Historias Da Meia Noite

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Machado de Assis HISTÓRIAS DA MEIA-NOITE

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  • Machado de Assis

    HISTRIAS DAMEIA-NOITE

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    HISTRIAS DAMEIA-NOITE

    TEXTO INTEGRAL

    Permitido o uso apenas para fins educacionais.

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    ndice

    Advertncia ................................................................................................................ 04A Parasita Azul .......................................................................................................... 05As Bodas de Lus Duarte ........................................................................................... 28Ernesto de Tal ............................................................................................................ 37Aurora sem dia ........................................................................................................... 50O relgio de ouro ....................................................................................................... 61Ponto de vista ............................................................................................................. 66

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    Advertncia

    VO AQUI reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretenso queno seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor. No digo com isto que o gnero sejamenos digno da ateno dele, nem que deixe de exigir predicados de observao e de estilo. O quedigo que estas pginas, reunidas por um editor benvolo, so as mais desambiciosas do mundo.

    Aproveito a ocasio que se me oferece para agradecer crtica e ao pblico a generosidade comque receberam o meu primeiro romance, h tempos dado luz. Trabalhos de gnero diverso me impe-diram at agora de concluir outro, que aparecer a seu tempo

    M. de A.

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    A Parasita AzulCaptulo I - Volta ao Brasil

    H cerca de dezesseis anos, desembarcava no Rio de Janeiro, vindo da Europa, o Sr. CamiloSeabra, goiano de nascimento, que ali fora estudar medicina e voltava agora com o diploma na algibeirae umas saudades no corao. Voltava depois de uma ausncia de oito anos, tendo visto e admirado asprincipais cousas que um homem pode ver e admirar por l, quando no lhe falta gosto nem meios.Ambas as cousas possua, e se tivesse tambm, no digo muito, mas um pouco mais de juzo, houveragozado melhor do que gozou, e com justia poderia dizer que vivera.

    No abonava muito os seus sentimentos patriticos o rosto com que entrou a barra da capitalbrasileira. Trazia-o fechado e merencrio, como quem abafa em si alguma cousa que no exatamentea bem-aventurana terrestre. Arrastou um olhar aborrecido pela cidade, que se ia desenrolando pro-poro que o navio se dirigia ao ancoradouro. Quando veio a hora de desembarcar, f-lo com a mesmaalegria com que o ru transpe os umbrais do crcere. O escaler afastou-se do navio, em cujo mastroflutuava uma bandeira tricolor; Camilo murmurou consigo:

    Adeus, Frana!Depois envolveu-se num magnfico silncio e deixou-se levar para terra.O espetculo da cidade, que ele no via h tanto tempo, sempre lhe prendeu um pouco a ateno.

    No tinha porm dentro da alma o alvoroo de Ulisses ao ver a terra da sua ptria. Era antes pasmo etdio. Comparava o que via agora com o que vira durante longos anos, e sentia a mais e mais apertar-lhe o corao a dolorosa saudade que o minava. Encaminhou-se para o primeiro hotel que lhe pareceuconveniente, e ali determinou passar alguns dias, antes de seguir para Gois. Jantou solitrio e tristecom a mente cheia de mil recordaes do mundo que acabava de deixar, e para dar ainda maior desa-fogo memria, apenas acabado o jantar, estendeu-se num canap, e comeou a desfiar consigo mes-mo um rosrio de cruis desventuras.

    Na opinio dele, nunca houvera mortal que mais dolorosamente experimentasse a hostilidade dodestino. Nem no martirolgio cristo, nem nos trgicos gregos, nem no Livro de J havia sequer umplido esboo dos seus infortnios. Vejamos alguns traos patticos da existncia do nosso heri.

    Nascera rico, filho de um proprietrio de Gois, que nunca vira outra terra alm da sua provncianatal. Em 1828 estivera ali um naturalista francs, com quem o comendador Seabra travou relaes, ede quem se fez to amigo, que no quis outro padrinho para o seu nico filho, que ento contava umano de idade. O naturalista, muito antes de o ser, cometera umas venialidades poticas que mereceramalguns elogios em 1810, mas que o tempo, velho trapeiro da eternidade, levou consigo para oinfinito depsito das cousas inteis. Tudo lhe perdoara o ex-poeta, menos o esquecimento de umpoema em que ele metrificara a vida de Frio Camilo, poema que ainda ento lia com sincero entusi-asmo. Como lembrana desta obra da juventude, chamou ele ao afilhado Camilo, e com esse nome obatizou o padre Maciel, a grande aprazimento da famlia e seus amigos.

    Compadre, disse o comendador ao naturalista, se este pequeno vingar, hei de mand-lo parasua terra, a aprender medicina ou qualquer outra cousa em que se faa homem. No caso de lhe acharjeito para andar com plantas e minerais, como o senhor, no se acanhe; d-lhe o destino que lheparecer como se fora seu pai, que o , espiritualmente falando.

    Quem sabe se eu viverei nesse tempo? disse o naturalista. Oh! h de viver! protestou Seabra. Esse corpo no engana; a sua tmpera de ferro. No o

    vejo eu andar todos os dias por esses matos e campos, indiferente a sis e a chuvas, sem nunca ter amais leve dor de cabea? Com metade dos seus trabalhos j eu estava defunto. H de viver e cuidar domeu rapaz, apenas ele tiver concludo c os seus primeiros estudos.

    A promessa de Seabra foi pontualmente cumprida. Camilo seguiu para Paris, logo depois dealguns preparatrios, e ali o padrinho cuidou dele como se realmente fora seu pai. O comendador no

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    poupava dinheiro para que nada faltasse ao filho; a mesada que lhe mandava podia bem servir paraduas ou trs pessoas em iguais circunstncias. Alm da mesada, recebia ele por ocasio da Pscoa e doNatal, amndoas e festas que a me lhe mandava, e que lhe chegavam s mos debaixo da forma dealguns excelentes mil francos.

    At aqui o nico ponto negro na existncia de Camilo, era o padrinho, que o trazia peado, comreceio de que o rapaz viesse a perder-se nos precipcios da grande cidade. Quis, porm, a sua boaestrela que o ex-poeta de 1810 fosse repousar no nada ao lado das suas produes extintas, deixandona cincia alguns vestgios da sua passagem por ela. Camilo apressou-se a escrever ao pai uma cartacheia de reflexes filosficas.

    O perodo final dizia assim:Em suma, meu pai, se lhe parece que eu tenho o necessrio juzo para concluir aqui os meus

    estudos, e se tem confiana na boa inspirao que me h de dar a alma daquele que l se foi deste valede lgrimas para gozar a infinita bem-aventurana, deixe-me c ficar at que eu possa regressar aomeu pas como um cidado esclarecido e apto para o servir, como do meu dever. Caso a sua vontadeseja contrria a isto que lhe peo, diga-o com franqueza, meu pai, porque ento no me demorarei uminstante mais nesta terra, que j foi meia ptria para mim, e que hoje (hlas!) apenas uma terra deexlio.

    O bom velho no era homem que pudesse ver por entre as linhas desta lacrimosa epstola overdadeiro sentimento que a ditara. Chorou de alegria ao ler as palavras do filho, mostrou a carta atodos os seus amigos, e apressou-se a responder ao rapaz que podia ficar em Paris todo o temponecessrio para completar os seus estudos, e que, alm da mesada que lhe dava, nunca recusaria tudoquanto lhe fosse indispensvel em circunstncias imprevistas. Alm disto, aprovava de corao ossentimentos que ele manifestava em relao sua ptria e memria do padrinho. Transmitia-lhemuitas recomendaes do tio Jorge, do padre Maciel, do coronel Veiga, de todos os parentes e amigos,e conclua deitando-lhe a bno.

    A resposta paterna chegou s mos de Camilo no meio de um almoo, que ele dava no Caf deMadrid a dois ou trs estrinas de primeira qualidade. Esperava aquilo mesmo, mas no resistiu aodesejo de beber sade do pai, ato em que foi acompanhado pelos elegantes milhafres seus amigos.Nesse mesmo dia planeou Camilo algumas circunstncias imprevistas (para o comendador) e o prxi-mo correio trouxe para o Brasil uma extensa carta em que ele agradecia as boas expresses do pai,dizia-lhe as suas saudades, confiava-lhe as suas esperanas, e pedia-lhe respeitosamente, em post-scriptum, a remessa de uma pequena quantia de dinheiro.

    Graas a estas facilidades atirou-se o nosso Camilo a uma vida solta e dispendiosa, no tanto,porm, que lhe sacrificasse os estudos. A inteligncia que possua, e certo amor-prprio que noperdera, muito o ajudaram neste lance; concludo o curso, foi examinado, aprovado e doutorado.

    A notcia do acontecimento foi transmitida ao pai com o pedido de uma licena para ir ver outrasterras da Europa. Obteve a licena, e saiu de Paris para visitar a Itlia, a Sua, a Alemanha e a Ingla-terra. No fim de alguns meses estava outra vez na grande capital, e a reatou o fio da sua antigaexistncia, j livre ento de cuidados estranhos e aborrecidos. A escala toda dos prazeres sensuais efrvolos foi percorrida por este esperanoso mancebo com uma sofreguido que parecia antes suicdio.Seus amigos eram numerosos, solcitos e constantes; alguns no duvidavam dar-lhe a honra de oconstituir seu credor. Entre as moas de Corinto era o seu nome verdadeiramente popular; no poucaso tinham amado at o delrio. No havia pateada clebre em que a chave dos seus aposentos nofigurasse, nem corrida, nem ceata, nem passeio, em que no ocupasse um dos primeiros lugares cetaimable brsilien.

    Desejoso de o ver, escreveu-lhe o comendador pedindo que regressasse ao Brasil; mas o filho,parisiense at medula dos ossos, no compreendia que um homem pudesse sair do crebro da Fran-a, para vir internar-se em Gois. Respondeu com evasivas e deixou-se ficar. O velho fez vista grossaa esta primeira desobedincia. Tempos depois insistiu em cham-lo; novas evasivas da parte de Camilo.Irritou-se o pai e a terceira carta que lhe mandou foi j de amargas censuras. Camilo caiu em si e

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    disps-se com grande mgoa a regressar ptria, no sem esperanas de voltar a acabar os seus dias noBoulevard dos Italianos ou porta do Caf Helder.

    Um incidente, porm, demorou ainda desta vez o regresso do jovem mdico. Ele, que at alivivera de amores fceis e paixes de uma hora, veio a enamorar-se repentinamente de uma lindaprincesa russa. No se assustem; a princesa russa de quem falo, afirmavam algumas pessoas que erafilha da rua do Bac e trabalhara numa casa de modas, at revoluo de 1848. No meio da revoluoapaixonou-se por ela um major polaco, que a levou para Varsvia, donde acabava de chegar transfor-mada em princesa, com um nome acabado em ine ou em off, no sei bem. Vivia misteriosamente,zombando de todos os seus adoradores, exceto de Camilo, dizia ela, por quem sentia que era capaz deaposentar as suas roupas de viva. To depressa, porm, soltava estas expresses irrefletidas, comologo protestava com os olhos no cu:

    Oh! no! nunca, meu caro Alexis, nunca desonrarei a tua memria unindo-me a outro.Isto eram punhais que dilaceravam o corao de Camilo. O jovem mdico jurava por todos os

    santos do calendrio latino e grego que nunca amara a ningum como formosa princesa. A brbarasenhora parecia s vezes disposta a crer nos protestos de Camilo; outras vezes porm abanava a cabeae pedia perdo sombra do venerando prncipe Alexis. Neste meio tempo chegou uma carta decisivado comendador. O velho goiano intimava pela ltima vez ao filho que voltasse, sob pena de lhe sus-pender todos os recursos e trancar-lhe a porta.

    No era possvel tergiversar mais. Imaginou ainda uma grave molstia; mas a idia de que o paipodia no acreditar nela e suspender-lhe realmente os meios, aluiu de todo este projeto. Camilo nemnimo teve de ir confessar a sua posio bela princesa; receava alm disso que ela, por um rasgo degenerosidade, natural em quem ama, quisesse dividir com ele as suas terras de Novogorod.Aceit-las seria humilhao, recus-las poderia ser ofensa. Camilo preferiu sair de Paris deixando princesa uma carta em que lhe contava singelamente os acontecimentos e prometia voltar algum dia.

    Tais eram as calamidades com que o destino quisera abater o nimo de Camilo. Todas elasrepassou na memria o infeliz viajante, at que ouviu bater oito horas da noite. Saiu um pouco paratomar ar, e ainda mais se lhe acenderam as saudades de Paris. Tudo lhe parecia lgubre, acanhado,mesquinho. Olhou com desdm olmpico para todas as lojas da rua do Ouvidor, que lhe pareceuapenas um beco muito comprido e muito iluminado. Achava os homens deselegantes, as senhorasdesgraciosas. Lembrou-se, porm, que Santa Luzia, sua cidade natal, era ainda menos parisiense que oRio de Janeiro, e ento, abatido com esta importuna idia correu para o hotel e deitou-se a dormir.

    No dia seguinte, logo depois do almoo, foi casa do correspondente de seu pai. Declarou-lheque tencionava seguir dentro de quatro ou cinco dias para Gois, e recebeu dele os necessrios recur-sos, segundo as ordens j dadas pelo comendador. O correspondente acrescentou que estava incumbi-do de lhe facilitar tudo o que quisesse no caso de desejar passar algumas semanas na corte.

    No, respondeu Camilo; nada me prende corte, e estou ansioso por me ver a caminho. Imagino as saudades que h de ter. H quantos anos? Oito. Oito! J uma ausncia longa.Camilo ia-se dispondo a sair, quando viu entrar um sujeito alto, magro, com alguma barba em

    baixo do queixo e bigode, vestido com um palet de brim pardo e trazendo na cabea um chapu-de-chile. O sujeito olhou para Camilo, estacou, recuou um passo, e depois de uma razovel hesitao,exclamou:

    No me engano! o Sr. Camilo! Camilo Seabra, com efeito, respondeu o filho do comendador, lanando um olhar interrogativo

    ao dono da casa. Este senhor, disse o correspondente, o Sr. Soares, filho do negociante do mesmo nome, da

    cidade de Santa Luzia. Qu! o Leandro que eu deixei apenas com um buo...

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    Em carne e osso, interrompeu Soares; o mesmo Leandro que lhe aparece agora todo barbado,como o senhor, que tambm est com uns bigodes bonitos!

    Pois no o conhecia... Conheci-o eu apenas o vi, apesar de o achar muito mudado do que era. Est agora um moo

    apurado. Eu que estou velho. J c esto vinte e seis... No se ria: estou velho. Quando chegou? Ontem. E quando segue viagem para Gois? Espero o primeiro vapor de Santos. Nem de propsito! Iremos juntos. Como est seu pai? Como vai toda aquela gente? O padre Maciel? O Veiga? D-me notcias

    de todos e de tudo. Temos tempo para conversar vontade. Por agora s lhe digo que todos vo bem. O vigrio

    que esteve dois meses doente de uma febre maligna e ningum pensava que arribasse; mas arribou.Deus nos livre que o homem adoea, agora que estamos com o Esprito Santo porta.

    Ainda se fazem aquelas festas? Pois ento! O imperador, este ano, o coronel Veiga; e diz que quer fazer as cousas com todo

    o brilho. J prometeu que daria um baile. Mas ns temos tempo de conversar, ou aqui ou em caminho.Onde est morando?

    Camilo indicou o hotel em que se achava, e despediu-se do comprovinciano, satisfeito de haverencontrado um companheiro que de algum modo lhe diminusse os tdios de to longa viagem. Soareschegou porta e acompanhou com os olhos o filho do comendador at perd-lo de vista.

    Veja o senhor o que andar por essas terras estrangeiras, disse ele ao correspondente, quetambm chegava porta. Que mudana fez aquele rapaz, que era pouco mais ou menos como eu!

    Captulo II - Para Gois

    DA A DIAS seguiam ambos para Santos, de l para S. Paulo e tomavam a estrada de Gois.Soares, medida que ia reavendo a antiga intimidade com o filho do comendador, contava-lhe

    as memrias da sua vida, durante os oito anos de separao, e, falta de cousa melhor, era isto o queentretinha o mdico nas ocasies e lugares em que a natureza lhe no oferecia algum espetculo dosseus. Ao cabo de umas quantas lguas de marcha estava Camilo informado das rixas eleitorais deSoares, das suas aventuras na caa, das suas proezas amorosas, e de muitas cousas mais, umas graves,outras fteis, que Soares narrava com igual entusiasmo e interesse.

    Camilo no era esprito observador; mas a alma de Soares andava-lhe to patente nas mos, queera impossvel deixar de a ver e examinar. No lhe pareceu mau rapaz; notou-lhe porm, certafanfarronice, em todo o gnero de cousas, na poltica, na caa, no jogo, e at nos amores. Neste ltimocaptulo havia um pargrafo srio; era o que dizia respeito a uma moa, que ele amava loucamente, detal modo que prometia aniquilar a quem quer que ousasse levantar olhos para ela.

    o que lhe digo, Camilo, confessava o filho do comerciante, se algum tiver o atrevimentode pretender essa moa pode contar que h no mundo mais dois desgraados, ele e eu. No h deacontecer assim felizmente; l todos me conhecem; sabem que no cochilo para executar o que prome-to. H poucos meses o Major Valente perdeu a eleio s porque teve o atrevimento de dizer que iaarranjar a demisso do juiz municipal. No arranjou a demisso, e por castigo tomou taboca; saiu nalista dos suplentes. Quem lhe deu o golpe fui eu. A cousa foi...

    Mas por que no se casa com essa moa? perguntou Camilo desviando cautelosamente anarrao da ltima vitria eleitoral de Soares.

    No me caso porque... tem muita curiosidade de o saber? Curiosidade... de amigo e nada mais. No me caso porque ela no quer.Camilo estacou o cavalo.

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    No quer? disse ele espantado. Ento por que motivo pretende impedir que ela... Isso uma histria muito comprida. A Isabel... Isabel?... interrompeu Camilo. Ora espere, ser a filha do Dr. Matos, que foi juiz de direito h

    dez anos? Essa mesma. Deve estar uma moa? Tem seus vinte anos bem contados. Lembra-me que era bonitinha aos doze. Oh! mudou muito... para melhor! Ningum a v que no fique logo com a cabea voltada.

    Tem rejeitado j uns poncos de casamentos. O ltimo noivo recusado fui eu. A causa por que merecusou foi ela mesma que me veio dizer.

    E que causa era? Olhe, Sr. Soares, disse-me ela. O senhor merece bem que uma moa o aceite por marido; eu

    era capaz disso, mas no o fao porque nunca seramos felizes.Que mais? Mais nada. Respondeu-me apenas isto que lhe acabo de contar. Nunca mais se falaram? Pelo contrrio, falamo-nos muitas vezes. No mudou comigo; trata-me como dantes. A no

    serem aquelas palavras que ela me disse, e que ainda me doem c dentro, eu podia ter esperanas.Vejo, porm, que seriam inteis: ela no gosta de mim.

    Quer que lhe diga uma cousa com franqueza? Diga. Parece-me um grande egosta. Pode ser; mas sou assim. Tenho cimes de tudo, at do ar que ela respira. Eu, se a visse gostar

    de outro, e no pudesse impedir o casamento, mudava de terra. O que me vale a convico que tenhode que ela no h de gostar nunca de outro, e assim pensam todos os mais.

    No admira que no saiba amar, reflexionou Camilo pondo os olhos no horizonte como seestivesse ali a imagem da formosa sbdita do tzar. Nem todas receberam do cu esse dom, que overdadeiro distintivo dos espritos seletos. Algumas h porm, que sabem dar a vida e a alma a umente querido, que lhe enchem o corao de profundos afetos, e deste modo fazem jus a uma perptuaadorao. So raras, bem sei as mulheres desta casta; mas existem...

    Camilo terminou esta homenagem dama dos seus pensamentos abrindo as asas a um suspiroque, se no chegou ao seu destino, no foi por culpa do autor. O companheiro no compreendeu ainteno do discurso, e insistiu em dizer que a formosa goiana estava longe de gostar de ningum, e eleainda mais longe de lho consentir.

    O assunto agradava aos dois comprovincianos, falaram dele longamente at o aproximar datarde. Pouco depois chegaram a um pouso, onde deviam pernoitar.

    Tirada a carga dos animais, cuidaram os criados primeiramente do caf, e depois do jantar.Nessas ocasies ainda mais pungiam ao nosso heri as saudades de Paris. Que diferena entre os seusjantares dos restaurants dos boulevards e aquela refeio ligeira e tosca, num miservel pouso deestrada, sem os acepipes da cozinha francesa, sem a leitura do Figaro ou da Gazette des Tribunaux!

    Camilo suspirava consigo mesmo; tornava-se ento ainda menos comunicativo. No se perdianada porque o seu companheiro falava por dois.

    Acabada a refeio, acendeu Camilo um charuto e Soares um cigarro de palha. Era j noite. Afogueira do jantar alumiava um pequeno espao em roda: mas nem era precisa, porque a lua comeavaa surgir de trs de um morro; plida e luminosa, brincando nas folhas do arvoredo e nas guas tranqi-las do rio que serpeava ali ao p.

    Um dos tropeiros sacou a viola e comeou a gargantear uma cantiga, que a qualquer outroencantaria pela rude singeleza dos versos e da toada, mas que ao filho do comendador apenas fezlembrar com tristeza as volatas da pera. Lembrou-lhe mais; lembrou-lhe uma noite em que a bela

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    moscovita, molemente sentada num camarote dos Italianos, deixava de ouvir as ternuras do tenor, paracontempl-lo de longe cheirando um raminho de violetas.

    Soares atirou-se rede e adormeceu.O tropeiro cessou de cantar, e dentro de pouco tempo tudo era silncio no pouso.Camilo ficou sozinho diante da noite, que estava realmente formosa e solene. No faltava ao

    jovem goiano a inteligncia do belo; e a quase novidade daquele espetculo, que uma longa auisncialhe fizera esquecer, no deixava de o impressionar imensamente.

    De quando em quando chegavam aos seus ouvidos urros longnquos, de alguma fera que vague-ava na solido. Outras vezes eram aves noturnas, que soltavam ao perto os seus pios tristonhos. Osgrilos, e tambm as rs e os sapos formavam o coro daquela pera do serto, que o nosso heri admi-rava decerto, mas qual preferia indubitavelmente a pera cmica.

    Assim esteve longo tempo, cerca de duas horas deixando vagar o seu esprito ao sabor dassaudades, e levantando e desfazendo mil castelos no ar. De repente foi chamado a si pela voz doSoares, que parecia vtima de um pesadelo. Afiou o ouvido e escutou estas palavras soltas e abafadasque o seu companheiro murmurava:

    Isabel... querida Isabel... Que isso?... Ah! meu Deus! Acudam!As ltimas slabas eram j mais aflitas que as primeiras. Camilo correu ao companheiro e forte-

    mente o sacudiu. Soares acordou espantado, sentou-se, olhou em roda de si e murmurou: Que ? Um pesadelo. Sim, foi um pesadelo. Ainda bem! Que horas so? Ainda noite. J est levantado? Agora que me vou deitar. Durmamos que tempo. Amanh lhe contarei o sonho.No dia seguinte efetivamente, logo depois das primeiras vinte braas de marcha, referiu Soares

    o terrvel sonho da vspera. Estava eu ao p de um rio, disse ele, com a espingarda na mo, espiando as capivaras. Olho

    casualmente para a ribanceira que ficava muito acima, do lado oposto, e vejo uma moa montada numcavalo preto, vestida de preto, e com os cabelos, que tambm eran pretos, cados sobre os ombros.

    Era tudo uma escurido, interrompeu Camilo. Espere; admirei-me de ver ali, e por aquele modo, uma moa que me parecia franzina e

    delicada. Quem pensava o senhor que era? A Isabel. A Isabel. Corri pela margem adiante, trepei acima de uma pedra fronteira ao lugar onde ela

    estava, e perguntei-lhe o que fazia ali. Ela esteve algum tempo calada. Depois, apontando para o fundodo groto, disse:

    O meu chapu caiu l embaixo. Ah! O senhor ama-me? disse ela passados alguns minutos. Mais que a vida! Far o que eu lhe pedir? Tudo. Bem, v buscar o meu chapu.Olhei para baixo. Era um imenso groto em cujo fundo fervia e roncava uma gua barrenta e

    grossa. O chapu, em vez de ir com a corrente por ali abaixo at perder-se de todo, ficara espetado naponta de uma rocha, e l do fundo parecia convidar-me a descer. Mas era impossvel. Olhei para todosos lados, a ver se achava algum recurso. Nenhum havia...

    Veja o que imaginao escaldada! observou Camilo.

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    J eu procurava algumas palavras com que dissuadisse Isabel da sua terrvel idia, quandosenti pousar-me uma mo no ombro. Voltei-me; era um homem, era o senhor.

    Eu? verdade. O senhor olhou para mim com um ar de desprezo, sorriu para ela e depois olhou

    para o abismo. Repentinamente, sem que eu possa dizer como, estava o senhor embaixo e estendia amo para tirar o chapelinho fatal.

    Ah! A gua porm, engrossando subitamente, ameaava submergi-lo. Ento Isabel, soltando um

    grito de angstia, esporeou o cavalo e atirou-se pela ribanceira abaixo. Gritei... chamei por socorro;tudo foi intil. J a gua os enrolava em suas dobras... quando fui acordado pelo senhor.

    Leandro Soares concluiu esta narrao do seu pesadelo parecendo ainda assustado do que lheacontecera... imaginariamente. Convm dizer que ele acreditava nos sonhos.

    Veja o que uma digesto malfeita! exclamou Camilo quando o comprovinciano terminou anarrao. Que poro de tolices! O chapu, a ribanceira, o cavalo, e mais que tudo a minha presenanesse melodrama fantstico, tudo isso obra de quem digeriu mal o jantar. Em Paris h teatros querepresentam pesadelos assim, piores do que o seu porque so mais compridos. Mas o que eu vejotambm que essa moa no o deixa nem dormindo.

    Nem dormindo!Soares disse estas duas palavras quase como um eco, sem conscincia. Desde que conclura a

    narrao, e logo depois das primeiras palavras de Camilo, entrara a fazer consigo uma srie de refle-xes que no chegaram ao conhecimento do autor desta narrativa. O mais que lhes posso dizer queno eram alegres, porque a fronte lhe descaiu, enrugou-se-lhe a testa, e ele, cravando os olhos nasorelhas do animal, recolheu-se a um inviolvel silncio.

    A viagem, daquele dia em diante, foi menos suportvel para Camilo de que at ali. Alm de umaleve melancolia que se apoderara do companheiro, ia-se-lhe tornando enfadonho aquele andar lguase lguas que pareciam no acabar mais. Afinal voltou Soares sua habitual verbosidade, mas j entono podia vencer o tdio mortal que se apoderara do msero Camilo.

    Quando porm avistou a cidade, perto da qual estava a fazenda, onde vivera as primeiras aurorasda sua mocidade, Camilo sentia abalar-se-lhe fortemente o corao. Um sentimento srio o dominava.Por algum tempo, ao menos, Paris com os seus esplendores cedia o lugar pequena e honesta ptriados Seabras.

    Captulo III - O encontro

    FOI UM VERDADEIRO dia de festa aquele em que o comendador cingiu ao peito o filho queoito anos mandara a terras estranhas. No pde reter as lgrimas o bom velho, no pde, que elasvinham de um corao ainda vioso de afetos e exuberante de ternura. No menos intensa e sincera foia alegria de Camilo. Beijou repetidamente as mos e a fronte do pai, abraou os parentes, os amigos deoutro tempo, e durante alguns dias, no muitos, parecia completamente curado dos seus desejosde regressar Europa.

    Na cidade e seus arredores no se falava em outra cousa. O assunto, no principal, mas exclusi-vo das palestras e comentrios era o filho do comendador. Ningum se fartava de o elogiar. Admira-vam-lhes as maneiras e a elegncia. A mesma superioridade com que ele falava a todos achava entu-siastas sinceros. Durante muitos dias foi totalmente impossvel que o rapaz pensasse em outra cousaque no fosse contar as suas viagens aos amveis conterrneos. Mas pagavam-lhe a maada, porque amenor cousa que ele dissesse tinha aos olhos dos outros uma graa indefinvel. O Padre Maciel, que obatizara vinte e sete anos antes, e que o via j homem completo, era o primeiro pregoeiro da suatransformao.

    Pode gabar-se, Sr. comendador, dizia ele ao pai de Camilo, pode gabar-se de que o cu lhedeu um rapaz de truz! Santa Luzia vai ter um mdico de primeira ordem, se me no engana o afeto que

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    tenho a esse que era ainda ontem um pirralho. E no s mdico mas at bom filsofo; verdade,parece-me bom filsofo. Sondei-o ontem nesse particular, e no lhe achei ponto fraco ou duvidoso.

    O tio Jorge andava a perguntar a todos o que pensavam do sobrinho Camilo. O Tenente-coronelVeiga agradecia Providncia a chegada do Dr. Camilo nas proximidades do Esprito Santo.

    Sem ele, o meu baile seria incompleto.O Dr. Matos no foi o ltimo que visitou o filho do comendador. Era um velho alto e bem feito,

    ainda que um tanto quebrado pelos anos. Venha, doutor, disse o velho Seabra apenas o viu assomar porta; venha ver o meu homem. Homem, com efeito, respondeu Matos contemplando o rapaz. Est mais homem do que eu

    supunha. Tambm j l vo oito anos! Venha de l esse abrao!O moo abriu os braos ao velho. Depois, como era costume fazer a quantos o iam ver, contou-

    lhe alguma cousa das suas viagens e estudos. perfeitamente intil dizer que o nosso heri omitiusempre tudo quanto pudesse abalar o bom conceito em que estava no nimo de todos. A dar-lhecrdito, vivera, quase como um anacoreta; e ningum ousava pensar o contrrio.

    Tudo eram pois alegrias na boa cidade e seus arredores; e o jovem mdico, lisonjeado com ainesperada recepo que teve, continuou a no pensar muito em Paris. Mas o tempo corre, e as nossassensaes com ele se modificam. No fim de quinze dias tinha Camilo esgotado a novidade das suasimpresses; a fazenda comeou a mudar de aspecto; os campos ficaram montonos, as rvores mon-tonas os rios montonos, a cidade montona, ele prprio montono. Invadiu-o ento uma cousa a quepodemos chamar nostalgia do exlio.

    No, dizia ele consigo, no posso ficar aqui mais trs meses. Paris ou o cemitrio, tal o dilemaque se me oferece. Daqui a trs meses, estarei morto ou em caminho da Europa.

    O aborrecimento de Camilo no escapou aos olhos do pai, que quase vivia a olhar para ele.Tem razo, pensava o comendador. Quem viveu por essas terras que dizem ser to bonitas e

    animadas, no pode estar aqui muito alegre. preciso dar-lhe alguma ocupao... a poltica, por exem-plo.

    Poltica! exclamou Camilo, quando o pai lhe falou nesse assunto. De que me serve a poltica,meu pai?

    De muito. Sers primeiro deputado provincial, podes ir depois para a cmara no Rio deJaneiro. Um dia interpelas o ministrio, e se ele cair, podes subir ao governo. Nunca tiveste ambiode ser ministro?

    Nunca. pena! Por qu? Porque bom ser ministro. Governar os homens, no ? disse Camilo rindo; um sexo ingovernvel; prefiro o outro.Seabra riu-se do repente, mas no perdeu a esperana de convencer o herdeiro.Havia j vinte dias que o mdico estava em casa do pai, quando se lembrou da histria que lhe

    contara Soares e do sonho que este tivera no pouso. A primeira vez que foi cidade e esteve com ofilho do negociante, perguntou-lhe:

    Diga-me, como vai sua Isabel, que ainda a no vi?Soares olhou para ele com o sobrolho carregado e levantou os ombros resmungando um seco: No sei.Camilo no insistiu.A molstia ainda est no perodo agudo, disse ele consigo.Teve porm curiosidade de ver a formosa Isabelinha, que to por terra deitara aquele verboso

    cabo eleitoral. A todas as moas da localidade, em dez lguas em redor, havia j falado o jovemmdico.

    Isabel era a nica esquiva at ento. Esquiva no digo bem. Camilo fora uma vez fazenda doDr. Matos; mas a filha estava doente. Pelo menos foi isso o que lhe disseram.

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    Descanse, dizia-lhe um vizinho a quem ele mostrara impacincia de conhecer a amada deLeandro Soares; h de v-la no baile do Coronel Veiga, ou na festa do Esprito Santo, ou em outraqualquer ocasio.

    A beleza da moa, que ele no julgava pudesse ser superior nem sequer igual da viva doprncipe Alexis, a paixo incurvel de Soares, e o tal ou qual mistrio com que se falava de Isabel, tudoisso excitou ao ltimo ponto a curiosidade do filho do comendador.

    No domingo prximo, oito dias antes do Esprito Santo, saiu Camilo da fazenda para ir missana igreja da cidade, como j fizera nos domingos anteriores. O cavalo ia a passo lento, a compassocom o pensamento do cavaleiro, que se espreguiava pelo campo fora em busca de sensaes que jno tinha e que ansiava ter de novo.

    Mil singulares idias atravessavam o crebro de Camilo. Ora, almejava alar-se com cavalo etudo, rasgar os ares e ir cair defronte do Palais-Royal, ou em outro qualquer ponto da capital domundo. Logo depois fazia a si mesmo a descrio de um cataclismo tal, que ele viesse a achar-sealmoando no Caf Tortoni, dois minutos depois de chegar ao altar o Padre Maciel.

    De repente, ao quebrar uma volta da estrada, descobriu ao longe duas senhoras a cavalo acompa-nhadas por um pajem. Picou de esporas e dentro de pouco tempo estava junto dos trs cavaleiros. Umadas senhoras voltou a cabea, sorriu e parou. Camilo aproximou-se, com a cabea descoberta, e esten-deu-lhe a mo, que ela apertou.

    A senhora a quem cumprimentara era a esposa do Tenente-coronel Veiga. Representava terquarenta e cinco anos, mas estava assaz conservada. A outra senhora, sentindo o movimento da compa-nheira, fez parar, tambm o cavalo, e voltou igualmente a cabea. Camilo no olhava ento para ela.Estava ocupado em ouvir D. Gertrudes, que lhe dava notcias do tenente-coronel.

    Agora s pensa na festa, dizia ela; j deve estar na igreja. Vai missa, no? Vou. Vamos juntos.Trocadas estas palavras, que foram rpidas, Camilo procurou com os olhos a outra cavaleira. Ela

    porm ia j alguns passos adiante. O mdico colocou-se ao lado de D. Gertrudes e a comitiva conti-nuou a andar. Iam assim conversando havia j uns dez minutos, quando o cavalo da senhora que iaadiante estacou.

    Que , Isabel? perguntou D. Gertrudes. Isabel! exclamou Camilo, sem dar ateno ao incidente que provocara a pergunta da esposa

    do coronel.A moa voltou a cabea e levantou os ombros respondendo secamente: No sei.A causa era um rumor que o cavalo sentira por trs de uma espessa moita de taquaras que ficava

    esquerda do caminho. Antes porm que o pajem ou Camilo fosse examinar a causa da relutncia doanimal, a moa fez um esforo supremo, chicoteando vigorosamente o cavalo, conseguiu que estevencesse o terror, e deitasse a correr a galope adiante dos companheiros.

    Isabel! disse Camilo a D. Gertrudes. Aquela moa ser a filha do Dr. Matos? verdade. No a conhecia. H oito anos que a no vejo. Est uma flor! J me no admira que se fale aqui tanto na sua

    beleza. Disseram-me que estava doente . . . Esteve; mas as suas doenas so cousas de pequena monta. So nervos; assim se diz, creio eu,

    quando se no sabe do que uma pessoa padece...Isabel parara ao longe, e voltada para a esquerda da estrada, parecia admirar o espetculo da

    natureza. Da a alguns minutos estavam perto dela os seus companheiros. A moa ia prosseguir amarcha, quando D. Gertrudes lhe disse:

    Isabel!A moa voltou o rosto. D. Gertrudes aproximou-se dela. No te lembras do Dr. Camilo Seabra?

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    Talvez no se lembre, disse Camilo. Tinha doze anos quando eu sa daqui, e j l vo oito! Lembro-me, respondeu Isabel curvando levemente a cabea, mas sem olhar para o mdico.E chicoteando de mansinho o cavalo, seguiu para diante. Por mais singular que fosse aquela

    maneira de reatar conhecimento antigo, o que mais impressionou ento o filho do comendador foi abeleza de Isabel, que lhe pareceu estar na altura da reputao.

    Tanto quanto se podia julgar primeira vista, a esbelta cavaleira devia ser mais alta que baixa.Era morena, mas de um moreno acetinado e macio, com uns delicadssimos longes cor-de-rosa, o que seria efeito da agitao, visto que afirmavam ser extremamente plida. Os olhos, no lhespde Camilo ver a cor, mas sentiu-lhes a luz que valia mais talvez, apesar de o no terem fitado, ecompreendeu logo que com olhos tais a formosa goiana houvesse fascinado o msero Soares.

    No averiguou, nem pde, as restantes feies da moa: mas o que pde contemplar vonta-de, o que j vinha admirando de longe, era a elegncia nativa do busto e o gracioso desgarro com queela montava. Vira muitas amazonas elegantes e destras. Aquela porm tinha alguma cousa em que seavantajava s outras; era talvez o desalinho do gesto talvez a espontaneidade dos movimentos, outracousa talvez, ou todas essas juntas que davam interessante goiana incontestvel supremacia.

    Isabel parava de quando em quando o cavalo e dirigia a palavra esposa do coronel, a respeitode qualquer acidente, de um efeito de luz, de um pssaro que passava, de um som que se ouvia mas em nenhuma ocasio encarava ou sequer olhava de esguelha o filho do comendador. Absorvidona contemplao da moa, Camilo deixou cair a conversa, e havia j alguns minutos que ele e D.Gertrudes iam cavalgando, sem dizer palavra, ao lado um do outro. Foram interrompidos em suamarcha silenciosa por um cavaleiro, que vinha atrs da comitiva a trote largo.

    Era Soares.O filho do negociante vinha bem diferente do que at ali andava. Cumprimentou-os sorrindo e

    jovial como estivera nos primeiros dias de viagem do mdico. No era porm difcil conhecer que aalegria de Soares era um artifcio. O pobre namorado fechava o rosto de quando em quando, ou faziaum gesto de desespero que felizmente escapava aos outros. Ele receava o triunfo de um homem que,fsica e intelectualmente lhe era superior; que, alm disso, gozava naquela ocasio a grande vantagemde dominar a ateno pblica, que era o urso da aldeia, o acontecimento do dia, o homem da situao.Tudo conspirava para derrubar a ltima esperana de Soares, que era a esperana de ver morrer a moaisenta de todo o vnculo conjugal! O infeliz namorado tinha o sestro, alis comum, de querer verquebrada ou intil, a taa que ele no podia levar aos lbios.

    Cresceu porm seu receio quando, estando escondido no taquaral de que falei acima, para verpassar Isabel, como costumava fazer muitas vezes, descobriu a pessoa de Camilo na comitiva. Nopde reter uma exclamao de surpresa, e chegou a dar um passo na direo da estrada. Deteve-se atempo. Os cavaleiros, como vimos, passaram adiante, deixando o cioso pretendente a jurar aos cus e terra que tomaria desforra do seu atrevido rival, se o fosse.

    No era rival, bem sabemos; o corao de Camilo guardava ainda fresca a memria da Artemisamoscovita, cujas lgrimas, apesar da distncia, o rapaz sentia que eram ardentes e aflitivas. Mas quempoderia convencer a Leandro Soares que o elegante moo da Europa, como lhe chamavam, no ficariaenamorado da esquiva goiana?

    Isabel, entretanto, apenas vira o infeliz pretendente, deteve o cavalo e estendeu-lhe afetuosa-mente a mo. Um adorvel sorriso acompanhou esse movimento. No era bastante para dissipar asdvidas do pobre moo. Diversa foi porm a impresso de Camilo.

    Ama-o, ou uma grande velhaca, pensou ele.Casualmente, e pela primeira vez, olhava Isabel para o filho do comendador. Perspiccia ou

    adivinhao, leu-lhe no rosto esse pensamento oculto; franziu levemente a testa com um expresso toviva de estranheza, que o mdico ficou perplexo e no pde deixar de acrescentar, j ento com oslbios, meia voz falando para si:

    Ou fala com o diabo. Talvez, murmurou a moa com os olhos fitos no cho.

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    Isto foi dito assim, sem que os outros dois percebessem. Camilo no podia desviar os olhos daformosa Isabel, meio espantado, meio curioso, depois da palavra murmurada por ela em to singularescondies. Soares olhava para Camilo com a mesma ternura com que um gavio espreita uma pomba.Isabel brincava com o chicotinho. D. Gertrudes, que temia perder a missa do Padre Maciel e receberum reparo amigvel do marido, deu voz de marcha, e a comitiva seguiu imediatamente.

    Captulo IV - A festa

    NO SBADO seguinte a cidade revestira desusado aspecto. De toda a parte correra uma chusmade povo que ia assistir festa anual do Esprito Santo.

    Vo rareando os lugares em que de todo se no apagou o gosto dessas festas clssicas, resto deoutras eras, que os escritores do sculo futuro ho de estudar com curiosidade, para pintar aos seuscontemporneos um Brasil que eles j no ho de conhecer. No tempo em que esta histria se passauma das mais genunas festas do Esprito Santo era a da cidade de Santa Luzia.

    O Tenente-coronel Veiga, que era ento o imperador do Divino, estava em uma casa que possuana cidade. Na noite de sbado foi ali ter o bando dos pastores, composto de homens e mulheres, como seu pitoresco vesturio, e acompanhado pelo clssico velho, que era um sujeito de calo e meia,sapato raso, casaca esguia, colete comprido e grande bengala na mo.

    Camilo estava em casa do coronel, quando ali apareceu o bando dos pastores, com alguns msi-cos frente, e muita gente atrs. Formaram ]ogo, ali mesmo na rua, um crculo; um pastor e umapastora iniciaram a dana clssica. Danaram, cantaram e tocaram todos, porta e na sala do coronel,que estava literalmente a lamber-se de gosto. ponto duvidoso, e provavelmente nunca ser liquida-do, se o Tenente-coronel Veiga preferia naquela ocasio ser ministro de Estado a ser imperador doEsprito Santo.

    E todavia aquilo era apenas uma amostra da grandeza do tenente-coronel. O sol do domingodevia alumiar maiores cousas. Parece que esta razo determinou o rei da luz a trazer nesse dia os seusmelhores raios. O cu nunca se mostrara mais limpidamente azul. Algumas nuvens grossas, durante anoite, chegaram a emurchecer as esperanas dos festeiros; felizmente, sobre a madrugada soprara umvento rijo que varreu o cu e purificou a atmosfera.

    A populao correspondeu solicitude da natureza. Logo cedo apareceu ela com os seus vesti-dos domingueiros, jovial, risonha, palreira, nada menos que feliz.

    O ar atroava com foguetes; os sinos convidavam alegremente o povo cerimnia religiosa.Camilo passara a noite na cidade em casa do Padre Maciel, e foi acordado, mais cedo do que

    supusera, com os repiques e foguetada e mais demonstraes da cidade alegre. Em casa do pai conti-nuara o moo os seus hbitos de Paris, em que o comendador julgou no dever perturb-lo. Acordavaportanto s 11 horas da manh, exceto os domingos, em que ia missa, para de todo em todo noentender os hbitos da terra.

    Que diabo isto, padre? gritou Camilo do quarto onde estava, e no momento em que umagirndola lhe abria definitivamente os olhos.

    Que h de ser? respondeu o Padre Maciel, metendo a cabea pela porta: a festa. Ento a festa comea de noite? De noite? exclamou o padre. dia claro.Camilo no pde conciliar o sono, e viu-se obrigado a levantar-se. Almoou com o padre, con-

    tou duas anedotas, confessou ao hspede que Paris era o ideal das cidades, e saiu para ir ter casa doimperador do Divino. O padre saiu com ele. Em caminho viram de longe Leandro Soares.

    No me dir, padre, perguntou Camilo, por que razo a filha do Dr. Matos no atende quelepobre rapaz que gosta tanto dela?

    Maciel concertou os culos e exps a seguinte reflexo:Voc parece tolo.

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    No tanto, como lhe pareo, replicou o filho do comendador, porque mais de uma pessoa temfeito a mesma pergunta.

    Assim , na verdade, disse o padre; mas h cousas que outros dizem e a gente no repete. AIsabelinha no gosta do Soares simplesmente porque no gosta.

    No lhe parece que essa moa um tanto esquisita? No, disse o padre, parece-me uma grande finria. Ah! por qu? Suspeito que tem muita ambio; no aceita o amor do Soares, a ver se pilha algum casamen-

    to que lhe abra a porta das grandezas polticas. Ora, disse Camilo levantando os ombros. No acredita? No. Pode ser que me engane, mas creio que isto mesmo. Aqui cada qual d uma explicao

    iseno de Isabel; todas as explicaes porm me parecem absurdas; a minha a melhor.Camilo fez algumas objees explicao do padre, e despediu-se dele para ir casa do tenente-

    coronel.O festivo imperador estava literalmente fora de si. Era a primeira vez que exercia aquele cargo

    honorfico e timbrava em faz-lo brilhantemente, e at melhor que os seus predecessores. Ao naturaldesejo de no ficar por baixo, acrescia o elemento da inveja poltica. Alguns adversrios seus diziampela boca pequena que o brioso coronel no era capaz de dar conta da mo.

    Pois vero se sou capaz, foi o que ele disse ao ouvir de alguns amigos a malcia dos advers-rios.

    Quando Camilo entrou na sala, acabava o tenente-coronel de explicar umas ordens relativas aojantar que se devia seguir festa, e ouvia algumas informaes que lhe dava um irmo definidoracerca de uma cerimnia da sacristia.

    No ouso falar-lhe, coronel, disse o filho do comendador, quando o Veiga ficou s com ele:no ouso interromp-lo.

    No interrompe, acudiu o imperador do divino; agora deve tudo estar acabado. O comendadorvem?

    J c deve estar. J viu a igreja? Ainda no. Est muito bonita. No por me gabar; creio que a festa no desmerecer das outras, e at em

    algumas cousas h de ir melhor.Era absolutamente impossvel no concordar com esta opinio, quando aquele que a exprimia

    fazia assim o seu prprio louvor. Camilo encareceu ainda mais o mrito da festa. O coronel ouvia-ocom um riso de satisfao ntima, e dispunha-se a provar que o seu jovem amigo ainda no apreciavabem a situao, quando este desviou a conversa, perguntando:

    Ainda no veio o Dr. Matos? J. Com a famlia? Sim, com a famlia.Neste momento foram interrompidos pelo som de muitos foguetes e de uma msica que se

    aproximava. So eles! disse Veiga; vm buscar-me. H de dar-me licena.O coronel estava at ento de cala preta e rodaque de brim. Correu a preparar-se com o traje e

    as insgnias do seu elevado cargo. Camilo chegou janela para ver o cortejo. No tardou que esteaparecesse composto de uma banda de msica, da irmandade do Esprito Santo e dos pastores davspera. Os irmos vestiam as suas opas encarnadas, e vinham a passo grave, cercados do povo, queenchia a rua e se aglomerava porta do tenente-coronel para v-lo sair.

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    Quando o cortejo parou em frente da casa do tenente-coronel cessou a msica de tocar e todos osolhos se voltaram curiosamente para as janelas. Mas o imperador estreante estava ainda por completara sua edio, e os curiosos tiveram de contentar-se com a pessoa do Dr. Camilo. Entretanto, quatro ouseis irmos mais graduados destacaram-se do grupo e subiram as escadas do tenente-coronel.

    Minutos depois cumprimentava Camilo os ditos irmos graduados, um dos quais, mais gradua-do que os outros, no o era s no cargo, mas tambm, e sobretudo, no tamanho. E a estatura do MajorBrs seria a cousa mais notvel da sua pessoa, se lhe no pedisse meas a magreza do prprio major.A opa do major, apesar disto, ficava-lhe bem, porque nem ia at abaixo da curva da perna como a dosoutros, nem lhe ficava na cintura, como devera, no caso de ter sido feita pela mesma medida. Era umaopa termo-mdio. Ficava-lhe entre a cintura e a curva, e foi feita assim de propsito para conciliar osprincpios da elegncia com a estatura do major.

    Todos os irmos graduados estenderam a mo ao filho do comendador e perguntaram ansiosa-mente pelo tenente-coronel.

    No tarda; foi vestir-se, respondeu Camilo. A igreja est cheia, disse um dos irmos graduados; s se espera por ele. justo esperar, opinou o Major Brs. Apoiado disse o coro dos irmos. Demais, continuou o imenso oficial, temos tempo; e no vamos para longe.Os outros irmos apoiaram com o gesto esta opinio do major, que, ato contnuo, comeou a

    dizer a Camilo os mil trabalhos que a festa lhes dera, a ele e aos cavalheiros que o acompanhavamnaquela ocasio, no menos que ao tenente-coronel.

    Como recompensa dos nossos dbeis esforos (Camilo fez um sinal negativo a estas palavrasdo Major Brs), temos conscincia de que a cousa no sair de todo mal.

    Ainda estas palavras no tinham bem sado dos lbios do digno oficial, quando assomou portada sala o tenente-coronel em todo o esplendor da sua transformao.

    Camilo perdera de todo as noes que tinha a respeito do traje e insgnias de um imperador doEsprito Santo. No foi pois sem grande pasmo que viu assomar porta da sala a figura do tenente-coronel.

    Alm da cala preta, que j tinha no corpo quando ali chegou Camilo, o tenente-coronel envergarauma casaca, que pela regularidade e elegncia do corte podia rivalizar com as dos mais apuradosmembros do Cassino Fluminense. At a tudo ia bem. Ao peito rutilava uma vasta comenda da Ordemda Rosa, que lhe no ficava mal. Mas o que excedeu a toda a expectao, o que pintou no rosto donosso Camilo a mais completa expresso de assombro, foi uma brilhante e vistosa coroa de papeloforrado de papel dourado, que o tenente-coronel trazia na cabea.

    Camilo recuou um passo e cravou os olhos na insgnia imperial do tenente-coronel. J lhe nolembrava aquele acessrio indispensvel em ocasies semelhantes, e tendo vivido oito anos no meiode uma civilizao diversa, no imaginava que ainda existissem costumes que ele julgava enterrados.

    O tenente-coronel apertou a mo a todos os amigos e declarou que estava pronto a acompanh-los.

    No faamos esperar o povo, disse ele.Imediatamente, desceram rua. Houve no povo um movimento de curiosidade, quando viu

    aparecer porta a opa encarnada de um dos irmos que haviam subido. Logo atrs apareceu outra opa,e no tardou que as restantes opas aparecessem tambm flanqueando o vistoso imperador. A coroadourada, apenas o sol lhe bateu de chapa, entrou a despedir fascas quase inverossmeis. O tenente-coronel olhou a um lado e outro, fez algumas inclinaes leves de cabea a uma ou outra pessoa damultido, e foi ocupar o seu lugar de honra no cortejo. A msica rompeu logo uma marcha, que foiexecutada pelo tenente-coronel, a irmandade e os pastores, na direo da igreja.

    Apenas da igreja avistaram o cortejo, o sineiro que j estava espreita, ps em obra as liesmais complicadas do seu ofcio, enquanto uma girndola, entremeada de alguns foguetes soltos, anun-ciava s nuvens do cu que o imperador do Divino era chegado. Na igreja houve um rebulio geral

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    apenas se anunciou que era chegado o imperador. Um mestre-de-cerimnias ativo e desempenado iaabrindo alas, com grande dificuldade, porque o povo, ansioso por ver a figura do tenente-coronel,aglomerava-se desordenadamente a desfazia a obra do mestre-de-cerimnias. Afinal aconteceu o quesempre acontece nessas ocasies; as alas foram-se abrindo por si mesmas, e ainda que com algumcusto, o tenente-coronel atravessou a multido, precedido e acompanhado pela irmandade, at chegarao trono que se levantava ao lado do altar-mor. Subiu com firmeza os degraus do trono, e sentou-senele, to orgulhoso como se governasse dali todos os imprios juntos do mundo.

    Quando Camilo chegou igreja, j a festa havia comeado. Achou um lugar sofrvel, ou antesinteiramente bom, porque dali podia dominar um grande grupo de senhoras, entre as quais descobriua formosa Isabel.

    Camilo estava ansioso por falar outra vez a Isabel. O encontro na estrada e a singular perspicciade que a moa dera prova nessa ocasio, no lhe haviam sado da cabea. A moa pareceu no dar porele, mas Camilo era to versado em tratar com o belo sexo, que no lhe foi difcil perceber que ela otinha visto e intencionalmente no voltava os olhos para o lado dele. Esta circunstncia, ligada aosincidentes do domingo anterior, fez-lhe nascer no esprito a seguinte pergunta:

    Mas que tem ela contra mim?A festa prosseguiu sem novidade. Camilo no tirava os olhos de sua bela charada, nome que j

    lhe dava, mas a charada parecia refratria a todo o sentimento de curiosidade. Uma vez porm, quaseno fim, encontraram-se os olhos de ambos. Pede a verdade que se diga que o rapaz surpreendeu a moaa olhar para ele. Cumprimentou-a, foi correspondido; nada mais. Acabada a festa foi a irmandadelevar o tenente-coronel at a casa. No meio da lufa-lufa da sada, Camilo, que estava embebido a olharpara Isabel, ouviu uma voz desconhecida que lhe dizia ao ouvido:

    Veja o que faz!Camilo voltou-se e deu com um homem baixinho e magro, de olhos midos e vivos, pobre mas

    asseadamente trajado. Encararam-se alguns segundos sem dizer palavra. Camilo no conhecia aquelacara e no se atrevia a pedir a explicao das palavras que ouvira, conquanto ardesse por saber o resto.

    H um mistrio, continuou o desconhecido. Quer descobri-lo?Houve algum tempo de silncio. O lugar no prprio, disse Camilo; mas se tem alguma cousa que me dizer... No; descubra o senhor mesmo.E dizendo isto desapareceu no meio do povo o homem baixinho e magro, de olhos vivos e

    midos. Camilo acotovelou umas dez ou doze pessoas, pisou uns quinze ou vinte calos, pediu outrastantas vezes perdo da sua imprudncia, at que se achou na rua sem ver nada que se parecesse com odesconhecido.

    Um romance! disse ele; estou em pleno romance.Nisto saiam da igreja Isabel, D. Gertrudes e o Dr. Matos. Camilo aproximou-se do grupo e

    cumprimentou-os. Matos deu o brao a D. Gertrudes; Camilo ofereceu timidamente o seu a Isabel. Amoa hesitou; mas no era possvel recusar. Passou o brao no do jovem mdico e o grupo dirigiu-separa a casa onde o tenente-coronel j estava e mais algumas pessoas importantes da localidade. Nomeio do povo havia um homem que tambm se dirigia para a casa do coronel e que no tirava os olhosde Camilo e de Isabel. Esse homem mordia o lbio at fazer sangue. Ser preciso dizer que era Lean-dro Soares?

    Captulo V - Paixo

    A DISTNCIA da igreja casa era pequena; e a conversa entre Isabel e Camilo no foi longanem seguida. E todavia, leitor, se alguma simpatia te merece a princesa moscovita, deves sinceramen-te lastim-la. A aurora de um novo sentimento comeava a dourar as cumeadas do corao de Camilo;ao subir as escadas, confessava o filho do comendador de si para si, que a interessante patrcia tinha

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    qualidades superiores s da bela princesa russa. Hora e meia depois, isto , quase no fim do jantar, ocorao de Camilo confirmava plenamente esta descoberta do seu investigador esprito.

    A conversa, entretanto, no passou de cousas totalmente indiferentes; mas Isabel falava comtanta doura e graa, posto no alterasse nunca a sua habitual reserva; os olhos eram to bonitos de verao perto, e os cabelos tambm, e a boca igualmente, e as mos do mesmo modo, que o nosso ardentemancebo, s mudando de natureza, poderia resistir ao influxo de tantas graas juntas.

    O jantar correu sem novidade aprecivel. Reuniram-se mesa do tenente-coronel todas as nota-bilidades do lugar, o vigrio, o juiz municipal, o negociante, o fazendeiro, reinando sempre de umaponta a outra da mesa a maior cordialidade e harmonia. O imperador do Divino, j ento restitudo aoseu vesturio comum, fazia as honras da mesa com verdadeiro entusiasmo. A festa era o objeto dageral conversa, entremeada, verdade, de reflexes polticas, em que todos estavam de acordo, porqueeram do mesmo partido, homens e senhoras.

    O Major Brs tinha por costume fazer um ou dois brindes longos e eloqentes em cada jantar decerta ordem a que assistisse. A facilidade com que ele se exprimia no tinha rival em toda a provncia.Alm disso, como era dotado de descomunal estatura, dominava de tal modo o auditrio, que o sim-ples levantar-se era j meio triunfo.

    No podia o Major Brs deixar passar inclume o jantar do tenente-coronel; ia-se entrar nasobremesa quando o eloqente major pediu licena para dizer algumas palavras singelas e toscas. Ummurmrio, equivalente aos no-apoiados das cmaras, acolheu esta declarao do orador, e o audit-rio preparou o ouvido para receber as prolas que lhe iam cair da boca.

    O ilustre auditrio que me escuta, disse ele, desculpar a minha ousadia; no vos fala otalento, senhores; fala-vos o corao.

    Meu brinde curto: para celebrar as virtudes e a capacidade do ilustre Tenente-coronel Veigano preciso fazer um longo discurso. Seu nome diz tudo; a minha voz nada adiantaria...

    O auditrio revelou por sinais que aplaudia sem restries o primeiro membro desta ltimafrase, e com restries o segundo; isto , cumprimentou o tenente-coronel e o major; e o orador que,para ser coerente com o que acabava de dizer, devia limitar-se a esvaziar o copo, prosseguiu da seguin-te maneira:

    O imenso acontecimento que acabamos de presenciar, senhores, creio que nunca se apagarda vossa memria. Muitas festas do Esprito Santo tm havido nesta cidade e em outras; mas nunca opovo teve o jbilo de contemplar um esplendor, uma animao, um triunfo igual ao que nos proporci-onou o nosso ilustre correligionrio e amigo, o Tenente-coronel Veiga, honra da classe a que pertence,e glria do partido a que se filiou...

    E no qual pretendo morrer, completou o tenente-coronel. Nem outra cousa era de esperar de V. Ex.a, disse o orador mudando de voz para dar a estas

    palavras um tom de parntesis.Apesar da declarao feita no princpio, de que era intil acrescentar nada aos mritos do tenen-

    te-coronel, o intrpido orador falou cerca de vinte e cinco minutos com grande mgoa do Padre Macielque namorava de longe um fofo e trmulo pudim de po, e do juiz municipal que estava ansioso por irfumar. A perorao desse memorvel discurso foi pouco mais ou menos assim:

    Eu faltaria, portanto, aos meus deveres de amigo, de correligionrio, de subordinado e deadmirador, se no levantasse a voz nesta ocasio, e no vos dissesse em linguagem tosca, sim (sinaisde desaprovao), mas sincera, os sentimentos que me tumultuam dentro do peito, o entusiasmo deque me sinto possudo, quando contemplo o venerando e ilustre Tenente-coronel Veiga, e se vos noconvidasse a beber comigo sade de S. Ex.a.

    O auditrio acompanhou com entusiasmo o brinde do major, ao qual respondeu o tenente-coro-nel com estas poucas, mas sentidas palavras:

    Os elogios que me acaba de fazer o distinto Major Brs so verdadeiros favores de uma almagrande e generosa; no os mereo, senhores; devolvo-os intactos ao ilustre orador que me precedeu.

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    No meio da festa e da alegria que reinava ningum reparou nas atenes que Camilo prestava bela filha do Dr. Matos. Ningum, digo mal; Leandro Soares, que fora convidado ao jantar, e assistiraa ele, no tirava os olhos do elegante rival e da sua formosa e esquiva dama.

    H de parecer milagre ao leitor a indiferena e at o ar alegre com que Soares assistia aos ataquesdo adversrio. No milagre; Soares tambm interrogava o olhar de Isabel e lia nele a indiferena,talvez o desdm, com que tratava o filho do comendador.

    Nem eu, nem ele dizia consigo o pretendente.Camilo estava apaixonado; no dia seguinte amanheceu pior; cada dia que passava aumentava a

    chama que o consumia. Paris e a princesa, tudo havia desaparecido do corao e da memria do rapaz.Um s ente, um lugar nico mereciam agora as suas atenes: Isabel e Gois.

    A esquivana e os desdns da moa no contriburam pouco para esta transformao. Fazendode si prprio melhor idia que do rival, Camilo dizia consigo:

    Se ela no me d ateno, muito menos deve importar-se com o filho de Soares. Mas por querazo se mostra comigo to esquiva? Que motivo h para que eu seja derrotado como qualquer preten-dente vulgar?

    Nessas ocasies lembrava-se do desconhecido que lhe falara na igreja e das palavras que lhedissera.

    Algum mistrio haver, dizia ele, mas como descobri-lo?Indagou das pessoas da cidade quem era o sujeito baixo de olhos midos e vivos. Ningum lho

    soube dizer. Parecia incrvel que no chegasse a descobrir naquelas paragens um homem que natural-mente algum devia conhecer; redobrou de esforos; ningum sabia quem era o misterioso sujeito.

    Entretanto Camilo freqentava a fazenda do Dr. Matos e ali ia jantar algumas vezes. Era difcilfalar a Isabel com a liberdade que permitem mais adiantados costumes; fazia entretanto o que podiapara comunicar bela moa os seus sentimentos. Isabel parecia cada vez mais estranha s comunica-es do rapaz. Suas maneiras no eram positivamente desdenhosas, mas frias; dissera-se que ali den-tro morava um corao de neve.

    Ao amor desprezado, veio juntar-se o orgulho ofendido, o despeito e a vergonha, e tudo isto,junto a uma epidemia que ento reinava na comarca, deu com o nosso Camilo na cama, onde por agorao deixaremos, entregue aos mdicos seus colegas.

    Captulo VI - Revelao

    NO H MISTRIOS para um autor que sabe investigar todos os recantos do corao. En-quanto o povo de Santa Luzia faz mil conjeturas a respeito da causa verdadeira da iseno que atagora tem mostrado a formosa Isabel, estou habilitado para dizer ao leitor impaciente que ela ama.

    E a quem ama? pergunta vivamente o leitor.Ama... uma parasita. Uma parasita? verdade, uma parasita. Deve ser ento uma flor muito

    linda, um milagre de frescura e de aroma. No, senhor, uma parasita muito feia, um cadver deflor, seco, mirrado, uma flor que devia ter sido lindssima h muito tempo, no p, mas que hoje nacestinha em que ela a traz, nenhum sentimento inspira, a no ser de curiosidade. Sim, porque real-mente curioso que uma moa de vinte anos, em toda a fora das paixes, parea indiferente aos ho-mens que a cercam, e concentre todos os seus afetos nos restos descorados e secos de uma flor.

    Ah! mas aquela foi colhida em circunstncias especiais. Dera-se o caso alguns anos antes. Ummoo da localidade gostava ento muito de Isabel, porque era uma criana engraada, e costumavacham-la sua mulher, gracejo inocente que o tempo no sancionou. Isabel tambm gostava do rapaz, aponto de fazer nascer no esprito do pai da moa a seguinte idia:

    Se daqui a alguns anos as cousas no mudarem por parte dela, e se ele vier a gostar seriamen-te da pequena, creio que os posso casar.

    Isabel ignorava completamente esta idia do pai; mas continuava a gostar do moo, o qualcontinuava a ach-la uma criana interessantssima.

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    Um dia viu Isabel uma linda parasita azul, entre os galhos de uma rvore. Que bonita flor! disse ela. Aposto que voc a quer? Queria, sim... disse a menina que, sem aprender, conhecia j esse falar oblquo e disfarado.O moo despiu o palet com a sem-cerimnia de quem trata com uma criana e trepou pela

    rvore acima. Isabel ficou embaixo ofegante e ansiosa pelo resultado. No tardou que o complacentemoo deitasse a mo flor e delicadamente a colhesse.

    Apanhe! disse ele de cima.Isabel aproximou-se da rvore e recolheu a flor no regao. Contente por ter satisfeito o desejo da

    menina, tratou o rapaz de descer, mas to desastradamente o fez, que no fim de dous minutos jazia nocho aos ps de Isabel. A menina deu um grito de angstia e pediu socorro; o rapaz procurou tranqiliz-la dizendo que nada era, e tentando levantar-se alegremente. Levantou-se com efeito, com a camisasalpicada de sangue; tinha ferido a cabea.

    A ferida foi declarada leve; dentro de poucos dias estava o valente moo completamente resta-belecido.

    A impresso que Isabel recebeu naquela ocasio foi profunda. Gostava at ento do rapaz; daem diante passou a ador-lo. A flor que ele lhe colhera veio naturalmente a secar; Isabel guardou-acomo se fora uma relquia; beijava-a todos os dias; e de certo tempo em diante at chorava sobre ela.Uma espcie de culto supersticioso prendia o corao da moa quela mirrada parasita.

    No era ela porm to mau corao que no ficasse vivamente impressionada quando soube dadoena de Camilo. Fez indagar com assiduidade do estado do moo, e cinco dias depois foi com o paivisit-lo fazenda do comendador.

    A simples visita da moa, se no curou o doente, deu em resultado consol-lo e anim-lo; viaram-lhe algumas esperanas, que j estavam mais secas e mirradas que a parasita cuja histria acima narrei.

    Quem sabe se me no amar agora? pensou ele.Apenas ficou restabelecido foi o seu primeiro cuidado ir fazenda do Dr. Matos; o comendador

    quis acompanh-lo. No o acharam em casa; estavam apenas a irm e a filha. A irm era uma pobrevelha, que alm desse achaque, tinha mais dous: era surda e gostava de poltica. A ocasio era boa;enquanto a tia de Isabel confiscava a pessoa e a ateno do comendador, Camilo teve tempo de dar umgolpe decisivo e rpido, dirigindo moa estas palavras:

    Agradeo-lhe a bondade que mostrou a meu respeito durante a minha molstia. Essa mesmabondade anima-me a pedir-lhe uma cousa mais...

    Isabel franziu-a testa. Reviveu-me uma esperana h dias, continuou Camilo, esperana que j estava morta. Ser

    iluso minha? Uma sua palavra, um gesto seu resolver esta dvida.Isabel ergueu os ombros. No compreendo, disse ela. Compreende, disse Camilo em tom amargo. Mas eu serei mais franco, se o exige. Amo-a;

    disse-lho mil vezes; no fui atendido. Agora porm...Camilo concluiria de boa vontade este pequeno discurso, se tivesse diante de si a pessoa que ele

    desejava o ouvisse. Isabel, porm, no lhe deu tempo de chegar ao fim. Sem dizer palavra, sem fazerum gesto, atravessou a extensa varanda e foi sentar-se na outra extremidade onde a velha tia punha prova os excelentes pulmes do comendador.

    O desapontamento de Camilo estava alm de toda a descrio. Pretextando um calor que noexistia saiu para tomar ar, e ora vagaroso, ora apressado, conforme triunfava nele a irritao ou odesnimo, o msero pretendente deixou-se ir sem destino. Construiu mil planos de vingana, ideou milmaneiras de ir lanar-se aos ps da moa, rememorou todos os fatos que se haviam dado com ela, e aocabo de uma longa hora chegou triste concluso de que tudo estava perdido. Nesse momento deuacordo de si: estava ao p de um riacho que atravessava a fazenda do Dr. Matos. O lugar era agreste e

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    singularmente feito para a situao em que ele se achava. A uns duzentos passos viu uma cabana, ondepareceu que algum entoava uma cantiga do serto.

    Importuna cousa a felicidade alheia quando somos vtima de algum infortnio. Camilo sentiu-se ainda mais irritado, e ingenuamente perguntou a si mesmo se algum podia ser feliz estando elecom o corao a sangrar de desespero. Da a nada aparecia porta da cabana um homem e saa nadireo do riacho. Camilo estremeceu, pareceu-lhe reconhecer o misterioso que lhe falara no dia doEsprito Santo. Era a mesma estatura e o mesmo ar; aproximou-se rapidamente e parou a cinco passosde distncia. O homem voltou o rosto: era ele!

    Camilo correu ao desconhecido. Enfim! disse ele.O desconhecido sorriu-se complacentemente e apertou a mo que Camilo lhe oferecia. Quer descansar? perguntou-lhe. No, respondeu o mdico. Aqui mesmo, ou mais longe se lhe apraz, mas desde j, por favor,

    desejo que me explique as palavras que me disse outro dia na igreja.Novo sorriso do desconhecido. Ento? disse Camilo vendo que o homem no respondia. Antes de mais nada, diga-me: gosta deveras da moa? Oh! muito! Jura que a faria feliz? Juro! Ento oua. O que vou contar a V. S.a verdade, porque o soube por minha mulher que foi

    mucama de D. Isabel. aquela que ali est.Camilo olhou para a porta da cabana e viu uma mulatinha alta e elegante, que olhava para ele

    com curiosidade. Agora, continuou o desconhecido, afastemo-nos um pouco; para que ela nos no oua porque

    eu no desejo venha a saber-se de quem V. S.a ouviu esta histria.Afastaram-se com efeito costeando o riacho. O desconhecido narrou ento a Camilo toda a

    histria da parasita, e o culto que at ento a moa votava flor j seca. Um leitor menos sagazimagina que o namorado ouviu essa narrao triste e abatido. Mas o leitor que souber ler adivinha logoque a confidncia do desconhecido despertou na alma de Camilo os mais incrveis sobressaltos dealegria.

    Aqui est o que h, disse o desconhecido ao concluir, creio que V. S.a com isto pode saber emque terreno pisa.

    Oh! sim! sim! disse Camilo. Sou amado! sou amado!Sabedor daquela novidade ardia o mdico por voltar a casa, donde sara havia tanto tempo.

    Meteu a mo na algibeira, abriu a carteira e tirou uma nota de vinte mil-ris. O servio que me acaba de prestar imenso, disse ele; no tem preo. Isto porm apenas

    uma lembrana...Dizendo estas palavras, estendeu-lhe a nota. O desconhecido riu-se desdenhosamente sem res-

    ponder palavra. Depois, estendeu a mo nota que Camilo lhe oferecia, e, com grande pasmo deste,atirou-a ao riacho. O fio dgua que ia murmurando e saltando por cima das pedras, levou consigo obilhete, de envolta com uma folha que o vento lhe levara tambm.

    Deste modo, disse o desconhecido, nem o senhor fica devendo um obsquio, nem eu receboa paga dele. No pense que tive teno de servir a V.S.a; no. Meu desejo fazer feliz a filha do meubenfeitor. Sabia que ela gostava de um moo, e que esse moo era capaz de a fazer feliz; abri caminhopara que ele chegue at onde ela est. Isto no se paga; agradece-se apenas.

    Acabando de dizer estas palavras, o desconhecido voltou as costas ao mdico, e dirigiu-se paraa cabana. Camilo acompanhou com os olhos aquele homem rstico. Pouco tempo depois estava emcasa de Isabel, onde j era esperado com alguma ansiedade. Isabel viu-o entrar alegre e radiante.

    Sei tudo, disse-lhe Camilo pouco antes de sair.

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    A moa olhou espantada para ele. Tudo? repetiu ela. Sei que me ama, sei que esse amor nasceu h longos anos, quando era criana, e que ainda

    hoje...Foi interrompido pelo comendador que se aproximava. Isabel estava plida e confusa; estimou a

    interrupo, porque no saberia que responder.No dia seguinte escreveu-lhe Camilo uma extensa carta apaixonada, invocando o amor que ela

    conservara no corao, e pedindo-lhe que o fizesse feliz. Dous dias esperou Camilo a resposta damoa. Veio no terceiro dia. Era breve e seca. Confessava que o amara durante aquele longo tempo, ejurava no amar nunca a outro.

    Apenas isso, conclua Isabel. Quanto a ser sua esposa, nunca. Eu quisera entregar a minha vidaa quem tivesse um amor igual ao meu. O seu amor de ontem; o meu de nove anos; a diferena deidade grande demais; no pode ser bom consrcio. Esquea-me e adeus.

    Dizer que esta carta no fez mais do que aumentar o amor de Camilo, escrever no papel aquiloque o leitor j adivinhou. O corao de Camilo s esperava uma confisso escrita da moa para trans-por o limite que o separava da loucura. A carta transtornou-o completamente.

    Captulo VII - Precipitam-se os acontecimentos

    O COMENDADOR no perdera a idia de meter o filho na poltica. Justamente nesse ano haviaeleio; o comendador escreveu s principais influncias da provncia para que o rapaz entrasse narespectiva assemblia. Camilo teve notcia desta premeditao do pai; limitou-se a erguer os ombros,resolvido a no aceitar cousa nenhuma se no fosse a mo de Isabel. Em vo o pai, o Padre Maciel, otenente-coronel lhe mostravam um futuro esplndido e todo semeado de altas posies. Uma s posi-o o contentava: casar com a moa.

    No era fcil, decerto: a resoluo de Isabel parecia inabalvel.Ama-me, porm, dizia o rapaz consigo; meio caminho andado.E como o seu amor era mais recente que o dela, compreendeu Camilo que o meio de ganhar a

    diferena da idade, era mostrar que o tinha mais violento e capaz de maiores sacrifcios.No poupou manifestaes de toda a sorte. Chuvas e temporais arrostou para ir v-la todos os

    dias; fez-se escravo dos seus menores desejos. Se Isabel tivesse a curiosidade infantil de ver na mo aestrela-dalva, muito provvel que ele achasse meio de lha trazer.

    Ao mesmo tempo cessara de a importunar com epstolas ou palavras amorosas. A ltima que lhedisse foi:

    Esperarei!Nesta esperana andou ele muitas semanas, sem que a sua situao melhorasse sensivelmente...Alguma leitora menos exigente, h de achar singular a resoluo de Isabel, ainda depois de saber

    que era amada. Tambm eu penso assim; mas no quero alterar o carter da herona, porque ela era talqual a apresento nestas pginas. Entendia que ser amada casualmente, pela nica razo de ter o moovoltado de Paris, enquanto ela gastara largos anos a lembrar-se dele e a viver unicamente dessa recor-dao, entendia, digo eu, que isto a humilhava, e porque era imensamente orgulhosa, resolvera nocasar com ele nem com outro. Ser absurdo; mas era assim.

    Fatigado de assediar inutilmente o corao da moa, e por outro lado, convencido de que eranecessrio mostrar uma dessas paixes invencveis a ver se a convencia e lhe quebrava a resoluo,planeou Camilo um grande golpe.

    Um dia de manh desapareceu da fazenda. A princpio ningum se abalou com a ausncia domoo, porque ele costumava dar longos passeios, quando porventura acordava mais cedo. A cousaporm comeou a assustar proporo que o tempo ia passando. Saram emissrios para todas aspartes, e voltaram sem dar novas do rapaz.

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    O pai estava aterrado; a notcia do acontecimento correu por toda a parte em dez lguas ao redor.No fim de cinco dias de infrutferas pesquisas soube-se que um moo, com todos os sinais de Camilofora visto a meia lgua da cidade, a cavalo. Ia s e triste. Um tropeiro asseverou depois ter visto ummoo junto de uma ribanceira parecendo sondar com o olhar que probabilidade de morte lhe trariauma queda.

    O comendador entrou a oferecer grossas quantias a quem lhe desse notcia segura do filho.Todos os seus amigos despacharam gente a investigar as matas e os campos, e nesta intil labutaocorreu uma semana.

    Ser necessrio dizer a dor que sofreu a formosa Isabel quando lhe foram dar notcia do desapa-recimento de Camilo? A primeira impresso foi aparentemente nenhuma, o rosto no revelou a tem-pestade que imediatamente rebentara no corao. Dez minutos depois a tempestade subiu aos olhos etransbordou num verdadeiro mar de lgrimas.

    Foi ento que o pai teve conhecimento da paixo to longo tempo incubada. Ao ver aquelaexploso no duvidou que o amor da filha pudesse vir a ser-lhe funesto. Sua primeira idia foi que orapaz desaparecera para fugir a um enlace indispensvel. Isabel tranqilizou-o dizendo que, pelo con-trrio, era ela quem se negara a aceitar o amor de Camilo.

    Fui eu que o matei! exclamava a pobre moa.O bom velho no compreendeu muito como que uma moa apaixonada por um mancebo, e um

    mancebo apaixonado por uma moa, em vez de caminharem para o casamento, tratassem de se separarum do outro. Lembrou-se que o seu procedimento fora justamente o contrrio, logo que travou oprimeiro namoro.

    No fim de uma semana foi o Dr. Matos procurado na sua fazenda pelo nosso j conhecidomorador da cabana, que ali chegou ofegante e alegre.

    Est salvo disse ele. Salvo! exclamaram o pai e a filha. verdade, disse Miguel (era o nome do homem); fui encontr-lo no fundo de uma ribanceira,

    quase sem vida, ontem de tarde . E por que no vieste dizer-nos?... perguntou o velho. Porque era preciso cuidar dele em primeiro lugar. Quando voltou a si quis ir outra vez tentar

    contra os seus dias; eu e minha mulher impedimo-lo de fazer tal. Est ainda um pouco fraco, por issono veio comigo.

    O rosto de Isabel estava radiante. Algumas lgrimas, poucas e silenciosas, ainda lhe correramdos olhos; mas eram j de alegria e no de mgoa.

    Miguel saiu com a promessa de que o velho iria l buscar o filho do comendador. Agora, Isabel, disse o pai apenas ficou s com ela, que pretendes fazer? O que me ordenar, meu pai! Eu s ordenarei o que te disser o corao. Que te diz ele? Diz... O qu? Que sim. E o que devia ter dito h muito tempo, porque. . .O velho estacou.Mas se a causa deste suicdio for outra? pensou ele. Indagarei tudo.Comunicada a notcia ao comendador, no tardou que este se apresentasse em casa do Dr. Ma-

    tos, onde pouco depois chegou Camilo. O msero rapaz trazia escrita no rosto a dor de haver escapado morte trgica que procurara; pelo menos, assim o disse muitas vezes em caminho, ao pai de Isabel.

    Mas a causa dessa resoluo? perguntou-lhe o doutor. A causa... balbuciou Camilo que espreitava a pergunta; no ouso confess-la... vergonhosa? perguntou o velho com um sorriso benvolo. Oh! no!...

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    Mas que causa ? Perdoa-me, se eu lha disser? Por que no? No, no ouso... disse resolutamente Camilo. intil, porque eu j sei. Ah! E perdo a causa, mas no lhe perdo a resoluo; o senhor fez uma cousa de criana. Mas ela despreza-me! No... ama-o!Camilo fez aqui um gesto de surpresa perfeitamente imitado, e acompanhou o velho at a casa,

    onde encontrou o pai, que no sabia se devia mostrar-se severo ou satisfeito.Camilo compreendeu logo ao entrar o efeito que o seu desastre causara no corao de Isabel. Ora pois! disse o pai da moa. Agora que o ressuscitamos preciso prend-lo vida com uma

    cadeia forte.E sem esperar a formalidade do costume nem atender s etiquetas normais da sociedade, o pai de

    Isabel deu ao comendador a novidade de que era indispensvel casar os filhos.O comendador ainda no voltara a si da surpresa de ter encontrado o filho, quando ouviu esta

    notcia; e se toda a tribo dos Xavantes viesse cair em cima dele armada de arco e flecha no sentiriaespanto maior. Olhou alternadamente para todos os circunstantes como se lhes pedisse a razo de umfato alis mui natural. Afinal explicaram-lhe a paixo de Camilo e Isabel, causa nica do suicdio meioexecutado pelo filho. O comendador aprovou a escolha do rapaz, e levou a sua galanteria a dizer queno caso dele teria feito o mesmo, se no contasse com a vontade da moa.

    Serei enfim digno do seu amor? perguntou o mdico a Isabel quando se achou s com ela. Oh! sim!... disse ela. Se morresse, eu morreria tambm!Camilo apressou-se a dizer que a Providncia velara por ele; e no se soube nunca o que que

    ele chamava Providncia.No tardou que o desenlace do episdio trgico fosse publicado na cidade e seus arredores.Apenas Leandro Soares soube do casamento projetado entre Isabel e Camilo ficou literalmente

    fora de si. Mil projetos lhe acudiram mente, cada qual mais sanguinrio: em sua opinio eram dousprfidos que o haviam trado; cumpria tirar uma solene desforra de ambos.

    Nenhum dspota sonhou nunca mais terrveis suplcios do que os que Leandro Soares engen-drou na sua escaldada imaginao. Dous dias e duas noites passou o pobre namorado em conjeturasestreis. No terceiro dia resolveu ir simplesmente procurar o venturoso rival, lanar-lhe em rosto a suavilania e assassin-lo depois.

    Muniu-se de uma faca e partiu.Saa da fazenda o feliz noivo, descuidado da sorte que o esperava. Sua imaginao ideava agora

    uma vida cheia de bem-aventurana e deleites celestes: a imagem da moa dava a tudo o que o rodeavauma cor potica. Ia todo engolfado nestes devaneios quando viu em frente de si o preterido rival.Esquecera-se dele no meio da sua felicidade: compreendeu o perigo e preparou-se para ele.

    Leandro Soares fiel ao programa que se havia imposto desfiou um rosrio de improprios que omdico ouviu calado. Quando Soares acabou e ia dar prtica o ponto final sanguinolento, Camilorespondeu:

    Atendi a tudo o que me disse: peo-lhe agora que me oua. verdade que vou casar com essamoa; mas tambm verdade que ela o no ama. Qual o nosso crime neste caso? Ora, ao passo queo senhor nutre a meu respeito sentimentos de dio, eu pensava na sua felicidade.

    Ah!, disse Soares com ironia. verdade. Disse comigo que um homem das suas aptides no devia estar eternamente

    dedicado a servir de degrau aos outros, e ento, como meu pai quer a fora fazer-me deputado provin-cial, disse-lhe que aceitava o lugar para o dar ao senhor. Meu pai concordou; mas eu tive de vencer

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    resistncias polticas e ainda agora trato de quebrar algumas. Um homem que assim procede creio quelhe merece alguma estima, pelo menos no lhe merece tanto dio.

    No creio que a lngua humana possua palavras assaz enrgicas para pintar a indignao que semanifestou no rosto de Leandro Soares. O sangue subiu-lhe todo s faces, enquanto os olhos pareciamdespedir chispas de fogo. Os lbios trmulos como que ensaiavam baixinho uma imprecao eloqen-te contra o feliz rival. Enfim, o pretendente infeliz rompeu nestes termos:

    A ao que o senhor praticou era j bastante infame; no precisava juntar-lhe o escrnio.. O escrnio! interrompeu Camilo. Que outro nome darei eu ao que me acaba de dizer? Grande estima, na verdade, a sua, que

    depois de me roubar a maior, a nica felicidade, que eu podia ter, vem oferecer-me uma compensaopoltica!

    Camilo conseguiu explicar que no lhe oferecia nenhuma compensao; pensara naquilo porconhecer as tendncias polticas de Soares e julgar que deste modo lhe seria agradvel.

    Ao mesmo tempo, concluiu gravemente o noivo, fui levado pela idia de prestar um servio provncia. Creia que em nenhum caso, ainda que me devesse custar a vida, proporia cousa desvanta-josa provncia e ao pas. Eu cuidava servir a ambos apresentando a sua candidatura, e pode crer quea minha opinio ser a de todos.

    Mas o senhor falou de resistncias... disse Soares cravando no adversrio um olhar inquisitorial. Resistncias, no por oposio pessoal, mas por convenincias polticas, explicou Camilo.

    Que vale isso? Tudo se desfaz com a razo e os verdadeiros princpios do partido que tem a honra deo possuir entre seus membros.

    Leandro Soares no tirava os olhos de Camilo; nos lbios pairava-lhe agora um sorriso irnico echeio de ameaas. Contemplou-o ainda alguns instantes sem dizer palavra, at que de novo rompeu osilncio.

    Que faria o senhor no meu caso? perguntou ele dando ao seu irnico sorriso um ar verdadei-ramente lgubre.

    Eu recusava, respondeu afoutamente Camilo. Ah! Sim, recusava, porque no tenho vocao poltica. No acontece o mesmo com o senhor, que

    a tem, e por assim dizer o apoio do partido em toda esta comarca.Tenho essa convico, disse Soares com orgulho. No o nico: todos lhe fazem justia.Soares entrou a passear de um lado para outro. Esvoaavam-lhe na mente terrveis inspiraes,

    ou a humanidade reclamava alguma moderao no gnero de morte que daria ao rival? Decorreramcinco minutos. Ao cabo deles, Soares parou em frente de Camilo e ex abrupto lhe perguntou:

    Jura-me uma cousa? O qu? Que a far feliz? J o jurei a mim mesmo; o meu mais doce dever. Seria meu esse dever se a sorte se no houvesse pronunciado contra mim; no importa, estou

    disposto a tudo. Creia que eu sei avaliar o seu grande corao, disse Camilo estendendo-lhe a mo. Talvez. O que no sabe, o que no conhece, a tempestade que me fica na alma, a dor imensa

    que me h de acompanhar at morte. Amores destes vo at sepultura.Parou e sacudiu a cabea, como para expelir uma idia sinistra. Que pensamento o seu? perguntou Camilo vendo o gesto de Soares. Descanse, respondeu este; no tenho projeto nenhum. Resignar-me-ei sorte: e se aceito essa

    candidatura poltica que me oferece unicamente para afogar nela a dor que me abafa o corao.No sei se este remdio eleitoral servir para todos os casos de doena amorosa. No corao de

    Soares produziu uma crise salutar, que se resolveu em favor do doente.

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    Os leitores adivinham bem que Camilo nada havia dito em favor de Soares, mas empenhou-selogo nesse sentido, e o pai com ele, e afinal conseguiu-se que Leandro Soares fosse includo numachapa e apresentado aos eleitores na prxima campanha. Os adversrios do rapaz, sabedores das cir-cunstncias em que lhe foi oferecida a candidatura, no deixaram de dizer em todos os tons, que elevendera o direito de primogenitura por um prato de lentilhas.

    Havia j um ano que o filho do comendador estava casado, quando apareceu na sua fazenda umviajante francs. Levava cartas de recomendao de um dos seus professores de Paris. Camilo rece-beu-o alegremente e pediu-lhe notcias da Frana, que ele ainda amava, dizia, como a sua ptria inte-lectual. O viajante disse-lhe muitas cousas, e sacou por fim da mala um mao de jornais.

    Era o Figaro. O Figaro! exclamou Camilo, lanando-se aos jornais.Eram atrasados, mas eram parisienses. Lembravam-lhe a vida que ele tivera durante longos

    anos, e posto nenhum desejo sentisse de trocar por ela a vida atual, havia sempre uma natural curiosi-dade em despertar recordaes de outro tempo.

    No quarto ou quinto nmero que abriu deparou-se-lhe uma notcia que ele leu com espanto.Dizia assim:Uma clebre Leontina Caveau, que se dizia viva de um tal prncipe Alexis, sbdito do tzar, foi

    ontem recolhida priso. A bela dama (era bela!) no contente de iludir alguns moos incautos,alapardou-se com todas as jias de uma sua vizinha, Mlle. B... A roubada queixou-se a tempo deimpedir a fuga da pretendida princesa.

    Camilo acabava de ler pela quarta vez esta notcia, quando Isabel entrou na sala. Ests com saudades de Paris? perguntou ela vendo-o to atento a ler o jornal francs. No, disse o marido, passando-lhe o brao roda da cintura; estava com saudades de ti.

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    As Bodas de Lus DuarteNA MANH de um sbado, 25 de abril, andava tudo em alvoroo em casa de Jos Lemos.

    Preparava-se o aparelho de jantar dos dias de festa, lavavam-se as escadas e os corredores, enchiam-seos leites e os perus para serem assados no forno da padaria defronte; tudo era movimento; algumacousa grande ia acontecer nesse dia.

    O arranjo da sala ficou a cargo de Jos Lemos. O respeitvel dono da casa, trepado num banco,tratava de pregar parede duas gravuras compradas na vspera em casa do Bernasconi; uma represen-tava a Morte de Sardanapalo; outra a Execuo de Maria Stuart. Houve alguma luta entre ele e amulher a respeito da colocao da primeira gravura. D. Beatriz achou que era indecente um grupo dehomem abraado com tantas mulheres. Alm disso, no lhe pareciam pr-prios dous quadros fnebresem dia de festa. Jos Lemos que tinha sido membro de uma sociedade literria, quando era rapaz,respondeu triunfantemente que os dous quadros eram histricos, e que a histria est bem em todas asfamlias. Podia acrescentar que nem todas as famlias esto bem na histria; mas este trocadilho eramais lgubre que os quadros.

    D. Beatriz, com as chaves na mo, mas sem a melena desgrenhada do soneto de Tolentino,andava literalmente da sala para a cozinha, dando ordens, apressando as escravas, tirando toalhas eguardanapos lavados e mandando fazer compras, em suma, ocupada nas mil cousas que esto a cargode uma dona de casa, mxime num dia de tanta magnitude.

    De quando em quando, chegava Dona Beatriz escada que ia ter ao segundo andar, e gritava: Meninas, venham almoar!Mas parece que as meninas no tinham pressa, porque s depois das nove horas acudiram ao

    oitavo chamado da me, j disposta a subir ao quarto das pequenas, o que era verdadeiro sacrifcio daparte de uma senhora to gorda.

    Eram duas moreninhas de truz as filhas do casal Lemos. Uma representava ter vinte anos, outradezessete; ambas eram altas e um tanto refeitas. A mais velha estava um pouco plida; a outra, coradinhae alegre, desceu cantando no sei que romance do Alcazar, ento em moda. Parecia que das duas amais feliz seria a que cantava; no era; a mais feliz era a outra que nesse dia devia ligar-se pelos laosmatrimoniais ao jovem Lus Duarte, com quem nutria longo e porfiado namoro. Estava plida por tertido uma insnia terrvel, doena de que at ento no padecera nunca. H doenas assim.

    Desceram as duas pequenas, tomaram a bno me, que lhes fez um rpido discurso de repre-enso e foram sala para falar ao pai. Jos Lemos, que pela stima vez trocava a posio dos quadros,consultou as filhas sobre se era melhor que a Stuart ficasse do lado do sof ou do lado oposto. Asmeninas disseram que era melhor deix-la onde estava, e esta opinio ps termo s dvidas de JosLemos que deu por concluda a tarefa e foi almoar.

    Alm de Jos Lemos, sua mulher Dona Beatriz, Carlota (a noiva) e Lusa, estavam mesaRodrigo Lemos e o menino Antonico, filhos tambm do casal Lemos. Rodrigo tinha dezoito anos eAntonico seis: o Antonico era a miniatura do Rodrigo: distinguiam-se ambos por uma notvel pregui-a, e nisso eram perfeitamente irmos. Rodrigo desde as oito horas da manh gastou o tempo em duascousas; ler os anncios do Jornal e ir cozinha saber em que altura estava o almoo. Quanto aoAntonico, tinha comido s seis horas um bom prato de mingau, na forma do costume, e s se ocupouem dormir tranqilamente at que a mucama o foi chamar.

    O almoo correu sem novidade. Jos Lemos era homem que comia calado; Rodrigo contou oenredo da comdia que vira na noite antecedente no Ginsio, e no se falou em outra cousa durante oalmoo. Quando este acabou, Rodrigo levantou-se para ir fumar; e Jos Lemos encostando os braosna mesa perguntou se o tempo ameaava chuva. Efetivamente o cu estava sombrio, e a Tijuca noapresentava bom aspecto.

    Quando o Antonico ia levantar-se, impetrada a licena, ouviu da me este aviso: Olha l, Antonico, no faas logo ao ja