HISTÓRICO SOBRE A CONTEXTUALIZAÇÃO SOCIAL DA LOUCURA EM

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 Fundação Biblioteca Nacional Ministério da Cultura Programa Nacional de Apoio à Pesquisa 2006

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Fundao Biblioteca NacionalMinistrio da Cultura

Programa Nacional de Apoio Pesquisa2006

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Programa Nacional de Apoio PesquisaFundao Biblioteca Nacional - MinC

Ilka de Arajo Soares

Institucionalizao da loucura: um recorte histrico sobre o municpio de Barbacena/Mg

2006

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SUMRIO

INTRODUO ...............................................................................................

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CAPTULO I - HISTRICO SOBRE A CONTEXTUALIZAO SOCIAL 13 DA LOUCURA EM NVEL MUNDIAL ........................................................... CAPTULO II - INSTITUCIONALIZAO DA LOUCURA NO BRASIL 40 ................................................................................ CAPTULO III - O MUNICPIO DE BARBACENA E SUA TRAJETRIA MANICOMIAL ............................................................................................... 75 3.1 3.2 O CONTEXTO HISTRICO-ECONMICO ................. 75

O DESENVOLVIMENTO SCIO-INDUSTRIAL DE MINAS E A CONCOMITNCIA COM O CRESCIMENTO MANICOMIAL 84 ................................................................................................. BARBACENA E A INSTITUCIONALIZAO DA LOUCURAA 95 ....................................................................................................... CONSIDERAESFINAIS .................................................................................................. REFERNCIAS .............................................................. 115

3.3

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RESUMO

O presente trabalho realiza um levantamento histrico loucura, expanso hospitalar. contexto excluso sobre com das a institucionalizao nos primrdios de e da na

nfase

prticas a

confinamento entre de cuja

Enfoca

articulao e o

socioeconmico social da mxima

processo

loucura, o

representatividade Reflete sobre as

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reformistas

advindas e aborda a especificidade da histria manicomial do municpio de Barbacena/MG experincia prototpica. como

PALAVRAS-CHAVE: INSTITUCIONALIZAO SOCIOECONMICO -

HISTRIA LOUCURA

CONTEXTO

MANICMIO

BARBACENA

REFORMA PSIQUITRICA

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5 INTRODUO

O presente trabalho discorre acerca do processo histrico de institucionalizao da loucura com finalidade de abordar os primrdios, a trajetria da assistncia psiquitrica brasileira, partindo rumo ao enfoque da especificidade de municpios que se constituem como referncia nacional no que tange sua importncia neste processo. Nesse sentido, Barbacena (MG) destacada como plo de representao histrica que refletiu a gravidade da situao da institucionalizao hospitalar da doena mental no pas e paradoxalmente como referncia nacional no movimento antimanicomial e como pioneira em experincias psiquitricas inovadoras. O levantamento histrico sobre as origens do processo de institucionalizao da loucura e do campo da Sade Mental revela-se como importante eixo de conhecimento e explanao sobre questes que tm clamado, nas ltimas dcadas, para a reformulao de suas prticas e formas de interveno. Isso porque os mtodos de confinamento, maus tratos e excluso social utilizados de forma extensiva durante anos nas prticas psiquitricas traduziram um quadro de abandono humano com conseqncias desastrosas para populaes concebidas socialmente como indesejveis. A formulao de propostas alternativas ao modelo hospitalocntrico encontra-se em consonncia viabilizao da Reforma Psiquitrica1 cujo alicerce se calca na viso crtica das prticas realizadas nas instituies clssicas de assistncia que tm o manicmio como sua expresso mxima. A possibilidade de situar historicamente as problemticas que concederam inevitabilidade a crtica da estrutura asilar se atrela valorizao da mudana do objeto desse campo. Trata-se do deslocamento da nfase no tratamento da doena (marcado pela tradio racionalista do saber biomdico centrado na remisso sintomtica e no binmio problemasoluo) para a promoo da sade mental. Prioriza-se, nesse contexto, a luta pela concesso de uma cidadania especial ao portador de sofrimento mental e ateno sua subjetividade.

Movimento que preconiza a substituio das prticas psiquitricas clssicas por formas de tratamento substitutivas.

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6 Assim, as prticas substitutivas ao modelo asilar inauguram novos paradigmas acerca do problema e intencionam o enfoque s representaes sociais sobre a loucura que a aprisionaram historicamente na marginalizao e na estigmatizao social. A intensificao do movimento da luta antimanicomial tem clamado, nas ltimas dcadas, para a importncia de se promover posicionamentos diferenciados, atravs da construo de instncias que viabilizem o dilogo, a negociao e a insero social do doente mental. O presente trabalho, no entanto, no expe especialmente sobre o movimento da Reforma Psiquitrica e suas proposies, mas o concebe como eixo inspirador da pesquisa. O levantamento histrico sobre os primrdios das prticas assistenciais engendra-se na concepo crtico-sociolgica de que as prticas psiquitricas surgiram como resposta s exigncias econmicas, sociais e polticas em dada conjuntura histrica. A tentativa de refletir sobre o desdobramento do referido processo em Barbacena evoca a importncia de situar as caractersticas temporais e espaciais, em determinada conjuntura histrico-social, que, concomitantemente ao panorama econmico e cultural mais abrangente, teria conduzido a cidade a no mais prescindir de um local peculiar para o cerceamento de seus doentes mentais. E, ainda, tornar-se local de destaque das prticas asilares dada a dimenso do crescimento e centralidade assistencial psiquitrica em nvel nacional. Investiga-se sobre as especificidades que supostamente teriam levado Barbacena a inaugurar a necessidade de suspender efetivamente o contato direto e cotidiano com a loucura, criando um novo cenrio, o asilo, para seu cerceamento. Tendo como base o conceito de dispositivo de Foucault (1982), possvel compreender que a psiquiatria e a instituio asilar tiveram a funo de responder a uma funo estratgica dominante. Diante de uma economia essencialmente mercantilista, foi necessrio absorver uma parcela da populao que se achava flutuante e gerava incmodo social. Da o dispositivo de controle exercido pelo hospcio enquanto forma de dominao da loucura e da doena mental. Assim, percorre-se aqui uma trajetria que inclui a apresentao dos primrdios das prticas de abordagem doena mental e do surgimento do dispositivo asilar. No Captulo 1, apresentada a contextualizao social da loucura em nvel mundial, em diferentes perodos histricos. Desde a Antiguidade, Idade Mdia e Modernidade, por

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7 exemplo, evidenciada a caracterizao diferenciada do louco face normatizao social, ainda que, nos tempos mais remotos, esse personagem tenha experimentado maior tolerncia e liberdade social. Em outro momento, como no perodo aps o Renascimento, aspectos marcantes como a criao do Hospital Geral, em 1656, episdio conhecido como a Grande Internao, revelam a negatividade histrica da loucura frente ao referencial da razo, em que os incapacitados e ociosos so retirados de cena diante de uma nova tica do trabalho. J na constituio do Estado Moderno, no final do sculo XVIII, perodo de grandes transformaes polticas, econmicas e sociais na Europa e no mundo, ocorre a denncia das internaes arbitrrias e indiscriminadas, das quais os loucos e demais excludos so vtimas. O internamento e a seqestrao obrigatria passam a ser indicados especificamente para doentes mentais, venreos e criminosos. Neste perodo, ocorre a inaugurao da forma asilo em meio a um panorama de especializao progressiva do trabalho, em que o comrcio caminha em direo ao florescimento e o louco apresenta-se excludo de acordos contratuais. No Captulo 1, destaca-se, ainda, o nascimento da psiquiatria, endossado pela Lei de 1838, que discorre sobre a importncia de assistncia aos alienados e o espao prprio para o seu tratamento. Tambm retomada a Idade de Ouro da psiquiatria, na qual atribuda ao mdico a mxima interveno nas questes sociais. Pinel e seus seguidores, atravs de uma viso positivista da loucura, elaboram o Tratamento Moral, cujo esquema terico-conceitual e conhecimento discursivo obedecem institucionalizao da ordem social, tendo o mdico como figura central na abordagem ao doente mental. O enfraquecimento do Alienismo, expresso atribuda a este formato de concepo da loucura sob a tica centralizadora da medicina, ocorre como conseqncia das crticas torrenciais aos desumanos mtodos de tratamento e da evidncia do comprometimento poltico-ideolgico da forma asilar com o sistema de poder dominante. apresentado que as mudanas ocasionadas nos sistemas de prestao de servios de sade, no incio do sculo XX, geram o impulsionamento de prticas mdicas mais geis e eficientes, em consonncia com o arsenal tcnico-cientfico em extenso desenvolvimento. A prtica asilar concebida como ultrapassada, gerando a necessidade de reduo dos leitos

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8 hospitalares, a desativao das internaes prolongadas e a criao de novas propostas de assistncia. A preconizao dos cuidados relacionados sade mental da populao no chamado Movimento de Higiene Mental, em 1910, denota a instaurao de uma profilaxia social. A partir da, so descritos os movimentos importantes de reformulao da assistncia psiquitrica, que obtiveram destacado lugar para o impulsionamento da Reforma Psiquitrica em nvel mundial. No Captulo 2, so apresentadas as origens e a trajetria do processo de institucionalizao da loucura no contexto histrico brasileiro. Ressalvando as

particularidades locais e a discrepncia temporal, enfatizado o paralelismo entre os fatos que condicionaram o aparecimento do louco como problema social (o que gerou a necessidade de criao de instituies para o seu controle) no Brasil do sculo XIX e na Europa do sculo XVI. As especificidades da situao brasileira so retratadas no Brasil Colnia, quando, contando ainda com uma economia escravista e pr-capitalista, a populao de inadaptados determinada ordem social (entre estes os loucos) enche as cidades e constitui ameaa paz social. Isso ocorre diferentemente da situao europia, na qual, conforme mencionado anteriormente, a exigncia do seqestro social do louco ocasionada pela emergncia do capitalismo mercantil e do crescimento industrial e urbano. O processo de institucionalizao da doena mental ento abordado no Captulo 2, desde o perodo histrico no qual, ainda que, desfrutando de certa liberdade e extraterritorialidade, o louco j requisitava providncias das autoridades diante das manifestaes socialmente inadequadas. Apesar de o levantamento de dados deste perodo ser importante, pois marca uma diferenciao com o que ocorrer posteriormente com a inaugurao de instituies especificamente destinadas ao recolhimento da loucura, o enfoque central dado ao perodo concernente ao final do sculo XIX e dcadas iniciais do sculo XX. Tal prioridade justificase, pois os citados perodos concernem s origens do processo de institucionalizao da loucura no dispositivo asilar, ao desdobramento inicial deste, e culminncia da gravidade

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9 das conseqncias de todo o processo que retratada nas experincias assistenciais da localidade pretendida. Assim, inicialmente observado que, at a segunda metade do sculo XIX, os doentes mentais no contam com qualquer tipo de assistncia mdica. Colocados em prises por vagabundagem e perturbao da ordem pblica, vagam pelas ruas ou so encarcerados em celas especiais dos hospitais gerais das Santas Casas de Misericrdia. Sobre as origens da assistncia aos alienados no Brasil so enfatizados pices histricos, como, em 1830, a reivindicao dos mdicos da recm-criada Sociedade de Medicina e Cirurgia da construo de um hospcio especial para os alienados, que

juntamente a outras medidas de higiene pblica, desencadeiam a mobilizao da opinio pblica, marcando o incio de um processo amplo de abordagem problemtica da doena mental. Cabe destacar que os argumentos que embasam os movimentos iniciais consistem na importncia da implementao de um asilo higinico, onde o tratamento moral possa ser aplicado em contraposio ao abandono e perambulao dos loucos pelas ruas, tambm sustentados pelas crticas aos mtodos de tratamento utilizados na Santa Casa de Misericrdia. Outro marco da histria da psiquiatria brasileira que destacado no Captulo 2 aconteceu em 1841, com a assinatura de D. Pedro II do decreto de fundao do primeiro hospital psiquitrico brasileiro. Em 1852, ocorre a inaugurao do Hospcio D. Pedro II. Aps a Proclamao da Repblica, em 1890, o estabelecimento designado Hospital Nacional de Alienados, sendo sua tutela separada da Administrao da Santa Casa e conferida ao Estado. A promulgao da Lei Federal de Assistncia aos Alienados, em 1903, busca a regulamentao da assistncia nos estabelecimentos asilares, preconizando a centralidade do mdico. A medicina enquanto especialidade encarregada do tratamento de doenas mentais teria seu lugar pretensamente fortalecido mediante a consolidao de aliana com o Estado. O agravamento do quadro de marginalidade com a Proclamao da Repblica repercute na intensificao do processo de excluso social, gerando demanda de recuperao da populao excluda, mediante um corpo de conhecimentos que subsidie tal processo.

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10 Observa-se ento, a necessidade de medicalizao efetiva do hospcio e a propenso de mudana da medicina anteriormente emprica para cientfica. Devidamente

instrumentalizada, a medicina deve fornecer resposta curativa e portar papel de defesa da coletividade, em consonncia ao princpio da liberdade individual, base da organizao social da Repblica. destacada, ainda, a criao da Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM) em 1923, com objetivo inicial de aperfeioamento da assistncia aos doentes mentais. O direcionamento s propostas preventivas e higinicas evidencia o alicerce da liga s teorias eugnicas alems que orientam as prticas psiquitricas com ampla infiltrao no domnio cultural. Com uma propenso de associar problemas psiquitricos aos problemas culturais, os psiquiatras da liga justificam a interveno mdica em todos os nveis da sociedade. Ao absorver a causalidade biolgica como um dogma, a LBHM converge em conformidade com os preconceitos da poca. Ainda que o objetivo da psiquiatria seja justificado pela implementao de uma teoria embasada em uma matriz cientfica, a tendenciosidade de suas prticas revela a absoro ideolgica dos ditames das classes polticas dominantes. A psiquiatria alem inspira ideologicamente a prtica psiquitrica brasileira, sendo o saneamento social direcionado populao marginalizada, oriunda do processo de urbanizao. O biologismo eugnico excessivamente voltado para a constituio do povo brasileiro lana mo do pressuposto biolgico para caucionar dogmas, revelando-se como um fundamento ideolgico e no cientfico. At a Segunda Guerra Mundial, o higienismo predomina, mas, com o advento da psiquiatria preventivo-comunitria norte-americana, iniciam-se as experincias

socioterpicas e as razes do movimento reformista. A gravidade da situao assistencial aos loucos no Brasil intensifica os protestos e as denncias que impulsionaram o processo de reforma psiquitrica, cuja trajetria e formatao sero descritas em linhas gerais. Conforme evidenciado na exposio sobre a contextualizao sociocultural determinante do lugar social do louco, h concomitncia entre a emergncia do processo de urbanizao, a instaurao de uma nova tica do trabalho e o banimento social desse personagem como mecanismo de organizao das cidades. A observao do processo em nvel mundial (diante das expressivas mudanas no panorama econmico-cultural, principalmente no incio do perodo moderno), assim como no contexto brasileiro (passagem

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11 do Regime Monrquico de economia escravista para a Repblica), alicerou a perspectiva de detectar os supostos fatores determinantes da institucionalizao psiquitrica na conjuntura da cidade de Barbacena. Desse modo, a Histria Manicomial de Barbacena abordada no Captulo 3, subdividida em trs itens. realizada, nos itens 1 e 2, a investigao de informaes histricas e econmicas acerca da localidade e da regio com o propsito de situar as caractersticas e especificidades da cidade. Tal explanao inspira-se na vertente ideolgica que reflete sobre a inter-relao entre o processo de organizao das cidades, seu regime contratual, o afastamento do louco como inadaptado aos mecanismos de produo e trocas sociais e a necessidade de operacionalizao do dispositivo de controle do campo de saber psiquitrico. Destacam-se as particularidades de Barbacena que a teriam tornado referncia to profcua implantao do intenso movimento das prticas asilares. Pesquisar os primrdios da localidade conduz explicitao de importantes aspectos sociopoltico-econmicos determinantes para a configurao da centralidade assistencial psiquitrica, demonstrando tambm como o crescimento manicomial acompanhou o desenvolvimento urbano e mercantil das regies articuladas a nvel geogrfico e econmico com o municpio em questo. A explanao mais detalhada da trajetria das prticas asilares em Barbacena apresentada no item 3 e tem como objetivo o conhecimento dos aspectos estruturais do referido municpio e do seu posicionamento como destaque na receptividade hospitalizao psiquitrica. Entre os aspectos relevantes da histria da institucionalizao, enfatizada a inaugurao do hospital-colnia, cujo crescimento culminou em uma situao de superlotao, tornando Barbacena conhecida em todo o Brasil como a Cidade dos Loucos, plo de internaes psiquitricas durante longo perodo. A precariedade da assistncia gerou um quadro final de aproximadamente 60 mil mortes. A maioria delas por problemas como diarria, sfilis ou fome, alm dos abandonos sem precedentes, o que levou Franco Basaglia2, em visita ao Brasil, a comparar a cidade a um campo de concentrao nazista.

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Psiquiatra Italiano precursor da Antipsiquiatria e mentor do movimento antimanicomial na

Itlia.

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12 Um modelo assistencial fundado em instituies totais predominantes e hegemnicas dominadas pela privatizao da assistncia reproduziu o quadro conhecido, em experincias espalhadas pelo pas, como indstria da loucura. O levantamento da histria psiquitrica do municpio situa o desafio das propostas locais de reverter a grave situao de implantao de hospcios que acompanhou o crescimento da cidade. O fato de, h alguns anos, Barbacena representar um modelo de reformulao na trajetria de implementao da Reforma Psiquitrica a torna um municpio prototpico, tendo em vista seus precedentes histricos e os avanos que vm sendo propostos e embasados no lema por uma sociedade sem manicmios. A criao de ambulatrios de sade mental, servios residenciais teraputicos, Centros de Ateno Psicossocial (CAPS), unidades psiquitricas em hospitais gerais traduz a importncia de no apenas abolir o asilo, mas de efetivamente redirecionar os recursos para servios substitutivos quele. Desse modo, em Consideraes Finais, descrito como a Reforma Psiquitrica, a partir da virada dos anos 80, proporcionou a implantao do Museu da Loucura juntamente com outras iniciativas culturais em Barbacena que logram xito na proposta de reverter os graves episdios do passado. Especialmente no museu, a trgica histria da assistncia psiquitrica em Minas Gerais retratada atravs do memorial que vivifica um passado que gradativamente vai sendo ultrapassado. A existncia mais do que centenria do Centro Hospitalar Psiquitrico, cujos muros testemunharam um massacre incrementado por eletrochoques, lobotomias e prises, hoje abre lugar para a reformulao de sua rede assistencial cuja iniciativa de substituio do aparato manicomial, de humanizao do tratamento e de construo de alternativas culturais com fins de ruptura da estigmatizao da loucura situa paradoxalmente o municpio como referncia nacional do movimento antimanicomial. Assim, concludo como o processo histrico de institucionalizao da loucura e suas graves conseqncias nos primrdios da psiquiatria, ao lado da exemplificao da trajetria de mudanas em Barbacena, possibilitam a reflexo sobre a complexidade das propostas substitutivas ao modelo hospitalocntrico e sobre os pontos de impasse na consolidao da Reforma Psiquitrica Brasileira. Enfatiza-se a, a declarada limitao de recursos pblicos, sua concentrao ainda no modelo hospitalar e a necessidade de uma

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devida

redestinao

dos

mesmos.

ressaltado

tambm

o

13 necessrio

comprometimento das aes com a adoo de uma abordagem biopsicossocial, cuja efetivao se encontra estreitamente entrelaada s aes mltiplas que envolvem desde as dimenses legislativas at as sociais, econmicas, culturais e polticas. A realizao deste estudo concretiza-se mediante a pesquisa historiogrfica efetuada no acervo da Biblioteca Nacional, em materiais bibliogrficos diversos acerca do tema, assim como atravs do levantamento de dados em instituies da cidade de Barbacena (Biblioteca Municipal, Arquivos do Museu da Loucura, peridicos e artigos locais, etc.) e em meio eletrnico. CAPTULO I HISTRICO SOBRE A CONTEXTUALIZAO SOCIAL DA LOUCURA EM NVEL MUNDIAL... Davi guardou estas palavras considerando-as consigo mesmo, e teve muito medo de Aquis, rei de Gate. Pelo que se contrafez diante deles, em cujas mos se fingia doido, esgravatava nas paredes. Quando tentaram segur-lo fez-se mais louco rabiscava os portes da cidade e deixava correr saliva pela barba. Ento Aquis disse a seus oficiais: Este homem est louco? Porque o trouxeram para c? Ser que j no tenho bastantes loucos em volta de mim? Porque trazem outro doido para minha prpria casa, a fim de me aborrecer com as suas loucuras? (Velho Testamento Salmo 21).

Os signos de caracterizao da loucura, como diferena diante da normatizao social, so prenunciados desde os tempos mais remotos. Trs enfoques centrais elucidam desde a Antiguidade modos de pensamento que perduram no percurso histrico de conceituao da loucura. Apesar de no se apresentarem a como sistemas ideolgicos estruturados, constituem-se modelos de elaborao conceitual, em um campo especfico de conhecimento. Tratam-se dos enfoques mitolgico-religiosos, psicolgicos e organicistas. Pessotti (1994) efetua uma anlise textual de algumas obras que se debruaram sobre a tentativa de caracterizar a loucura. Descreve que, na Antigidade grega, a ausncia de uma concepo organizada da natureza humana e a predominncia de um modelo fragmentrio de compreenso dos fenmenos induzem nfase na insensatez como marca da loucura, ento concebida em associao com uma ordenao transcendente da conscincia.

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14 A utilizao de textos poticos para esse autor revela-se como um caminho para anlise da natureza humana, visto constiturem-se fontes consistentes sobre o conceito de loucura no perodo antigo. Na poesia de Homero, esse conceito articula-se com a desrazo, com a perda do controle consciente sobre si mesmo, etiologicamente ligado obra de Zeus, de outros deuses ou de entidades subalternas, no plano da divindade. Mediante a interferncia dos deuses sobre o pensamento e ao dos homens, justifica-se a ocorrncia de comportamentos nocivos ou bizarros. A necessidade de uma reordenao na conduta j est implcita nesses textos, considerada tangvel apenas atravs de rituais mgico-religiosos, empreendidos por entidades divinas (PESSOTTI, 1994). Outra concepo importante na Antigidade se presentifica na tragicidade dos textos gregos que retratam a loucura como desequilbrio, destempero, exacerbao (PESSOTTI, 1994, p. 23). A loucura entendida como causada por conflitos advindos de destinos que ultrapassam o mbito da escolha pessoal. Algo que subjuga o sujeito, como uma fatalidade, no circunscrita apenas esfera da divindade, mas tambm como elucidado em alguns textos, interligada presena de um conflito psicolgico entre o impulso e a norma social, como evidenciam as falas de Eurpedes em Hiplito: Ai! Infeliz de mim! Que fiz ento? Onde andar meu senso desgarrado? Enlouqueci vtima da vertigem mandada por um deus! Ai! Infeliz! (DIANO, apud PESSOTTI, 1994, p. 25). Partindo do princpio de oposio da concepo etiolgica da loucura calcada na interferncia divina, Hipocrtes e, anos mais tarde, Galeno, expoentes da medicina grecoromana, reconhecem nos processos orgnicos o domnio sobre o funcionamento da razo e da vontade. Inauguram as teorias organicistas, que, apesar de eximirem o mito, tendo a racionalidade como modelo constitutivo e critrio de verdade, no exterminam a metafsica na elaborao das idias sobre anatomia do organismo, evidente principalmente em Hipcrates. Os tratamentos mdicos na Antigidade so dirigidos aos indivduos abastados e aos que podem se manter prximos dos familiares. Os pobres vagam pelos campos ou mercados das cidades com sobrevivncia assegurada pela caridade pblica (RESENDE, 1997). So utilizados instrumentos penosos e violentos de conteno, como artifcios de interveno mdica, dirigidos principalmente aos loucos concebidos como perigosos e agitados. Algumas

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15 tcnicas mantm-se atuantes sculos mais tarde, ainda que o iderio de sustentao das mesmas tenha evoludo no decorrer das pocas. Embora reconhecendo a existncia adjacente dessas trs vertentes de pensamento atravs de vrios perodos histricos, as explanaes que se seguem primam pela focalizao dos aspectos predominantes que so evidenciados conforme as configuraes sociais dos perodos referenciados. assim que, no perodo da Idade Mdia, o modelo mitolgico da Grcia Antiga reeditado, porm revestido com inovadas formataes. A loucura apreendida no domnio da possesso demonaca agora apenas negativa, patolgica, estigma de imperfeio e culpa... o louco um campo de batalhas entre as foras do bem e do mal (PESSOTTI, 1994, p.32). A apreciao das doenas enquanto fruto de uma demonizao as extrai do campo da competncia mdica, promovendo-se sua contemplao ao plano de especulao teolgica. Com a consolidao do poder do cristianismo, o que est em jogo que as entidades espirituais antes consideradas pags se revertem em demnios, estruturando-se a legitimao da intolerncia religiosa s vivncias dessa ordem e a perseguio s divergncias. Foucault (1975) aponta que a concepo da loucura tomada como objeto de determinados campos de saber (senso comum, mdico, jurdico), contextualizada mediante a preponderncia de idias religiosas e mgicas, desvela-se com a circunscrio desses campos, pelo fenmeno religioso. possvel entrever, por exemplo, no perodo medieval, a solicitude da experincia religiosa ancorada na confirmao do dizer mdico, ento convocado a declarar-se em circunstncias de supostas experincias de possesso. Este perodo evidencia, ento, a centralidade da atmosfera religiosa como via de abarcamento dos fenmenos. O monoplio de poder conferido Igreja em face da fragmentao poltica e a lentido do desenvolvimento cultural, posiciona o estatuto da f como via para o entendimento e compreenso do mundo. Prevalece o obscurantismo diante da supremacia das idias religiosas, justificadas principalmente pela expanso do cristianismo. O predomnio da hierarquia poltica feudal restringe a mobilidade social e delimita a vida nas aldeias e no campo. O louco perambula pelas estradas ou acolhido por famlias. O acolhimento nas famlias, nos conventos ou nos hospitais no o subtrai do horizonte social, mantendo-o presente na vida cotidiana. A interao e assistncia social que ocorrem a se

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16 fundamentam no imperativo de hospitalidade quele vitimado por um castigo divino. Implicitamente o que se pretende a expiao da culpa pessoal e a garantia de obteno da prpria salvao pela prestao de caridade crist. Foucault (1972), no clssico A Histria da Loucura, estabelece um paralelo entre o modelo de excluso que circunscreve a lepra como assero inaugural para a criao de abrigos nos hospitais da Idade Mdia, e a loucura que, sculos mais tarde, ocupar estes lugares. A nfase nos binmios puro/impuro, sadio/doente demonstra as noes conceituais religiosas cotejadas nos signos da diferenciao. A exumao progressiva da ocupao dos leprosos nos hospitais ser prosseguida pelo povoamento destes lugares por outras classes (criminosos, vagabundos, alienados) cujas imagens e valores reiteram o lugar de excluso. A moral como dispositivo determinante dos jogos de excluso evidentes na Idade Mdia suscita uma dupla indagao: qual a salvao possvel para os acometidos (vtimas da excluso) e tambm para os que excluem. O argumento para a segunda questo ancora-se no princpio da hospitalidade e caridade dirigidas aos loucos. Os hospitais tm, neste momento, uma configurao religiosa, estando as prticas correntes em seu interior relacionadas, por excelncia, ao acolhimento, sem fundamentao de finalidades teraputicas cerceadas em quaisquer rotinas de cuidados. Sustentada enquanto ponto de segregao, a admisso e permanncia nestes abrigos delineiam-se como possibilidade de restaurao da razo, apenas atingvel mediante o arrependimento, caminho vivel dos insanos para obter a salvao. A convivncia social com a loucura est condicionada, outrossim, s tentativas de explicao da sua natureza pela f religiosa, produzindo manobras de conduta de aceitao ou punio. As transformaes em larga escala no mundo ocidental que se sucederam no final do perodo medieval, caracterizadas pelo desenvolvimento mais incisivo de atividades artesanais, gerando o acmulo e a intensificao do comrcio enquanto iniciativas de troca produzem profundas alteraes culturais que culminam com a retomada do crescimento de ncleos urbanos. O declnio da ordem econmica e polticas feudais anteriormente dominantes repercutem na constituio de um novo tipo de convvio social cerceado pela incrementao do comrcio e da vida nas cidades.

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17 Os sc. XV e XVI intermedirios entre o perodo medieval e moderno so conhecidos como um momento de ruptura decisiva com a forma hierrquica medieval e a hegemonia da concepo de mundo submetida s leis da Igreja e do pensamento religioso. O Renascimento, assim designado este momento, caracteriza-se pela instaurao de uma nova identidade cultural, em que o humanismo, como finalidade mxima, permeia todo o contexto de criao artstica e filosfica. A valorizao da liberdade e dignidade humanas extingue o aspecto medieval da miseria hominis (a misria do homem) submetendo at os temas religiosos a um outro vis de contemplao. As figuras de santos nas artes adquirem propores humanas e comum a centralidade de temas pagos nas produes artsticas desse perodo. H escritos histricos de uma vasta literatura sobre a loucura. O teatro celebra cenas de demncia e espetculos de dana e canto de loucos. Brant e Bosh anunciam, no terreno literrio e plstico, um intenso movimento cultural que reflete a ascenso da loucura descortinada em sua faceta fugidia, de perplexidade e obscuridade. Foucault (1972) ressalta a pintura do sculo XV como sendo A trgica Loucura do mundo em que as imagens so sobrecarregadas com um excesso de sentido, com fora primitiva de revelao e com poder de fascnio:

no espao da pura viso que a loucura desenvolve seus poderes. Fantasmas e ameaas, puras aparncias do sonho e destino secreto do homem a loucura tem nesses elementos uma fora primitiva de revelao de que o onrico real, de que a delgada superfcie da iluso se abre sobre uma profundeza irrecusvel, e que o brilho instantneo da imagem deixa o mundo s voltas com figuras inquietantes que se eternizam em suas noites... (FOUCAULT, 1972 p. 27).

Bosh retrata em sua clssica obra A Nau dos Loucos a paisagem imaginria da partida de heris em busca de fortuna, seus destinos e sua verdade. Foucault (1972) cita a existncia real das Narrenschiff, barcos que transportam insanos de uma cidade para outra. Estes barcos assombram a imaginao na Renascena, estando a idia de excluso aqui articulada incerteza do lugar do louco. Como o autntico prisioneiro da passagem, no sabe a terra aonde aportar e, no seu desembarque, no sabido de onde vem.

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18 Esta prtica de banimento do louco das cidades, que em geral ocorre aps deteno por autoridades municipais quando ento so confiados a grupos de mercadores ou peregrinos, registrada durante anos como ocorrncia freqente nos portos da Europa. Em confronto com a experincia trgica sobre a loucura nas artes, mencionada acima, presentifica-se a sua colocao no universo do discurso onde se releva a conscincia crtica sobre o homem. A tradio humanista com as figuras em evidncia de Brant e Erasmo posiciona a loucura no campo da linguagem, como objeto dos discursos; e, por mais que ela denuncie a verdade moral do homem, por mais que todos os homens sejam a ela submetidos, confiscada pela reflexo crtica a seu respeito e est sempre a ponto de ser ignorada pela grande natureza (FOUCAULT, 1972). As mltiplas formas de loucura descritas na literatura do incio do sc. XVII prenunciam seu aprisionamento no terreno das significaes. A libertao das vozes da loucura na Renascena delimita-se agora, evidenciando sua articulao com determinadas designaes, que vo desde a associao da loucura com as noes de presuno e complacncia imaginria em Cervantes s referncias de morte, assassinato e paixo em Shakespeare. Foucault (1972) salienta a a intencionalidade de demarcao da loucura, de dominao pela palavra, determinando seu cerceamento, o avano e o triunfo sobre ela. A loucura no tem mais o limite fugidio relevado na Nau dos Loucos. Declara Foucault:

A grande ameaa surgida no horizonte do sc. XV se atenua, os poderes inquietantes que habitavam as pinturas de Bosh perderam sua violncia... A noite na qual ela tinha os olhos fixos e da qual nasciam as formas do impossvel se dissipou (FOUCAULT, 1972, p. 42).

Se no perodo inicial do Renascimento (sc. XV) tangvel loucura uma inquestionvel liberdade imaginria, o mundo ocidental do sc. XVII elucida um panorama de contextualizao da loucura avesso a esta tica. As mudanas na ordem econmica promulgam novos ditames com largas repercusses na esfera sociocultural. Atingido por uma crise que se desenrola com o avano econmico baseado na incrementao da industrializao e do comrcio e na defesa da livre iniciativa, o mundo depara-se com a escassez da moeda, diminuio dos salrios e desemprego.

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19 necessrio extirpar do espao social todos que interferem na organizao das cidades e insinuam desvirtuar o modo de funcionamento produtivo predominante. assim que Foucault (1972) delineia o cunho moral circunscrito nas prticas de internao e excluso da loucura presentes em vrios perodos histricos, mas muito particularmente aqui, sob a gide da fortaleza do racionalismo emergente, denotando o imperativo de outra concepo no relacionamento do homem com aquilo que pode haver de inumano em sua existncia (FOUCAULT, 1972, p. 56). Uma nova hospitalidade acolhe o louco, permeada pela inteno de alcanar um elemento perturbador da ordem do espao social. No possvel ao louco deter direitos verdade, tendo em vista que a hegemonia da razo no pensamento do sculo XVII reconhece o alcance da verdade apenas mediante o afastamento do modelo de razo irrazovel to familiar ao perodo renascentista. Paralelamente, a Reforma Protestante vem compartilhar da concepo moral de laicizao da misria e do reforo da idia de supresso dos incapacitados como meio de remediar as faltas desses contra a marcha ideal do Estado. Ao abordar o que nomeia como a A Grande Internao, Foucault (1972, p. 56) situa a inter-relao das prticas de internamento com as diversas instncias sociais, quer seja a justia, quer seja a igreja e a famlia. Sobressalta a criao em l656, do Hospital Geral, que, longe de ser um estabelecimento mdico, destaca-se como alternativa de fazer frente aos problemas gerados pela emergncia de uma nova tica do trabalho. Urge que sejam retirados de cena todos os inaptos para o labor, produtores de ociosidade, desemprego e condutas antisociais. Algumas casas de internao so implantadas dentro dos grandes leprosrios que, esvaziados aps desativao no perodo medieval, tm sua ocupao agora efetuada por outros personagens, cujo banimento social tem conotaes polticas, religiosas, econmicas e morais. Nos estudos de Ornellas (1997) sobre as prticas mdicas de confinamento, denunciado o papel de correo e punio presente na instncia de internao deste perodo, elucidando sua preponderncia enquanto instituio moral (ORNELLAS, 1997, p. 91): A internao no sc. XVII corresponde inveno de um modo particular de perceber, em conjunto com a pobreza, a incapacidade para o trabalho e a impossibilidade de insero no meio social.

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20 O internamento como recurso de segregao homogeneizante para ociosos, libertinos, mendigos e alienados ingressa a loucura no horizonte cultural da pobreza, da impossibilidade de agrupar-se socialmente e na inabilidade para o trabalho. O poder tico da comunidade de trabalho a partir deste perodo histrico deprecia todas as formas de inutilidade social, especialmente aquelas ligadas ociosidade. Declara Foucault (1972, p. 73): O louco atravessa as fronteiras da ordem burguesa, alienando-se fora dos limites sacros de sua tica. Cabe ressaltar o papel correcional que o internamento comporta, no se restringindo ao objetivo de isolamento social daqueles que no tm como ou no podem trabalhar. Tratase de um empreendimento que visa ocupar, com o trabalho nos hospitais, as pessoas que so internadas, o que demonstra uma manobra econmica para o poder pblico nos tempos de altos salrios dispondo de mo-de-obra barata. A iniciativa comporta, portanto, a supresso da mendicncia, o saneamento do desemprego e o estmulo ao desenvolvimento de atividades manufatureiras. O argumento de aproveitamento dos hospitais gerais como fonte de produo e de ao sobre o mercado da mo-de-obra e como tentativa de reabsoro do desemprego no tardou a mostrar sua ineficcia, inclusive com a evidncia das altas despesas com a internao, incompatvel com a baixa dos preos dos produtos fabricados para o mercado. O que esta prtica pde elucidar que o internamento animado por questes de cunho econmico se justape na interface da moralidade, donde o encargo de corrigir, castigar e tornar visvel a falha moral. O que particulariza o louco frente aos demais internos no hospital geral que ocorre, por via de regra, uma distino que o minoriza em face de sua inadequao aos ritmos da coletividade e ao exerccio das atividades as quais deve se submeter. Sobre o lugar e o sentido social da loucura na poca pr-moderna, alguns autores divergem de Foucault quanto ao aspecto do impacto de uma nova lgica de trabalho sobre as relaes sociais. Para Gauchet e Swain (apud BEZERRA & AMARANTE, 1992), o louco passa a causar incmodo porque se transforma num semelhante, algum com quem preciso comunicar-se, e no necessariamente por representar a encarnao da alteridade radical, conforme delineado o argumento central da tese de Foucault.

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21 Estes autores divergem de Foucault tambm quanto considerao deste sobre a existncia de uma maior tolerncia social ao louco demonstrada nas sociedades tradicionais como fruto de maior respeito diferena e singularidade. Para estes autores, o contexto extremamente hierrquico e no igualitrio destas sociedades posiciona a diferena no tanto como um problema. possvel uma tolerncia, desde que a convivncia e a familiaridade com a loucura estejam conjugadas com a delimitao das formas de comunicar-se com ela. assim que se justificam os contatos, em geral marcados por forte conotao de atribuio de discriminao aos acometidos pelo mal, como nas situaes tpicas de brincadeiras (s vezes, agressivas) dirigidas aos loucos, ou em visitaes nos asilos como maneira de entretenimento, etc. (BEZERRA & AMARANTE, 1992). Apesar das divergncias dos variados enfoques sobre a determinao histrica da loucura, existe uma consonncia sobre a considerao do papel fundamental do princpio universal da razo como instituidor do estatuto de excluso social do louco. A tese foucaultiana sobreleva o aspecto de desapropriao da loucura face ao referencial da razo, donde o destino de sua negatividade histrica. Removido do lugar de personagem divino (possudo), ao qual lhe referencia no mundo medieval; destitudo do estatuto permeado pelas transcendncias imaginrias no Renascimento; submetido s regras morais e ao exerccio de soberania da verdade norteada pela razo; posicionado ao lado da insensatez e da incapacidade, o louco enclausura-se. As internaes arbitrrias e indiscriminadas, das quais eram vtimas os deserdados de toda sorte e os loucos, so denunciadas com veemncia no final do sc. XVIII. Essa poca caracterizada por grandes transformaes polticas, econmicas e sociais na Europa e no mundo, propagadas face expanso dos princpios da Revoluo Francesa, das idias do Iluminismo e da declarao dos direitos humanos nos EUA. So levantadas e redimensionadas questes sobre o contexto socioeconmico anteriormente predominante: o desemprego e a pobreza so repensados; a prtica do internamento extensivo e indiscriminado concebida como um obstculo nova concepo de cidadania e de direito ao trabalho, que, por sua vez, constituem veculos para um pretenso revigoramento do mercado da mo-de-obra, com fins de gerar uma nova tica na economia industrial. Aponta Castel (1978, p. 67) para a nfase nesse momento, idia de que a

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22 populao faz parte da riqueza das naes, o que induz concepo sobre as prticas de internamento arbitrrias como um crime econmico e atentado contra a humanidade. Salienta Foucault (1975, p. 80):

Denncia poltica das seqestraes arbitrrias; crtica econmica das fundaes e da forma tradicional da assistncia; pavor popular por estas casas..., que adquirem o valor de focos do mal. Todo mundo reclama a abolio do internamento.

O liberalismo, bem como as idias do Iluminismo predominantes nesse perodo, proclama a necessidade de conciliao dos direitos individuais com as exigncias da vida social. O homem entendido como uma conscincia autnoma deve ser capaz de ter domnio sobre a realidade externa e interna. Guiado pela razo e no pela fora imediatista dos impulsos, o homem livre deve enquadrar-se no interjogo das normas coletivas. A apologia que impera a da liberdade de circulao dos bens e dos homens submetida verticalmente ao rigor contratual da troca mercantil, o que exige a existncia de regulaes que refletem como um contrapeso aos princpios fundantes do liberalismo. Frente a este panorama, o louco, pensado fora dos limites do internamento, exibe particularidades no acesso promulgada liberdade e a valorizao da livre iniciativa. A importncia social atribuda aos aspectos externalizados da loucura, detectveis nos contatos, decodificados como aes de irracionalidade e descontrole, d ao louco o estatuto de irresponsabilidade sobre os seus atos, posicionando-o na esfera da periculosidade face ao temor social de que suas manifestaes extrapolem o mbito do domnio na famlia e na comunidade. Justifica-se a necessidade de sua conteno e da entrada de mecanismos especficos de regulamentao. Os riscos que comportam a loucura, principalmente por suscitar poderes inquietantes so colocados em evidncia nesse perodo, quando remontada a possibilidade de expandir as relaes de proximidade social com os seus personagens (ORNELLAS, 1997, p. 96). O antigo regime de enclausuramento, que abarcava os vagabundos, mendigos, desviantes e insanos, sofre agora restries em seu processo de inciso, repercutindo no sentido de uma reduo sensvel da populao-alvo. Castel (1978) ressalta as contradies

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23 sociais presentes aqui, que no tardam em desmentir o mito de uma desinstitucionalizao total. Na verdade, so identificadas categorias notadamente demarcadas pela denominao de excluso ento em vigor. Trata-se dos portadores de doenas venreas, os criminosos e os insanos, estes sim considerados os nicos passveis de seqestrao obrigatria (CASTEL, 1978, p. 74). O crculo do enclausuramento define-se para aqueles que devem ser retirados da sociedade pelo perigo que representam face conjuntura em questo. Fundamentadas no regime liberal, as relaes sociais caminham no sentido do abandono das formas hierrquicas, no florescimento do comrcio, e, conseqentemente, na predominncia dos acordos contratuais. O objetivo mercantil nitidamente identificvel e o impulso especializao progressiva do trabalho, conforme delineia Neiva (1996), impele ao contratualismo. A sociedade passa a caracterizar-se pela existncia de elos e obrigaes atravessados por papis no homogneos entre os atores. O grupo social potencialmente segmentado, com funes e interesses diversos, instaura a necessidade contnua de manuteno e controle da ordem. A mcula representada pelo louco na sociedade contratual evidencia-se em vrios aspectos: ele no pode ser objeto de sanes; no sujeito de direitos; inapto para o trabalho; e no se insere no circuito de trocas livres, estando, pois, afastado do processo de produo e circulao de mercadorias. A no-compactuao, e ainda a ejeo do jogo social, deflagrado pela estrutura contratual do regime liberal, coloca a loucura em nvel de identificao e proximidade com a criminalidade, impelindo a exigncia de um tratamento e um espao especial para ambas. Afirma Castel (1978, p. 76):

O que d conta do sincretismo (que rene categorias heterogneas) o carter demasiado excludente do medo suscitado por esses rejeitados. A racionalidade expressiva triunfar dissociando, de maneira sutil, certos tipos de medo e associando-lhes tecnologias especficas para exorciz-los.

A ordenao do louco efetivada por cdigos distintos daqueles que so formulados para os transgressores voluntrios das leis. Sua circunscrio demandada mediante constituio de um espao onde se legitimam critrios tcnico-cientficos elaborados na perspectiva de sua articulao com um dispositivo completo de ajuda. A Lei de 1.838 delega

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24 sobre a assistncia aos alienados, instaurando a consolidao de um novo espao, especialmente para os loucos. Opera-se, ento, uma reforma no modelo hospitalar (com base nas implicaes morais da loucura), com fins de promover a estruturao de uma tcnica para atendimento e saneamento diante da constatao do dano social que representa a loucura. A instituio totalitria (instncia de internamento) deve ser renovada e colocada em harmonia com o novo ambiente moral da sociedade burguesa (CASTEL, 1978, p. 77). Est preparado o caminho de exposio da loucura observao mdica a partir de uma tecnologia cuja base, segundo Foucault (1978), est calcada em uma poltica com prevalncia de mecanismos disciplinares. A disciplinarizao do espao hospitalar insere a tica da vigilncia, do exame e da classificao como forma de intermediar o espao confuso do hospital, promovendo sua medicalizao. Realiza-se a convocao do mdico ao mundo do internamento, configurando-se a criao do asilo, espao especfico onde a loucura reduzida ao saber mdico e ao seu domnio prtico. Conforme situa Foucault (1978), o hospital (asilo) do sc. XVIII cria condies, pelo isolamento da doena que produz, para que a verdade do mal possa explodir, dirigindo-se para a descoberta da essncia da doena mental, evitando que seja mascarada e confundida. Isso posiciona o asilo a servio de um confronto direto com a loucura. Foucault (1978, p. 122) afirma: se a vontade doente podia permanecer inatingvel, revelar seu mal pela oposio vontade reta do mdico. Assim, no internamento, em cumplicidade com o despertar de um modelo mdico, o desatino contido e oferecido em espetculo, sem perigo para os espectadores (FOUCAULT, 1972, p. 333). As leituras crticas sobre o processo histrico de inaugurao da cincia mdica da loucura salientam que, longe de uma inteno filantrpica ou humanitria, o asilo especial para os loucos (que atende a reivindicao de permanncia e reforma do internamento) e a insero do saber mdico para deles dar conta emergem como necessidade de proteo social contra o temor e os riscos que a loucura representa. A convocao da medicina ao espao do internamento, partindo do iderio de reformulao da assistncia, permite a projeo, para o seio do asilo, do carter mdico da loucura a partir de sua ascenso enquanto estatuto de objeto face ao olhar deste saber. Uma atmosfera de objetividade construda no espao do asilo, em que a viso positivista vem abarcar a loucura, por meio de um conhecimento discursivo (ORNELLAS, 1977, p. 94).

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25 Apoiada pela concepo cientfica e positiva, a loucura, enquanto objeto identificado s manifestaes do sujeito dito alienado, reconhecida como pertencente esfera da observao e da classificao. Esses fundamentos aliceram o nascimento da psiquiatria que se organiza mediante a nfase no exame dos sinais e sintomas, vias de acesso verdade da doena tal como ela (FOUCAULT, 1978, p. 118). A psiquiatria tem, portanto, seu nascimento e sua histria ligados constituio do Estado Moderno. A partir da Lei de 1.838, fica regulamentado o tratamento e o estatuto do alienado, com legalizao do estabelecimento do asilo enquanto lugar legtimo para o desenvolvimento das prticas de cuidados mdicos. Castel (1978) salienta que, apesar de a medicina haver efetuado intervenes no cenrio da loucura, anterior ao final do Antigo Regime (conforme revelam tratados mdicos histricos), no final do sc. XVIII, no momento inaugural da forma-asilo, que a psiquiatria nascente vincula seu percurso ao da instituio totalitria1. A conjugao de razes tcnicas e polticas determina a importncia do acoplamento da medicina s prticas de cuidado em regime asilar. O que est em andamento a constituio de um novo tipo de poder, com a evoluo da tecnologia e da prtica hospitalar embasadas na muralha do asilo. As questes sociais despertadas pela loucura frente queda do Antigo Regime justificam a agilizao do processo de medicalizao, em que reconhecido ao mdico o papel de intervir, com um saber especial, em um espao determinado, sobre a loucura. O desaparecimento da instncia da administrao real predominante no Antigo Regime convoca novos agentes para herana e preenchimento do vazio deixado pela derrocada do poder poltico at ento tido como necessrio para o controle de comportamentos fora da conformidade. Se, no regime monrquico, as detenes e seqestraes evidenciavam o aspecto poltico de exerccio do poder frente aos contraventores da ordem, agora em nome de uma medida humana, calcada na natureza da doena, que o isolamento se fundamenta. Diante do desafio imposto pela loucura sociedade e da entrada da medicina nesse processo, quer seja pela reafirmao da credibilidade aos princpios da sociedade ou ao equilbrio dos poderes, desenrola-se aqui o que Castel (1978, p. 57) nomeia como A Idade de Ouro da Psiquiatria (perodo do Alienismo). Neste momento, o mdico convocado para intervir nas questes sociais levantadas pela loucura.1

variante do termo utilizado por Goffman (1974)

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26 A psiquiatrizao da desordem representada pelas manifestaes desviantes que comportam a doena mental no obedece estritamente a um esquema terico-cientfico, estando antes vinculada institucionalizao de uma ordem social particular. A celebrada ao de Pinel de apropriao da loucura e sua ascenso ao estatuto de doena mental, no incio do sculo XIX, fornecem, conforme aponta Albuquerque (1978, p. 18), o seu recobrimento pelo manto do conhecimento cientfico positivo, cujo encargo inclui o controle tico e moral da exceo irracional da irregularidade e do patos disparatado da insubmisso. Foucault (1975) cita que as tcnicas utilizadas desde a Antigidade e depois nos hospitais dos sculos XVII e XVIII so aplicadas por Pinel na Frana em um contexto enfaticamente repressivo e moral. A utilizao de tcnicas de abordagem fsica, cuja caracterstica o emprego de recursos destinados a agir sobre as funes orgnicas que se supunham afetadas, em geral constitui-se em meio violento que, revestido enquanto mtodo do tratamento moral de Pinel, objetiva distrair a mente dos obsessionados ou delirantes cuja finalidade combater a loucura com provocao de uma afeco fsica (PESSOTTI, 1999, p. 222). A utilizao de meios fsicos ganha a justificativa no tratamento moral, por incidir, paralelamente, aplicao desses meios, transmisso verbal, efetuada pela figura do mdico, de obrigatoriedade de cumprimento de regras de conduta adequadas para o paciente. Pretende-se promover a modificao das idias a partir das experincias cognitivas ou sensoriais, produzidas por alguma estimulao fsica (PESSOTTI, 1999, p. 228). possvel entrever quanto obscura a relao entre a teraputica aplicada e o distrbio orgnico que se pretende atingir. A ducha fria outrora utilizada para refrescar os espritos aplicada diante de estados de excitao ou insubordinao do doente, como medida de punio. O mesmo ocorre com a gaiola rolante, cuja intensidade do movimento infligido tanto mais intensa quanto mais agitado se encontra o doente no momento da interveno. O uso da mquina rotatria retomado de modo mais incisivo que nos sculos anteriores, com nfase no castigo que o incita. Assinala Foucault (1975, p. 83): a cada manifestao delirante, faz-se girar o doente at desmaiar, se ele no se arrependeu. O asilo como espao das snteses morais encontra na psiquiatria o alicerce para a consolidao de um regime de precauo social em seu interior, associado e ao mesmo tempo

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27 confundido com aes de estratgia mdica. Os reformadores do internamento tm como representantes juntamente com Pinel, Tuke, na Inglaterra, Wagnitz e Riel na Alemanha. Reconhecidos como personagens fundadores de uma cincia positiva no campo da psiquiatria, so contiguamente alvo de indagaes na esfera das abordagens crtico-sociais sobre a estruturao dos saberes disciplinares enquanto formas de apropriao, exerccio do poder e produo de verdade no mbito institucional. Foucault (1975) salienta que o citado movimento de reforma do internamento e inaugurao da cincia mdica da loucura, aps promover a derrocada de algumas ligaes materiais que reprimiam fisicamente os doentes, aps haver libertado os acorrentados, na apologia de uma obra ancestral de separao dos loucos dos demais condenados e criminosos, reconstitui em torno deles um cerceamento moral cuja apresentao de uma instncia perptua de julgamento. Declara Foucault:

o louco tinha que ser vigiado nos seus gestos, rebaixado nas suas pretenses, contradito no seu delrio, ridicularizado nos seus erros... O louco minorizado encontra-se incontestavelmente aparentado com a criana, e a loucura, culpabilizada, acha-se originalmente ligada ao erro (FOUCAULT, 1975, p. 82).

Castel (1978) descreve que aquilo que alguns consideram como a realizao mxima de libertao dos alienados, por Pinel, constitui antes uma ao prtica de reordenamento do espao hospitalar em que o reagrupamento da doena pela diversificao dos sintomas produz a introduo da racionalidade com fins de promover a definio de doena. Baseado em uma relao especfica de poder entre o mdico e o doente, o tratamento moral, como conhecido o mtodo de Pinel, preconiza alguns critrios mximos de configurao de sua prtica: reforo do isolamento dos insanos com fins de promover a teraputica adequada; coero e imposio da ordem no regime asilar; implantao da relao de autoridade no exerccio do poder em que o mdico a lei viva do asilo e o asilo o mundo construdo imagem da racionalidade que ele encarna (CASTEL, 1978, p. 88). O asilo e a psiquiatria nascente inscrevem, portanto, uma forma institucional claramente identificvel como herdeira do absolutismo poltico. A relao mdico-paciente estrutura-se pelo o imperativo de assemelhamento do paciente ao mdico, constituindo-se esse ltimo o componente soberano da dade, sobressalente no exerccio das prticas de

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28 assistncia loucura. Retomando a questo sobre o contratualismo abordada anteriormente, e sobre a extraterritorialidade do louco nesse regime possvel entrever que a verticalidade da relao mdico-doente na formatao acima citada constitui o modelo de insero contratual possvel para o louco numa sociedade liberal. Os valores racionais posicionam nessa relao, o poder do mdico, como artefato de dominao, ancorado na crena na inalienao e na reconquista da autonomia racional do louco a exemplo da figura do mdico (CASTEL, 1978). Foucault (1972) concebe que a proposio de racionalidade loucura e a anulao de sua incomensurabilidade, utilizando dos dispositivos de coero e segregao asilar, so definidoras de seu estatuto de objeto. Nessa experincia emergente sobre a loucura asilada, o que ocorre que a loucura aliena-se de si mesma. Ao propor a retirada das correntes dos alienados presos ao mundo da criminalidade, para Foucault (1972), Pinel abre-lhes o domnio de uma liberdade rumo verificao e ao impedimento da ocultao dos seus furores, perseguies, desatinos. O que est em questo, conforme explicita Foucault (1972, p. 392), o dilaceramento na experincia da loucura dilaceramento que separa a loucura considerada por nossa cincia como doena mental daquilo que ela pode entregar de si mesma no espao que nossa cultura a alienou. O enfraquecimento do Alienismo a partir de 1860 deixa como herana o predomnio do sistema asilar, cujas caractersticas, processo de estruturao e efeitos foram alvos de importantes estudos nos campos da sociologia, antropologia e psiquiatria social. Cabe aqui uma breve descrio do que se entende como conseqncias sociais dessa prtica, pretendendo-se, aps, retomar a explanao sobre as articulaes histrico-sociais acerca da loucura. Goffman (1974, p. 112) descreve o termo carreira moral designando o processo que se inicia a partir da vivncia da hospitalizao. Esse processo envolve tanto a imagem do eu e a segurana nos contatos sociais como as relaes jurdicas e um estilo de vida. A produo de uma seqncia de mudanas no esquema de imagens para julgamento de situaes de vida do indivduo submetido internao psiquitrica traduz-se em uma experincia de expropriao em que notria a perda das relaes sociais, o isolamento e a estigmatizao. A dissociao do mundo externo e a induo da apropriao de novos papis subjugados esfera institucional incapacitam mais intensamente o indivduo retomada dos

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29 contatos com o mundo exterior, alm de haver o reforo do prprio quadro que culminou o adoecimento psquico. A realidade da dinmica asilar porta em si particularidades que apontam para sua ineficincia enquanto espao teraputico. A perda de contato com a realidade externa; o cio forado; a submisso a atitudes autoritrias de mdicos e do restante do pessoal tcnico; perda de amigos e propriedades; sedao medicamentosa; condies do meio ambiente nos pavilhes e enfermarias; o ambiente em sua forma de constituio com os muros altos, as proibies de sada, a impossibilidade de circulao de falas, desmoralizao do discurso da desrazo, a perda de propriedades e de perspectivas fora da instituio, apontam para o lugar da incapacitao social que a experincia do asilamento produz. Aponta Goffman (1974, p. 140):

Se no mundo externo o indivduo pode manter objetos que ligam aos sentimentos do eu seu corpo, suas aes imediatas, seus pensamentos e alguns bens nas instituies totais, esses territrios do eu so violados; a fronteira que o indivduo estabelece entre seu ser e o ambiente invadida e as encarnaes do eu so profanadas.

Em 1860, a Idade de Ouro da psiquiatria alvo de um torrencial nmero de questionamentos sobre o seu enfoque prioritariamente asilar. As crticas s quais o alienismo recebe dizem respeito exatamente nfase exacerbada nos procedimentos concebidos como teraputicos e norteados por medidas violentas como o eletrochoque, as drogas e cirurgias ministrados no interior dos asilos, ao isolamento, ao abandono, e ao nmero exagerado de internaes e mortalidade nos asilos, etc. As denncias incidem sobre o comprometimento ideolgico-poltico das instituies com o sistema formal de poder predominante na sociedade (ORNELLAS, 1997). Apesar da vitria do modelo asilar como sucessor do alienismo, o incio do Sculo XX marcado por transformaes sociais profundas que iro repercutir diretamente no mbito dos sistemas de prestao de servios de sade. A utilizao mais incisiva de procedimentos cientficos no campo da medicina, a reorganizao das prticas mdicas com fins de aumento da eficincia e ampliao dos servios oferecidos coletividade denotam a articulao dos sistemas de sade com o modo de produo capitalista.

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30 Segundo Donnangelo (1976, p. 20), a incrementao do desenvolvimento da tecnologia e do capital repercute em transformaes na prestao e produo de servios, ocorrendo: a superao da clnica como meio bsico de trabalho... e [...] a absoro progressiva da medicina artesanal por novas modalidades de organizao da produo. O hospital fomentado no modo de produo capitalista tende ento a configurar-se como unidade produtiva de servios, de curas, de tratamentos (ORNELLAS, 1997, p. 152). Torna-se incompatvel a concentrao continuada de doentes em seu interior, se teraputica no se apresentar enquanto dispositivo eficaz e gil. A manuteno dos doentes no regime de internao de modo avesso a essa tica representa, assim, a atribuio de maiores custos, apenas passveis de serem assumidos mediante a interveno do Estado (ORNELLAS, 1997). Comeam a incidir crticas ao modelo de excluso psiquitrica balizadas pelas mudanas sociais em evidncia nesse perodo, cujos contornos so vociferados pela propagao do neoliberalismo, que, repercutindo no mbito dos servios mdicos psiquitricos, passa a bradar pela poltica de reduo de leitos hospitalares, desativao dos modelos de internao prolongada e criao de novas propostas de assistncia (ORNELLAS, 1996). J em 1860, Morel na Frana, evoca a pertinncia de pensar intervenes do ponto de vista higinico e profiltico(CASTEL, 1978, p. 71) constitudas enquanto proposta de ruptura com uma perspectiva estritamente curativa para os problemas mentais. Se as intervenes ditas curativas perfilam-se no contexto limitado do hospital psiquitrico, e se essas prticas se contrapem ao modelo social vigente, h que incidir, em contrapartida (em coadunao com as propostas de abarcamento dos problemas de sade em esferas mais amplas), aes de cunho higinico e sanitrio, no restritas ao tratamento da doena, mas extensivas s condies sociais a elas relacionadas. A partir de 1910, desenvolve-se nos EUA o Movimento de Higiene Mental, com difuso em vrios pases do ocidente cujo objetivo elevar o nvel de cuidados no que concerne sade mental da populao. Deve-se preconizar a ao sobre os problemas sociais e econmicos com fins de garantir o banimento da misria e a profilaxia social. Abre-se o campo para a transferncia da problemtica da doena mental para a sade mental, modelo que se delineia em vigor nos dias atuais.

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31 As crticas mais enfticas s prticas de asilamento psiquitrico sobrevm, entretanto, com maior veemncia, a partir da Segunda Guerra Mundial em vrios pases do ocidente, repercutindo na constituio de movimentos reformistas efetivos de denncia ao modelo nosocomial excludente. Um foco importante de questionamento nesse momento consiste na relao de poder do mdico, e a representao de sua figura enquanto encarne da produo da verdade da doena no espao hospitalar. A tentativa de deslocamento do poder mdico (e no sua anulao) em nome de um saber mais exato, com eficcia e prudncia ocorre em dois movimentos principais que Foucault (1986, p. 124) nomeia de despsiquiatrizao. O primeiro movimento se articula pela tentativa de delimitao e reduo da doena sua realidade restrita, ou seja, aos signos necessrios e suficientes para que possa ser diagnosticada como doena mental... e a incluso de tcnicas indispensveis para que as manifestaes desapaream (FOUCAULT, 1986, p. 124). O movimento surgido com Babinski norteia-se na inteno de articular diretamente diagnstico e teraputica, evitando produzir a verdade da doena, conforme fora predominante at ento, mediante as formas de atuao centralizadas na figura do mdico. Foucault (1986) identifica as prticas da psiquiatria farmacolgica e psicocirurgia como expoentes desse suposto movimento de despsiquiatrizao. Outro movimento tambm assim designado pelo autor diz respeito prtica psicanaltica nesse perodo em fase de maior expanso. Avessa continncia ao espao do asilo, apresenta-se de maneira diametralmente inversa ao modelo anterior, por atuar com fins de viabilizar a possibilidade de tornar a produo da loucura em sua verdade, o mais extensa possvel. Foucault (1986, p. 125) salienta que as normas presentes no processo (associao livre, uso do div, transferncia enquanto substrato para a cura, pagamento dos honorrios, etc.) posicionam a psicanlise como um movimento de despsiquiatrizao incisivo no sentido de ruptura com as conjecturas de compreenso da loucura e com o modo de cristalizao de poder at ento vigente. A seu ver, no h, entretanto, anulao do poder do mdico e sim seu deslocamento, no mais facilmente detectvel, tendo em vista a sua retirada para o silncio e a invisibilidade do analista. Qualquer que seja o enfoque sobre estes movimentos, se considerados como efetivamente reformistas ou meras repeties no que concerne relao de poder

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32 predominante nas prticas psiquitricas, a partir das formulaes tericas e clnicas sobre a doena mental que estes fomentam que surgem, nesse perodo, formas de compreenso e tratamento, para alm do modelo psiquitrico asilar de excluso e cronificao. O levantamento histrico sobre a loucura aqui efetuado salienta a notria contingncia de sua representao com os processos econmicos, sociais, e as questes ideolgicas predominantes nos perodos referidos. A segregao e a excluso como formas de apresentao da loucura remontam suas origens na Antigidade e na Idade Mdia e consolidam-se no mbito religioso, jurdico, mdico. Uma leitura mais atenciosa da Histria da Loucura de Foucault (1972) mostra que o autor utiliza o termo desrazo em acepes diferentes. Ao tratar a desrazo clssica, Foucault a toma enquanto um produto do Grande Enclausuramento e que pode ser entendida sobre o prisma dos aspectos mencionados acima, ou seja, relacionada com a excluso social. Refere-se, por outro lado, a uma desrazo produtiva inspirada na experincia trgica da loucura no Renascimento. As figuras lricas dos poetas que aparecem no decorrer de seu texto revelam os aspectos escatolgico e sagrado desta forma de desrazo, assim apreendidas naquele momento histrico. Remetida ao processo social, a atribuio da designao de patologia (que concerne primeira forma de abordagem) vem configurar-se pela diferenciao e dissociao do indivduo do sistema simblico do grupo ao qual pertence. Isso culmina na organizao de categorias diferenciais, que, conforme aponta Lvi-Strauss (1994, p. 9), admitem uma classificao [...] e as formas predominantes no so as mesmas segundo as sociedades e segundo tal ou qual momento da histria de uma mesma sociedade. A interatividade cultural ir atribuir significao ao problema mental que se referencia sempre como uma experincia intermediada pelos dispositivos sociais (linguagem, normas, instituies). Se, por um lado, as elaboraes antropolgicas elucidam o processo de categorizao das diferenas que so reveladores da estrutura social e histrica, por outro, as prticas institucionais psiquitricas e psicolgicas incidem como via de legitimao e normatizao destas diferenas, donde seu carter veiculador dos impasses e contradies inerentes a uma sociedade. Sobre o processo histrico mundial, sabe-se que o movimento de crtica ao modelo psiquitrico tradicional intensifica-se a partir da Segunda Guerra Mundial. A criao dos

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33 Ambulatrios de Sade Mental tem, nesse perodo, o objetivo de substituio da assistncia hospitalar por dispositivos de interveno mais operantes e menos excludentes. A terminologia Sade Mental herda as peculiaridades e objetivos do movimento de higiene mental citado anteriormente. O iderio de sustentao desta prtica a ampliao dos critrios de admisso e participao nos servios de sade em regime aberto, possibilitando o abarcamento, em maior escala, de uma rede expansiva de queixas psi. O carter profiltico expande-se para alm dos contornos dos quadros de doena detectveis pelo arcabouo tcnico-cientfico perfilado tradicionalmente. Afinada lgica do neoliberalismo emergente, a prtica ambulatorial tem sua configurao marcada pelos novos rumos do mundo capitalista. Encontra-se articulada ao lema da vigilncia e promoo da sade mediante apaziguamento das queixas ou erradicao efetiva da doena, passveis de serem legisladas, medicalizadas, psicologizadas e regulamentadas tambm agora pelo exerccio das prticas ambulatoriais. Essas devem ser suficientemente amplas e eficazes para sanar os males da civilizao que comeam a bater s portas dos servios de sade. A passagem do embate tcnico sobre doena deslocado para o ideal de promoo da sade mental evidencia uma impreciso imediata dos termos em questo. Torna visvel um desvirtuamento proposital dos projetos dirigidos especialmente s patologias claramente identificveis (psicoses e neuroses graves), sob a tica da proposta de melhoria crescente das condies de vida da populao em geral. A nfase nas intervenes comunitrias e a introduo da idia de que os danos psquicos pessoais podem ser provocados pelos efeitos da expanso do sistema econmico induzem produo de aes com fins de sanear os males do processo cultural (depresso, pnico, ansiedade, distrbios de comportamento, etc.) e promover a ascenso de todos a um nvel de vida mais saudvel. A conjugao combinada do binmio sade/doena revela, entretanto, que a circunscrio conjunta dos termos, como artifcio de viabilizao de abrangncia e resolutividade, no exime os aspectos de marginalizao e cronicidade que historicamente fomentaram os mecanismos de institucionalizao manicomial da doena mental. assim que se justifica a elaborao dos movimentos de reformulao nos sistemas de sade, de suporte doena mental, mais especficos e diretos, com interveno e alcance direcionados s suas intempries e peculiaridades (crises, reagudizaes, altas, etc.).

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34 O surgimento de algumas modalidades alternativas de tratamento identificado no perodo ps-guerra enquanto via para a reorganizao da assistncia doena mental. So elas: psicoterapia institucional, comunidade teraputica, psiquiatria preventiva e de setor. So reconhecidas trs experincias de destaque no processo de reforma descritas aqui em linhas gerais: a Psiquiatria de Setor Francesa, a Medicina Comunitria Americana e a Desinstitucionalizao Italiana. A dicotomia das aes no nvel do pblico/privado sempre esteve em evidncia nas iniciativas de reformulao dos sistemas de ateno doena mental. A mensurao dos seus resultados defronta-se continuamente com os impasses no mbito do investimento pblico sobre os projetos ou nos alcances e nos interesses em jogo no setor privado, aspectos condicionados articulao poltico-econmica das sociedades em que as prticas esto inseridas. A Psiquiatria de Setor Francesa advm como uma tentativa de ruptura com a hegemonia do modelo manicomial, introduzindo elementos como ambulatrios, sistemas de plantes para emergncia, hospital-dia, hospital-noite, apartamento teraputico, alm do prprio hospital psiquitrico ento inserido na lgica de funcionamento da nova rede de servios. Ressalta-se o trabalho de uma equipe de profissionais implantada na comunidade e incumbida de prestar um conjunto completo de servios desde a preveno at a reabilitao, incluindo o exerccio teraputico. Cavalcanti (1992, p. 101) sobressalta a o aspecto da assistncia continuada, completa e especfica ao doente mental cujo objetivo assistncia de forma total e por toda vida [...] sem cair no risco da segregao e do isolamento. A prioridade manuteno do paciente na famlia, evitando o afastamento dos vnculos com a comunidade, e o acompanhamento teraputico constante so os eixos desse movimento, entendido como um avano na forma de lidar com a loucura. Seu mrito concebido pela concepo de assistncia doena mais aperfeioada, com espao para a compreenso psicopatolgica detalhada e principalmente por introduzir o problema da loucura no social (CAVALCANTI, 1992). As propostas da Psiquiatria de Setor tm declinado nos ltimos anos principalmente em funo da expanso dos setores privados e da poltica neoliberal, tornando invivel a

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35 idia de uma psiquiatria pblica com assistncia integral, contnua e individualizada. Os princpios de ordem administrativa e econmica que impulsionaram a reforma francesa (expectativa de reduo do nmero de leitos hospitalares e de menores gastos com assistncia extra-hospitalar) no se concretizaram na prtica, o que tem tornado vulnervel sua sustentao. Cavalcanti (1996, p. 112) descreve que, nos EUA, a Community Mental Health an Retardation Act, proposta econmica de atribuio de fundos aos estados para construo de Centros de Sade Mental Comunitrios Completos ocorre a partir de interveno federal do Presidente Kennedy em 1963. Os centros comunitrios estruturam-se enquanto dispositivos institucionais com a finalidade de substituir a antiga poltica de isolamento manicomial e promover uma nova concepo de sade mental. Ao lado dos projetos ancorados em uma formao psicanaltica, posicionam-se modelos de trabalho diversos como A interveno na crise de Lindeman, cuja finalidade responder prontamente determinada situao patognica como mecanismo de evitar formas mais enrgicas de interveno e institucionalizao. Destaca-se tambm a proposta de interveno social de Caplan, em que o psiquiatra atua junto com outros agentes sociais diretamente na comunidade, com fins preventivos. Ornellas (1997) toma de emprstimo os estudos de Aviram et al. (1973) e reafirma o carter iminentemente poltico no modelo de reforma da assistncia psiquitrica americana. Assinala que as desarticulaes na esfera social corroboram para a dissonncia entre os projetos desenvolvidos e o nvel de insero real dos pacientes psiquitricos na comunidade. Apesar de os pacientes no se encontrarem segregados ou confinados [...] no so aceitos [...] a excluso no se define com fenmeno limitado ao confinamento fsico, mas est presente nas relaes das pessoas entre si e entre estas e as comunidades (ORNELLAS, 1997, p. 176). Nestes dois pases, as transformaes suscitadas pelo movimento de reforma psiquitrica, embora tenham alcanado importante reconhecimento do seu carter progressista mediante a criao de novos campos de interveno na prtica psiquitrica, evidenciam entraves que podem ser entendidos primeiramente face aos obstculos externos traduzidos nos impasses socioeconmicos e na no-implicao do Estado como via de

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36 sustentao das polticas pblicas de sade mental (corte de verbas, presses administrativas impedindo a implementao integral dos projetos, contra investimento em modelos tradicionais). Castel (1986) salienta que, para alm desses aspectos, devem ser enfocados os limites na renovao terica como notrios obstculos para a reformulao no sistema psiquitrico. Menciona o aprisionamento ao modelo de atuao mdica, de cunho centralizador que, apesar de ter mobilizado abordagens tericas novas e flexibilizado a concepo do distrbio psquico, mantm um sistema de referncia prioritariamente mdico. Este autor sobressalta tambm os pesos institucionais como fonte de entrave para transformaes reais, referindose s dificuldades de instrumentalizao de uma nova poltica de sade mental, com o predomnio da utilizao de dispositivos institucionais que operam de forma isolada e desvinculada do contexto em que so geridos. Cita o exemplo francs que mantm o hospital psiquitrico como pea central monopolizadora dos recursos materiais e humanos. assim que, apesar do desenvolvimento de prticas mais modernas de interveno no sistema de sade mental, estes pases mantm o triunfo do modelo de internamento psiquitrico como cerne da psiquiatria pblica. O objetivo de redesenhar o aparato assistencial, sem colocar em questo o prprio sistema psiquitrico culmina na produo das aes acima descritas, que correspondem, na realidade, a um aperfeioamento da prtica, respeitando o limite do que tange ao modelo psiquitrico tradicional. Baseados no ideal de reforma e na construo de servios externos alternativos hospitalizao, estes projetos parecem priorizar ora esferas tcnicas, administrativas ou polticas, sem portar, entretanto, um suporte crtico sobre a natureza da instituio psiquitrica. A Desinstitucionalizao Italiana vem, de modo distinto a estes modelos, acionar a investigao sobre as bases do sistema psiquitrico, partindo do questionamento sobre a delimitao conceitual psiquitrica, como campo hegemnico de determinao da verdade acerca da loucura. O movimento antipsiquitrico, no qual se calca o processo de reforma italiano, instiga a contestao do conhecimento, diagnstico e eficcia teraputica sobrevalorizados pela psiquiatria. Ao abordar a instituio como lugar estruturalmente marcado pelos mecanismos de poder da sociedade, a antipsiquiatria localiza a prtica psiquitrica como um veculo de

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37 alienao face ao enquadramento e circunscrio, no campo do saber, do fenmeno da loucura enquanto desvio normatizao imposta culturalmente. Na pretenso de produzir um discurso sobre a loucura no demarcado a um campo especfico de saber e ao, no caso ao campo psiquitrico, a antipsiquiatria relativiza os conceitos de sade e doena. Problematiza-os nas esferas poltico-econmicas e analisa os mecanismos de poder no interior da instituio psiquitrica que se articulam forma de distribuio de poder inerente sociedade capitalista. Nas palavras de Basaglia, principal mentor e lder da consolidao prtico-terica do movimento realizado em Trieste:O questionamento do sistema institucional transcende a esfera psiquitrica e atinge as estruturas sociais que o sustentam, levando-nos a uma crtica da neutralidade cientfica que atua como sustentculo dos valores dominantes para depois tornar-se crtica e ao poltica (BASAGLIA, 1985, p. 9).

Basaglia (1985, p. 316) afirma: a sociedade, o sistema econmico-poltico que posto em questo atravs da presena no interior de uma instituio psiquitrica, de pessoas que ali permanecem sem que haja para isso razo ou justificativa. Ao retirar da loucura a importncia do estatuto de doena, a antipsiquiatria coloca em curso um novo enfoque que possibilita a articulao de conceitos que popularizam o aspecto de positividade da experincia psictica. Castel (1986, p. 27) lembra a repercusso que teve, no incio dos anos 70, o tema da viagem da loucura, refletindo o louco como portador de uma espcie de verdade misteriosa sobre a experincia sempre reprimida pelas opresses sociais. Ainda que analisadas como de excessivo romantismo, as concepes inaugurais da antipsiquiatria contriburam para uma contraposio com o iderio disciplinar at ento predominante, inserindo uma nova sensibilidade sobre a loucura, no mais restritamente atrelada oposio do bem ao mal, do positivo ao negativo. Romper com o modelo racionalista ancorado no trip avaliao, explicao e soluo tcnica eficaz para a antipsiquiatria uma forma de expor a originalidade da loucura: impassvel de submisso a uma definio racional e a um mtodo de trabalho otimizado a partir de um enfoque totalizante. Ornellas (1997, p. 179) aponta:

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38Apesar do desenvolvimento do equipamento teraputico, a doena continua a ser um objeto enigmtico, a cronicidade permanece, e a psiquiatria continua, em relao doena mental, a maior parte do tempo, impotente.

Extrair a loucura do plano terico racional que a situa como doena significa tambm contextualiz-la e tornar complexa a configurao deste objeto. Implica promover uma toro nas designaes de doena e cura, deslocando-as para a noo de existnciasofrimento que leva em considerao a relao dos sujeitos com a sociedade. A cura no mais entendida como remisso sintomtica insere-se, assim, no mbito da criao que cada sujeito pode promover no processo de apropriao e de reconstruo de sua existncia. O campo tcnico de atuao v-se radicalmente modificado:

Aos trabalhadores de sade mental cabe menos curar e mais cuidar, sendo que cuidar significa ocupar-se aqui e agora, para que se transformem os modos de viver e de sentir o sofrimento do paciente e que, ao mesmo tempo, se transforme sua vida concreta e cotidiana que alimenta este sofrimento (ROTELLI, 1990, p. 18).

Ao designar a negao da instituio, o movimento italiano no pretende proferir a negao da doena mental, nem a suspenso de cuidados. O que est em questo construo de outro dispositivo de ateno loucura que diz respeito fundamentalmente negao do legado da psiquiatria frente s instituies sociais, legado de isolamento, exortao e anulao dos sujeitos, dispostos margem da normalidade social (ROTELLI e AMARANTE, apud BEZERRA e AMARANTE, 1992). Algumas correntes antipsiquitricas sobrelevam as dimenses sociais e polticas como elementos constitutivos, etiolgicos da doena mental. O argumento, se tomado totalitariamente, demonstra inadequao com o atual estgio de conhecimentos e pesquisas sobre o assunto, mas, ainda assim, repercute para o surgimento da possibilidade de inalienao da psiquiatria. Isso marca o imperativo de inscrio do sofrimento psquico em um mbito mais amplo, concernente existncia social do sujeito. A experincia de desinstitucionalizao realizada na Itlia incide nas instituies de controle social de forma global e encontra na reforma dos programas psiquitricos sua

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39 manifestao mxima, intervindo no sentido da extino total do aparato institucional asilar. Analisada como um processo poltico, a desinstitucionalizao emerge como um imperativo de mudana almejado pela convergncia de vrios setores sociais. Exprime Rotelli (1990) que a reforma psiquitrica significa um alvo a ser atingido pelos reformadores, a expectativa de abolio das instituies de controle social para os tcnicos e polticos radicais, e a possibilidade de reduo de leitos hospitalares para os administradores atrelados na necessidade de racionalizao financeira. As experincias inaugurais de extino dos manicmios em Gorizia e Trieste fazem parte do movimento Psiquiatria Democrtica, contam com a interveno poltica do Partido Radical em 1973 e com a proposta de revogao completa da legislao psiquitrica at ento em vigor, cujo cunho consiste no controle institucional sobre os loucos. H em curso um movimento poltico com bases sociais em expanso, cujo alvo a ampliao deste processo de reforma em todo o pas. Logo, a Lei 180, cunhada de Lei Basaglia, vem promulgar a proibio de construo de manicmios, reorganizando os recursos para um tratamento psiquitrico qualificado, abolindo o estatuto de periculosidade dos loucos e a tutela jurdica. O aspecto de prioridade da abolio das internaes na reforma italiana vem acompanhado com a ampla consolidao de uma rede de servios comunitrios, ou seja, pela implementao de aes teraputicas no contexto social em que os usurios se inserem. Funcionam Centros de Sade Mental 24 horas e servios de emergncia, potencializando a transferncia definitiva da prerrogativa assistencial para os territrios. Integram o sistema de atendimento tambm as cooperativas, que se constituem espaos teraputicos de trabalho e sociabilidade com expanso da visibilidade de seus projetos em vrias esferas da cidade de Trieste (GOLDBERG, 1994). As cooperativas representam lugares de produo artstica, intelectual ou de prestao de servios que assumem importante papel na dinmica e na economia de toda a cidade (ROTELLI e AMARANTE, apud BEZERRA e AMARANTE, 1992, p. 44). A desinstitucionalizao reconhecida como um movimento extenso e complexo que, ao oferecer novas formas de cuidado, emergentes pela sustentao do lema do exerccio de produo da vida, constri inovadas modalidades de sociabilidade e subjetividade. As concepes tericas inspiradoras do movimento de desinstitucionalizao representam

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40 arcabouos poltico-ideolgicos de suporte para iniciativas que almejam desmedicalizar a loucura e reconstruir um novo campo de experimentao prtica para suas possibilidades. A ruptura dos paradigmas clnicos e racionalistas est calcada na desmobilizao dos saberes e prticas tradicionais e na absoro de uma estruturao institucional inventada que acionada mediante um processo contnuo de reconstruo que:

tende a mobilizar os sujeitos sociais envolvidos [...] tende a transformar as relaes de poder entre os pacientes e as instituies [...] tende a produzir estruturas de sade mental que substituam inteiramente a internao no hospital psiquitrico e que nascem da desmontagem e reconverso dos recursos materiais e humanos que estavam ali depositados (ROTELLI, 1990, p. 18).

CAPTULO II INSTITUCIONALIZAO DA LOUCURA NO BRASIL

A loucura, objeto dos meus estudos, era at agora uma ilha perdida no oceano da razo; comeo a suspeitar que um continente (ASSIS, 1996, p. 8). Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia [...] ningum escapava aos emissrios do alienista. Ele respeitava as namoradas e no poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural, e as segundas a um vcio. Se um homem era avaro ou prdigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde, da a alegao de que no havia regra para a completa sanidade mental (ASSIS, 1996. p. 26). [...] demarquemos definitivamente os limites da razo e da loucura. A razo o perfeito equilbrio de todas as faculdades; fora da insnia, insnia e s insnia (ASSIS, 1996. p. 9).

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41 Atravs do estilo irreverente do escritor Machado de Assis, possvel ler diversas passagens da obra O Alienista enquanto ilustrativas de uma profunda crtica social ao que seriam os alicerces de inaugurao das prticas de asilamento psiquitrico. Vislumbra-se o debate interminvel entre teologia e cincia, enquanto instncias que parodiam a luta pelo controle social sobre a loucura. Em tom humorstico, so expostas questes do Segundo Reinado: dissidncias entre o Estado e Igreja; estruturao da psiquiatria no Brasil; debates sobre a unidade do Imprio. No relato irnico de casos no decorrer da obra, o escritor apresenta o personagem central mentor da cincia mental, em verso exagerada, exacerbando elementos que poderiam simular o dispositivo psiquitrico clssico e o processo de institucionalizao da loucura. Capta-se a similitude: a urgente avidez em localizar os desvios e retirar do cenrio social supostos elementos indesejveis, sob justificativa de tratamento, resultando no crescimento infindvel da populao recolhida. No caso da instituio hospitalar, historicamente a situao repercutiu em inoperncia assistencial paralelamente designao da marginalidade social do louco. Tal como na fundao do asilo em que a populao destinada avolumou-se indefinidamente, a Casa Verde do Alienista, uma verso caricata, tornou-se depsito para sujeitos com sinais (no caso, imaginrios do mdico) de desajuste que no cessavam de ser para l enviados. Sob os auspcios e o olhar da cincia mdica, as aes de tutela eram determinadas e, por outro lado, a personificao dos atos na figura do mdico deixa entrever no decorrer da obra, sua prpria insanidade. Ao ser recolhido finalmente no asilo, o encarceramento do Dr. Simo Bacamarte atesta a vitria da teologia e delega ao Padre Lopes a tarefa de espalhar que jamais houvera louco em Itagua a no ser o alienista. A obra remete reflexo sobre o poder advindo da razo, imbudo em um conjunto de foras de configuraes absolutas que esto aplicadas cincia e busca da verdade, o que remonta s razes do processo de psiquiatrizao. Sabe-se que houve uma poca em que loucos circulando pelas ruas era algo que no despertava ateno social, sendo um ato passvel de aceitao, principalmente em se tratando de indivduos pobres e habitantes de comunidades rurais e pouco populosas. Moreira (1903) descreve que, especialmente no Brasil Colnia, essa livre circulao era determinada pelas

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42 posses dos insanos: enquanto pobres, e se tranqilos, vagavam merc de zombarias de crianas e da caridade pblica; se agitados, eram depositados nas cadeias, onde malcuidados, poderiam vir a falecer. J as classes mais favorecidas tendiam a cuidar de seus loucos no prprio domiclio. Poderia ser indicado o envio para a Europa, por aconselhamento mdico. Caso tal presena causass