini,

(...) essa pluralidade de vozes da cultura da qual faz parte mostra-se como experiência de linguagem – no seu próprio caráter teatral. Não se trata simplesmente de uma adaptação, para o teatro, de um texto que originalmente não o era. O trabalho de Soffredini extrapola este passo simples e vai se constituir num exercício de efetiva criação dramatúrgica onde uma obra primeira pode funcionar como estopim e também como elemento aglutinador de outros que serão incorporados a ela em seu processo criativo. (LISBOA apud SOFFREDINI, 2008)20

Soffredini escreveu uma peça, A Madrasta (SOFFREDINI, 1995), encenada

postumamente por sua filha no CCBB de São Paulo, que fala de uma relação incestuosa entre

pai e filha, além de inverter os papéis de vilã e mocinha entre a madrasta e a enteada. O pai,

algumas vezes, participava de um jogo juntamente com a filha para desestabilizar a madrasta.

Ou seja, uma livre adaptação dos contos de fadas, neste caso, para adultos. O próprio autor

afirma ter utilizado, “para os contos e formas de narrá-los” (SOFFREDINI,1995), os Contos

18 Informações obtidas na postagem de 4 de dezembro de 2007 no blog do Núcleo Estética de Teatro Popular, fundado por Soffredini e dirigido por sua filha. Disponível no site http://nucleostep.blogspot.com/2007/12/com-direo-de-renata-soffredini-minha.html/, acesso em 10/12/08. 19 Disponível no site http://hojeediademaria.globo.com/, acesso em 23/11/08. 20 Citação no texto de Renata Soffredini disponível no site http://hojeediademaria.globo.com/, acesso em 23/11/08.

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Populares do Brasil de Sílvio Romero (1954a). Ele também afirma ter extraído da oralidade

brasileira contos infantis “de cópias xerografadas, sem data e sem editora”(SOFFREDINI,

1995). Ainda, “para os termos e imagens e jeito de falas dos personagens de Maria e do

Capineiro, no início”, ele utilizou Leréias (Histórias Contadas por eles mesmos) de Waldomiro

Silveira.(1975). Criou uma personagem nesta peça, Purnica, baseada na “Moura Torta”, de uma

citação de Cascudo no livro supracitado de Romero (1985, p.64).

Já a primeira jornada da microssérie Hoje é Dia de Maria foi baseada em um especial

para TV de uma hora e meia, escrito por Soffredini sob encomenda de Luiz Fernando

Carvalho, em 1995. Ele inspirou-se em um conto popular sobre uma “menina que é enterrada

viva” – nome do conto em Cascudo (1946), mas que em Romero (1954a) chama-se “A

Madrasta” –, no conto “Dona Labismina”, sobre incesto, e também na estória de “Maria

Borralheira”. O projeto acabou convertido em uma minissérie de treze capítulos. Quando Luiz

Fernando Carvalho procurou Renata Soffredini, detentora dos direitos autorais de Carlos

Alberto Soffredini, após o falecimento deste, para lhe pedir autorização para transformar esse

especial em uma minissérie, ela indicou-lhe o dramaturgo e diretor teatral paulista Luís

Alberto de Abreu. Familiarizado com o universo soffrediano, e pesquisador do mundo

folclórico e mítico presente nos contos populares compilados por Câmara Cascudo e Sílvio

Romero, ele aceitou prontamente o convite.

Os dois primeiros blocos (partes entre intervalos comerciais) do especial para TV

escritos por Soffredini, “No Sol Levante” e “No País do Sol a Pino” foram totalmente mantidos

e se converteram nos dois primeiros episódios da minissérie. Já os blocos “Nas Terras do Pôr-

do-Sol” e “As Franjas do Mar” sofreram adaptações por Luís Alberto de Abreu e Luiz

Fernando Carvalho para virarem episódios com outros nomes. Na versão de Soffredini, Maria é

sempre criança, e não chega ao mar, continua “andando, andando, andando...”21 Importante

salientar aqui que os nomes dos episódios no livro não têm sincronia com os capítulos editados

e que foram ao ar, pois houve cortes na edição feitos pelo diretor, e cenas que seriam de um

capítulo, por exemplo, incorporadas a outro, mudadas de lugar, indicando as usuais operações

nesse tipo de adaptação.

No especial escrito por Soffredini, temos a personagem da Vó Nenê, que está numa

roda de crianças, contado a estória de Labismina, e depois a da própria Maria:

VÓ NENÊ – ...antonce diz-que no lugarzico mermo que a dita madrasta meteu a povre da menina enterrada na terra...justo por riba nasceu um capinzar...

21 Fala da Narradora inserida durante gravação da Primeira Jornada. DVD 2006.

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Essa personagem é retirada na adaptação, mas fica a voz da Narradora (inserida na

gravação durante a Primeira Jornada), que se converte ao final na avó de Maria, símbolo do

inconsciente coletivo:

NARRADORA (off)

...E diz-que era que nem se fosse um lago de capim verdico que só, alumiando ao sol como se fosse de vidro...

Figura 2 – A avó/narradora; foto de Renato Rocha Miranda.

Lembramos que, segundo Cascudo, a literatura oral “É uma força obscura e poderosa,

fazendo a transmissão, pela oralidade, de geração a geração. (...)As mulheres são as narradoras

de estórias para os filhos e netos” (CASCUDO, 1978, p.168). Esta narradora conversa, na

minissérie, com o leitor, ou mesmo com outras personagens. Maria não ouve sua voz, apesar de

ela tentar fazer-se ouvir.

Outras diferenças entre a adaptação de Abreu e o original de Soffredini são as seguintes:

1 . Desenvolvimento das frases do Maltrapilho, que não existem no original:

MALTRAPILHO E ocê tome tento, menina, que esse é um mundo que tá pra ser feito e, no fundo de tudo, um defeito é degrau importante na escada do perfeito. Torto, pobre ou malfeito, todo vivente pode andar reto, porque humano não é ruim nem bom, humano é ser incompleto. (ABREU; CARVALHO, 2005, p.57)

2. A ação e o texto dos Retirantes são alterados...

MARIA – Pra donde é que vão? A MÃE – Nossa Senhora do Monte hai de ajudá nói a encontrá esse perarte a toa que robô a noite... FILHO MAIOR – Daí noi esbordoa tudinho esse mardiçoado e nói dexa ele nem que fosse um farrapo...e antonce nói pega a noite de vorta. MARIA – E vanceis sabe em que fundo de mato é que ele habita, o dito cujo? (...) Vancês sabe ao meno quem é que é ele? Que nome leva o tar?... PAI – (afastado) Ara...fisse sussegada que nói acha ele, pode escrevê o que le digo. Nóis é ainsim: quando nóis se esbarra numas teima, num tem esse que tire nóis de nosso prepósito. (SOFFREDINI, 1995, p. 31-32)

...para apenas a fala de um personagem:

MARIA Que é da noite desse mundo?

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RETIRANTE Num sabe que foi roubada?

MARIA E quem fez um desatino desse, gente?

RETIRANTE E a gente sabe? Se soubesse, desancava o tal! E você tá indo pra onde?

MARIA Tô percurando o rumo do mar.

RETIRANTE Nóis também tava, mas desistimos. Sem noite ninguém consegue cruzar esse sertão. (ABREU; CARVALHO, 2005, p.70-71)

3. Na minissérie, Maria faz tudo certo na Fazenda, mas larga o príncipe no altar. No

especial, a Mucama não aprova as tarefas que Maria cumpre, e ela então desiste do príncipe

antes do casamento. A fala da Mucama também vira música no roteiro da minissérie. Segue o

trecho do especial:

A MUCAMA se aproxima, vê uma ruguinha no lençol e faz que não com a cabeça e amassa todo o lençol...(...) Com uma concha, MARIA serve um prato e passa pra MUCAMA, que experimenta e faz que não com a cabeça e joga fora a comida...(...) A MUCAMA se aproxima e toma a esponja de MARIA e experimenta a sua maciez passando-a pela mão. Diz que não com a cabeça e fala muito brava com MARIA. (...) MUCAMA – A cama é dele. Vancê é pra sirvi. O gozo é dele. Que nem uma moça de preceito e juízo, vancê num deve de sintí. Aliás, si vancê sintí argum argo, isso qué dizê que vancê num passô na prova da cama. (...) De repente, MARIA lenvanta-se da cama, apressada, e vai em direção à porta. MUCAMA – Donde vai? MARIA – Ali. Eu se alembrei de uma coisa munto importatíssima que eu careço de fazê lá em casa...

4. No especial, a Madrasta e Joaninha querem saber como ela conseguiu o sapatinho, e

ela lhes manda fazer tudo ao contrário do que ela fizera no encontro com o Maltrapilho:

MARIA – (...) Daí vancês pega uma manguara, cada quar a sua, e destrambéia esse dito home de paulada...Mai tome tento: carece de não tê ninhuma piedade, tá me escuitando? Ninhum, ninhumica dó que seje. E vancês faiz um destrago no home de munto maió monta que aquele que o dito já tava. (...) (SOFFREDINI, 1995, p.57)

Desta forma, Maria se vinga da Madrasta e de sua filha, como nos contos africanos que

veremos adiante. Já no roteiro da microssérie, ela simplesmente dá o vestido de noiva para

Joaninha, que voa nele como num balão.

Também serviram de texto-fonte para o episódio único de Soffredini suas peças O

grande Dom Quixote de La Mancha e o gordo Sancho Pança e Vem buscar-me que ainda sou

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teu. Desta, por exemplo, o diálogo do Canastra e da Mãezinha é aproveitado na fala da Senhora

em Hoje é Dia de Maria, fala depois repetida pela própria Maria:

CANASTRA _ Aquilo é o que tem de ser. MÃEZINHA _ Eu tenho medo. CANASTRA _ E o que tem que ser tem muita força. (SOFFREDINI,1979, p.73).

SENHORA

“E o que há de ser tem muita força!”(ABREU; CARVALHO, 2005,p.153)

MARIA “O que tem que ser tem muita força!”(ABREU; CARVALHO, 2005, p.175)

Em diversas outras passagens, encontramos, na minissérie, referências ao contexto da

obra de Soffredini: O personagem Pierrôt Azul de Minha Nossa é encontrado num momento de

caracterização de Quirino, em Hoje é dia de Maria. O coração do Pássaro Amado, nas mãos de

Maria, é o mesmo “coração materno” kitsch feito de veludo de Vem Buscar-me Que Ainda Sou

teu22. A família circense desta peça está citada nos “Saltimbancos”, escrita por Abreu.

Em Na Carreira do Divino, há um personagem mascate turco, como no roteiro de Hoje

é Dia de Maria, (que na produção vira português).Este Mascate/fada madrinha da minissérie,

ouve perguntas de Maria sobre o amor e lhe presenteia com um sapatinho vermelho; a cor

vermelha continua presente, passando do tecido “encarnado” que o Mascate de Na Carreira do

Divino dá para a personagem Mariquinha, para o sapatinho de “Cinderela’. No especial de

Soffredini, Maria já teria um pé de sapato vermelho, deixado pelo Maltrapilho, mas isso não

ocorre na minissérie. Vemos claramente a auto-intertextualidade que Soffredini faz de seu

próprio texto da peça anterior. Abreu e Carvalho mantiveram a passagem. Comparemos os três

trechos:

CIDADÃO: _ Olha aqui. (Tira um pano vermelho e brilhante) MARIQUINHA: _ Nosso Cristo! Lindo cumo os amor! (SOFFREDINI.Na Carrêra do Divino, 1979, p.54). MARIA _ O nhor num havera de trazê aí um vestido lindo como os amor...? E tomém um sapatinho encarnado. Só carece de um suzinho. (SOFFREDINI, Hoje é Dia de Maria, 1995, p.45) MARIA “O senhor num havera de trazê aí um vestido lindo como os amor...E tomém um par de sapatinho encarnado.” (ABREU; CARVALHO. Hoje é Dia de Maria, 2005, p.164)

22 E que vai aparecer novamente na obra de Luiz Fernando Carvalho, com co-roteiro de Luís Alberto de Abreu e direção de arte de Lia Renha, Capitu (Globo, 2008).

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Figura 3 - “Imediatamente, o MASCATE abre um dos seus baús, tira dele um embrulho, chega-se até MARIA e o entrega a ela.” Foto de Renato Rocha Miranda.

Soffredini foi, portanto, um pesquisador que, sem buscar a representação realista das

formas populares, mas pesquisando a linguagem visual das formas cênicas brasileiras, criou um

método de construção de dramaturgia, unindo os recursos musicais também resgatados do

folclore brasileiro com a oralidade dos contos populares. Ele adaptou clássicos da literatura,

como estratégia intertextual; utilizou a técnica da estilização para chegar à paráfrase; não

utilizou a paródia como negação do texto-fonte, criticando-o, satirizando-o, como os teóricos

russos prenunciavam, mas adaptando-o à nossa realidade, procurando torná-lo acessível ao

público brasileiro, pensando talvez na inclusão social dessa imensa massa de não-leitores.

Para isso, usou e abusou da autoreferenciação. Ou, para usar termo cunhado por

Affonso Romano de Sant’Anna (SANT’ANNA, 1985, p.62), da “autotextualidade como

sinônimo de intertextualidade. É quando o poeta se reescreve. Ele se apropria de si mesmo,

parafrasticamente.” Dias Gomes já o fizera, igualmente, trazendo seus textos do rádio e do

teatro para a telenovela. Ariano Suassuna, por exemplo, de acordo com Vidal e Marques (2005,

p.9), tem seu texto “aberto à retomada, como o texto oral. Ele reescreveu Uma mulher vestida

de sol, sua primeira peça, que sofreu nova reescritura quando de sua adaptação para a TV

Globo, em 12/07/1994, dirigida por Luiz Fernando Carvalho.”

O método de Soffredini foi seguido pelos seus co-autores na confecção do roteiro de

Hoje é Dia de Maria, em que se percebe uma continuidade deste universo. Nem mesmo na

Segunda Jornada, a da cidade, quando outros elementos que não pertencem ao mundo rural são

associados, a trama de citações, como paradigma soffrediniano, permanece. A intertextualidade

como construção consciente é a raiz da microssérie. Muita pesquisa, evidentemente, também

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feita pelas equipes de direção de arte, de fotografia e direção musical criaram o universo de

sonho da minissérie. Ou, parafraseando as palavras da diretora de arte da minissérie, Lia

Renha23, o universo da “representação emocional de uma realidade”.

A narrativa de Hoje é Dia de Maria nos parece fresca, infantil, primitiva, e a

linguagem do caipira, escolhida por Soffredini, reforça esse primitivismo. Tende-se, na

estrutura fabular, a uma concentração em locações rurais, como acontece na Primeira Jornada.

Houve um estudo dialetal para a produção do roteiro, revelando a expressão do campesino por

meio de seu universo, seus causos e seu vocabulário específico. Além do já citado Lérias,

usado por Carlos Alberto Soffredini em A Madrasta, neste “diálogo com o passado”

(MARQUES; VIDAL, 2005, p.6), Luís Alberto de Abreu também admite ter utilizado pesquisa

desenvolvida por Amadeu Amaral e Cornélio Pires, estudiosos paulistas da primeira metade do

século XX, que se debruçaram sobre o universo caipira de São Paulo – os mesmos que

Soffredini usara em Na Carrera do Divino.

FIGURA 4 – colcha de retalhos

23 Depoimento concedido para o making off do DVD de Hoje é Dia de Maria. 3 discos digitais, Rio: Globomarcas, 2006 (556 min.).

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CAPÍTULO 2 – “NO PAÍS DO SOL A PINO, EM BUSCA DA SOMBRA”

“Ao lado da literatura, do pensamento intelectual letrado, correm as águas paralelas, solitárias e poderosas da memória e da imaginação popular.”

Luiz da Câmara Cascudo

2.1 – As formas breves ou simples.

A minissérie de nosso estudo tem, como sabemos, uma base contística, seja na

incorporação de um narrador, seja na trama intertextual de origem também épica.

Sabemos que as formas breves, como Ricardo Piglia e Yves Stalloni (2003, p.127)

costumam chamar às formas simples (JOLLES, 1976), desdobram-se em: conto, novela e

fábula, com certa indefinição dos críticos acerca dos dois primeiros gêneros. Em As formas

simples, André Jolles (1976, p.183) nos diz que “o conto é precisamente a forma que requer um

debate sobre a língua e a poesia, e que propicia, simultaneamente, a conclusão e a introdução

de todas as formas simples.”

Historicamente, as relações entre conto e novela podem ser compreendidas a partir das

estruturas narrativas – molduras, que proporcionam uma estrutura ficcional em abismo.

Narrativa curta do século XIV na Europa, o Decameron de Boccacio (1350) é por alguns

considerado uma novela; por outros, exemplo de contos, já que cada episódio trata de um

assunto único, com poucos personagens. Na Idade Média existia a tendência de se chamar de

conto todo tipo de narrativa, ou seja: “um relato que se inspira na realidade, mas sofre múltiplas

modificações” que passa a ser aplicado “aos versos, aos ditados e às canções de gesta.”

(STALLONI, 2003, p.118) Por volta do final da Renascença, o conto torna-se narração, relato

de alguma aventura, seja ela vivida, fabulosa, séria ou divertida, relato de fatos, de

acontecimentos imaginários, destinados a distrair. Esta alteração se dá a partir da publicação

dos contos de Perrault com sua “Cinderela” e outros contos para crianças, de La Fontaine com

suas Fábulas em 1664, de Chaucer e seus Contos de Canterbury em 1700 e da tradução das Mil

e Uma Noites, em 1712. No século XIX, os irmãos Grimm recontavam o que já havia sido

contado antes por Perrault, e que, no século XXI, tornamos a contar. Segundo Nádia Battela

Gotlib (2006, p.17), o que caracteriza o conto “é seu movimento enquanto uma narrativa

através dos tempos. O que houve na sua história foi uma mudança de técnica, não uma

mudança de estrutura; o conto permanece, pois, com a mesma estrutura do conto antigo; o que

muda é a sua técnica”.

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Segundo Stalloni (2003) os contos dividem-se em quatro categorias, de acordo com as

tipologias modernas. No conto gaulês, narrativas engraçadas e burlescas são herdadas da

tradição popular, em que se incluem apólogos, contos de animais, histórias obscenas, aventuras

satíricas. Já o conto filosófico é satírico, fabuloso, paródico, dá uma lição filosófica, transgride

e desmistifica a escrita romanesca. Seu apogeu é o século XVIII, com Voltaire. O conto

fantástico é reconhecido pela utilização do medo como impulso essencial da narração. Nele,

vemos a irrupção do sobrenatural num universo realista, a hesitação da personagem e do leitor,

o narrador em exibição, a ruptura cronológica. É descritivo e tem geralmente fim dramático.

Finalmente, o conto maravilhoso (ou conto de fadas), em que o irreal é aceito e toda precisão

realista é eliminada. Há um certo didatismo, a presença de tópicos sobrenaturais, objetos

mágicos, personagens fabulosos e finais felizes. Há outros gêneros afins, como a fábula

mitológica – cujo exemplo primordial é Hesíodo – o conto oriental, o conto cristão, o conto

barroco etc. Mas, a despeito dessa classificação, o que essas narrativas têm em comum, na

condição de gênero, é exatamente o que nos diz Stalloni (2003, p.121) quando verifica os

seguintes traços distintivos entre novela e conto: para ele, “todo conto renuncia ao realismo e à

verossimilhança; suas personagens estão no território do simbólico; possuem um fundamento

popular, podendo inspirar-se na tradição oral ou no folclore; costumam ser relatos breves”;

finalmente, possuem um narrador e têm uma intenção moral. Benjamim nos dá um exemplo

prático para essa moral inerente aos contos orais, que são os provérbios: “ruínas de antigas

narrativas, nas quais a moral da história abraça um acontecimento”. (BENJAMIN, 1994,

p.221).

Para Haroldo de Campos (1973, p.19-20) os “fenômenos de esquematismo e

recorrência na estrutura dos contos populares têm intrigado e desafiado, através do mundo,

desde muito tempo, os investigadores.” Um dos fenômenos investigados, bastante caro a este

estudo, é a lei da “transferibilidade”, definida por Propp, em que as partes componentes de um

conto podem ser transferidas para outro sem modificação alguma. Bem, sem modificação

alguma, no caso da adaptação literária, não é de todo possível, pois quem conta um conto,

aumenta um ponto. Se considerarmos os elementos proppianos em si, as funções

(personagens), o enredo, o conflito, é verdade, tudo isto pode ser transferido culturalmente e

geograficamente e, podemos dizer, midiaticamente. Mas é do interesse de quem reconta uma

estória estilizá-la e transformá-la para seu público, seja adaptando-a de acordo com a moral

vigente, seja trazendo para uma época atual, seja aglutinando-a com outras estórias, como o

fizeram os autores de Hoje é Dia de Maria e como já afirmou, em sua teoria da adaptação,

Linda Hutcheon (2006).

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2.2 - Características dos contos tradicionais:

Dentre as características em comum do conto de modo geral, temos, em primeiro lugar,

sua origem épica, baseada na presença de um contador de estórias, um narrador oral; depois as

características de concisão, intensidade e rapidez, indissociáveis do gênero.

Sobre a oralidade, em Hoje é Dia de Maria podemos vislumbrar a participação da

Narradora, mais presente no roteiro da Segunda Jornada, inserida no roteiro da Primeira no

momento da gravação, mas ainda assim fundamental para o espírito contístico desta estória,

além da construção da microssérie a partir de três contos fundamentais, que analisaremos com

mais cuidado no capítulo 3: “Cinderela”, “Maria Borralheira”, “Dona Labismina” e suas

variantes.

Sobre a concisão, intensidade e rapidez, podemos ver que o próprio formato de

microssérie imprime um ritmo intenso e rápido, e a concisão está precisamente no

fortalecimento da estória e das personagens pela fusão de múltiplas fontes intertextuais.

2.2.1 – Oralidade e narrativas épicas:

A tradição oral, terreno da poesia épica, tem natureza diversa da do romance. Segundo

Walter Benjamim (1994, p.201), “o que distingue o romance de todas as outras formas de prosa

– contos de fada, lendas e mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral nem a

alimenta.” Os contos diferem-se totalmente do romance, não só pelo tamanho, mas por

afirmarem a presença do narrador oral. Segundo Piglia,

Borges considera que o romance não é narrativa, porque é demasiado alheio às formas orais, perdeu os rastros de um interlocutor presente, a possibilitar o subentendido e a elipse, e portanto a rapidez e a concisão dos relatos breves e dos contos orais. (PIGLIA, 2000, p.101)

Para Álvaro Manuel Machado (1989), na base de estudo sobre a chamada literatura

‘popular’, oral e tradicional, ou de cordel, de origem mais ou menos folclórica, surge um

problema que divide a maior parte dos investigadores: trata-se de uma verdadeira criação, quer

seja individual, quer seja coletiva, ou de adaptações populares de uma literatura dita séria? Ou

seja, quem veio primeiro, a narração oral ou os livros de contos europeus e orientais foram

primordiais e suscitaram narrativas que foram passando de povos em povos de forma oral?

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Cascudo nos responde:

A literatura oral é mantida e movimentada pela tradução. (...) Resulta do fundamento comum das estórias populares, de várias procedências, amalgamadas, fundidas, num processo inconsciente e poderoso de aculturação; influência de livros e folhas de literatura popular, com elementos da tradição e o continente da imaginação individual do autor. (CASCUDO, 1978,p.168).

Para Roman Jakobson, segundo Campos (1973, p.71), existem diferenças estruturais

essenciais entre a literatura e o folclore: “A obra literária existe independentemente do leitor. Já

a obra de folclore é um fato extra-individual, estabelecido independentemente do contador de

estórias.” Ou seja, o livro existe por causa de um autor, quer seja lido ou não. Já o processo

narrativo oral necessita da aceitação popular para ter continuidade. Para Campos (1973, p.72),

“à multiplicidade de enredos de literatura, comparam os lingüistas o conjunto limitado de

enredos dos contos típicos do folclore(...) as leis do folclore são muito mais rigorosas e

uniformes do que as da criação individual.”

Fragmentos de literatura popular oral são aproveitados por escritores com o objetivo de

uma criação pessoal, como no exemplo dado por Machado (1989) sobre a obra de Ariano

Suassuna:

O conto, a lenda, foram até hoje objeto de estudo de etnólogos e especialistas do folclore e da literatura dita ‘oral e tradicional’. (...) Há lugar para que o investigador literário aprofunde o estudo da passagem à escrita, ao texto (...) transformações e alterações quer da natureza da narrativa, quer da sua função social e estética. (MACHADO, 1989, p.143-144)

Assim como Suassuna, os autores da minissérie possuem longa experiência de pesquisa

sobre folclore. Como a estória de Soffredini, Abreu e Carvalho articula-se a partir das

narrativas orais, principalmente de contos orais populares, percebemos, na minissérie, a

presença dos “cinco elementos que entram na constituição da narrativa oral” destacados por

Isenberg, que são “orientação, complicação, avaliação, resolução e moral” (FÁVERO, 2003,

p.55). Na primeira jornada, a que se passa no campo, temos, como episódio de orientação, “No

Sol Levante”, em que é introduzido o motivo que faz Maria sair de casa, seu problema com a

Madrasta. Já a complicação fica por conta dos episódios “No País do Sol a Pino”, “Em Busca

da Sombra” , “Maria Perde a Infância”, até “Os Saltimbancos”; daí passamos à resolução, que

se dá nos episódios “O Reencontro”, “Neva no Coração” e “Onde o Fim Nunca Termina”. Na

Segunda Jornada, a que se passa na cidade, a estória começa onde termina a Primeira Jornada:

em frente ao mar. No episódio “Terra de Sonhos”, temos temos a orientação; no “A Cidade –

Parte I”, “A Cidade – Parte II e “A Guerra”, a complicação; em “O Retorno”, a resolução, e

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fechamos um círculo, ao voltarmos para o mesmo cenário do primeiro episódio da Primeira

Jornada, tendo assim a avaliação de toda a aventura. A moral, na minissérie, pode ser vista em

dois planos diferentes. No plano psicanalítico, é a de uma menina que tem de domar o seu

inconsciente para se tornar uma mulher independente. O inconsciente é a avó, que já dissemos

ser a Narradora. Também o mar tem a simbologia do inconsciente, daí sua incansável busca

pelas “franjas do mar”. E como veremos mais à frente na parte dedicada ao herói, toda menina

se torna mulher quer queira, quer não.

Já no plano literário, lembramos Haroldo de Campos, (1973, p.274) para quem “a moral

da fábula é contar a fábula”. O que Soffredini, Carvalho e Abreu narraram em Hoje é Dia de

Maria é exatamente essa passagem “da literatura anônima à criação individual” (MACHADO,

1989, p.144). Em uma passagem que retrata a grande metáfora da minissérie, da passagem da

oralidade para a literatura, Maria é a contadora de estórias que saem do “livro de cabeça” de

Dom Chico para fazê-lo recuperar a memória:

MARIA fecha o livro de DOM CHICO CHICOTE, ao mesmo tempo que o ESCRIVÃO e a MADRASTA somem pela estrada. NARRADORA Como eu ia dizendo, numa história linhavo um fio de riso, uma renda de amor, um bordado de drama, um pesponto de dor... (ABREU; CARVALHO, 2005, p.549)

Figura 5 - Maria lê as estórias na cabeça de D. Chico Chicote. Foto de Renato Rocha Miranda.

Vejam que, no próprio texto, temos o mosaico, “a linha e o linho” com que a escritura

se fará. A narradora tece alinhavando, bordando, pespontando os sentimentos numa estória,

assim como a personagem de Marieta Severo no filme “Pequenas Estórias”, vai fazendo sua

colcha de retalhos. Mas para o diretor Luiz Fernando Carvalho24, os autores da minissérie são

24 Entrevista concedida para o site da minissérie Hoje é Dia de Maria, disponível em <http://hojeediademaria.globo.com>, acesso em 23/11/08.

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como “eternas Penélopes, tecemos e desmanchamos bordados”. Ele diz que isso é necessário

para que as “asas de Ícaro” não enfrentem a “tragédia de Sísifo”. Como monges budistas,

fazem suas mandalas para depois desfazê-las, como no trabalho de cenógrafo: constroem-se

casas para não permanecerem. Segundo Renata Pallotini, (1983, p.63) “toda colcha de retalhos

tem um forro, ao qual os retalhos são costurados”, ou seja, há uma unidade de ação em todo

“drama de farrapos” (ROSENFELD apud PALLOTINI, 1983, p.63). A ação principal de Maria

é encontrar as ‘franjas do mar’, na Primeira Jornada, e achar o caminho de volta da cidade pra

casa, na Segunda.

Lévi-Strauss já aludia às peças de um mosaico para exprimir o que é próprio da ‘visão

mítica’(CAMPOS,1073, p.85). Mosaico, contudo, pertence à arquitetura oriental, colcha de

fuxico é artesanato popular brasileiro, assim, temos, nessa analogia, a arte de construir estórias

à moda oriental com material da cultura oral nacional. Para Cascudo (1978, p.265), “os contos

são tecidos cujos fios vieram de mil procedências. Cruzam-se, recruzam-se, avivados,

esmaecidos, ressaltados na trama policolor do enredo.”

Para Walter Benjamin, a característica primordial da oralidade é a figura do narrador. E

o primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo

(...) o narrador de contos de fadas. (Ele) nos revela as primeiras medidas tomadas pela humanidade para libertar-se do pensamento mítico. (Ele) ensinou há muitos séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às crianças, que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância. O feitiço libertador do conto de fadas não põe em cena a natureza como uma entidade mítica, mas indica a sua cumplicidade com o homem liberado. (BENJAMIN, 1994, p.215)

O conto é visto como uma “narrativa de reminiscência” (SANTIAGO, 2002, p.49).

Narramos sempre o que já foi, pois se estamos contando algo (era uma vez...), já conjugamos o

tempo passado. Assim, nossa pequena Sherazade, Maria, está o tempo todo costurando o fio da

sua vida, e correndo o risco de morrer, como os contadores tribais. A linguagem televisiva

privilegia normalmente o tempo presente. Porém, com a inclusão de uma personagem

narradora, como acontece em Hoje é Dia de Maria, sabemos que se trata de algo que já

aconteceu no passado; há um distanciamento quase brechtiano25 entre o espectador e o fato, o

que não deixa de ser uma mudança na linguagem televisiva, tão afeita aos princípios de

identificação do cinema clássico hollywoodiano. Para Benjamin, a reminiscência

(...) funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração a geração. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em

25 Ver nota no subcapítulo”Brecht”, capítulo 3.

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primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros narradores. Em cada um deles vive uma Xerazade, que imagina uma nova história em cada passagem da história que está contando. (BENJAMIN, 1994, p.211)

Portanto, a narrativa épica está intimamente ligada ao narrador. Segundo Benjamim, a

“experiência que é passada de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores.

E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais

contadas pelos inúmeros narradores anônimos.” (BENJAMIN, 1994, p.198) Esta voz narrativa,

épica, presente em Hoje é Dia de Maria, a voz da narradora-avó, do inconsciente coletivo, que

será também um instrumento dramatúrgico para prender a atenção do espectador embalado no

sono audiovisual, encerrando os episódios com um ‘gancho’ que o ligará aos próximos, como

Xerazade fazia com seu rei-ouvinte.

2.3.2 – Concisão-intensidade-rapidez.

O poder do conto, seja ele oral ou moderno, está na concisão. Edgar Allan Poe já falava

de um tempo no qual o homem já era forçado, como hoje, a escolher o condensado em

detrimento do longo. Ele dizia que “todas as excitações intensas são necessariamente

transitórias”, e que, no caso do conto breve, “o autor é capaz de realizar a plenitude de suas

intenções” (POE apud GOTLIB, 2006, p.19-20). Seus seguidores chegaram mesmo a afirmar a

“teoria de um só”, onde haveria uma unidade de tempo, lugar e ação, como na tragédia

aristotélica, e ainda um só personagem.

Segundo Julio Cortázar (2004, p.151) “quando um conto ultrapassa as vinte páginas, na

França, toma já o nome de novela”. Para ele, o conto sintetiza um momento, como o da

fotografia. Fazendo um paralelo com o filme de Antonioni, “Blow-Up”, que trata de um

fotógrafo que, ao ampliar seu filme, encontra algo oculto na foto, Cortázar nos diz que o conto

“recorta um fragmento da realidade, fixando-lhe limites, de modo que esse recorte atue como

uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais ampla, uma visão dinâmica

que transcende espiritualmente o campo abrangido pela câmera.” (CORTÁZAR, 2004, p.152)

O conto seria uma “vida sintetizada”, uma “síntese viva”, e o mesmo podemos dizer de um

produto dramatúrgico, onde, em poucas horas, tomamos conhecimento da vida de um

personagem.

Para Cortázar, ao contrário do romance, que é mais próximo do cinema, uma

fotografia bem realizada (e também um conto)

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pressupõe uma justa limitação prévia, imposta em parte pelo reduzido campo que a câmera abrange e pela forma com que o fotógrafo utiliza esteticamente essa limitação; o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário. (CORTÁZAR, 2004, p.153)

Cortázar (2004, p.158) compara o conto com um nocaute numa luta de boxe: “um bom

conto é incisivo, mordaz, sem trégua desde as primeiras frases.” Para ele, autores como

Hemingway e Kafka eliminam tudo o que não é essencial e vão, intensamente, nos

aproximando lentamente do drama:

O contista sabe que não pode proceder acumulativamente, não tem o tempo por aliado; seu único recurso é trabalhar em profundidade. O tempo e o espaço do conto têm de estar como que condensados, submetidos a uma alta pressão espiritual e formal. Um conto é significativo quando quebra seus próprios limites com essa explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vai além da pequena e às vezes miserável história que conta, propondo-nos uma espécie de ruptura do cotidiano que vai muito além do argumento. (CORTÁZAR, 2004, p.159)

Este sempre foi o trunfo, por exemplo, de Tchécov, inclusive no drama, o que levou o

maior encenador russo, Constantin Stanislawski, a encenar peças do dramaturgo. Desde essa

época a narrativa do conto já se aliava ao gênero dramático. Tchécov considerava a brevidade a

maior das virtudes: “em contos, é melhor não dizer o suficiente que dizer demais”. (TCHÉCOV

apud GOTLIB, 2006, p.32). Ele dizia que se devia optar sempre pelo mais curto, evitando-se

cair no excesso de detalhes.

Segundo Walter Benjamim, em seu ensaio sobre Vladimir Leskov, ao contrário da

informação, que tem de se explicar, a narrativa não se entrega, não explica nada: “Nada facilita

mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise

psicológica.” (BENJAMIN, 1994, p.204). Citando Paul Valéry, que dizia que “o homem de

hoje não cultiva o que não pode ser abreviado”, Benjamin nos lembra que a narrativa se

emancipou da tradição oral, não permitindo mais “essa lenta superposição de camadas finas e

translúcidas”, representando “as várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas”

(BENJAMIN, 1994, p.206).

A concisão leva à intensidade. A riqueza das formas breves, para Calvino (1994),

estaria na concisão, na intensidade, na constância do trabalho intelectual, na densidade de seu

conteúdo. Para ele, “o conto opera sobre a duração, ele age sobre o passar do tempo,

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contraindo-o ou dilatando-o”. (CALVINO, 1994, p.53) São apresentadas ao leitor idéias

simultâneas. É uma estilística que exige rapidez de adaptação, agilidade de expressão e do

pensamento para capturar a atenção do leitor. “A rapidez de estilo e de pensamento quer dizer,

antes de mais nada, agilidade.”(CALVINO, 1994, p.59).

Na Sicília, os contadores de estórias dizem que ‘o conto não perde tempo’: “A rapidez e

a concisão do estilo agradam porque apresentam à alma uma turba de idéias simultâneas, ou

cuja sucessão é tão rápida que parecem simultâneas.” (CALVINO, 1994, p.55). Ainda segundo

Calvino,

(...) a principal característica do conto popular é a economia de expressão: as peripécias mais extraordinárias são relatadas levando em conta apenas o essencial; é sempre uma luta contra o tempo, contra os obstáculos que impedem ou retardam a realização de um desejo ou a restauração de um bem perdido. (CALVINO, 1994, p.50)

O segredo estaria, para ele, “na economia da narrativa em que os acontecimentos,

independentemente de sua duração”, se tornam interligados num movimento ininterrupto.

Estaria no ritmo, na “lógica essencial com que tais contos são narrados” (CALVINO, 1994,

p.48-49). 26

A intensidade de uma microssérie pode ser vista em comparação com uma novela, que

expande o tema, deixando a estória em aberto. Uma obra televisiva “fechada” que tem um

tempo para ser executada, exatamente treze capítulos, tem de ser concisa, intensa, e trabalhar

com rapidez. Vários episódios escritos para Hoje é Dia de Maria foram inclusive amalgamados

na montagem e durante a gravação, para dar ritmo ao final da trama, e para destacar os

personagens principais.

Na verdade, o formato televisivo de minisséries seria o mais adequado ao romance, não

ao conto, pois elas acontecem em capítulos, episódios, pode-se vê-la aos poucos, como

fazemos ao ler um livro. Porém, numa microssérie, a obra torna-se mais condensada que numa

série normal. O exemplo de A Pedra do Reino, em que um romance gigantesco foi condensado

em três capítulos, é chamado de erro estrutural de roteiro, quando algo não funciona numa

estrutura tão pequena. Nenhum editor conseguiria consertar o que ficou faltando para fazer

sentido, o erro é do roteirista. Este romance teria sido mais bem aproveitado em uma minissérie

maior, como o foram A Muralha, O Tempo e o Vento, Grande Sertão: Veredas, Tenda dos

Milagres, e tantos outros. Em primeiro lugar, cortou-se demais; em segundo lugar, levou-se em

conta o conhecimento prévio do público de universo muito específico; por fim, a perda da

26 Interessante observar que os contos de Calvino não obedecem a esses preceitos, eles se detêm na

descrição, em longos períodos joyceanos, paragráficos, não telegráficos.

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audiência de um único episódio levou o público a se perder completamente no episódio

seguinte, não havendo, como em Hoje é Dia de Maria, tempo de construir para o telespectador

toda a trama, de familiarizar o público com os personagens e o conflito.

Em Hoje é Dia de Maria, também uma microssérie, a concisão se dá no fato de que

várias estórias de fadas, vários personagens, estão condensados em uma única estória, não é um

único conto espichado em 556 horas, o que o esvaziaria de sentido. Então os roteiristas tiveram

de buscar na literatura, tanto nacional quanto universal e no folclore, material suficiente para

aglutinar, buscando na pluralidade dos textos concisos a criação de um único texto intenso e

coeso, daí resultando na tensão dramática e força de suas personagens.

2.3 – O maravilhoso e o conto maravilhoso

Segundo Chiampi (1980, p.48), a definição de maravilhoso é “o extraordinário, o

insólito, o que escapa ao curso ordinário das coisas e do humano”. O maravilhoso implica a

intervenção de seres sobrenaturais, divinos ou legendários na narrativa.

A irrupção do maravilhoso se dá nos séculos XII a XIII, segundo Le Goff, e sua

estetização entre os séculos XIV e XV. O termo maravilhoso pertence, portanto, ao vocabulário

da Idade Média. Mirabilis, o singular, “é o nosso maravilhoso com suas origens pré-cristãs”

(1983, p.24). Mirabilia era a palavra usada na Idade Média para conceituar objetos

maravilhosos:

No Ocidente Medieval os mirabilia tiveram a tendência para organizar-se numa espécie de universo virado ao contrário. Os temas principais são a abundância alimentar, a nudez, a liberdade sexual, o ócio. Assiste-se a uma desumanização do universo animalista, para um universo de monstros ou de bichos, para um universo mineralógico, vegetal. (LE GOFF, 1983, p.26-27)

Havia uma necessidade de colocar o mundo às avessas, contra a repressão da Alta Idade

Média. Le Goff (1983) faz um verdadeiro inventário do maravilhoso medieval, classificando

seus elementos. Dentre as terras e lugares maravilhosos, encontram-se a montanha,

especialmente com grutas, os penhascos; as fontes e nascentes; as árvores; as ilhas; castelos e

torres; cidades e túmulos. Dentre os seres, estão os gigantes e anões; as fadas (exceto no

maravilhoso russo); homens e mulheres com particularidades físicas, monstros humanos;

animais como o leão, o cavalo; animais imaginários como o unicórnio, o dragão; seres

antropomórficos, metade homens, metade animais, como as sereias e os lobisomens;

autômatos, seres metade-vivos, metade-objetos. Dentre os objetos, estão os protetores, como os

que tornam as pessoas invisíveis; produtores, como o Graal; fortalecedores, como a espada.

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Para Calvino (1994, p. 46), nos textos das fábulas maravilhosas, “o objeto mágico é um signo

reconhecível que torna explícita a correlação entre os personagens ou entre os acontecimentos”.

Ainda segundo Le Goff27(1983, p.28), o maravilhoso se contrapõe à realidade. O

maravilhoso dentro do cotidiano será redescoberto pelo fantástico romântico ou pelo

surrealismo moderno. Ele perturba o menos possível a rotina, não causa estranheza. É

produzido por seres sobrenaturais que se encaixam perfeitamente nesse novo universo. Para

Julio Casares (apud GOTLIB, 2006, p.8), que relaciona à fábula o conto maravilhoso, este é

“onde as coisas são narradas como deveriam acontecer, da forma que gostaríamos que fossem,

contrariando o real”. André Jolles também estudou as leis de formação do conto maravilhoso:

Sempre que ele é transportado para o universo, este transforma-se de acordo com um princípio que só rege esta forma e só é determinado por ela. No conto, que enfrenta abertamente o universo e o absorve, o universo conserva, apesar dessa transformação, sua mobilidade, sua generalidade e o que lhe dá a característica de ser novo de cada vez – sua pluralidade. (JOLLES, 1976, p. 194-195)

As metamorfoses são comuns a esse tipo de narrativa, como, em Hoje é Dia de Maria,

as que acontecem com o Pássaro que vira Amado, a Cabeça que vira a Madrasta, o Pato que

vira Escrivão, Asmodeu que vira Gato e outros Asmodeus. O fato de a menina ter sido

enterrada viva – e depois ressuscitada – também pertence ao universo mítico. Exausta, Maria é

constantemente ameaçada, como Xerazade. Ela é a cantadora que desafia o “demo”, é a atriz do

teatro mambembe, é a cantora do cabaré. Maria também representa o vir-a-ser, o ser humano

incompleto, em busca da identidade. Sobre esse aspecto, sabemos com Le Goff (1983, p.23)

que

(...) o maravilhoso está profundamente ligado a esta procura da identidade individual e coletiva do cavaleiro idealizado. O fato de as provas do cavaleiro passarem por toda uma série de maravilhas – maravilhas que ajudam (como certos objetos mágicos) ou maravilhas que é preciso combater (como os monstros) – levou Erich Köhler a escrever que a aventura é ela própria uma maravilha.

Maria atravessa o deserto do sertão do “Sol a Pino”, que nos lembra o sertão dos filmes

do cinema novo, com a luz natural dos trópicos, estourada, que não mascara a realidade. Não é

um sertão geográfico, está mais para um sertão que “está em toda parte”, como escreveu

Guimarães Rosa.

Sobre esse espaço ficcional, Le Goff (1983, p.43), em capítulo intitulado “O deserto-

floresta no ocidente medieval”, descreve como o deserto apresenta-se como “o lugar do

27 Le Goff divide o maravilhoso em: maravilhoso bíblico; maravilhoso antigo, onde entram as personagens mitológicas; maravilhas barbáricas, como as mitologias germânica e bretã; e maravilhoso oriental. As fontes ou reservatórios seriam: o material céltico, o folclore, a Índia (horizonte perdido), a Irlanda e a Sicília (imagens do purgatório). Dentre as técnicas, estão: os sonhos, aparições e visões, as metamorfoses; o maravilhoso mágico.

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maravilhoso por excelência. O deserto oscila entre uma concepção de prova e de libertação. Há

o deserto-asilo, refúgio dos que para lá se retiram junto com os animais.” Há outros tipos de

desertos, como o encontrado no próprio mar, que é o objetivo final de Maria. Há também, em

Hoje é Dia de Maria, o deserto-floresta, onde os amantes se refugiam, o qual reconhecemos

também nos encontros entre Maria e o Amado. Outro tipo de deserto é o gelado, que veremos

na passagem sobre Shakespeare, e também sobre Brecht, no capítulo 3.

Figura 6 - Chove no sertão dos retirantes. Foto de Renato Rocha Miranda.

2.4 - As características fundamentais e narrativas do conto maravilhoso

Dentre as características narrativas do conto maravilhoso, enfatizamos aqui a repetição,

a moral ingênua, a atemporalidade histórica, a descontinuidade entre causa e efeito, a

universalidade temática e a construção em abismo. Na tessitura do roteiro de Hoje é Dia de

Maria, podemos perceber, por exemplo, a repetição na própria circularidade da obra, com

retornos ao início, com leitmotivs, com repetição de personagens, ou deveríamos dizer,

multiplicação dos duplos, na própria caminhada de Maria num horizonte infinito. A moral da

personagem ainda é a do maniqueísmo da televisão, a história é visitada em situações sociais

insolvíveis e atemporais (novamente aí a circularidade, pois são situações sem fim). A

descontinuidade entre causa e efeito é também desassociação entre o real, que pode ser

desnaturalizado, e a fantasia, que pode ser considerada natural, numa fusão de mundos

diversos. A universalidade das estórias de Perrault reproduzidas aqui de forma estilizada e

mesmo parodiada, às vezes, como em “Cinderela”, é mais uma prova da construção em abismo

que evoca narradores orais, passa por vários escritores, até chegar à forma do conto atual.

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2.4.1 - Repetição

A repetição é uma das características do conto oral e assim também do conto

maravilhoso: “Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo.” (BENJAMIN, 1994,

p.205). Segundo Calvino, nos contos populares e nas estórias de fadas,

(...) o prazer infantil de ouvir histórias28 reside igualmente na espera dessas repetições: situações, frases, fórmulas. A técnica da narração oral na tradição popular obedece a critérios de funcionalidade: negligencia os detalhes inúteis, mas insiste nas repetições, por exemplo, quando a história apresenta uma série de obstáculos a superar (CALVINO, 1994, p.49).

A repetição tem, portanto, função didática e pode ser associada, como vemos no

exemplo de Hoje é Dia de Maria, à distância percorrida pela heroína, dando a impressão de

“continuidade de marcha, com a repetição, em expressões como ‘andou, andou, andou...’”

(CASCUDO, 1978, p.242):

NARRADORA (off)

Maria caminhou, caminhou... 29

Tanto o leitmotiv utilizado em toda a minissérie, da música “Constante”, quanto a

quadrinha do “Figuinho da figueira” (Xô, passarinho!), são exemplos de uma repetição que

possui a função teledramatúrgica de redundância. Explicando melhor: para que o espectador se

situe dentro do contexto do episódio atual, ele precisa ter conhecimento de algo do episódio

anterior, mesmo que não o tenha visto, através da repetição, do gancho, ou do narrador. Em

Hoje é Dia de Maria, estilizando a técnica pedagógica da repetição, a narradora nos fornece

uma explicação no início, satisfazendo assim uma exigência da televisão. O telespectador/leitor

quer ouvir novamente o que houve com Maria, com outros personagens conhecidos, para então

aceitar o novo. Os próprios atores foram repetidos na escalação do elenco da Segunda Jornada,

para uma identificação com o mesmo público.

2.4.2 – Moral ingênua e indefinição histórica

28 O tradutor optou em utilizar história ao invés de estória, mas não é nossa preferência, pois aqui não se trata de histórias reais, nem da História, mas sim de imaginação. 29 DVD Hoje é Dia de Maria, 2006, (556 min.), color., son., 3 discos digitais, Rio:Globomarcas.

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Segundo André Jolles, no maravilhoso, “os gestos verbais do conto estão prenhes de

trágico e de justiça, na acepção da moral ingênua do poder que aniquila a realidade imoral, e

significa sempre o maravilhoso, assim como o tempo, o lugar e as personagens” (JOLLES,

1976, p.204) – que não podem ser históricos, pois “a partir do momento em que o conto assume

os traços da história, perde uma parte da sua força. A localização e data histórica aproximam-se

da realidade imoral e quebram o poder do maravilhoso natural e necessário.” (JOLLES apud

LE GOFF, 1983, p.36) Não existe, para Jolles, a “ética da ação”, mas a “ética do

acontecimento”. O gesto verbal trágico, então, para Jolles, não pode ser o mesmo que o gesto

social de Brecht30, pois não admite a história.

Chiampi (1980, p.147) prossegue sobre conclusões similares a que chegou André Jolles

sobre o conto maravilhoso ocidental. Para ela, um exemplo de oposição da “ética do

acontecimento ou moral ingênua absoluta do conto” à imoralidade do universo real, e de recusa

da realidade, está presente em expressões como “era uma vez”, “em certo reino” que,

juntamente com o maniqueísmo como recusa da ambiguidade, “são instrumentos da distância

pedagógica para julgar simbolicamente a moral comum.” (CHIAMPI, 1980, p.60). A realidade

está presente na forma simbólica, e talvez este seja o ponto de maior convergência entre o

conto de fadas e o realismo mágico (apesar de este ser envolto na história e na realidade social).

Segundo Chiampi (1980, p.147), “o distanciamento sócio-histórico no maravilhoso não quer

dizer que algum setor da realidade não possa comparecer nele de forma simbólica. Trata-se da

simbolização dos conflitos e tensões do inconsciente, num sentido antropológico.” É o que ela

chama de “sobrenaturalização do real”. Para Roman Jakobson, “o conto maravilhoso preenche

o papel de utopia social. É um tipo de compensação onírica. Um sonho sobre a conquista da

natureza.” (JAKOBSON apud CAMPOS, 1973, p.295)

A moral de Maria nos lembra a de Riobaldo (ROSA, 1970), pois, para este, “crime, que

sei, é não cumprir com a palavra”. Quanto à maneira de olhar o universo, eles divergem. Se,

para a pequena Maria, a vida dos jagunços seria uma loucura difícil de se acreditar,

indiscutivelmente para ela o diabo existe, está na rua, em toda parte, o diabo há, e são muitos.

Para Maria, os “Asmodeus” e a Madrasta são maus; os personagens considerados bons são

humilhados por aqueles; há personagens que podem ser domesticados com êxito, mas

30 Na concepção brechtiana de gestus, palavra latina, no alemão geste, subentende-se um comportamento social de uma determinada época. Brecht define: “O Gestus social é relevante para toda a sociedade; deixa inferir conclusões sobre a situação da sociedade. Um Gestus designa as relações dos homens entre si. Com esta palavra compreendemos um complexo de gestos e declarações que se relaciona com um acontecimento humano e à atitude geral de todos a este acontecimento o qual, vindo de uma única pessoa, desencadeia certos acontecimentos, como acontece com Hamlet, por exemplo”. (BRECHT apud BORNHEIM, 1992, p. 180)

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permanecem ambíguos, como o Gato/Asmodeu que, “tendo desistido de ser bom, explode”

(VIDAL;MARQUES, 2006, p.11).

Figura 7 – Asmodeu transformado em Gato e Maria. Foto de Renato Rocha Miranda.

Os autores de Hoje é Dia de Maria utilizam o recurso das estruturas narrativas orais e

populares e o maravilhoso para falar de tradições culturais particulares de seu povo quando

falam dos sem-teto, da exploração do trabalho infantil e da prostituição infantil. Porém, para o

diretor Luiz Fernando Carvalho, essa minissérie “é um jogo, não é uma narrativa que se

desloca no tempo histórico, falsa, alienante, mas uma narrativa de trabalho no espaço

misterioso da infância, que existe entre a realidade e a imaginação de todos nós”31. (grifo

nosso) No caso do trabalho de Soffredini, Abreu e Carvalho, a realidade brasileira é absorvida

pelo universo maravilhoso da estória. Maria está sempre se revoltando contra as injustiças: abre

mão de ser princesa para ser uma heroína andarilha, junta-se aos saltimbancos etc. Segundo

Vidal e Marques (2006, p.1), uma característica fundamental da personagem é “a perseverança

(a ‘Constança’, da qual ela é sempre lembrada) expressa em seu caráter, de que sua luta não é

em vão”. Vê o drama da menina carvoeira, dos bóias-frias e dos retirantes, e questiona o

porquê de tanto sofrimento. Ela sente este drama na pele, passando pela guerra, pela fome e

pelo trabalho forçado. Aqui podemos perceber como, no roteiro da minissérie, o universo

mágico amalgama-se à realidade de nosso contexto, em perspectiva crítica, mas é uma

realidade que tem atravessado a História do Brasil, sem ser datada, atemporal.

2.4.3 – Descontinuidade entre causa e efeito

31 Depoimento do diretor Luiz Fernando Carvalho para o Making off (40min.)do DVD da minissérie “Hoje é Dia de Maria”, 3 discos digitais, Rio: Globomarcas , 2006 (566 min.).

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Para Todorov, o gênero maravilhoso relaciona-se ao conto de fadas: “de fato, o conto de

fadas não é senão uma das variedades do maravilhoso. O que distingue o conto de fadas é uma

certa escritura, não o estatuto do sobrenatural” (TODOROV, 1975, p.60), que o relacionaria ao

fantástico. “Para Todorov, o maravilhoso opõe-se ao estranho na medida em que o primeiro

permanece sem explicação e supõe a existência do sobrenatural.”(LEGOFF, 1983, p.31) No

caso do maravilhoso, como diz Todorov,

os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos. (TODOROV, 1975, p.60).

Aqui é o leitor quem decide se devem ser admitidas novas leis da natureza, pelas quais

o fenômeno pode ser explicado. Então, “entramos no gênero do maravilhoso” (TODOROV,

1975, p.48). Na microssérie, a naturalização do maravilhoso está presente o tempo todo,

quando Maria conversa com seus amigos encantados ou com o Diabo. As Jornadas da pequena

Maria ou da Maria-moça seguem as leis que regem o maravilhoso, onde os diabos aparecem e

falam e os bichos são humanos encantados, sem causar espécime aos outros personagens

humanos. Na minissérie, Maria precisa da magia para inventar e “os encantados” convivem

com ela em sua jornada. Como diz Wendy Faris, acerca da naturalização do maravilhoso,

Maravilhas são recontadas sem comentário, de um jeito prosaico, aceito, presumivelmente, como uma criança as aceitaria, sem questionamento ou reflexão. Ouvimos descrições de fenômenos experimentados pela primeira vez e participamos do frescor maravilhado daquela experiência. (FARIS, 1995, p.177) (tradução nossa)32

Para a pequena Maria, a Boneca que conversa como gente (Emília/Olympia) e o

personagem de Chico Chicote são absolutamente naturais, assim como o Pato e a Cabeça. Não

há, portanto, estranhamento, como acontece no conto fantástico. São casos de ‘naturalização do

irreal’, termo cunhado por Irlemar Chiampi (1980) para descrever o maravilhoso. Maria,

ironicamente, estranha a realidade, não a fantasia:

MARIA Mas que lugar é esse de agora? CARVOEIRA Nesse lugá fica tudo o que a cidade joga fora. Até as pessoa.

32 Wonders are recounted largely without comment, in a matter-of-fact way, accepted – presumably – as a child would accept them, without questioning or reflection; (...)we hear descriptions of phenomena experienced for the first time and participate in the fresh wonder of that experience.

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MARIA Entonces, nóis tamo no meio do pesadelo do Gigante? CARVOEIRA Não, Maria, tamo é no meio da realidade do mundo. (ABREU; CARVALHO, 2005, p. 404)

Engolida pelo Gigante, ela estranha o que vê de dentro de sua barriga: é do lixão que ela

vai imigrar para a cidade grande. Na Primeira Jornada, fatos como o açoite ao cadáver do

devedor, ou o trabalho escravo das crianças, ou a necessidade do retirante de emigrar, são

motivos de questionamento para Maria. Tudo o que encontrará na Segunda Jornada será para

ela totalmente estranho – sendo uma criatura vinda do campo – incluindo o capitalismo e a

guerra, que ela vê como uma loucura que não tem explicação. Assim, a realidade circundante

do espectador urbano é que gera estranhamento em face do universo maravilhoso da

personagem.

2.4.4 - Universalidade

Outra característica dos contos maravilhosos é a universalidade. “Tanto mais universal

um conto mais será popular num dado país. O típico será sempre regional. O nacional já

evidenciará uma amplidão denunciadora de sua universalidade.”(CASCUDO, 1978, p.179) Ao

contrário de Dostoievski, que disse: “fale de sua vila e falará ao mundo”, Cascudo aqui

exemplifica sua idéia com a “Gata Borralheira” – um dos textos-fonte mais explícitos da

minissérie, como veremos adiante – cuja origem é impossível rastrear, e cujos elementos

encontram-se em todos os países e regiões mais distantes, em todos os idiomas da Terra, com

inúmeras variações.

A transcriação que acontece nesta minissérie, por exemplo, é o processo de adaptação à

época atual e a todo um país, atingido via satélite pela televisão. Não se está falando de uma

Maria do Sergipe ou de São Paulo, mas de todas as Marias do Brasil, da que vem do sertão para

a cidade grande. E quando entramos no tema da guerra dentro da Segunda Jornada, estamos

falando das meninas das favelas cariocas até às Marias de todo o mundo, que sofrem este

tormento, tornando o programa universal.

2.4.5 – Construção em abismo

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Esta característica do maravilhoso, por sua vez, nos leva à ficcionalização da realidade.

“É um jogo de planos invertidos, que Borges anotou como uma forma de constituir o

maravilhoso, inclusive no Dom Quixote”, diz Chiampi (1980, p.84). De acordo com Wendy

Faris, (1997, p.176)

a presença de colagem intertextual mágica na qual os personagens de outras estórias aparecem é relativamente comum, tornando Dom Quixote uma de nossas primeiras novelas do realismo mágico. 33(tradução nossa)

Calvino(1994, p.51) nos lembra que “Xerazade conta uma história na qual se conta

uma história na qual se conta uma história, e assim por diante.” Nesse roteiro de minissérie,

todas as referências intertextuais são entrelaçadas na tessitura de uma narrativa em que os

elementos maravilhosos dão o tom ficcional.

2.5 – O mito do herói

Vemos claramente em Macunaíma a alusão ao mito do herói, apesar de estarmos

tratando de um anti-herói, o que em si já é uma paródia feita por Mário de Andrade. Para

Campos, (1973, pág. 98)

devemos reconhecer os contos em que a atividade heróica serve aos interesses do pai, do rei ou da comunidade no seu conjunto em face daqueles outros em que o interesse é individual, privado. Na primeira categoria, estão contos de caráter heróico ou mitológico, nos quais o herói tem força e origem maravilhosa; ou em que, no curso das provas, predomina uma luta heróica contra um adversário mítico.

Também em Hoje é Dia de Maria temos presente o mito do herói, como veremos a

seguir. Para Kothe (1987, p.89) “o estudo do herói é um modo estratégico de se estudar a

dominante das narrativas literárias e não-literárias, artísticas e triviais”. Sobre o herói, sabemos

que ele pode ser interpretado como um “eu” coletivo. Ele sempre retorna à sua tribo, após

façanhas memoráveis. Faz parte de sua “formação iniciática”, como diria Campbell (1996), um

percurso da aventura mitológica sintetizada em “separação-iniciação-retorno”. Separando-se

dos seus, o herói inicia suas aventuras até chegar a uma região onde se defronta com forças

fabulosas e acaba por conseguir um triunfo decisivo. Alguns desses ritos de passagem são o

mergulho ritual no mar, a passagem pela água, além da catábase – a descida aos infernos. De

acordo com Junito Brandão (1987, p.51), “o herói é um personagem especial, que sempre deve

estar preparado para a luta, para os sofrimentos, para a solidão e até mesmo para as perigosas

catábases à outra vida.” Ele se notabiliza por formas específicas de criatividade, além de serem

33...the presence of intertextual bricolage, intertextual magic in which characters from other fictions appear is relatively common, making Dom Quixote one of our first magical realist novels.

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considerados autóctones, do grego autókhthon isto é, “aquele que nasce diretamente da terra e

nela permanece” (BRANDÃO, 1987, p.53, notas). O herói está sempre numa situação limite, e

transgride os limites impostos pela sociedade, insolentemente. Ele é um arquétipo (segundo

Jung, um modelo universal), em luta contra as forças do mal, e seu sacrifício heróico não raras

vezes é a morte. Esse conflito com a sombra é a busca da consciência, pela liberação. Segundo

ainda Junito Brandão (1987, p.70), “A primitiva fraqueza da personagem é compensada com a

ajuda de figuras tutelares ou guardiãs, que o assistem na realização de tarefas que o herói

jamais poderia executar sozinho.”

No caso de Maria, a divindade protetora é Nossa Senhora Aparecida (a mesma do

“Negrinho do Pastoreio”), que é a mãe que lhe falta. Esta lhe diz, ao final da minissérie: “Foi

uma prova, Maria”. (ABREU;CARVALHO;SOFFREDINI, 2005, p.569). E a pequena lhe

responde que está cansada de provas. Para Jung,

Essas figuras divinas são os representantes simbólicos da totalidade da psiqué, a força de que carece o ego pessoal. A função essencial do mito do herói é desenvolver a consciência individual, para que ele se dê conta de sua própria força e fraqueza. A morte simbólica do herói converte-se na consecução da maturidade. (JUNG apud BRANDÃO, 1987, p.70)

O herói é alguém de quem foi tirado algo. Ele parte para uma seqüência de aventuras

que formam um círculo, desde a partida até o retorno. Nos rituais tribais de iniciação da

puberdade, ele morria como criança para tornar-se um adulto. Sai de uma determinada

condição, personalidade e psiquê e volta numa condição mais madura.

Um conto de fadas é o mito para a criança. Eles freqüentemente falam de uma menininha que não quer crescer e se tornar uma mulher. Muitas das estórias dos Irmãos Grimm representam a menininha paralisada. Todas aquelas matanças de dragões e travessias de limiares têm a ver com a ultrapassagem da paralisação. Para a menina, a ‘passagem’ se dá naturalmente. Ela se torna mulher, quer tenha essa intenção, quer não tenha. O menino, primeiro, tem de se separar da própria mãe, encontrar energia em si mesmo, e depois seguir em frente, em busca do pai. (CAMPBELL, 1996, p.147)

Maria tem um destino de ‘menino’, Édipo-Hamlet-invertido, pois deixa o pai em busca

da mãe. Na sua Primeira Jornada, abandona o ambiente familiar, após descer às trevas. É

enterrada, para depois ressuscitar, numa variante do tema da morte-e-ressurreição. As

revelações de sua jornada são uma série de provações, até que chega a um limiar, às ‘franjas do

mar’. Como disse Campbell, a simbologia da água é “a vida ou energia do inconsciente, que

dominou a personalidade consciente e precisa ser desempossada, superada e controlada.”

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(CAMPBELL, 1996, p.155). A obsessão de Maria com o mar talvez possa ser interpretada

como sendo sua necessidade de vencer seu inconsciente.

Para Kothe (1987, p.88), “o percurso do herói ao longo da literatura ocidental mostra

uma tendência no sentido de inverter a posição clássica antiga de só admitir, como heróis

elevados, personagens de extração social alta.” Obviamente, Maria não é uma heroína clássica

à moda da tragédia grega, pois ela é do povo. Ela é uma heroína moderna, e proletária, como as

heroínas brechtianas, como veremos no capítulo 3. Apesar das heroínas femininas da TV

estarem associadas ao melodrama – e há um modelo a ser seguido – Maria foge do estereótipo.

Mesmo assim, a série se enquadra num padrão de contos-de-fadas, no sentido proppiano

(1983). Encontramos, por exemplo, várias funções (tipos de personagens):

Maria é, sem dúvida, uma inocente perseguida, tanto pela Madrasta como pelo Diabo.

É uma virgem sensata, que foge do assédio do Pai e de Quirino, pois só se entrega por amor.

Seu Amado é vítima de um encantamento assim como o Príncipe. Possui uma chavinha capaz

de abrir corações, seu talismã, dado por sua mãe. Seu inimigo é mágico e poderoso, o próprio

Demo. Seu esposo é mágico, é o Pássaro Incomum, assim como sua madrinha, a própria Nossa

Senhora. Seus auxiliares, como o Mendigo, o Mascate, o Maltrapilho, o Homem-de-olhar-triste

são também mágicos (todos vividos pelo mesmo ator), e alguns amigos são bichos encantados.

Quanto às esferas ou agrupamentos em níveis, temos: na esfera do agressor, o Pai (no

início), a Madrasta e Asmodeu, na do auxiliar temos Dom Chico Chicote e os mágicos citados;

talvez possamos colocar Quirino, o saltimbanco que se apaixona por ela, como falso herói, pois

ele, enciumado, aprisiona o Amado de Maria. Na esfera do pai da princesa temos seu Pai e ela

está na esfera da princesa e ao mesmo tempo do herói, ou heroína.

Dissemos que Maria é uma heroína de uma narrativa trivial, mas o que seria isto? Para

Flávio Kothe (1987, p.92), trivial é “uma narrativa que se caracteriza pela natureza repetitiva e

automatizada do seu enredo, dos seus personagens e dos valores em torno dos quais eles se

movimentam.” Clichês, em nível do enredo, temática e final são característicos da dramaturgia

televisiva, mais especificamente da telenovela, sendo “o happy end “a restauração da situação

anterior à violação inicial da norma”, segundo Kothe (1987, p.72). Nestas estórias há uma

heroína virtuosa e um mocinho cheio de qualidades, verdadeiros deuses do olimpo,

predestinados a ficarem juntos; ela é pobre e ele é rico, ou, como está sendo a moda no segundo

milênio, ele é o pobre e ela é a rica, e no final se casam. O velho clichê das comédias

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românticas hollywoodianas: rapaz conhece a moça, rapaz perde a moça e rapaz reconquista a

moça34. Esses heróis

aparentemente correm grandes perigos e só no último instante salvam a situação e a si mesmos, um resultado já esperado pelo espectador, pois pertence à poética normativa e ao código do gênero: isto corresponde à situação do próprio receptor. Apesar dos perigos que corre em seu dia-a-dia para sobreviver, é-lhe assegurado que, no fim, tudo vai dar certo. Por outro lado, existe aí implícito um sonho de justiça e de valorização dos mais fracos, que é transferido para o reino da fantasia. (KOTHE, 1987, p.76)

Segundo Kothe, é possível a produção de uma ‘narrativa trivial de esquerda’, com

personagem principal feminina, como aconteceu na série “Malu Mulher”; para ele, a grande

virada da TV aconteceria quando esta tentasse mostrar “a Branca de Neve dos anões

operários”, que teria “o seu espelho quebrado em estilhaços pelos poderes vigentes”. A

narrativa artística surgiria justamente da possibilidade anunciada nesses ‘estilhaços.’(KOTHE,

1987, p.76). Justamente “Hoje é Dia de Maria” vem a ser a Cinderela sertaneja, dezoito anos

depois deste apontamento.

Como dissemos, a estória que estamos analisando, além de pertencer ao universo do

maravilhoso, tem suas raízes na realidade brasileira. Em sua viagem pelo sobrenatural, Maria

vivencia um Brasil de meninas carvoeiras, de atores circenses, de lavadeiras, ambulantes,

cáftens, polícia política, juízes corruptos. Ela experimenta a sabedoria popular na fé, na cultura

e nos mitos que vivencia por onde passa. É, nesse sentido, um conto de fadas para adultos,

como por exemplo os filmes fantásticos de Tim Burton ou o filme mexicano de realismo

mágico O Labirinto do Fauno, de Guilherme Del Toro, sobre a Guerra Civil Espanhola.

Figura 8 - Maria vê a árvore que brotou onde ela enterrara o morto. Ao seu lado, o Homem Triste,

personagem mágico. Foto de Renato Rocha Miranda.

34 “boy meets girl, boy loses girl, boy finds girl”. (Tradução nossa)

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CAPÍTULO 3: “TERRA DOS SONHOS, ONDE O FIM NUNCA TE RMINA”

“... eu mandava, eu mandava ladrilhar com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes...”

Cancioneiro Popular

3.1 – Roteiro, Estrutura em Movimento:

Para o maior dramaturgo inglês vivo, Tom Stoppard (2008), “um texto de teatro é a

transcrição de um evento antes de ele acontecer.”35 Portanto, é como um roteiro a ser seguido

para o evento, a peça, que de fato é o que interessa. Para ele, à medida em que flui o

espetáculo, este vai “desmontando” o texto. Quanto ao roteiro de cinema ou TV, chamamos de

literário o roteiro que pode ser lido por qualquer leitor, e de script o roteiro com todas as

anotações técnicas. O texto que estamos analisando aqui, publicado em livro, é o literário, com

divisões em episódios (capítulos) e sem os blocos com intervalos comerciais.

Um roteiro de televisão difere-se por gênero de uma peça de teatro e por sutis

diferenças de um roteiro de cinema. O roteiro para TV não é dividido em atos, como no teatro,

mas em blocos. A televisão, assim como o teatro, tem divisão em cenas, que são unidades

determinadas por espaço e tempo. Já no cinema, a divisão é em seqüências, ou seja, assuntos,

que coincidem com a unidade temporal, mas não com a espacial, visto que o cinema trabalha

com filmagens externas e internas. Já existem, no roteiro, sutilmente colocadas pelo roteirista,

as informações visuais que o diretor com sua equipe irão transformar em produto final. No

cinema, há a divisão em planos (posições de câmera determinadas pelo diretor), já a televisão

não se divide em planos, pois há, no mínimo, três câmeras posicionadas captando imagens ao

mesmo tempo, controladas pelo diretor de tv de dentro de uma cabine, através de monitores.

Num roteiro, as posições de câmera não devem estar inseridas – sendo isto um trabalho

do diretor – nem as seqüências numeradas, trabalho da produção. Ainda dentro da gramática

desse gênero, o roteirista coloca em maiúsculas tudo o que nos deve chamar a atenção dentro

da cena. Cada ação é um novo plano, ou enquadramento de câmera, portanto um novo

parágrafo. Por exemplo, quando lemos:

Todos olham para MARIA e depois para os seus pés, um deles calçado com o outro pé do sapato encarnado. O CAPATAZ confere com o pé que tem na mão. (ABREU; CARVALHO; 2005,p.174)

35 Entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TVE, em Paraty, por ocasião da 6ª. FLIP, julho de 2008.

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Entendemos que temos aí a câmera em Maria, depois nos seus pés (desce diretamente).

Depois o contra-plano do Capataz, num enquadramento aberto o suficiente para mostrar o

sapato em suas mãos. Caso o roteirista quisesse chamar a atenção para um pé ou para o sapato,

colocaria-os em maiúsculas como se quisesse dizer “detalhe”. Mesmo no roteiro literário estão

presentes certas questões técnicas, como por exemplo a expressão “corte descontínuo

para”...(ABREU; CARVALHO, 2005,p.232) com exceção de movimentação, posição de

câmera e angulação explícitos, pois isso soaria como interferência na área de outros

profissionais.

Um bom exemplo disso, é que em cada diálogo subentende-se que o personagem que

está falando está sendo mostrado, com exceção dos diálogos em off, que significam que alguém

está fora de enquadramento. No caso de Hoje é Dia de Maria, às vezes aparece no livro a

palavra off embaixo do nome do personagem, mas, no vídeo, este personagem aparece on nesse

mesmo diálogo, demonstrando que nem sempre a opção do roteirista será a do diretor. Na cena

34 do 1º. episódio, por exemplo, a personagem de Fernanda Montenegro, a Madrasta, e o Pai,

vivido por Osmar Prado, não apareceriam em cena. O diretor, porém, optou por usar a imagem

da atriz e do ator e não apenas a dublagem de suas vozes, tirando mais proveito dos atores de

que dispunha. Tendo a televisão, como disseram Marques e Vidal (2005, p.8), “em seu

fundamento o discurso oral e a palavra como matéria-prima, (...) o que é dito e o que é

mostrado tem efeitos evidentes sobre a linguagem.”

Já todas as falas da Narradora, abrindo ou encerrando os episódios, deveriam aparecer

com a rubrica (off). Sua figura aparece na primeira cena do episódio “Terra dos Sonhos”, o

primeiro da Segunda Jornada, ou, se preferirmos, do 9º. Capítulo. A opção da inclusão da

personagem narradora fora da trama, onisciente, gera um distanciamento brechtiano36,

inserindo o trabalho na dramaturgia épica, contrária a um tipo de televisão que geralmente

adota a identificação do público com o personagem. Isso é uma constante no trabalho do diretor

Luiz Fernando Carvalho, que sempre usa elementos de teatro épico: personagens “clowns”,

musicais, cenário não-realista, fugindo mesmo do sub-naturalismo da linguagem televisiva,

começando por Hoje é Dia de Maria, depois com a Pedra do Reino e Capitu. O mesmo

podemos dizer do trabalho do dramaturgo, roteirista e diretor Luís Alberto de Abreu.

Como afirmou Pasolini (1981, p.153), o roteiro, na sua função mediadora, é o

“elemento concreto da relação existente entre o cinema [visto, na perspectiva do autor, de

forma ampla, como audiovisual em geral] e a literatura”. Para Pasolini, o roteiro-literário

36 Mais uma vez, vamos nos reportar ao subcapítulo “Brecht”, notas, capítulo 3.

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expressa uma “vontade de ser de outra forma, ou seja, colhe a forma em movimento” e

expressa uma

(...) estrutura em movimento, ou seja: é uma estrutura dotada da vontade de se tornar outra estrutura; a sua característica “dinâmica”, parece-me, é um exemplo clamoroso de “estrutura diacrônica”; a estrutura (do roteiro) consiste exatamente nesta “passagem do estado literário para o estágio cinematográfico”.37 (PASOLINI, 1981, p.158) (grifo nosso)

A televisão é um veículo que se renova muito lentamente. A forma de uma minissérie,

por exemplo, varia de acordo com seu roteirista. Para o roteirista Walter George Durst38, cada

episódio deveria ser uma estória completa, que vai aumentando a escaleta central. A escaleta é

uma espécie de espinha dorsal, ou, para falarmos em termos arquitetônicos – uma das maiores

comparações que se faz a um roteiro é com uma planta-baixa – ela é a estrutura de concreto,

mas uma estrutura em que as peças podem se movimentar com uma facilidade digital, não

sólida como a de um prédio. A estrutura de uma microssérie como em Hoje é Dia de Maria,

por exemplo, é concisa como a dos contos, acontecendo uma aventura diferente em cada

capítulo, e só difere do seriado porque converge para um final. O espectador tem de sentir

prazer e compreender aquele episódio que está vendo, como se fosse um caso especial, para

não se correr o risco de fazer algo tedioso ou incompreensível, como aconteceu na hermética A

Pedra do Reino. Há, porém, os profissionais que encaram a minissérie como uma mininovela,

cujos capítulos terminam com um gancho para o próximo, e há tramas paralelas que vão

convergindo para a escaleta, como uma árvore com seus galhos, sendo essa estrutura mais

próxima da de um romance, que é lido aos poucos. O que as duas estruturas têm em comum é o

fato de tratar-se de uma obra fechada, onde não há a intervenção da audiência, e geralmente

adaptada de romances ou do teatro. Para o diretor e produtor de TV Paulo Affonso Grisolli39,

“oito episódios é uma boa dimensão para assegurar uma persistência da platéia em relação a

uma minissérie e para desenvolver um tema sem extenuar o espectador”. Já para Doc

Comparato40, roteirista, “qualquer tipo de estrutura funciona, pois não há a consolidação de

uma forma como há numa novela, com seus núcleos dramáticos, pois a minissérie é uma obra

fechada”. Cada uma tem sua estrutura, que pode ser de quatro em quatro episódios encerrados,

ou de estórias que se armam de três em três capítulos em dramaturgia fechada. Ele nos lembra

37 O tradutor português traduz sceneggiatura-scritura como argumento-texto ao invés de roteiro literário, sendo esta segunda expressão preferida no Brasil, visto que a primeira denota outra fase da escritura cinematográfica entre nós, a do texto não-decupado com finalidades mercantis, de registro e aprovação para leis de incentivo. 38 Entrevista concedida em São Paulo em 1988, vídeo Minisséries Brasileiras, VHS,NTSC, 3:30, color.,son.. 39 Entrevista concedida no Rio em 1988, para o vídeo Minisséries Brasileiras, VHS, NTSC, 3:30, color., son. 40 Entrevista concedida no Rio em 1988, para o vídeo Minisséries Brasileiras, VHS, NTSC, 3:30, color.,son.

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que a minissérie não é um seriado, nem uma mininovela, nem um filme. É um “produto

cultural híbrido”, como dizem as pesquisadoras Marques e Vidal (2005).

Segundo Dias Gomes, a tendência era que as minisséries ficassem menores. Porém,

quanto menores, menos rentáveis seriam. Elas foram feitas inicialmente com trinta episódios e

depois foram diminuídas para quatro episódios. “No caso de O Pagador de Promessas, por

exemplo, foram produzidos doze capítulos, mas a censura interna da TV Globo cortou quatro e

foram exibidos apenas oito”41. Já sua minissérie em parceria com Ferreira Gullar, Noivas de

Copacabana, teve dezesseis episódios em quatro blocos, sendo que ele escreveu um dos blocos

e o final da narrativa. Sobre Dias Gomes, vale lembrar o que já dissemos sobre auto-

referenciação: ele sempre reaproveitava, reciclava mesmo tudo o que escrevia para o teatro e

para o rádio para usar na televisão42.

Hoje é Dia de Maria começou com oito capítulos, oriundos de um especial, e depois

teve a segunda fase de mais cinco capítulos, totalizando treze. De acordo com o roteirista, Luís

Alberto de Abreu, que já havia escrito roteiros de cinema premiados por dez anos antes de sua

primeira experiência na TV, os episódios deveriam ter cerca de meia hora cada. Como foi dito

anteriormente, o roteiro de Soffredini, de sessenta minutos, escrito juntamente com Luiz

Fernando Carvalho, serviu de base para a minissérie, sendo todo reformulado, ampliado,

inclusive com a criação de outros personagens e situações. O diretor alterava cenas,

encaminhadas pela internet pelo roteirista, e depois faziam reuniões para “acertar o tom” dos

personagens e o encaminhamento da estória. Falavam-se por telefone, e, ao final, trabalharam

por uma semana juntos no Rio de Janeiro, para o acerto dos oito capítulos da Primeira Jornada.

As narrações no começo e no fim dos capítulos desta jornada foram desenvolvidas já durante as

gravações. Por exemplo, a transformação da menina Maria em adulta foi desenvolvida pelos

dois, enquanto que o demônio Asmodeu e os saltimbancos foram sugestões de Abreu. Já na

Segunda Jornada, os personagens de Chico Chicote, da Boneca e Dr. Copélius foram sugestões

de Carvalho, enquanto que todos os personagens da Primeira Jornada como Maria, Pai,

41 Entrevista concedida em 1988 para o vídeo Minisséries Brasileiras, NTSC, VHS, color, son., 3:30. 42 Jorge Furtado, roteirista e diretor de minisséries, nos diz quanto ao tamanho das minisséries que talvez se faça mais microsséries de quatro, mas a Muralha é uma mininovela. Sobre esta minissérie,nos falou a diretora Denise Sarraceni: “A Muralha foi encomendada para quarenta capítulos, depois quarenta e quatro, quarenta e nove e finalmente cinquenta e um. Então é um formato ainda em discussão. Nós conseguimos fazer A Muralha no preço. Foi uma equação encontrada para se viabilizar, agora, podemos fazer outra com quarenta, mas eu acho que prejudica a minissérie,o ideal seriam trinta. Senão vai se aproximando do formato da novela, a não ser que você encontre uma obra que renda quarenta ou cinqüenta capítulos, mas é difícil.” Sobre a minissérie escrita por seu colega Jorge Furtado, adaptada da obra de Raquel de Queiroz, ela disse: “o fato de se ter alongado Maria Moura eu tenho a impressão de que foi mais uma exigência comercial. Então o que está se tentando até hoje é encontrar um formato ideal para a gente ter mais minisséries. Daniel Filho(2001) considera que o tamanho ideal “é de no máximo doze capítulos, pois as minisséries estrangeiras são todas pequenas” (Todos esses depoimentos foram colhidos no Rio pela autora, entre 1999 e 2000).

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Madrasta, Joaninha, Príncipe sem Rosto, Pássaro, foram criados por Soffredini e Luiz

Fernando. Os dois trabalharam, portanto, num processo de “interferência criativa”, e foram

expandindo esse universo, seguindo uma estrutura de mitos e arquétipos.

3.2 – Intertextualidades em Hoje é Dia de Maria:

O roteiro da minissérie Hoje é Dia de Maria é uma trama tecida principalmente com

lendas recolhidas por folcloristas brasileiros e narrativas da literatura universal. Nas duas

jornadas da minissérie de TV, as fontes de textos citados variam desde romances, contos, peças

de teatro, músicas, sendo estes estrangeiros e brasileiros. Esses textos são recontados pelos três

autores, sendo alterados, transmutados, transformados para se adequarem à narrativa

televisiva. Hoje é Dia de Maria é um verdadeiro mosaico de citações, uma “colcha de

retalhos”, para usar uma linguagem mais popular e próxima das fontes do roteiro/livro. Seu

argumento – um especial para TV – foi construído com base em uma estilização de contos orais

populares. Há, de fato, uma rede de textos que se articulam em tons diversos, desde a paráfrase

até paródias, alusões a obras famosas.

Segundo Renato Cordeiro Gomes, em Hoje é Dia de Maria há um “cruzamento entre

televisão e outros campos culturais como a literatura, as artes plásticas, o cinema, o teatro, o

circo, as festas populares, a música em seus múltiplos gêneros.” (GOMES, 2006, p.5) A

minissérie é um marco na teledramaturgia brasileira, sucesso de crítica, pois recebeu elogios de

especialistas, sendo uma narrativa incomum na televisão no horário nobre, cheia também de

referêcias cinematográficas e teatrais. A leitura dessa obra de dramaturgia é um exercício

intelectual e de imaginação que ao longo da história criou personagens inesquecíveis,

referenciais no arcabouço de significados de muitas culturas. Também para Cordeiro,

A intrincada trama das duas temporadas se apropria, metaboliza e rearticula um sem- número de narrativas e referências culturais, num processo intertextual que reativa matrizes culturais brasileiras, somadas a nexos internacionais. Hoje é Dia de Maria enfatiza, sobretudo na primeira temporada, uma tradição popular brasileira, o universo folclórico e mítico dos contos populares, lendas indígenas, provérbios e ditos populares, festas (como a Folia de Reis e Festa de São José), adivinhas e alusões a contos de fada como ‘Cinderela’, ‘Pele de Asno’, ‘Pé de Zimbro’. (GOMES, 2006, p.4-5)

Não creio se tratar de simples “alusão” aos contos de fada, pois eles foram mesmo

narrativas fundadoras da minissérie. Estamos falando aqui de reciclagem cultural, pois, ainda

segundo Renato Cordeiro Gomes (2006, p.5) “a minissérie de 2005 escancara a problemática

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da hibridação e da reelaboração, que coloca em cheque o mito da pureza cultural”. Como

assinalaram Marques e Vidal (2005, p.10),

Quando Carvalho ‘adapta’ para a televisão, ele está recriando, reescrevendo, tomando emprestado, apropriando-se de um modo de criação e fazendo um outro que é o seu e para televisão. E mais, outra linguagem daí nascerá, e essa outra linguagem sofre a inserção de outras próprias do veículo eletrônico e do formato que é a micro ou minissérie, ela também dotada de linguagem diferenciada e peculiar.

Nesta análise que se segue, dividimos as intertextualidades identificadas em três blocos

seguindo as suas origens e gêneros. O primeiro grande bloco estuda os três contos orais

populares, as versões brasileiras, via Sílvio Romero e Luís da Câmara Cascudo – embora suas

origens remontem à Idade Média – que deram origem a Hoje é Dia de Maria. Também do

cancioneiro popular resgatado por Sílvio Romero vamos encontrar muitas cantigas, aliadas à

pesquisa folclórica e à obra de Villa Lobos, compositor muito presente na minissérie.

O segundo bloco aborda a literatura brasileira que influenciou direta ou indiretamente a

minissérie. Os autores da minissérie declaram uma influência de Mário de Andrade, como

podemos ver na entrevista que nos foi concedida via internet por Luís Alberto de Abreu43.

Segundo Renato Cordeiro Gomes, “Hoje é dia de Maria retoma e recicla, em outro contexto e

em outra época, certas propostas modernistas como a de Mário de Andrade em relação à

cultura popular e à Antropofagia oswaldiana.” (GOMES, 2006, p.7). O que conseguimos

apurar é uma presença paradigmática de Macunaíma e com ele nos aprofundamos no mito do

herói. Temos também a presença de poemas ou de temas desenvolvidos por poetas brasileiros

modernistas, como Drummond, Bandeira e Cassiano Ricardo. Neste último, em Martim

Cererê, encontramos, assim como em Macunaíma, a pesquisa com lendas indígenas. O

universo do autor teatral paulista Carlos Alberto Soffredini perpassa por todo o tempo o mundo

maravilhoso de Maria. A temática infantil, da boneca que fala, da menina e suas aventuras, está

em Monteiro Lobato, que, por sua vez, importou personagens da literatura mundial. De acordo

com Luiz Fernando Carvalho, numa minissérie, “a brasilidade se funde e, ao mesmo tempo, é

fruto do embate com elementos provenientes de todo o planeta, num enorme movimento

antropofágico.”44.

Lobato é a nossa ligação com o terceiro bloco, que fala das influências e da presença da

literatura mundial, desde Lewis Carrol até Cervantes, de Shakespeare a Ésquilo, e do fantástico

43 Apêndice 2. Entrevista por e-mail com a intermediação da Globo Universidade. Não foi feita diretamente com o autor, não houve oportunidade de feed-back. 44 Entrevista concedida para o site da minissérie, disponível em <http://hojeediademaria.globo.com/ >, acesso em 23/11/08.

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presente na minissérie por intermédio de Hoffman e da figura do “duplo”; investigamos a

presença de musicais de Brecht e terminamos com musicais americanos citados textualmente,

como O mágico de Oz, uma vez que esta minissérie é um musical – o que a aproxima mais

ainda da rapsódia andradiana.

Concluindo, as influências e referências são predominantemente do universo do

maravilhoso, inserindo o roteiro na categoria das obras desse gênero.

3.2.1 – Contos e cantos populares

A base intertextual da minissérie é constituída de três contos: “A Madrasta”, “Maria

Borralheira” e “Dona Labismina”, cujas citações vamos analisar a seguir. Também podem ter

entrado no caldeirão de poções maravilhosas deste roteiro alguns contos africanos e lendas

indígenas, embora a matriz dos três contos principais seja européia. O especial de TV feito por

Soffredini, sob encomenda de Carvalho, foi inspirado em Sílvio Romero, em suas compilações

do folclore de Sergipe e na pesquisa de Cascudo no Rio Grande do Norte. A coerência entre os

autores e as canções que o próprio Sílvio Romero (1954a) cita é óbvia: os autores da minissérie

estilizaram os contos, mesclando-os de forma tal que se torna quase impossível dizer aonde

começa um e termina o outro. As canções populares, em sua maioria cantigas-de-roda, foram

usadas sem alteração. Elas nos lembram uma época lírica da música popular brasileira, da

modinha ao estilo de Villa Lobos até os cantadores populares, marca do sertão.

3.2.1.1 – ‘Cinderela’ em Hoje é Dia de Maria:

Segundo Luís da Câmara Cascudo, um dos autores que serviram de inspiração para a

minissérie, “o conhecidíssimo ‘Maria Borralheira’ ou ‘Gata Borralheira’ é um dos tipos

universais de conto popular. Não é possível contar-lhe as variantes nem indicar origens. Está

em todos os países e regiões.” (1978, p.179) Para Cascudo, a “Cinderela” está presente em

todos os idiomas dos mais distantes países.45 O conto “Maria Borralheira” é uma das muitas

variantes do mito da “Gata Borralheira”, como podemos concluir a partir dessa sinopse de

Romero (1954b, p.115):

45 “O casamento de Maria Borralheira é verificado pelo calçamento de um chapim. Elemento simbólico, ocorrente no velho direito germânico. No Livro de Ruth, na Bíblia, reaparece a confirmação contratual pelo descalçamento do sapato e sua entrega. Veio essa fórmula de doação ou promessa de obediência total até o século XVII.” (CASCUDO, 1978, p.245)

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Havia um homem viúvo que tinha uma filha chamada Maria; a menina, quando ia para a escola, passava por casa de uma viúva, que tinha duas filhas. A viúva costumava sempre chamar a pequena e agradá-la muito. A menina pegou e falou ao pai para casar com a viúva. O pai respondeu: ‘Minha filha, ela hoje te dá papinhas de mel; amanhã te dará de fel.’ Mas o pai contratou o casamento com a viúva. Tudo o que havia de mais aborrecido e trabalhoso no trato da casa, era a órfã que fazia.

Assim como a estória de Cinderela, Maria Borralheira tem uma fada madrinha (no caso,

uma vaquinha), que lhe dá uma varinha de condão e com ela consegue um belo vestido e vai ao

baile do rei, conquistando o príncipe, experimentando o sapatinho e se casando com ele. Na

minissérie, Maria (já adulta), se recusa a se casar com o príncipe, numa variante parodística e

feminista. O conto “Maria Borralheira” é parodiado, mais especificamente, no episódio “Maria

Perde a Infância”.

3.2.1.2 – ‘A Madrasta’ em Hoje é Dia de Maria

Já o conto “A Madrasta”, conta a estória de um homem viúvo que tinha duas filhas

pequenas, e casou-se pela segunda vez:

A mulher era muito má para as meninas, mandava-as como escravas fazer todo o serviço. Perto da casa havia uma figueira e a madrasta mandava as enteadas botar sentido aos figos por causa dos passarinhos. As crianças passavam ali dias inteiros, espantando-os e cantando: “Xô,xô, passarinho, aí não toques o biquinho, vai-te embora pro teu ninho.” Quando foi uma vez, o pai das meninas fez uma viagem e a mulher mandou-as enterrar vivas. Quando o homem chegou, a mulher lhe disse que as suas filhas tinham caído doentes e tinham morrido. O pai ficou muito desgostoso. Aconteceu que nas covas das duas meninas e dos cabelos delas nasceu um capinzal muito verde e bonito, e quando dava vento, o capinzal cantava: “Capineiro de meu pai, não me cortes os cabelos; minha mãe me penteava, minha madrasta me enterrou pelo figo da figueira que o passarinho picou.” Então o pai mandou cavar naquele lugar e encontrou as duas filhas vivas ainda por milagre de Nossa Senhora, que era madrinha delas. (ROMERO, 1965b, p.124-126) ( grifo nosso)

De acordo com Luís da Câmara Cascudo (1978, p.257) “não há boa madrasta. O

segundo casamento raramente é feliz” em contos de fadas. Esta estória, segundo ele, “é o

exemplo típico da natureza denunciante”. Ele compilou uma versão do Rio Grande do Norte,

“A menina enterrada viva”, e, no seu livro Contos Populares do Brasil, consta a partitura da

música cantada pela menina. Esta versão foi adotada pela minissérie, com a diferença de que

neste conto há apenas uma menina, a qual é morta pela madrasta, mas que ao fim consegue

ressuscitar.

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Figura 9– Maria espanta os passarinhos da figueira. Foto de Renato Rocha Miranda.

Essas versões nordestinas tiveram origem portuguesa; dentre elas, Adolfo Coelho

registrou a versão de Coimbra, ‘A Menina e o Figo’, e Teófilo Braga traz a versão do Algarve,

‘O Figuinho da Figueira’, com o estribilho:

Não me arranquem os meus cabelos, Que minha mãe os criou,

Minha madrasta m´os enterrou Pelo figo da figueira Que o milhano levou. (CASCUDO, 1978, p.336) 46

Segundo Proença (1969) e Campos (1973), em Macunaíma, Mário de Andrade usou, no

capítulo “Pacueira de Oibê”, os mesmos versos que foram compilados por Silvio Romero, em

sua versão erótica:

Tinha um pé de carambola e Macunaíma principiou arrancando ramos de caramboleiro pra se amoitar por debaixo. Os ramos cortados agarraram pingando água de lágrima e se escutou o lamento do caramboleiro: “Jardineiro de meu pai, não me cortes meus cabelos, que o malvado me enterrou pelo figo da figueira que passarinho comeu. – Chó, chó, passarinho!” Todos os passarinhos choraram de pena gemida nos ninhos e o herói gelou de susto. Agarrou no patuá que trazia entre os berloques do pescoço e traçou uma mandinga. O caramboleiro virou uma princesa muito chique. O herói teve um desejo danado de brincar com a princesa...(ANDRADE, 1969, p.198) ( grifo nosso)

No livro Hoje é Dia de Maria, todo o episódio 1 – “No Sol Levante” é baseado na

estória da “Madrasta”, e as personagens voltam a aparecer em todos os oito primeiros capítulos.

Mais especificamente nas páginas 38 e 44, Maria canta a música “Xô Passarinho”; contudo,

não há o personagem do capineiro. Vejamos um trecho:

CENA 26

CASA DO SÍTIO/QUARTO DE MARIA/INTERIOR/MANHÃZINHA

46 “Corresponde ao ‘Los Niños Sin Mamá’ do Cuentos Viejos, Maria de Nogueira, San José de Costa Rica, 1938, onde a menina é sepultada viva e uma bela mata nasce de seus cabelos. Ela não ressuscita. O prof. Aurélio M. Espinosa recolheu em Torrijo de Canadá, Aragão, uma variante, em Cuentos Populares Españoles, 1929, Stanford University,‘Las três bolitas de oro’, onde a órfã tem a cabeleira misturada com o trigo. Querendo-o cortar, os segadores a ouvem. A madrasta é queimada viva.”(CASCUDO, 1978, p. 336)

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Ainda arfante, a MADRASTA entra furiosa e vê a velinha tremulando aos pés da gravura. MADRASTA Aalminha dela, tá certo? Vai decidida até à vela e, com um sopro forte, a apaga... CENA 27

CAPINZAL/DESCAMPADO/EXTERIOR/MANHÃZINHA

...Ao mesmo tempo em que MARIA exala seu último suspiro. E ao mesmo tempo, ainda, em que a BORBOLETA AMARELA ganha vida e sai revoluteando pelo ar, ao mesmo tempo em que as primeiras ramas envolvem seu corpo de boneca.

O que atrai o pai ao túmulo da filha é uma borboletinha amarela, atraída pela rosa

encarnada que Maria havia plantado ali perto. O pai ouve a canção vinda do chão e desenterra a

filha, que está viva.

3.2.1.3 – Dona Labismina em Hoje é Dia de Maria

Em Sílvio Romero encontramos também o conto “Dona Labismina”, (ROMERO,

1954b, p.74) em que o rei tem uma filha Maria; a rainha, ao morrer, diz que ele deve se casar

novamente com a mulher em cujo dedo o anel que ela usava servir; evidentemente que ele só

servirá em sua filha. Muito desgostosa e chorando, Maria entra num navio e segue viagem para

não se casar com o próprio pai; vai ser criadora de galinhas num castelo onde há um príncipe

que, é claro, se apaixona pela jovem de belos vestidos cor-do-mar, cor-do-céu etc. Estes ela

conseguira através da sua irmã gêmea, Labismina, uma cobrinha que nascera enrolada no

pescoço de Maria e que mora num lago. Essa estória é uma variante do famoso conto-de-fadas

“Pele-de-Asno”:

‘Pele de Asno’ é um dos três tipos em que Miss Cox divide as 345 variantes de ‘Cinderela’ (...) o motivo central será o desejo sexual paterno, repelido da filha, no horror ao incesto. A filha foge, disfaçada numa boneca. Trabalha num palácio. Casa-se com o príncipe. A filha que não queria se casar com o pai está no brasileiro ‘Dona Labismina’, de Silvio Romero(CASCUDO, 1978, p.223) (grifo nosso)

A citação a este conto que ficou na minissérie acontece quando o Pai, bêbado, tenta

agarrar Maria e esta foge: “E assim, lutando, o PAI derruba MARIA entre os pés de milho. A

menina chora desesperadamente...”(ABREU; CARVALHO, 2005, p.18)

Outras citações existem no especial de uma hora de Soffredini. Uma delas é que a

serpente sempre aparece aos pés de Nossa Senhora, no riacho:

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MARIA ouve um tempo o canto do ribeirão. Depois percebe uma serpente que sai de baixo dos pés da SENHORA e mergulha no rio. Então MARIA olha espantada pra SENHORA, que lhe sorri. Fusão com a imagem da Imaculada Conceição pisando a serpente, pendurada no quarto de MARIA(SOFFREDINI, 1995, p.14)

Já no episódio do defunto insepulto, Maria joga uma corda que se transforma numa

jibóia colorida para assustar os executivos, como acontecera com a vara de Moisés no Êxodo.

Os vestidos de Maria ao longo desse roteiro original mudam como os vestidos que a

Maria do conto ganha de Dona Labismina ou que a Maria Borralheira ganha da vaquinha. Ou

têm todas as flores do campo: “Entre as crianças, Maria, vestida da cor do campo com todas as

suas Flores” (SOFFREDINI, 1995, p.1); ou todos os peixes do mar (Maria deixa o antigo e vai

embora vestida com este), ou todas as estrelas do céu (que Maria adulta ganha do mascate para

ir ao baile). Essas sugestões não foram seguidas no roteiro da microssérie, mas aparecem em

outro livro da literatura brasileira, como veremos adiante.

3.2.1.4 – Outros contos-de-fadas em Hoje é Dia de Maria

Em Hoje é Dia de Maria também estão presentes outros contos-de-fadas, como “A

Formiguinha e a Neve”, mais especificamente no episódio “Neva no Coração”, e o “Gato de

Botas”, na personagem de Asmodeu-Gato.

Ainda Câmara Cascudo, no capítulo sobre Nina Rodrigues em sua antologia, narra um

conto popular africano (nagô), cujo tema é a menina modesta, afetiva, que, maltratada pela

madrasta, em benefício da própria filha, mal-educada, invejosa, dura de coração, recebe das

fadas uma recompensa por sua persistência:

O Iwin47 partiu e a menina o acompanhou. “Vai-te embora, volta para casa, porque não podes entrar no país em que eu moro”, disse o Iwin. “Não, eu irei onde tu fores até que me pagues”, disse a menina. A menina seguiu e caminhou um caminho muito longo, até chegar à terra dos mortos. Então o Iwin deu à menina alguns cocos. (RODRIGUES apud CASCUDO, 1971, p.399) ( grifo nosso)

A menina consegue grande riqueza. A madrasta manda a filha seguir os passos de

Maria e, ambas, mãe e filha, recebem castigos. Há uma variante na Bahia da caiton ou

comboça ou enteada, que é salva pela Mãe-D´água:

Era um dia uma menina que a madrasta maltratava muito, obrigava a trabalhos muito pesados, ao passo que a sua filha não fazia nada. Um dia a menina resolveu ir por aí a

47 Fada ou espírito

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fora a buscar a terra das fadas. Começou a seguir um caminho muito longo. (CASCUDO, 1971, p. 403-404) (grifo nosso)48

A menina, no conto baiano, vai encontrando e ajudando pelo caminho seres fantásticos

como o Acarajé, as Pedras Grandes, o Adjinacu, a Onça, Iemanjá e um menino. Ao final, é

recompensada, e a filha da madrasta invejosa é castigada, como também acontece em Hoje é

Dia de Maria. No roteiro original de Soffredini, Maria se vinga da Madrasta e da filha desta,

utilizando os mesmos subterfúgios deste conto africano. Ela resolve mandá-las fazer tudo ao

contrário, de forma que se dêem mal. Essa versão maliciosa de Maria não ficou no roteiro da

microssérie. Essa revolta de Maria é justificada por Cascudo desde a época da escravatura:

“nos negros, a revolta do sentimento de justiça contra castigos não merecidos ou contra a

recompensa imerecida da má conduta teve também o seu eco na repulsa e condenação da

opinião pública e deu origem a essas versões.” (CASCUDO, 1971, p.400) É essa versão mulata

que chega até nós, embora muitas vezes os contos populares tenham sido politicamente

incorretos com a imagem do negro, como na personagem, por exemplo, da “Moura Torta”, que

nesta estória é feita pela Madrasta branca, ao espetar sua filha com um alfinete.

Já dissemos em capítulo anterior que Maria rompe com a tradição das Cinderelas

quando ela se recusa a casar-se com o Príncipe. A mulher que rompe com o noivo antes do

casamento rompe também com um padrão que pertence a outra época e outra cultura. Maria

também não é uma heroína tradicional, ela está mais próxima das “personagens-títulos” de

filmes contemporâneos como “Deu a louca em Chapeuzinho” ou “Deu a louca na Cinderela”,

desenhos animados em longa-metragem, pois é uma menina corajosa e, já mulher, foge do

estereótipo das princesas encantadas, uma vez que não sobe ao patamar da classe alta, como no

desfecho recorrente nas telenovelas brasileiras.

A importância do longo caminho também faz parte de uma das características do conto

maravilhoso, a repetição, tratada no capítulo anterior. É, segundo Marques e Vidal (2005,

p.14), “um caminhar que é ao mesmo tempo circular, como se Maria, caminhando sempre,

encontrando-se com outras personagens, não saísse do espaço-tempo”. O próprio diretor Luiz

Fernando Carvalho, em entrevista oficial no site de Hoje é Dia de Maria, declarou que, nas

andanças de Maria, ela “encontra e reencontra arquétipos que retornam à ancestralidade que

permite a imaginação”49.

49 Entrevista divulgada em <HTTP://hojeediademaria.globo.com/>. Acesso em 18 maio 2008.

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Figura 10 – Maria seguindo seu longo caminho e carregando sua cabaça, purunga ou poronga, um cantil encontrado na natureza e transformado pelas mãos do homem para suas andanças (VIDAL; MARQUES, 2005, p.4) Foto de Renato Rocha Miranda

3.2.1.5 – Villa-Lobos e o cancioneiro popular:

Muitas das canções que aparecem no texto foram sugeridas já no roteiro de Soffredini.

Grande parte delas foram cirandas resgatadas por Villa Lobos do domínio público, outras

compostas por ele após sua pesquisa folclórica Brasil a fora, numa criação antropofágica, e

Soffredini(1995) apenas cita como fonte Villa-Lobos das Crianças (grifo nosso). São elas:

“Que lindos Olhos”, “Vida Formosa”, “Machadinha”(não utilizada),“Melodia Sentimental

Floresta Amazônica” “Carneirinho, carneirão”, “Sapo Jururu” (ou cururu), “Senhora Viúva”,

“O Limão” (não usada na minissérie), “O Anel”, “Na Corda da Viola”, “Beija Fulô”, “Meu

Benzinho”, “Rosa Amarela”, “Alecrim”, “Candeeiro”, “Coco”, “Desafio da Paca”,

“Fandango”, “Formiguinhas”, “Meu querido São José”, “O Castelo”, “Se essa rua fosse minha”

e várias outras (ABREU;CARVALHO, 2005).

“A Velha a Fiar”, anônima, é uma citação visual/homenagem ao curta-metragem

homônimo de Humberto Mauro – um verdadeiro jogo de palavra-puxa-palavra:

PARCA 1 (cantando) Estava a vida em seu lugar, Veio a morte lhe faze mal. A vida na morte, a morte no homem, O homem no pau, o pau no cachorro, O cachorro em criança, a criança na velha E a velha a fiar!

(ABREU, CARVALHO, 2005, p.399)

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O roteiro de Hoje é Dia de Maria utiliza músicas populares compiladas por Silvio

Romero, como “Meu Cravo Meu Diamante” (ROMERO, 1954a, p.396), que, porém, não é

utilizada na edição final; e ainda “Chuá, Chuá”, de Pedro de Sá Pereira e Ari Pavão;

“Amargura”, de Eduardo Souto. Há ainda outras cantigas populares no livro, não-identificadas,

a maioria desafios.

Algumas músicas, como “Dão-da-la-lão”, tiveram apenas a melodia usada pelo diretor

musical com outra letra. Outras músicas foram acrescentadas quando da sonorização da

minissérie ou trocadas na produção, como “Cai, cai, balão”.

O leitmotiv, a música “Constante”, de domínio público, é outro elemento que, pelo seu

caráter de repetição, remete a uma característica do conto oral maravilhoso, e marca uma

característica da personalidade de Maria, como assinalaram Vidal e Marques (2006):

MARIA

Constança, meu bem, Constança Constante sempre serei Constante até a morte Constante eu morrerei.

(ABREU; CARVALHO, 2005, p.55)

Como exemplo também de repetição, característica dos contos infantis, a quadrinha

“Xô Passarinho” retorna no final da Segunda Jornada. A canção da menina enterrada viva

deveria ser cantada pela Contadora de estória, no caso a Narradora, de acordo com Cascudo,

mas, na minissérie, foi cantada pela própria atriz mirim que interpretou Maria, como

determinado no roteiro.

Figura 11 - Partitura de Xô, Passarinho no livro de Cascudo.

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Outra citação musical está na personagem do Gato-Asmodeu, que nos lembra o musical

infantil de Chico Buarque, “Os Saltimbancos”(1977), que, por acaso, é o nome de um dos

episódios da Primeira Jornada da microssérie.

3.2.3 – Literatura Brasileira em Hoje é Dia de Maria

A coerência entre os autores nacionais estilizados por Hoje é Dia de Maria está no

fato de, em sua maioria, terem pertencido ou sido contemporâneos do modernismo; vários

foram adeptos da antropofagia como um processo de diálogo com outras culturas, e, ao mesmo

tempo, cultores de uma valorização dos mitos populares brasileiros de forma carnavalesca. A

adaptação acontece de forma predominantemente parafrástica, havendo citações diretas como a

do poema “O Lutador”, de Drummond, entremeado de um estribilho novo. No caso de

Monteiro Lobato, como veremos, há o mesmo universo e a mesma paródia de personagens

literários, como Dom Quixote, de Cervantes, já presente nas narrativas de Soffredini. Na parte

sobre Macunaíma – cuja intertextualidade é mais estrutural, com exceção do uso da quadrinha

popular “Xô Passarinho”, como vimos anteriormente – veremos também as características

proppianas adotadas por Haroldo de Campos em sua análise da rapsódia e que servem à nossa

série. No caso de Bandeira, é utilizado apenas o tema dos “Meninos Carvoeiros”, numa

pincelada de realismo crítico social. Vejamos agora as mais importantes citações intertextuais

brasileiras.

3.2.3.1. – Cassiano Ricardo.

Na microssérie, Maria, sabendo que a noite fora roubada no “País do Sol a Pino”,

pergunta a um índio:

MARIA Nhor Índio, pode me dize quede a noite? Depois de olhar MARIA, o ÍNDIO mostra-lhe o coco: ÍNDIO (em tupi-guarani) A noite está aqui, moça, presa dentro deste coco.(...) Estupefata, MARIA ouve, vindo de dentro do coco, os barulhos da noite: aves, sapos e grilos. O ÍNDIO põe o coco na mão de MARIA e sai correndo. (ABREU; CARVALHO, 2005, p.77-78)

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Essa passagem é inspirada na menina que ganha o coco do Iwin num dos contos

africanos supracitados, e na lenda “Como a noite apareceu”, narrada em O Selvagem, por

Couto de Magalhães:

No princípio, não havia distinção entre animais, o homem e as plantas: tudo falava. Também não havia trevas. Tendo a filha da Cobra Grande se casado, não quis coabitar com o seu marido enquanto não houvesse noite sobre o mundo, assim como havia no fundo das águas. O marido mandou buscar a noite, que lhe foi remetida encerrada dentro de um caroço de tucumã, bem fechado, com proibição expressa aos condutores de o abrirem, penas de perderem a si e a seus descendentes e a todas as coisas. A princípio, resistem à tentação; mas depois a curiosidade de saber o que havia dentro da fruta os fez violar a proibição, e assim se perderam. (MAGALHÃES, 1975, p.113-114)

No texto da minissérie, Maria atira o coco contra a terra e a noite chega. De acordo com

Marques e Vidal (2005, p.13), “o coco, a palmeira, são objetos da realidade, cujo valor é

múltiplo e tem a ver com a sobrevivência dos mais necessitados”. Mais à frente, quando Maria

se encontra novamente com os retirantes, eles lhe devolvem o coco que os índios novamente

acharam. Mas, ao contrário da lenda, onde o índio que abrira o coco, contrariando a ordem da

Iara, perde-se na escuridão da floresta, entre seus bichos, na minissérie a noite é uma bênção,

fresquinha, todos podem dormir e continuar em paz seu caminho no dia seguinte. Isso só

acontece porque, antes de Maria, um poeta já resolvera o problema do caos contido na noite, do

fruto-proibido: considera-se que Cassiano Ricardo descobriu o tom profético dessa lenda, em

relação à vinda dos africanos, quando escreveu Martim Cererê(1983), como podemos ver a

seguir:

Aimberê vai ao Carão: “Onde está a Noite? Eu quero a Noite”. _ “Pituna mora no oco do pau, na barriga do coco”. (...) Até que ao fim da estrada no sítio acaba-mundo por onde conduzira as tribos da manhã, o Rei do Mato encontra a Cobra Grande que, olhos de safira, se disse sua irmã. Então a Cobra Grande lhe fala: “Eu tenho a Noite.” E dá-lhe um espinhento fruto de tucumã. “Vá por este caminho mas não abra o segredo antes da hora marcada”. (...) E encontrou o Pererê: “ Seu idiota, não percebe que a Cobra Grande te deu um oco, dentro do coco?” Até que, no seu caminho, onde parou, assuntando, pra descansar um bocado, mordido pela formiga verde da curiosidade, levou o fruto ao ouvido pra ouvir o canto da Noite. (...)já sem inocência, abre o fruto proibido (...) salta de dentro a Onça Preta! Cadê o Sol? A onça Preta comeu. (RICARDO, 1983, p.17-22)

Na estória de Cassiano, chega o homem branco, marinheiro, e a Uiara (a filha da Cobra

Grande) lhe pede a Noite. Ele traz a Noite africana no navio negreiro e a Uiara se casa com ele.

Dessa união nascem os Bandeirantes. O poema épico de Cassiano Ricardo é, ao mesmo tempo,

como disse Mário da Silva Brito, (1986, p.38), “ligado à terra e à grande cidade”. Para ele,

“Macunaíma e Martim Cererê são obras que se opõem; nesta, se canta uma raça que se

originou da contribuição de vários sangues e se admite unificada no tipo brasileiro”, enquanto

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em Macunaíma há o caos cultural e psicológico de um povo. Isso nos dá o gancho para o

próximo subcapítulo dessas intertextualidades modernistas em Hoje é Dia de Maria.

3.2.3.2 – Mário de Andrade: carnavalização e estrutura

Campos (1973, p.85) vai utilizar a expressão “conto-mosaico” para caracterizar

Macunaíma (ANDRADE, 1969), também utilizada por Propp, quando se refere à definição de

composição do conto maravilhoso como um “trabalho em mosaico”. Cavalcanti Proença

(PROENÇA apud BRITO, 1986, p.38) diz que Macunaíma é um livro onde tudo é

“entretecido, feito um quadro de triângulos coloridos, em que os pedaços, aparentemente

juntados ao acaso, delineiam em conjunto a paisagem do Brasil e do brasileiro comum.” Essa

estrutura de cultura popular em retalhos é, como já identificamos, a mesma de Hoje é Dia de

Maria. Para Renato Cordeiro Gomes, a associação de Hoje é Dia de Maria

(...) a Mário de Andrade (citado dos documentos e anotações de Luiz Fernando Carvalho) e seu Macunaíma (1928) e a Joaquim Pedro de Andrade e sua versão cinematográfica (1969) para a rapsódia marioandradiana, não seria de todo arbitrária. (GOMES, 2006, p.3)

Ou seja, o crítico faz uma associação entre a minissérie, através da citação intertextual

de Mário de Andrade assumida, como dissemos antes, pelos autores, com o fime Macunaíma

do cineasta cinema-novista. Para Gomes, elementos presentes no filme estariam presentes

também na minissérie, mas ele se limita a fazer esta alusão, sem entrar em detalhes

intersemióticos.

Cavalcanti Proença também nos diz, sobre Macunaíma, que “cada capítulo é um conto

de convergência, conforme o processo popular de juntar numa única narrativa os motivos de

vários contos, desde que exista entre eles uma analogia” (PROENÇA apud CAMPOS, 1973,

p.69). Haroldo de Campos (1973) dividiu os capítulos de Macunaíma de acordo usando as

categorias proppianas, de maneira explicitada pelo próprio Vladimir Propp: “dão-se

assimilações entre gêneros inteiros, formam-se aglomerados nos quais as partes constitutivas de

nosso esquema entram como episódios. Esta mesma estrutura aparece em vários romances de

cavalaria” (PROPP apud CAMPOS, 1973, p.124), como acontece, podemos dizer, em Dom

Quixote. Affonso Ávila observara, de acordo com Campos, o paralelismo entre o método de

decompor fábulas do folclorista eslavo, criado em 1928, e o processo de compor uma

superfábula, adotado por Mário de Andrade em Macunaíma, no mesmo ano: “Mário percebeu

o que havia de invariante na estrutura da fábula para poder jogar criativamente com os

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72

elementos”(CAMPOS, 1973, p.24). Mário se baseou em um corpus – o lendário autóctone de

Koch-Grünberg – para compor sua rapsódia, que tem muitos pontos de afinidade com o

“processo estruturalista de que lançou mão Propp para construir seu conto popular”- diria Laís

Correa de Araújo, em nota de tradução a um artigo de Roland Barthes (ARAÚJO apud

CAMPOS, 1973, p.23). “A coerência do Macunaíma trata-se da lógica do pensamento

fabular”, diz Campos. Ele prossegue:

No núcleo da rapsódia se põe a perda (venda/roubo) do muiraquitã de Macunaíma e o seu resgate pelo herói (no caso também vítima da perda) através de uma competição com um antagonista (o gigante). Este modo estrutural coincide com a ação propriamente dita do conto de magia, que se abre com um dano (exórdio, ou nó) e atinge o seu ponto culminante com a remoção do mal feito ou da falta. (...) Há ainda uma (...) função de retorno, a repetição do dano inicial, quando Macunaíma perde outra vez a muiraquitã por artes de um novo antagonista, num processo de degradação que leva ao epílogo. (CAMPOS, 1973, p.32).

Em Hoje é Dia de Maria podemos reconhecer essas categorias agrupadas em

episódios. Segundo Haroldo de Campos, “a fábula usualmente parte de uma situação inicial, na

qual se enumeram os membros da família ou se introduz o herói mediante a indicação de seu

nome e condição.” Neste momento, ficamos cientes da composição da família da protagonista e

ficamos conhecendo o bem-estar prévio ao exórdio (ao nó, à complicação da estória); ficamos

também sabendo quem é nosso futuro herói, sua ligação com o lar, suas qualidades espirituais e

outras qualidades (CAMPOS, 1973, p.103). Em Hoje é Dia de Maria, isto se dá no capítulo ou

episódio “No Sol Levante”. O nome do capítulo nos lembra o oriente, Xerazade e suas estórias,

mas também lembra o Oceano Atlântico, a costa leste brasileira, sonho de Maria. A sinopse da

estória descrevemos a seguir.

A antagonista é a Madrasta, que proíbe Maria de descansar e a manda observar os

passarinhos que comem os figos. Maria adormece e é castigada, sendo enterrada viva. A ação

reparadora se dá quando o pai, ouvindo a canção, a desenterra. Maria possui uma chavinha que

lhe foi dada por sua mãe e que será objeto de desejo da Madrasta mais à frente. A partida de

Maria se dá quando ela ouve o Pai discutir com sua nova esposa. O casamento desta com o Pai

foi uma solução encontrada por Maria para fazer com que o assédio incestuoso que estava

sofrendo tivesse fim. A Madrasta, que então lhe oferece mel, ou seja, lhe dá apoio num

momento difícil, se mostra dissimulada e só se revela quando já está casada novamente.

Portanto Pai e Madrasta são em dados momentos causadores do dano e reparadores, por assim

dizer, da ação contra Maria. Ela encontra sua madrinha, Nossa Senhora, que lhe dá força e

coragem para seguir viagem. Encontra o Maltrapilho, o trata, e este a ajuda também, pois seu

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73

sangue vira uma corda. Esta vai ajudá-la quando Maria resolve tomar para si a causa do homem

morto, que ela enterra e cuja dívida paga. Nossa Senhora vai lhe aparecer com o rosto de sua

mãe e novamente como a Lavadeira. Maria vai encontrar outros ajudantes pelo caminho, dentre

eles o Mascate, que vai lhe arranjar o “sapatinho encarnado” e o vestido “da cor do mar”(no

especial) para que ela vá ao baile do Príncipe. Antes que isso ocorra, ela reencontra a Madrasta

que estava à sua procura, seguida de sua gorda fiha Joaninha. Elas também vão ao baile, assim

como na estória de “Cinderela”. Tudo acontece como na estória, Maria é reconhecida pelo

sapatinho e é escolhida para se casar com o Príncipe. Quando ela desiste do casamento, repassa

o vestido de noiva para Joaninha, que sai voando feito um balão, quando a Madrasta (mistura

de Rainha de “Bela Adormecida” e “Moura Torta”,como dissemos antes) lhe espeta o alfinete.

Vemos claramente aí uma curva dramática ascendente, começando com um problema e

tendo o clímax na remoção do conflito. Faz-se necessário, então, um segundo movimento.

Termina uma curva dramática e nova curva se inicia do ponto em que a outra termina.50

Segundo Campos, (1973,p.227)

Bremond assinala que a conclusão da narrativa realiza um estado de equilíbrio, sendo necessário, para que esta possa ter uma ulterior continuidade, que se criem novas tensões, com o desenvolvimento de germes de oposição deixados em suspenso ou a introdução de novas oposições.

Quando um antagonista cumpre sua função, há a necessidade de aparecer outro. Assim

é no conto como na vida, um desafio dá lugar a outro. Quando Maria deixa a Madrasta, acaba

criando inimizade com o próprio Demo, ou mais precisamente com o demônio Asmodeu. Ou

melhor, com os Asmodeus – intervenções dispersas de antagonistas vários – pois o antagonista

muda de aspecto.

Outra característica presente tanto em Macunaíma quanto em Hoje é Dia de Maria é a

utilização de elementos digressivos acessórios – metalinguagens e elementos lírico-

humorísticos – típicos do gênero épico. Segundo Haroldo de Campos, Propp, referindo-se aos

obstáculos impostos ao herói sob a forma de tarefas, escreve: “Do ponto de vista da narração

enquanto tal, estes nada mais são do que um dos métodos de retardamento épico: ao herói é

imposto um obstáculo, superado o qual ele obtém um meio para atingir os próprios

fins.”(1973,p.82) A narrativa de acervo épico faculta o recortar e a amplitude de sentidos. “O

tempo pode até parar, como no castelo da Bela Adormecida”, nos diz Calvino. A “dilatação do

tempo pela proliferação de uma história em outra” é uma característica da novelística oriental.

(CALVINO, 1994, p.50-51)Xerazade precisa protelar o fim de sua estória para ganhar mais

50 Ver apêndice 1.

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tempo de vida. Para Calvino, a “divagação ou digressão é uma estratégia para protelar a

conclusão, uma multiplicação do tempo no interior da obra, uma fuga permanente.”

(CALVINO, 1994, p.59). É o que vemos tanto em Macunaíma, quanto em Hoje é Dia de

Maria, cheios de recursos como provérbios, adivinhas, desafios, para protelar o desenrolar da

estória. Tratando-se de uma série, cujos episódios foram acrescentados, vemos nossa pequena

heroína o tempo todo em fuga, e em todo episódio há um gancho para o próximo

acontecimento, mostrando uma busca incansável, “onde o fim nunca termina”.

Tudo isso é muito barroco e carnavalesco. Como exemplo, os trocadilhos, presentes nas

perguntas de Asmodeu a Maria: “Cada casa tem quatro cantos, cada canto tem um gato, cada

gato vê três gatos.Quantos gatos tem na casa?” _ onde a pergunta é feita com rapidez. Esses

mesmos elementos estão presentes no “Desafio da Paca”: “Quem a paca cara compra, cara a

paca pagará”; (CARVALHO;ABREU, 2005, p.118) ou no desafio feito a Quirino, onde a rima

é o que mais importa:

Ôcê é cabra sem jeito Um cinturão sem fivela Uma casa sem ter gente Uma porta sem tramela Um sapato sem ter dono Um anzol sem ter barbela

(ABREU; CARVALHO, 2005, p.199)

Os saltimbancos de Hoje é Dia de Maria são uma metalinguagem, teatro dentro da

representação dramática, o que fez com que a linguagem da minissérie fosse considerada muito

teatral, não-característica de um programa de TV. “Os saltimbancos aos quais Maria se junta

armam um palco cuja boca de cena tem uma moldura que remete aos antigos palcos da

Commedia dell’arte”, nos dizem Marques e Vidal (2005, p.6), e acrescentaríamos também aí

uma influência de um filme que marcou a geração dos anos 90, “A Viagem do Capitão

Tornado”, sobre os atores ambulantes no século XVI51. De acordo com Remo Cesarini (2006,

p.75),

No terreno do mágico há uma tendência a se utilizar, no âmbito narrativo, procedimentos sugeridos pela técnica e pela prática teatral. Isso ocorre por um gosto pelo espetáculo e por uma necessidade de criar no leitor um efeito de ilusão, que também é de um tipo cênico.

Isso nos leva a pensar, como assinalou Linda Hutcheon, no que acaba acontecendo

quando uma performance teatralizada é adaptada para a

TV ou o cinema: “o artifício pode ser reconhecido e o realismo cinematográfico sacrificado

51 Ettore Scola, 1990, color., son., França/Itália.

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para uma auto-reflexividade, ou o mesmo artifício pode ser naturalizado”(BRADY apud

HUTCHEON, 2006, p.46). No caso em análise, certamente a veia modernista do diretor

acabou optando por assumir o não-naturalismo, como o fez Joaquim Pedro de Andrade em sua

versão fílmica de Macunaíma. Ora, em Hoje é Dia de Maria, como assinalam Marques e Vidal

(2005, p.6), o domo52 é “‘o grande palco’ que não esconde, ao contrário, exibe, mostra a sua

ficcionalidade”. Isto também, uma característica dos cinemas-novos de todo o mundo53.

Como disse o grande dramaturgo Tom Stoppard, “teatro trabalha com metáforas”54, e

são as metáforas de Hoje é Dia de Maria que tentaremos decifrar, num processo de

desnaturalização do realismo-naturalista tão caro à televisão. Há, por exemplo, numa cena do

episódio “A Guerra”, um coro de “soldados da limpeza” e um corifeu, característicos da

tragédia grega, e isto tudo, dentro do musical. As metáforas tornadas realidade, a “mágica

verbal”, tem um bom exemplo no episódio no qual Maria encontra uma das Parcas que quer lhe

cortar o fio da vida:

PARCA 2 Sua vida está por um fio. Como num passe de mágica, a PARCA 2 faz aparecer o fio da vida de MARIA, ao mesmo tempo que, com a outra mão, vai abrindo a tesoura cruel. MARIA percebe a tempo, arregala os olhos em espanto e logo reage com força, puxando seu fio de volta. MARIA Mai num há de corta! (ABREU, CARVALHO, 2005, p.510)

Outra característica que está por trás desse tipo de narrativa carnavalesca, como

Macunaíma ou Hoje é Dia de Maria, são os antigos sistemas de crenças e folclore popular.

Como já foi dito, um bom exemplo disso são os ditados populares:

PATO E criança que se atreve, mete nariz onde não deve! Pedaço num é teco e pato não é marreco! Sou um pato! MARIA espanta-se.

MARIA Tá loco, Chico! Desculpa! PATO “Desculpa” falô o mosquito que trombô com a aranha! E despois que apareceu “desculpa” ninguém mais apanha! (...)MARIA não contém o riso. O PATO volta-se, bravo.

52 Palco do Rock in Rio, de forma redonda, que foi utilizado como estúdio para os cenários da microssérie. 53 Nos anos 60/70, a Nouvelle Vague Francesa encabeça um movimento que se repetirá em vários países, no caso do Brasil, com o cinema novo, de quebra do padrão hollywoodiano de fazer cinema, revelando os dispositivos do fazer cinematográfico ao espectador, quebrando assim a ‘quarta parede’, como Brecht o fizera com Aristóteles. 54 Entrevista concedida ao programa Roda Viva da TVE na 6ª. Flip, julho de 2008, Paraty.

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PATO Tão rindo de quê? Tão rindo de quê? !! Muito riso, pouco siso, na porta do paraíso. Quem riu pro Pai Eterno nem chegô, já foi pro Inferno! (ABREU; CARVALHO, 2005, p.392-393)

Voltemos à sinopse da estória. Maria foge de casa, em direção às “franjas do mar”: na

geografia de Hoje é Dia de Maria, do sertão ela segue para o agreste, mas depois neva, e

estamos numa paisagem da Serra Gaúcha. Quando ela atinge o mar, está próxima de casa, no

sertão nordestino, mas seu sotaque é do interior de São Paulo. Não há lógica no espaço, assim

como no tempo, pois este é relativo, hoje e ontem se misturam. Quando Maria volta para casa,

a estória retorna, não ao começo, mas antes ainda, por erro de Asmodeu, quando sua mãe era

viva e seus irmãos não haviam ‘se perdido no mundo’. O Ciganinho é o Amado ainda criança,

antes do encantamento e o marido da Madrasta ainda não tinha morrido.

Figura 12 - A Madrasta e seu primeiro marido. Foto de Renato Rocha Miranda.

Linda Hutcheon (2006) considera que as estórias, recontadas de formas diferentes em

ambientes novos, são como genes adaptáveis através de mutações em seus descendentes. O

que ela está chamando de “ambientes novos” são outras mídias, mas podemos parafraseá-la e

colocar esta frase no sentido em que Cascudo (1978) a diria, ou seja, em novas geografias e

noutra era. Como exemplo, “os índios com seus rituais, os cangaceiros que sobrevivem no

sertão”, são personagens populares que são “transportados de um tempo e espaço outros que se

fazem atuais.” (MARQUES; VIDAL, 2005, p.12) Verificamos aí mais uma interrelação entre

Macunaíma e a microssérie: assim como a perseverante heroína Maria, o herói sem nenhum

caráter “transcende o espaço e o tempo” (RIEDEL,1986, p.292).

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Ainda na sinopse, Quirino se torna um falso-herói quando, por ciúme, resolve acabar

com o encanto do Pássaro Amado e o prende numa gaiola, impedindo-o de voar e fugir do sol.

Figura 13- Desenho de Negreiros para o livro – Amado/Pássaro Incomum preso

Maria adulta, tendo perdido seu amor, reencontra seu pai. O pai morre e mais uma vez

ela reencontra o Pássaro Incomum, agora congelado. A chavinha que desde menina guardara,

que fora disputada com Asmodeu e com a Madrasta, finalmente encontra sua finalidade e abre

o coração do Amado. Asmodeu, furioso com mais uma vitória da heroína, a faz voltar a ser

criança. Sob feitiço de Asmodeu, ela perdera sua meninice, transformando-se em mulher muito

rapidamente. No capítulo “Neva no Coração” ele desfaz o que acontece no episódio “Maria

perde a infância”. Asmodeu ainda tenta mandar um feitiço para Ciganinho, mas Maria, através

de seu espelhinho, como Oxum na lenda afro-brasileira, manda de volta o reflexo e o feitiço

vira contra o feiticeiro, e Asmodeu vira Zé do Riachim.

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Figura 14 - Maria/Oxum com seu espelhinho reflete de volta o feitiço. Foto de Renato Rocha Miranda.

Vamos considerar a Primeira Jornada da minissérie como sendo o primeiro

movimento proppiano e a Segunda Jornada como o segundo movimento. Como já dissemos

anteriormente, em dramaturgia, o conflito é peça fundamental. Se ele se resolve, outro conflito

tem de despontar. Maria adulta volta à infância, no fim da Primeira Jornada, e a Segunda se

inicia com Maria em frente ao mar, exatamente onde terminara a primeira. Ela encontra os

encantados Pato e Cabeça, que vão lhe encaminhar até o Gigante. Escalando-o, ela cai em suas

entranhas e lá dentro encontra sua ajudante Carvoeira. Maria entra na cidade, e conhece seu

grande amigo Dom Chico. Terá outros amigos, como Copélius e a Boneca, mas logo cai nas

garras de Asmodeu Cartola, agora transformado em dono de cabaré. Ela novamente se torna

artista por acaso – outro marginal da sociedade – mas foge de seu trabalho escravo. A guerra

intervém e muda o curso de todos os personagens. Maria é perseguida por vários Asmodeus,

inclusive o gato-demônio-arrependido, Asmodeu Piteira enfeitiçado, e por um Asmodeu

Marinheiro gringo. Maria vê seu amigo ser condenado por Asmodeu-juiz e Asmodeu-Rábula e

subjugado pela Asmodéia. Maria mais uma vez perde quem ama para a morte, que a desafia na

figura da Senhora do Limiar. Porém, consegue achar o caminho de casa, com a Senhora de

Dois Mundos, sua madrinha – aqui a fusão de dois mundos, o da realidade e da poesia,

característica do realismo mágico. Ao final, vemos que se trata de um sonho de uma menininha

delirante de febre, que ouve estórias de sua avó.

Seguindo a lógica de Benjamim (1994), há no mito três identidades: a do personagem

do irmão caçula, que nos mostra como são ilimitadas as possibilidades do ser humano quando

ele se afasta da pré-história mítica; é o que acontece com Maria, a caçula da família, e assim

com Macunaíma; há o personagem do herói que saiu de casa para aprender a não ter medo

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mostra que as coisas que tememos podem ser devassadas; temos, igualmente, os dois

personagens supracitados nesta situação, o anti-herói andradiano e a heroína proletária. Por

fim, há o personagem do animal que socorre uma criança mostra que a natureza prefere

associar-se ao homem que ao mito: o Pássaro Amado está sempre ajudando Maria em seu

caminho.

Segundo Campos, (1973, p.274) é a “narratividade como fato textual o verdadeiro e

extremo protagonista” de Macunaíma. Por extensão, podemos dizer o mesmo de Hoje é Dia de

Maria. Assim como, de acordo com Haroldo de Campos (1973, p.271), “o mundo do herói

andradiano parece existir para terminar num livro”, também Hoje é Dia de Maria é uma estória

para ser lida, não apenas para ser apreciada enquanto programa de TV. Para Campos, (1973,

p.274) “Mário de Andrade, o narrador, assumindo a instância do discurso” – o que para

Chiampi (1980) é um recurso do maravilhoso – “recolhe esse tale of the tribe, pega na violinha

e canta na fala impura as frases e os casos do herói de nossa gente”. Em Hoje é Dia de Maria,

Soffredini, Carvalho e Abreu também terminam “o conto num canto”. Ou como nos disse

Campos, citado por Dirce Cortes Riedel, sobre Macunaíma:

O livro apresenta, como as rapsódias musicais, uma variedade de motivos populares. O processo musical da construção, como no do estribilho “Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são” tem o primitivismo do estilo poético das velhas narrativas heróicas. Sendo o livro obra de um único autor, poderia ser obra coletiva, pois que a técnica de sua construção é a usada pelo povo. (RIEDEL, 1986, p.293)

Também na minissérie, temos um paralelo com o final da rapsódia de Mário, onde

temos “o contador de histórias da tradição oral, que conta não na fala pura da tribo, mas na fala

impura do homem que vem de uma cultura híbrida, urbana, livresca, a que salva do

esquecimento.” (GOMES, 2006, p.8) O roteiro da minissérie usa como palimpsesto de toda sua

estrutura a obra máxima de Mário de Andrade, e, assim como o final da rapsódia de

Macunaíma são, como disse Campos (1973, p.274), “rasuras de um palimpsesto”, lembrando

Mallarmé, “em Macunaíma, em Grande Sertão: Veredas, em Finnegans Wake, em Mallarmé”,

há a estrutura de um livro circular, onde o fim nunca termina. Também em Hoje é Dia de

Maria isto acontece, e entra em choque com a posição proppiana de que um conto campesino

tem uma estrutura linear. Neste caso, entramos nas construções em perspectiva dos contos

orientais das Mil e Uma Noites...

Ao final do filme oriental dirigido por um monge budista, A Copa, um garotinho

pergunta a um monge: “Você não vai me contar o final da estória do coelhinho?” E o monge

lhe responde: “Que mania que vocês têm de final!"

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Figura 15 - Maria retorna a um tempo anterior ao início da estória. Foto de Renato Rocha Miranda.

3.2.2.3 – Bandeira e Drummond.

Da poesia, temos o poema “Meninos Carvoeiros”, de Manuel Bandeira, representado

na personagem supracitada da Menina Carvoeira e seus companheiros na minissérie, onde

apenas o tema de Bandeira é usado, não há apropriação de seus versos. No programa editado

(não está no roteiro), logo antes de Maria conhecer os carvoeiros, ela canta “Cai, cai, balão”,

que nos remete a outro poema de Bandeira: “Na Rua do Sabão”.

Marcus Mazzari (2008) faz uma análise desses poemas, ambos presentes no livro O

ritmo dissoluto, escrito quando Bandeira, já marcado pela pobreza, muda-se para a rua do

Curvelo, na década de vinte, onde, em palavras do próprio Bandeira, pelo “fundo da casa”

podia observar “a pobreza mais dura e mais valente”, pois “foi na rua do Curvelo que reaprendi

os caminhos da infância” (BANDEIRA apud MAZZARI, 2008). Para Mazzari (2008, p.2), são

ambos “poemas que se assentam na observação do mundo da infância, em que Bandeira

compartilha liricamente dos acontecimentos tematizados.” Também aponta que não sabemos se

a observação de Bandeira foi imaginária ou real, mas seus versos acompanham o ritmo dos

meninos, em sua “marcha mais composta de ida, mais dissoluta na volta. As ‘crianças

raquíticas’ parecem integradas na ‘madrugada ingênua’ e fundidas com os ‘burrinhos

descadeirados’ que vão tocando” (Mazzari, 2008, p.4). Ao contrário de Soffredini, que usa na

minissérie a linguagem do caipira,

A linguagem do poema, porém, não é de forma alguma a linguagem destas crianças, Bandeira aqui dispensa um tratamento simbólico, e os verdadeiros questionamentos que “Meninos Carvoeiros” possa suscitar já terão encontrado resolução na dimensão

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estética em que se inscreve enquanto poema.Seria lícito contemplá-lo a partir da própria realidade tematizada e liricamente transfigurada. (MAZZARI, 2008, p.10)

Ainda que seja a indignação social a dar origem ao poema, Bandeira dispensa um

tratamento simbólico ao tema, segundo Mazzari (2008, p.5): há uma “profunda empatia do

poeta com os meninos carvoeiros, que refulgem na esvoaçante imagem dos espantalhos

desamparados” (grifo nosso), expressão que dá o título ao artigo de Mazzari. Apesar de chamar

a atenção para o trabalho infantil, o poema “meninos carvoeiros” mostra um poeta que se

surpreende ao flagrar as crianças em sua capacidade de tirar um prazer lúdico do pesado fardo.

Ainda segundo Mazzari,

Esse poema não questiona e nem sequer roça a questão social de que consegue extrair lirismo tão pungente. O poeta que se voltou às crianças excluídas e exploradas não acusa nem denuncia, tampouco poder-se-á vislumbrar a “emoção social”. Não se pode, porém, exigir do poema considerado, mais do que o gesto amorosamente solidário que Bandeira estende aos carvoeirinhos – que, com sua ética ingênua, sua pequena humanidade sofrida, anima esses poemas – (o qual) suscita nos leitores o sentimento expresso por Mário de Andrade (em cartas a Bandeira), a aspiração por um estado social mais justo e solidário (MAZZARI, 2008, p.11).

Da mesma forma, como já vimos na fala do diretor Luiz Fernando Carvalho no

subcapítulo sobre a moral ingênua e tempo não-histórico, podemos dizer que a minissérie não

faz uma inserção política e histórica, apenas tem uma empatia lírica para com estas crianças,

suscitando, no espectador, o despertar para uma triste e crônica realidade social brasileira.

Já o poema “O Lutador”, de Carlos Drummond de Andrade (1969, p.67), tem duas

estrofes adaptadas numa canção. Os versos que não estão em itálico foram compostos pelos

autores da microssérie e nos remetem também ao poema “Sonho de um Sonho”, do mesmo

autor:

DOM CHICO CHICOTE “Lutar com palavras É a luta mais vã.” MARIA E CORO É pelos sonhos que vamos. É pelos sonhos que vamos. DOM CHICO CHICOTE “No entanto lutamos Mal rompe a manhã”. (ABREU;CARVALHO,2005, p.473) (grifo nosso)

Como nos lembra Antônio Houaiss (1969), a metalinguagem é uma constante na obra

de Drummond, que está sempre “à procura da poesia”. Na minissérie trata-se da luta pela

palavra, não só da luta com a palavra. Em sua introdução ao livro Reunião (DRUMMOND,

1969), Houaiss situa o universo drummondiano

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(...) num mundo próximo ou tão torpemente mecanizado, automatizado, automatado, matematicamente previsível, tanto que a poesia nele não há de ter um lugar possível; ou tão embrutecido, oprimido, que não haverá lugar para o poeta – esse grande heterodoxo. (HOUAISS, 1969, p.xxix)

A profissão do poeta está em jogo em Hoje é Dia de Maria, Segunda Jornada, e quem

a representa é D.Chico Chicote. Como morador de rua e sonhador, este personagem inspirado

no Cavaleiro da Triste Figura enfrenta, junto com Maria, um mundo mecanizado cheio de

bonecos, de guerra e de autoritarismo. É essa qualidade de Drummond, lembrando Chaplin em

“Tempos Modernos”, que os autores da minissérie resgatam, inserindo seu poema neste

momento da trama.

3.2.2.4 – Monteiro Lobato.

Temos aqui mais um caso de mise-en-abîme, pois Lobato trabalhou o tempo todo com

intertextualidades e também ele “enquadrava os temas universais na realidade nacional,

caipira.” (ALMEIDA, 1986, p.213, v.6). O universo de Maria se parece com o universo de

Narizinho e de Emília. O Picapau Amarelo traz os personagens principais de Dom Quixote; em

Hoje é Dia de Maria, Quixote é D.Chico Chicote, e algumas vezes a própria Maria se identifica

com o fidalgo de Cervantes, assim como acontece com Emília. Não podemos deixar de

assinalar aqui a influência que com certeza sofreu o diretor e sua equipe da série brasileira “O

Sítio do Picapau Amarelo”, da Rede Globo55.

Figura 16 - Emília e Visconde como D.Quixote e Sancho Pança. Ilustração de Manoel Victor Filho para o livro D.Quixote das Crianças de Monteiro Lobato.

55 Série produzida pela TVE/MEC/ TV Globo de 1977 a 1986. 2ª. Versão de 2001 em diante. Versão original: TV Tupi, de 52 a 62. TV Cultura: 1964. TV Bandeirantes: 1967.

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Lembra-nos Marina de Andrada Procópio de Carvalho (1972), em seu prefácio sobre

Monteiro Lobato, que em Reinações de Narizinho (LOBATO, 1986) a menina do nariz

arrebitado ganha um vestido feito pela costureira das fadas. Vejamos sua descrição:

Era enfeitado com peixinhos do mar – não de alguns peixinhos só, mas de todos os peixinhos (...) e esses peixinhos-jóias não estavam pregados no tecido. Estavam vivinhos, nadando na cor-do-mar. De modo que o vestido variava sempre. (...) Não parava um só instante de faiscar e brilhar, e piscar e furtar-cor, porque os peixinhos não paravam de nadar nele. (...) E quando perguntaram a D.Aranha costureira como ela cortara aquele tecido tão lindo, ela respondeu: “Com a tesoura da Imaginação”. “E com que agulha cose?”“Com a agulha da Fantasia.” “E com que linha?” “Com a linha do Sonho.”( CARVALHO, 1972, s/n) (grifo nosso)

Este modelo vem a ser igual a um dos vestidos que a princesa ganha da vaquinha em

Maria Borralheira e de Dona Labismina no conto homônimo. Teria Lobato se inspirado neste

conto popular, assim como Soffredini? Como já dissemos, Maria, quando sai de casa, está

vestida assim também, no texto de Soffredini, mas de forma simples, sem o brilho e as jóias.

Monteiro Lobato trouxe para o Brasil clássicos, sendo adaptador, como em Dom

Quixote das Crianças, ou tradutor, como em Alice no País do Espelho, de Lewis Carrol, que,

por sua vez, também era, como poeta, parodiador, segundo Eduard Guiliano56 (1982, p.xv).

Lobato inspirou-se em Alice no País das Maravilhas – presente na minissérie nas flores

gigantes do cenário, citação talvez ao filme de Disney – para escrever Emília no País da

Gramática e Aritmética da Emília; e também o parodiou na Chave do Tamanho e em

Reinações de Narizinho. Isso nos dá o gancho para as intertextualidades da literatura mundial.

Figura 17 – Maria, vestida de piano-baby, finge ser boneca para fugir da guerra. Um paralelo com

Emília, com Pele-de-Asno, e, como veremos adiante, com Copélia. Foto de Renato Rocha Miranda.

56 Remembered as a nonsense poet (…) he did not write nonsense literature but rather parodies and absurd poems and stories. (Tradução nossa: “lembrado como um poeta do nonsense, ele não escreveu literatura nonsense, mas paródias e estórias e poemas absurdos ”.

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3.2.3 – Literatura universal e musicais em Hoje é Dia de Maria

O roteiro de Abreu e Carvalho traz também intertextualidades extraliterárias que

penetraram o inconsciente coletivo brasileiro, como o título do livro de não-ficção Tudo o que é

sólido desmancha no ar, de Marshall Berman (1987), que marcou a geração dos anos 80,

presente em fala de Dom Chico Chicote (ABREU;CARVALHO, 2005, p. 454). Porém, no

terreno da literatura mundial, Hoje é Dia de Maria tem a retórica barroquista quando utiliza

citações desde Jonathan Swift a Antônio José da Silva, o Judeu. Se há uma coerência entre

estes autores, podemos dizer que é o maravilhoso. Também alguns deles, como Silva e Carrol,

trabalharam para crianças. A estilização que a minissérie faz é em alguns casos apenas

temática, como em Lewis Carrol e Swift, em outros casos, formal, como acontece com os

personagens de “Homem de Areia” de Hoffman e com Dom Quixote. Quanto às músicas, às

vezes é apenas usada uma melodia conhecida, ou seja, é feita uma paródia verbal, mas em

outras até a letra se parece, sendo uma paráfrase. O que elas têm em comum é o fato de serem

canções de musicais. Vejamos as principais citações literárias e musicais:

3.2.3.1 – Carrol, Cervantes, Hugo, Silva, Swift.

As influências artísticas que coexistem na minissérie não têm nada de realistas. Para

citar um caso de hipertextualidade pictórica, Renato Cordeiro diz, inspirado no caderno de

desenhos de Luiz Fernando Carvalho57 com os personagens da Segunda Jornada, que

(...) as referências para a criação de Dom Chico Chicote remontam a influências que vão do Bispo do Rosário aos livros da tela “O Bibliotecário”, do italiano Giuseppe Arcimboldo. A bravura e o espírito guerreiro são inspirados em Joana D’Arc, Dom Quixote e outros heróis medievais. O personagem Asmodeu Piteira, o oponente de Maria, que desde a primeira temporada representa o demônio, o Mal em seus aspectos polimórficos, é, no mundo urbano, mistura de mestre de cerimônias, ilusionista, clown, figura inspirada nas obras de Toulouse-Lautrec. (GOMES, 2006, p.4)

Em Hoje é Dia de Maria, o personagem Dom Chico Chicote é uma citação desse

grande personagem de uma obra que, em si, já é um caso de intertextualidade, como apontou

Hutcheon em capítulo anterior. A origem deste personagem (Chico Chicote) vem,

possivelmente, da peça de Soffredini O Grande Dom Quixote de La Mancha e o Gordo

Sancho Pança (s.d.)que, por sua vez, foi inspirada na peça para marionetes Dom Quixote e

57 Disponível no site http://hojeediademaria.globo.com ; acesso em 25/11/08.

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Sancho Pança, de Antônio José da Silva,(1985) o Judeu, inspirado por sua vez em Dom

Quixote, de Cervantes (1983), que, por sua vez, é uma paródia do Amadis de Gaula,(1942)

famosa novela de cavalaria, inclusive transformada em teatro por Gil Vicente (1963). Ou seja,

temos aí novamente um fluxo intertextual narrativo, que coloca em cadeia referências, culturas

e tempos diversos.

Dentre outros personagens inspirados em Dom Quixote, temos a cigana

Alonsa/Rosicler, que é personagem correspondente a Aldonça/Dulcinéia del Toboso e tem um

pouco da cigana Esmeralda do Corcunda de Notre-Dame, de Victor Hugo, conhecida das

crianças pelo desenho da Disney, e que aparece defendendo D.Chico como Esmeralda defende

Quasímodo. “A Cabeça encantada”, um dos episódios do livro II de Cervantes, pode ter sido a

inspiração para a Cabeça falante com cara de boneco de titereiro em Hoje é Dia de Maria. Vale

lembrar que o titereiro está presente em Dom Quixote, também. Há no especial de Soffredini a

Caveira-de-mamão, que é a cabeça da madrasta perseguindo Maria.

Vejamos outras citações que encontramos no roteiro: assim como em Alice no País do

Espelho temos o Cavalo Branco e o Cavalo Negro do xadrez, há também em Hoje é Dia de

Maria um Cavaleiro Branco e um Cavaleiro da Noite. Em Alice, quem conduz a personagem-

título ao seu reino é o Branco, mas quem leva Maria para casa é o Cavaleiro da Noite. Em Dom

Quixote, temos este personagem no Cavaleiro do Bosque/dos Espelhos/da Branca Lua, que são

o mesmo personagem travestido em outros.

Figura 18 - Cavaleiro da Noite leva Maria para o limiar. Foto de Renato Rocha Miranda.

O Gigante, presente em Hoje é Dia de Maria, é Pietro Pietra em Mário de Andrade; são

os bandeirantes em Cassiano Ricardo; em Dom Quixote, são os moinhos de vento e as ovelhas.

É também uma referência intertextual a Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift(1970) e à

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Emília pequenina de A Chave do Tamanho em relação ao Visconde de Sabugosa. Maria

liliputiana é o profeta Jonas, na barriga do Gigante/baleia58, que é a entrada para a cidade.

Renato Cordeiro Gomes (2006, p.9) vê uma fragilidade

(...) na menina que é devorada pela cidade, pelo Gigante, associado à idéia de uma sociedade estagnada, dominadora, opressora, onde se encontram várias formas de Asmodeus (o Mal). A corrupção dos poderosos, a exploração de menores, a desigualdade social, o consumismo, a miséria e a guerra são temas que se articulam na trama para atualizar matrizes culturais dadas pelos contos da cultura popular.

O Gigante na minissérie é a guerra, e podemos trazer esta referência para a realidade

brasileira da guerra do tráfico, entre as gangues, com as milícias e com a polícia. Foi a maneira

que os autores encontraram para falar do sacrifício dos inocentes nas grandes cidades, cujos

algozes não encontram punição.

3.2.3.2 – Ésquilo/Dickens.

De acordo com o roteirista/dramaturgo Luis Alberto de Abreu59, também foi utilizada

referência a Ésquilo – em Prometeu Acorrentado, a cena de Io e Prometeu – no encontro de

Maria com a Menina Carvoeira, sendo Maria análoga a Io e Prometeu sendo a Carvoeira. Io é

a vítima dos deuses, assim como Prometeu, e é arrastada de um país a outro por Hera, a esposa

de Zeus. Segue a transcrição do livro, apenas as partes que remetem à tragédia grega:

CENA 14 A

AGRESTE/FORNALHAS/EXTERIOR/NOITE

MENINA CARVOEIRA Quem é ocê, menina, que caminha quando todo o povo dorme?

MARIA Sou Maria e cumpro sina de viajá em direção do mar. Mai o cansaço é tanto que tenho inté inveja de ocês, aquietados no seu canto. MENINA CARVOEIRA Menina, tome tento, que inveja nóis tem é de ocê que caminha solta como o vento. MARIA E quem prende ocês? MENINA CARVOEIRA O trabaio. Sina nossa é labuta de fazê carvão. O pão nosso mais o feijão a gente tira é dessa luta. (...) MARIA

58 Segundo nota da profa.Márcia de Morais, o Gigante é também Gargântua, de Rabelais. 59 Entrevista concedida via e-mail através da Globo Universidade, em agosto de 2008.

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Entonce, penso que não vale a pena conhecê um mundo por essa forma. Penso inté se vale a pena cumpri minha jornada. (...) MENINA CARVOEIRA Desejo meu é tê o mundo e os pé livre pra percorrer essas distância. Mai, se ocê diz que num vale a pena, o que é que eu vô desejá? (...) Bora caminha, menina, pra mó de a gente invejá seu passo ligeiro. Pra mó de a gente sabê que arguém busca outro rumo, outra vida lá nas franjas do mar! ´Bora caminhá, menina, pra gente desejá um dia tomem podê caminhá. MARIA se põe de pé e, animada pela MENINA CARVOEIRA, começa a se distanciar. MENINA CARVOEIRA Inté mais vê, menina! Boa viagem! Vai na frente, ensinando o caminho pra quem não pode partir. (...) Oi, só mais uma coisa, menina. Leva nossa história pras franja do mar! Pede ao povo de lá que não esqueça da gente. (...) Inté mais ver! (ABREU; CARVALHO, 2005, p. 80-84)

Vemos aí o paralelismo entre Maria e Io: ambas caminham fugindo de uma perseguição

e têm de ir até o mar. A Menina Carvoeira é Prometeu, presa pelos grilhões do trabalho por

Asmodeu/Vulcano, o deus do fogo; ela aconselha a Maria, que, por um momento, quer desistir

da vida que a espera, a prosseguir em sua sina.

Prometeu foi o criador do homem, lhe deu o sopro da vida e foi para o homem que ele

roubou o fogo da inteligência do carro de Apolo. Prometeu é também o doador da “Memória, a

mãe de todas as artes, com a qual os homens conquistaram suas mentes” (GASSNER, 1974,

p.38). Maria não vai se esquecer do que viu, e se reencontrará mais tarde com a Carvoeira, na

Segunda Jornada, que volta a lhe mostrar a realidade.

Figura 19 - Maria e a Carvoeira no deserto do Sol a Pino. Foto de Renato Rocha Miranda.

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É, portanto, significativo que este mito tenha sido lembrado exatamente no trabalho das

minas de carvão. De acordo com observação de Marques e Vidal (2005, p.12), as minas de

carvão não existem no Brasil, aqui há apenas a queima do carvão vegetal, que já analisamos no

poema de Manuel Bandeira; mas elas apontam que minas são exploradas no trabalho de

Charles Dickens em Hard Times, assim como a infância pobre em Oliver Twist, outras

possíveis citações intertextuais.

3.2.3.3 – Shakespeare.

Mais próxima da paráfrase é a cena do encontro do Pai com Maria no espetáculo dos

saltimbancos, que remete ao encontro do Rei Lear com Cordélia, na tragédia homônima de

Shakespeare, citação também indicada por Luís Alberto de Abreu60. Cascudo (1978, p.223) nos

relata que, numa das versões de Cinderela, a menina é uma figura de Cordélia: “Em ‘Valor do

Sal’, a princesa diz amar seu pai como ama o sal, variante clássica e popular do Rei Lear.”

Reproduzimos aqui apenas as partes em comum da minissérie com a tragédia shakespeareana:

Lentamente, aquela figura alquebrada de cabelos brancos vai se aproximando (...). O PAI (...) força a vista, mas parece não reconhecer ninguém. Sente os olhos se encherem de lágrimas. PAI Num reconheço, mai a voz... depois de tanto ano parece dela. Num me engane, coração! Num farseia com esse veio... (...) MARIA ...e meu pai hei de encontra. (...) PAI É ela! Tenho tanta certeza como tenho medo de ela não me perdoá.(...) Meu zóio quaje cego pelo sol...(...) Qué poisá nos seus óio, Maria...(...) Um úrtimo e doce oiá...(...) MARIA vê aquele homem velho e alquebrado que sobe ao palco. Por um momento, tem um estremecimento e ralenta a declamação. (...) O PAI se aproxima, ganhando o centro do palco. (...) O PAI está tomado pelas lágrimas e pela emoção. Balbucia. PAI Maria...minha fia! MARIA, parada, desata num choro mudo ao reconhecer o PAI, que no centro do palco também chora. (...) Afinal, o PAI cai de joelhos. PAI Se inda tenho o seu amor, óia essa sincera dor e o remorso de seu pai. Na vida de tanto tropeço, perdoa, fia, aquele que cai e que busca recomeço.

60 Ver apêndice 2, entrevista com Luís Alberto de Abreu na íntegra.

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MARIA Levanta, pai! PAI Sua mágoa tem razão, motivo de réiva ocê tem de sobra. Sei que mereço caminhá no desterro... MARIA se aproxima do PAI, emocionada, em lágrimas. MARIA Razão num tenho, motivo argum. Amor meu, pai, é empenho de apagá erro, dissorvê mágoa. Amor é água pura que lava. MARIA ampara o PAI. MARIA Levanta, pai! Me dê sua véia mão pra eu beijá! MARIA beija as mãos do PAI. PAI Oh, Deus! Agora já pode me levá ! Abraçam-se. (...) PAI Num liga pro que eu falo não, fia! Cabeça minha já tá ficando sem rumo certo. E tristeza já foi muita em sua vida. (ABREU; CARVALHO, 2005, p.256-261)

Marques e Vidal (2005, p.5) apontam o estudo de Leyla Perrone-Moisés em que “Os

mitos nacionais e populares como matéria-prima a ser recriada”, foram muito usados por

Shakespeare. Nós, antropofagicamente, incorporamos o bardo na nossa cultura,

canibais/Calibans que somos, estilizando-o e ao mesmo tempo homenageando-o com uma

paráfrase de suas peças, como aliás já o fizera antes Akira Kurosawa (1985) no filme “Ran”,

baseado no Rei Lear. Godard, em sua livre adaptação cinematográfica, já utiliza uma Cordélia

adolescente, na verdade, como disse Thais Nogueira Diniz (1998), dividida entre duas atrizes.

Porém, é no filme “Rei Lear” de Peter Brook que vamos encontrar alguma semelhança com a

cena da minissérie, presente no cenário. No capítulo “Neva no Coração”, Maria atravessa um

deserto coberto de neve à procura do Pai, e depois do Amado. No filme de Brook, segundo

Reddington (1973, p.370),

depois do banimento de Cordélia nós mudamos para externas crepusculares de inverno, com frios cortantes, sem árvores. A leve queda de neve que branqueia a cabeça de Kent toca a amarga volta para casa de Lear. Isto é seguido por uma tempestade magnífica e, à medida que a loucura de Lear alcança sua rara iluminação, o sol brilha e sopra uma brisa. Finalmente, a mesma praia é alterada para a entrada final de Lear carregando o corpo de Cordélia. (tradução nossa) 61

61 After the banishing of Cordelia we remove to winter twilight outdoors, sharpening cold (and) no tree. The light fall of snow which whitens Kent´s head and touches the bitter homecoming of Lear(…) This is followed by a

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No roteiro de Hoje é Dia de Maria, o personagem do Pai, próximo da morte, é atraído

pela imagem de sua esposa morta. Em sua senilidade, tem momentos de lucidez e de

desorientação, como Lear. É transformado em palhaço na representação dos saltimbancos,

pouco antes de seu fim. Outra questão interessante é que, segundo Lisa Jardine (1996, p.115-

116), a palavra amor, no contexto shakespeareano, está em transição

(...) de uma formalmente reconhecida designação de dever e afeição em direção à figura de autoridade que governa a vida de alguém para uma direção de emoção livremente desejada e mais auto-centrada, gerada por um vínculo de obrigação não-oficial e sem débito. Uma vez que a obediência é esperada por parte da mulher, independente de ser dirigida em relação ao pai, irmão ou tio (na ausência do pai), ou marido, um momento de crise surge no momento de transferência. (Tradução nossa)62

Nossa Maria, nos capítulos que se seguem entre o reencontro com o Pai e a perda do

Amado, divide seu amor entre os dois. Seu amor filial é condescendente, como o de Cordélia;

ela perdoa o pai e o ama, mas é um amor que vem do dever e da obediência que aprendera

quando menina.

3.2.3.4 – Hoffmann.

Na Segunda Jornada, vemos o personagem Dr.Copélius, o dono da loja de conserto de

bonecas – que também lembra Gepetto, o “pai” de Pinóquio – e a Boneca. Estes personagens

são uma referência direta aos personagens Doutor Coppelius e Olímpia do conto fantástico “O

Homem de Areia” , de Hoffman (CALVINO, 2004). A diferença é que o pai de Olímpia, a

boneca do conto, chama-se Spalanzzani, e Coppélius é o advogado amigo do pai de Natanael, o

protagonista da estória.

CENA 21

LOJA DO DR. COPÉLIUS/ (PAISAGEM 1) O DR. COPÉLIUS trabalha em uma bancada e, num esmeril, usina a parte metálica de um braço da BONECA. Verifica com cuidado o resultado do trabalho e vai a uma mesa onde está sentada a BONECA, inanimada, de olhos fechados. COPÉLIUS prende nela o braço e depois dá-lhe corda com uma chavinha presa às costas. A

terrific thunderstorm and, as Lear´s madness achieves its rare clarity, by bright sunlight, (it) breezes. Finally the same beach alters for the final entrance of Lear bearing Cordelia´s body. 62 …from a formally acknowledged designation of duty and affection towards the authority figure who governs one’s life to a more self-centred, freely willed directing of emotion generated by a bond of unofficial obligation and indebtedness. Since the obedience is expected from the female, regardless of whether it is directed towards father, brother or uncle (in the absence of father), or husband, a moment of representational crisis arises at the point of transfer.

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BONECA abre os olhos e começa a cantar. (ABREU; CARVALHO, 2005, p.422-423)

Figura 20 - Boneca, personagem extraída de Hoffman.Foto de Renato Rocha Miranda.

Também em Hoffmann, em “As aventuras da noite de São Silvestre”, filmada pelo

cinema expressionista alemão, vamos encontrar a estória (dentre outras) de um homem que

teria vendido a sombra ao diabo, com o mesmo personagem da novela de Adalbert Von

Chamisso, A história maravilhosa de Peter Schlemihl (CESARINI, 2006, p.29), e cujo tema é

tão caro aos alemães, desde Göethe com seu O Fausto (1994). A venda da sombra é um dos

temas que vamos analisar nesse subcapítulo especial sobre o duplo em Hoje é Dia de Maria.

3.2.3.5 – O “duplo” em Hoje é Dia de Maria:

De acordo com Luís Alberto de Abreu63, Hoje é Dia de Maria trabalhou com o universo

dos contos fantásticos. Muito presente na minissérie é o tema do duplo, recorrente na literatura

universal fantástica. Para Eco (2003, p.212), “a presença do sósia é quase obrigatória em um

romance barroco”, e, no caso do maravilhoso e do fantástico, mais ainda. No cinema e na

televisão, mesmo quando não havia a possibilidade dos efeitos especiais digitais, a adaptação

de textos fantásticos, por exemplo, já instigava os cineastas no século XIX, como George

Mélies (1902) em sua Viagem à Lua, e continuou sendo um processo recorrente para o cinema

surrealista e expressionista alemão e hoje para os filmes de terror ou de cineastas cult. Assim

também a literatura vem trabalhando o fantástico através da história até a contemporaneidade,

63 Entrevista concedida ao site da minissérie, disponível em <http://www.hojeediademaria.globo.com/>, acesso em 23/11/08.

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como vemos desde Edgar Alan Poe, Hoffmann, Gaultier e Mérimée a Isabel Allende, Julio

Cortázar, Jorge Luís Borges, Rubem Fonseca, Lígia Fagundes Teles e Murilo Rubião, para

citarmos alguns brasileiros. Bakhtin (1997, p. 28-29) revela o fenômeno habitual das

personagens duplas em Dostoiévski, como sendo uma sua particularidade, pois escrevia

“obrigando as personagens a dialogarem com seus duplos, com o diabo, com seu alter-ego e

com sua caricatura”.

Segundo Le Goff(1983, p.20), há “uma relação entre o espelho, símbolo da duplicidade,

e o maravilhoso” já no título do livro de Pierre Mabille sobre o maravilhoso, Le Miroir du

Merveilleux. Segundo Cesarini (2006, p.83),

o desdobramento, gêmeos e sósias, a duplicidade de cada personalidade, tudo isso é tema já muito desenvolvido no teatro, seja no trágico ou no cômico, mas também nas narrativas de todos os tempos. Entretanto, no fantástico o tema enriquece por meio dos motivos do retrato, do espelho, das muitas refrações da imagem humana, da duplicação obscura que cada indivíduo joga para trás de si, na sua sombra.

Para os românticos alemães, como Hoffmann, reflexos de espelho e sombras se

confundem. De acordo com Junito Brandão (1987), a sombra tem função ambivalente, já que

possui qualidades comuns à luz e às trevas, assim aflorando o problema do bem e do mal. A

força da fertilidade da sombra é associada à luz geradora da vida. “Possui instintos normais e

impulsos criadores”(BRANDÃO, 1987, V.II, p.187). Sua força curativa é exaltada em muitas

culturas, nas quais ela se acha imbuída de mistério e sobrenaturalidade. Para os latinos, a

sombra, umbra, tem seu lado negativo: são os “aspectos ocultos, reprimidos, desfavoráveis da

personalidade.” Aí estamos no terreno da magia, do espiritual, característica apontada como

sendo do maravilhoso. Entre os mitos gregos é que surgiram primeiramente estas tendências

fantasmagóricas e demoníacas: “os mortos perdem a sombra, ou, por outra, transformam-se

eles próprios em sombras, imago, umbra, eídolon e podem assustar os vivos: são as

assombrações.” (BRANDÃO, 1987, V.II, p.188) Sendo uma parte inconsciente da

personalidade ou mesmo uma parcela do inconsciente coletivo, no dizer de Jung, a imagem

perdida de Narciso continua viva entre nós.

De acordo com nosso folclorista Câmara Cascudo (BRANDÃO, 1987, V.II, p.189), os

perigos da sombra permanecem ainda vivos no espírito popular do Brasil: “a sombra do corpo é

parte integrante do mesmo e suscetível de todas as suas virtudes, poderes e perigos. Quem

brinca com sombra, assombra-se. Pisar na sombra de alguém é uma agressão séria: é apossar-se

da pessoa.”

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Para Luiz Fernando Carvalho64, “como em todo conto-de-fadas, o mundo das sombras é

um personagem importante.”. Há, na minissérie, uma passagem em que Maria e ‘Zé Cangaia’

entram num castelo de espelhos:

ZÉ CANGAIA arma um soco e a imagem do espelho se faz de assustada e depois ri, gozando de ZÉ CANGAIA! MARIA Faz isso não, Zé! A gente num deve de quebrá o que guarda nossa image. Dá sete ano de azar! Dá a mão, vamo sair daqui. ZÉ CANGAIA E MARIA tentam se encontrar, mas, multiplicados em milhares de imagens, se perdem um do outro cada vez mais. (ABREU; CARVALHO, 2005, p.347)

Vemos também que o Príncipe com quem Maria se recusa a casar – rompendo, como

dissemos, em tom parodístico, uma tradição dos contos de fada – não tem rosto, quando tira a

máscara do baile em frente ao espelho.

A venda da alma (sombra), presente em várias narrativas e mitologias universais, como

vimos em Hoffmann, está também no roteiro. Um exemplo é quando os meninos carvoeiros

explicam que tiveram de vender sua sombra porque “só o trabalho não dava pra sustentar tanta

boca’, e outro é quando o diabo quer comprar a sombra de Zé Cangaia:

ASMODEU 1 Isso é uma porquera de uma sombra mirradinha! Num vale nem metade do que quero pagá! ZÉ CANGAIA Vale mais do que o dobro do que tô lê vendeno! ASMODEU 1 Num vô discuti mais! Levo pelo preço que disse! ASMODEU 1 se abaixa para pegar a sombra. ZÉ CANGAIA se move e afasta a sombra das garras de ASMODEU 1. ZÉ CANGAIA Tira a mão da mercadoria! Num aparpa o material! Por esse preço minha sombra não sai de junto de mim! MARIA fica estupefata ao entender o que estão negociando. Fala mais para si mesma. MARIA Esse é aquele que comprou a sombra dos menino! É o demo! Só pode ser! (ABREU; CARVALHO, 2005, p.97-98)

64Entrevista concedida ao site da minissérie, disponível em <http://www.hojeediademaria.globo.com/>, acesso em 23/11/08. .

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É próprio do demônio se multiplicar, e Maria se encontra com sete Asmodeus em cada

jornada. Marques e Vidal (2006, p.13) nos lembram da “simbologia do número sete: sete...

Figura 21 -“Ele se metamorfoseia em sete peles” (MARQUES;VIDAL, 2006, p.12). Foto de Renato

Rocha Miranda, primeira jornada.

...pecados capitais, sete demônios”, e, como vimos, sete anos de azar.

São eles: o original, que vigia os meninos carvoeiros; o moço bonito, que seduz a

Madrasta e tenta comprar a alma de Zé Cangaia; e os que aparecem para o Pai, na Primeira

Jornada. Na Segunda Jornada, temos o Cartola, que transforma o Asmodeu Piteira em gato.

Temos ainda o Marinheiro gringo, o Juiz, o Rábula e Asmodéia.

O nome do personagem tem vários significados e foi tirado da demonologia judaica.

Vem do latim: asmodaeus, e significa o príncipe dos demônios, o demônio da impudicícia, da

luxúria, da lascívia,65 o pior dos demônios, anjo destruidor, “aquele que faz perecer”66.

(VIDAL; MARQUES, 2006.) Ainda segundo Vidal e Marques (2006, p.4), “o nome Asmodeu

seria mesmo derivado do persa Aeshma-Daeva, um dos sete espíritos maus, divindade da

tempestade”. Elas fazem, ainda, uma leitura social do demônio. Ele representaria

as mazelas do país e do mundo, expondo importantes aspectos, como corrupção, exploração do trabalho infantil, desigualdade social, miséria, subjugação da condição feminina, opressão imposta pelo consumo, descarte do ser humano, ausência de sonhos, etc. (VIDAL;MARQUES, 2006, p.1)

Ao mesmo tempo, o demônio também aparece como “grotesco, risível, picaresco e

burlesco.” Sua primeira aparição no teatro se deu em 1707, quando Alain-René Lesage exibiu

65 Houaiss. 66 Livro de Tobias 3:8-17, II Samuel 24:16, Sabedoria 18:25, Apocalypse 9:11 apud VIDAL E MARQUES.

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um espetáculo de rua intitulado O diabo coxo, no qual ele é liberto de uma garrafa, como um

gênio, por um estudante espanhol:

Em troca, mostra ao rapaz todas as tragicomédias, manipuladas por Satã, que se desenrolam na cidade: “Fui eu quem introduziu no mundo o deboche, os jogos de azar. Sou o inventor da dança, da música, da comédia e de todas as novas modas da França. Resumindo, eu me chamo Asmodeu ou o diabo coxo. (MINOIS apud VIDAL; MARQUES, 2006, p.2)

Houve também uma publicação de Luiz Vélez Guevara, El Diablo Cojuelo, que chegou

ao Brasil no século XIX. Segundo Vidal (2006, p.2), “Da Europa migrou para o Novo Mundo.

Luiz Gama dele se encantou e na tacanha São Paulo de 1864/65 fez circular um semanário, O

Diabo Coxo.” Isto, porque, segundo Vidal e Marques (2006, p.3), “ao despencar do céu ele

teria sido atingido pelos seus companheiros que lhe caíram por cima e o aleijaram”.

Da mitologia grega vem a forma do demônio sincretizada com o deus Pã e os sátiros, e

no Brasil podemos dizer que há também um sincretismo com o Curupira, pois “Asmodeu seria

um demônio terrestre que, vivendo nos bosques e florestas, pregam peças nos caçadores, fazem

perderem-se os viajantes”. (VIDAL; MARQUES, 2006, p.12)

Figura 22 – Asmodeu original, que ao fim se tornará Zé-do-Riachim. Foto de Renato Rocha Miranda.

Segundo Cascudo, “aceitando desafio, topando aposta ou firmando contrato, o Diabo é

um logrado inevitável, enganado pelas crianças e mulheres”. (CASCUDO, 1978, p.329). No

episódio da luta entre Maria com Asmodeu pela alma de Zé Cangaia, o Diabo lhe faz três

perguntas, que Maria responde corretamente. Não satisfeito, Asmodeu passa ao desafio de

cantadores, e, mais uma vez, perde para ela. Maria, tendo já combinado com Zé Cangaia de

tampar as fezes que este fizera na encruzilhada com um chapéu para que Asmodeu não veja,

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engana o diabo dizendo que se tratava de um passarinho, e o deixa sozinho para descobrir o

logro.

Figura 23 - Em Hoje é Dia de Maria o homem simplório é Zé Cangaia. Foto de Renato Rocha Miranda.

Walter Benjamim explica (1994, p.215) que o personagem do ‘tolo’ nos mostra como a

humanidade se fez de ‘tola’ para proteger-se do mito. O personagem “inteligente” mostra que

as perguntas feitas pelo mito são tão simples quanto as feitas pela esfinge; neste caso, Maria

responde às adivinhas do diabo com segurança e simplicidade, “decifrando-o” como a uma

esfinge e não se deixando “devorar”, como por um lobo. Depois de tanto sol, a pequena está

“em busca da sombra” da noite. Talvez seja, nesse aspecto, isso que nossa minissérie tenha a

acrescentar, pois, apesar de ainda trabalhar o maniqueísmo, nos mostra o lado sombrio de

personagens boas, como o Pai, que acaba se arrependendo de suas atitudes erradas. Maria,

nossa “Chapeuzinho Vermelho”, está sempre às voltas com Asmodeu/Lobo Mau em suas

múltiplas formas, sempre o vencendo, como o Chapeuzinho Amarelo de Chico Buarque, que

vence o medo do Lobo Bobo.

3.2.3.6 – Brecht

O julgamento de Joana D’Arc, supracitada, nos foi narrado, dramaturgicamente, por

Bertold Brecht(1992) em O processo de Joana D’ Arc em Rouen. Em Hoje é Dia de Maria, o

personagem de Chico Chicote enfrenta um julgamento tão arbitrário quanto a santa católica

descrito da página 483 a 492. Comparemos alguns trechos das duas peças:

CENA 13

PRAÇA DO JULGAMENTO/DIA/(PAISAGEM 1)

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O julgamento tem andamento em praça pública, onde, numa plataforma elevada, está o JUIZ, que é ASMODEU CARTOLA disfarçado. Numa plataforma menos elevada estão ASMODEU RÁBULA, que é o promotor da acusação, e os defensores de CHICO CHICOTE, que são os dois EXECUTIVOS que mais atrapalham que ajudam. Em semicírculo, aglomera-se o povo, em meio ao qual estão MARIA E ALONSA. Como uma marionete, CHICO CHICOTE está sendo içado por uma espécie de guindaste de madeira e lata, lembrando ora uma crucificação, ora um enforcamento, ou até mesmo uma catapulta – arma de guerra medieval. Ali fica, pendurado pelos fios, no centro do círculo. ASMODEU RÁBULA dirige a acusação. (ABREU; CARVALHO, 2005, p.483)

E agora a peça de Brecht, que é toda dedicada ao julgamento de Joana D’Arc: 2 – NA ABERTURA DO GRANDE PROCESSO RELIGIOSO NA CAPELA DO CASTELO REAL, JEANNE ESCAPA HABILMENTE DAS PERGUNTAS CAPCIOSAS DOS CLÉRIGOS, QUE PRETENDEM TACHÁ-LA DE HEREGE, E LEMBRA-LHES COM OUSADIA DA MISÉRIA DA FRANÇA. Na capela do castelo real. Os padres BEAUPÈRE, CHATION, LA FONTAINE, D’ESTIVET, MACHON, MIDI, LEFÉVRE, MASSIEU, IRMÃO RAOUL E O ESCRIVÃO. Entram o OBSERVADOR INGLÊS com o seu AJUDANTE-DE-ORDENS e o BISPO DE BEAUVAIS. Os padres se ajoelham. (...)O BISPO consulta os seus JUÍZES-ADJUNTOS. (...)JOANA é trazida por dois SOLDADOS INGLESES. (BRECHT, Bertold. 1992,p.158, v.11)

Percebemos, na divisão dos capítulos de Hoje é Dia de Maria, uma característica do

teatro épico67. Pode-se dizer, por exemplo, que a cantiga das águas no início de “Terra dos

Sonhos” é um prólogo; que a narradora ao final de “O Retorno” é o epílogo e as várias canções

funcionam como entreatos; a narradora e o breve resumo no início de cada cena de Brecht

também são paralelos. A carroça dos saltimbancos nos lembra a carroça de Mãe Coragem de

cidade em cidade.

Na Segunda Jornada, que o autor Luís Alberto de Abreu68 considera, ao mesmo

tempo “uma ruptura e um aprofundamento da linguagem” da Primeira Jornada, o estilo de

musicais de Bertold Brecht foi utilizado. “Escrevemos grande parte dos diálogos como sendo

letras de canções, mas a estrutura não é a de opereta”, disse Luiz Fernando Carvalho em

entrevista para o site da minissérie69. No mesmo site, em entrevista concedida por Luís Alberto

de Abreu, ficamos sabendo que “a pesquisa para a Segunda Jornada de Hoje é Dia de Maria

partiu do musical brechtiano. É um épico urbano, com ritmo mais vertiginoso e intenso.”

67 Vale aqui esclarecer, em linhas gerais, que o que se chama de teatro brechtiano ou épico está em oposição ao teatro aristotélico, das três unidades de ação, tempo e lugar, mas, ao contrário, inclui prólogo, epílogo, narrador, ao invés de ação direta, e uma interferência da música, que ajuda o ator a apresentar seu personagem para o público, quebrando assim a chamada ‘quarta parede’ ilusionista, visando criar no espectador uma necessidade de agir, ao invés da catarse e da identificação esperada pelo teatro clássico grego. De acordo com Renata Pallotini (1983, p.69), as cenas são independentes, acontecem em curvas, em saltos, não é uma narrativa linear, e trabalha-se a montagem, como no cinema (e TV); 68 Entrevista disponível no site http://hojeediademaria.globo.com.br ; acesso em 25/11/08. 69 Entrevista disponível em <http://hojeediademaria.globo.com/l>, acesso em 23/11/08.

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“Alabama Song”, composição original de Bertold Brecht e Kurt Weill 70 para a ópera

“Ascensão e Queda da Cidade de Mahagony”, é interpretada pela atriz que faz Asmodéia, que

surge do mar para “devorar” Chico Chicote. Na peça a canção está em inglês, sob o seguinte

subtítulo e direções de cena: “EM POUCAS SEMANAS SURGE UMA CIDADE.

APARECEM OS PRIMEIROS TUBARÕES. Entram Jenny e seis garotas trazendo grandes

malas. Elas se sentam em cima das malas e cantam o ‘Alabama Song’.”(BRECHT, 1992,

p.114).

Maria se assemelha a Chen-Te71 e a Grucha, ambas heróinas brechtianas, bondosas,

proletárias, protegidas dos deuses e enfrentando dificuldades com o seu duplo (Chui-Ta)72,

fugindo da morte (Grucha) ou lutando por justiça, como a heroína da “Estória de Qiu Ju”, do

filme de Zhang Yimou73. Na versão portuguesa do Círculo de Giz Caucasiano, vemos Grucha

fugindo com o bebê que adotara pelo desfiladeiro de Tau, um deserto gelado:

NAS MONTANHAS DO NORTE (...)Continua a caminhar. A ponte fica para trás. Vento. GRUCHA (virando-se pra Miguel): Não tenhas medo do vento, Miguel, também não passa dum pobre diabo. Só tem de empurrar as nuvens e é ele que sofre mais com o frio. Começa a nevar. GRUCHA: E a neve, Miguel, não é o pior. Só tem de cobrir os pinheirinhos para que não morram no Inverno. (Canta...) O CANTOR: Sete dias caminhou a irmã pelo glaciar, percorrendo as encostas (...) Estava doente de tanto caminhar. (BRECHT, Bertold, [19-], p.70-71

E se assemelha a Maria que procura pelo pássaro congelado nos campos de neve:

A LUA COMEÇA A NASCER/EXTERIOR/TARDEZINHA Maria caminha pela estrada. Pára, cansadíssima, junto a uma árvore seca. (Canta...) Ela pára de cantar e senta-se na estrada: parece ter chegado ao limite de suas forças. (...)CLAREIRA NO BOSQUE/EXTERIOR/NOITE

70 A referência é da banda The Doors, que fez uma releitura da canção para rock psicodélico em 1966/67 (Whisky Bar); a cantora original é Lotta Lenya. 71 Respectivamente, de “A Alma Boa de Setsuan” e “O Círculo de Giz Causasiano”(BRECHT, 1986). A primeira é uma ex-prostituta que se torna dona de uma loja e depois de uma tabacaria e por fim uma fábrica por ajuda dos deuses, dividida entre a bondade e o mundo dos negócios. A segunda é uma campesina que adota o filho de uma mulher rica que o abandonara, e que depois reaparece querendo-o de volta, sendo o processo julgado por um juiz muito semelhante ao do “Juiz da Beira” de Gil Vicente, uma possível intertextualidade. 72 Duplo de Chen-Te, sua versão masculina e mesquinha, em “A Alma Boa de Setsuan”, que lembra as heroínas das comédias shakespeareanas, que têm de se travestir. 73 O filme conta a estória de uma moça que vai até o Tribunal Superior para pedir reparação contra uma humilhação sofrida por seu marido pelo prefeito de sua cidadezinha.

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MARIA chega à clareira e vê o AMADO, na forma do PÁSSARO INCOMUM, preso dentro de um bloco de gelo. MARIA se abraça ao bloco de gelo. MARIA Oh, amado Toma-me e aquece-te. É tua a minha noite mais delicada Toma-me! E vive, vive uma vez mais!!!

(ABREU;CARVALHO, 2005,p.327-328) Eis a cena em que Chen-Te, em A Alma Boa de Setsuan, recebe a velha e a hospeda

com sua família:

VELHA – Ah, minha boa Chen Te: soubemos que você está bem, agora. Passou a ser uma mulher de negócios! Veja bem: nós estamos sem onde cair mortos! E então nos perguntamos se não podíamos passar aqui ao menos uma noite. Conhece meu sobrinho? Veio também. CHEN TE –Quando eu cheguei, da roça para a cidade, foram os meus primeiros senhorios. Ao público – Quando acabou o pouco dinheiro que eu tinha, puseram-me na rua. Talvez agora estejam receando que eu diga não. Ficaram pobres. Estão sem amigo, estão sem lugar, precisam de alguém, quem pode negar? (BRECHT, 1992, p.70-71, v.7)

Que lembra quando a Madrasta e Joaninha reaparecem na vida de Maria, quando esta

trabalha com os bóias-frias:

CENA 24 VILINHA/CASEBRE/INTERIOR/PÔR-DO-SOL MARIA entra no seu casebre e vê uma desordem total. A MADRASTA está deitada numa rede, abanando-se.A um canto, JOANINHA, que está uma moça crescida e enorme de gorda, come. MADRASTA Nosso Cristo! Vancê nunca que chegava! Qui tempo que tamo torando estrada na sua procura...Vim aqui pra mó de cuidá de ocê! Ocê fugiu de casa, mai num le guardo mágoa. Sabia que mais ano, menos ano, eu le achava.(...) MARIA suspira e se senta, triste. JOANINHA choraminga. MADRASTA Se aquiete, bem, que a Maria já chegô e já vai fazê os de cumê...(para MARIA)Tá certo? (ABREU; CARVALHO, 2005, p.157-158)

Além da paráfrase dos musicais brechtianos, Hoje é Dia de Maria parodia os musicais

de Hollywood, como veremos a seguir.

3.2.3.7 – Musicais norte-americanos

Por se tratar de um musical, também foram utilizadas certas melodias de canções

americanas pelo autor da trilha sonora, com letras em português. Há paráfrases de musicais

americanos, quando, por exemplo, o marinheiro americano (Asmodeu disfarçado) canta “Cheek

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to cheek” de Irvin Berlin74 para Maria, no cais da cidade, ou quando a Menina Carvoeira cita

uma passagem de “Somewhere Over the Rainbow”, de Harold Arlen75:

CARVOEIRA (canta) Além do arco-íris, um lugar, que eu sei e acreditei, que eu irei morar...

(ABREU, CARVALHO E SOFFREDINI, 2005, p.405)

O texto adquire tendências críticas, como no coro de executivos da Segunda Jornada,

embalado pela melodia de “Money, money” de Cabaret – a citação não está no roteiro, é algo

acrescentado pelo diretor musical Tim Rescala. Há claramente uma crítica ao poder norte-

americano, ao poder do dinheiro, à sedução exercida pelo estrangeiro, pelo país maravilhoso

que está além do horizonte, pelo sonho americano.

Porém, é aqui, nas terras do pôr-do-sol, ou seja, nos trópicos do ocidente, em solo

tupiniquim, que vamos colher a matéria de que será feito nosso sonho, no caso nossa estória;

mas essa estória é contada de forma circular, como no oriente, no sol levante, onde o fim nunca

termina.

Figura 24– Contracapa do livro, por Jackeline Sales, com os personagens da Segunda Jornada.

74 Do musical “Picolino”, ou “Top Hat”, com Fred Astaire e Ginger Rogers, (1935), son., P&B, usada novamente pelo diretor musical Tim Rescala em “Capitu”(2008, TV Globo, direção Luiz Fernando Carvalho, com Maria Fernanda Cândido, Eliane Giardini). 75 Do musical “O mágico de Oz”, com Judy Garland, direção Victor Fleming, Metro Goldwin-Meyer,1939, P&B, son., (112 min.)

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“NAS FRANJAS DO MAR” – CONCLUSÃO

“Comece do início, e, quando chegar ao final, pare!”

Rei de Copas – Alice no País das Maravilhas – Lewis Carrol.

Chegamos ao nosso destino final, ou, como Maria gosta de dizer, às “franjas do mar”.

A partir dos conceitos de reciclagem cultural e de ironia intertextual, estudados nessa

dissertação, concluímos, pela análise do roteiro, que Hoje é Dia de Maria se constituiu a partir

de um conjunto de obras literárias e de todo um universo oral, em que o movimento de

estilização – tão caro ao dramaturgo Carlos Alberto Soffredini, autor do especial que deu

origem à minissérie – realizou a tessitura entre os textos. O próprio acervo épico em que se

baseou a microssérie – contos orais, canções folclóricas etc., – já encerra em si este

movimento de repetição com alteração, característico da própria propagação da narratividade,

como assinala Linda Hutcheon (2006); assim como é repetição a presença da voz do narrador,

que costura os episódios e aponta para a presença do interlocutor, que ouve a história,

utilizando aí um instrumento ao mesmo tempo épico e didático numa contação de estórias para

adultos. O outro modo como se deu a estilização foi através da adaptação dos textos clássicos

da literatura mundial, isto é, eles foram deslocados de seus contextos de origem e

amalgamados ao ambiente e ao nosso meio cultural. Essa tessitura refere-se, também, ao

próprio universo de Soffredini, aproveitado pelos outros autores, Luís Alberto de Abreu e Luiz

Fernando Carvalho. Soffredini trabalhou num processo de autotextualidade ou

autoreferenciação, utilizando frases e personagens de suas próprias peças, trabalhando com a

linguagem circense, aliada ao universo folclórico, ao musical, ao sotaque do interior de São

Paulo, aos números de “revista” – quando Maria vira cantora de cabaré – ao humor, aos

trocadilhos e desafios. Toda a pesquisa folclórica feita por Luiz Fernando Carvalho e sua

equipe são um reflexo da obra do mestre; sem dúvida, uma peculiaridade também do trabalho

do diretor, por isso mesmo um bom casamento de idéias e ideais.

Há, certamente, em Hoje é Dia de Maria, uma demanda por um público

leitor/telespectador com referências mais eruditas, que pode ser avaliada pela quantidade de

diálogo intertextual presente no roteiro. Quanto maior o universo literário do

leitor/telespectador, mais citações são encontradas, inclusive musicais e cinematográficas.

Dentro do universo televisivo, a minissérie destina-se a um público mais restrito, que, apesar

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de não ser infantil, busca preservar “esse lugar onde é permitido sonhar, chamado infância”,

como disse Luiz Fernando Carvalho76. Um público que deve ainda reconhecer, para o efeito da

ironia intertextual, as cantigas de roda resgatadas por Villa-Lobos, as lendas indígenas e

africanas, o universo de Monteiro Lobato, as estórias de contos-de-fadas trazidas de Portugal

com base em Cinderela e Pele-de-Asno – que no Brasil ganham uma roupagem nordestina e

um sotaque paulista na versão soffrediana. O deslocamento de um continente a outro destas

estórias milenares emprestam à personagem uma universalidade e um significado arquetípicos.

Sua localização geográfica não importa, pois na linguagem do sonho, do sertão vamos pro mar

e o mar vira sertão, e ele está dentro de nós, que, como o gigante, engolimos

antropofagicamente as pequenas carvoeiras, os retirantes, os bóias-frias, as Marias-meninas

que enrolam os diabos na rua, no meio dos desafios e redemoinhos. É justamente esse

“acento” sertanejo dado à Maria, na Nova Idade Média do século XXI, que nos leva ao

modernismo presente na minissérie.

Essa presença não é só dos escritores modernistas citados, como Bandeira,

Drummond, Mário de Andrade e Cassiano Ricardo, mas do abrasileiramento das referências

estrangeiras. Antropofagicamente e parodisticamente, adotou-se Olympia como a Boneca;

D.Quixote como Chicote; Alice/Gulliver como Maria; Cigana Esmeralda/Dulcinéia como

Rosicler; os musicais hollywoodianos foram carnavalizados, ou mesmo epicamente

convertidos em peças brechtianas, num estilo de fazer televisivo que foge totalmente do

realismo naturalista, aproxima-se escancaradamente do teatro e adota as práticas

cinematográficas da Nouvelle Vague, mostrando o aparato cênico. Ainda um toque modernista

entra na circularidade que, como nos lembrou muito bem Haroldo de Campos (1973), está

presente na obra dos maiores escritores do mundo.

Não se trata de um caso especificamente de realismo mágico, ou de real maravilhoso

latino-americano, visto não se reportar a nenhum fato histórico, mas sem dúvida insere-se no

gênero do conto maravilhoso, tendo como palimpsesto estrutural a rapsódia de Mário de

Andrade, que se baseou no lendário indígena de Koch-Grünberg. Assim como Macunaíma,

Maria nos apresenta a cultura popular brasileira numa fábula para adultos. Assim como cada

capítulo de Macunaíma encerra um conto, assim também em Hoje é Dia de Maria cada

episódio apresenta uma nova aventura. Maria é a heroína junguiana, em busca do “eu”, em

confronto com uma realidade que lhe causa estranhamento, como acontece com o poeta Dom

Chico, mas muito à vontade com os mitos, como o anti-herói andradiano.

76 Testemunho do diretor no making off do DVD Hoje é Dia de Maria, Rio:Globomarcas, 2006 (556 min.).

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O ‘mise-en-abîme’ é resgatado dos contos orientais, atualizado e perfeitamente

adequado à linguagem dos episódios televisivos, que geram novos episódios, à moda de

Xerazade. Esta microssérie articula-se como um conjunto predominantemente de narrativas

breves, onde mantém-se a concisão própria de um conto dentro de cada episódio, onde a

heroína enfrenta novas aventuras, convergindo para um final; a intensidade, outra

característica contística, está presente na aglutinação de personagens: Maria é Maria

Borralheira, é a Maria de Dona Labismina e é a Maria da Madrasta. O ritmo intenso da

microssérie também alia-se à rapidez do conto.

Os livros consagrados que foram estilizados pertencem a autores que, por sua vez,

parafrasearam outros: paráfrase do especial de Soffredini, que por sua vez estiliza os contos de

Grimm, que se inspiraram em Perrault. Paráfrase de Cervantes, que parodiou os romances de

cavalaria, também estilizados por Gil Vicente e Antônio José da Silva. Paráfrase de Monteiro

Lobato, que estilizou Lewis Carrol, por sua vez também parodiador. Assim, a homenagem à

literatura está presente, desde a estrutura de contação de estórias, da Primeira Jornada, até o

personagem do poeta desmemoriado na Segunda Jornada – ilustrando a passagem do oral ao

literário e sua busca pela memória – e nas intertextualidades que revelam o universo cultural

desta equipe, liderada por esse arquiteto/bacharel em Letras, que é o diretor da microssérie.

Homenagem esta que vai culminar, na obra de Luiz Fernando Carvalho, em Capitu. Mas essa

já é outra estória...

Figura 25 - Maria chega ás ‘franjas do mar’. Foto de Renato Rocha Miranda.

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117

APÊNDICE A – Curvas Dramáticas de Hoje é Dia de Maria

A curva dramática do Primeiro Movimento corresponde, em Hoje é Dia de Maria, à

Primeira Jornada. A linha vertical é a tensão dramática e a horizontal o decorrer da trama.

Figura 26

Linha 1

Linha 2

A situação começa com um nó, chega a um clímax, depois tem uma solução e novo

antagonista é colocado em cena. A linha 1 corresponde ao primeiro antagonista, a Madrasta; a

linha 2 corresponde ao segundo antagonista, Asmodeu.

Figura 27 - O Segundo Movimento corresponde à

Segunda Jornada. Todos os episódios e todas as cenas também obedecem a esse gráfico.

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118

APÊNDICE B – Entrevista com Luís Alberto de Abreu, dramaturgo e roteirista da

minissérie da TV Globo Hoje é Dia de Maria. (Entrevista concedida através de e-mail por

intermédio da Globo Universidade).

1)Você considera o roteiro como pertencente ao universo do realismo mágico ou do

real maravilhoso? Não sei exatamente a quê você se refere quando pergunta sobre realismo

mágico. Se for o que se convencionou chamar sobre os elementos de criação de escritores sul-

americanos como Manuel Scorza ou Gabriel García Márquez, informo que em momento

nenhum do processo discutimos ou tivemos como referência elementos presentes nas obras

desses autores. Nos fixamos muito mais nas lendas folclóricas e nos debruçamos sobre

estrutura de mitos e arquétipos. É claro que muito do que se convencionou chamar de

“realismo mágico” se fundamenta em imagens presentes na mitologia.

2) Além do especial “A Madrasta”, você e o Luiz Fernando utilizaram alguma outra

peça do Soffredini para escreverem os episódios? Não. Como afirmei, utilizamos apenas o

especial “A Madrasta” como ponto de partida.

3) Gostaria que você me falasse do processo a quatro mãos de roteirizar Hoje é Dia

de Maria. Entendo que você escreveu em forma dramatúrgica e que o diretor deu um

formato televisivo. Estou certa, ou enganada? Se você se refere a uma forma mais teatral,

não foi isso o que aconteceu. Minha formação se deu no teatro e grande parte de minha

carreira foi dedicada a essa linguagem e, embora Hoje é Dia de Maria marque a minha estréia

como roteirista de TV, eu já havia trabalhado por mais de dez anos como roteirista de cinema

e por isso conhecia a linguagem audiovisual o suficiente para escrever diretamente para a TV.

O trabalho de Hoje é Dia de Maria foi, de fato, escrito a seis mãos. Quando o Luiz Fernando

me convidou para escrever a microssérie (que deveria ter oito episódios de aproximadamente

trinta minutos) já havia um roteiro anterior para um único episódio de sessenta minutos escrito

pelo Luiz Fernando e pelo Carlos Alberto Soffredini. Esse roteiro serviu como base.

Reformulamos, ampliamos a estória, criamos inúmeros outros personagens para acertar o tom

dos personagens e o encaminhamento da estória e o roteiro final foi construído diretamente

para a TV com a coordenação do Luiz Fernando que muitas vezes alterava cenas, propunha

encaminhamentos. Eu que moro em São Paulo enviava o texto para o Luiz Fernando por e-

mail, que lia e me dava retorno por telefone. Ao final, trabalhamos por uma semana juntos, no

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Rio de Janeiro, para o acerto final nos oito capítulos da Primeira Jornada de Hoje é Dia de

Maria.

4)Houve algum episódio escrito originalmente que foi depois cortado antes ou depois

da gravação? Por quê? Não que eu me lembre. Como disse, o texto foi feito por mim e pelo

Luiz Fernando diretamente para a TV. Existem sempre modificações na passagem do processo

do roteiro para gravação e edição, mas foram muito pequenas e o Luiz seguiu fielmente o que

tínhamos elaborado.

5) Houve alguma seqüência primeiramente desenhada em storyboard que originou

um texto? Não. Houve o contrário. Todas as narrações no começo e no fim dos capítulos

foram desenvolvidas já durante as gravações.

6)Quais os personagens que foram sugestão de um ou de outro autor? Os

personagens Maria, Pai, Madrasta e Joaninha, Príncipe sem Rosto, Pássaro, já estavam

presentes na primeira versão do Soffredini e do Luiz Fernando e foram ampliados na Primeira

e na Segunda Jornadas. A transformação da menina Maria em adulta foi desenvolvida por

mim e pelo Luiz Fernando. O demônio Asmodeu, os saltimbancos, foram sugestões minhas.

Na Segunda Jornada, o personagem Chico Chicote foi sugestão do Luiz Fernando, bem como

a Boneca e Dr.Copélius. Os outros foram criados por mim ou em conjunto. Mas nenhuma

criação é totalmente definida quanto à autoria. Em nosso processo de trabalho há uma

interferência criativa extremamente rica em toda a criação do roteiro.

7)Vocês ficaram imersos no universo soffrediano ou ele apenas serviu de inspiração

para a pesquisa folclórica e de literatura brasileira/mundial? O universo do Soffredini foi

base para nossa criação. A partir daquele roteiro inicial muito foi criado e expandido.

8)Descobri as seguintes citações literárias no texto, e, se tiver mais alguma, favor

acrescentar para mim: D.Quixote, Hoffman (Homem de Areia), Macunaíma, Martim

Cererê, obra de Monteiro Lobato para crianças, Alice no País das Maravilhas, Maria

Borralheira, D.Labismina e A Madrasta, compiladas por Sílvio Romero e também por

Cascudo, músicas compiladas por Villa Lobos, etc. Você está correta em todas essas citações.

A obra de Sílvio Romero, Mário de Andrade e Câmara Cascudo é objeto de minha pesquisa

sobre a cultura popular brasileira. Há também outras referências, já que é próprio da cultura

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popular a apropriação das formas eruditas. O encontro do Pai com Maria no espetáculo dos

saltimbancos foi inspirado no encontro de Lear com Cordélia, de Shakespeare. O encontro de

Maria com a Menina Carvoeira tem referências no encontro de Io e Prometeu, do Prometeu

Acorrentado, de Ésquilo. O linguajar foi fundamentado em pesquisa desenvolvida por

Amadeu Amaral e Cornélio Pires, estudiosos paulistas da primeira metade do século XX, que

se debruçaram sobre o universo caipira de São Paulo.

Figura 28 - Dorso do livro