historia oral, comemorações e etica marieta ferreira.pdf

download historia oral, comemorações e etica marieta ferreira.pdf

of 5

Transcript of historia oral, comemorações e etica marieta ferreira.pdf

  • Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil CPDOC / FGV www.cpdoc.fgv.br 1

    HISTRIA ORAL, COMEMORAES E TICA*

    Marieta de Moraes Ferreira

    Professora da UFRJ e pesquisadora do CPDOC

    A proposta deste texto discutir as relaes entre Histria Oral e identidade, tendo como eixo central de articulao o tema da comemorao e da tica. A idia bsica que as sociedades contemporneas, preocupadas com a perda do sentido do passado e com o aprofundamento da capacidade de esquecer, tm se preocupado em retomar esse passado e, nesse retomo, procuram estabelecer caminhos para uma redefinio de identidade1. E um elemento importante neste processo so as comemoraes, assim definidas por Philippe Raynaud: "Comemorao a cerimnia destinada a trazer de volta a lembrana de uma pessoa ou de um evento... um espao para perpetuar a lembrana e indica a idia de uma ligao entre homens, fundada sobre a memria"2. Assim, as comemoraes ocupam um lugar central no universo poltico contemporneo, pois contribuem para definir as identidades e as legitimidades polticas. Todavia, elas no constituem somente um simples meio de produzir consenso; ao contrrio, elas podem revelar tenses e conflitos. Partindo do princpio de que a comemorao um elemento central da construo da identidade, avanamos no sentido de melhor esclarecer um segundo elemento de nossa argumentao, o de que a identidade est profundamente ligada memria, e a Histria Oral um mtodo extremamente eficaz para lidar com essa problemtica. Segundo Michel Pollack3, a memria um elemento constitutivo do sentimento de identidade, tanto coletiva quanto individual, na medida em que ela um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerncia de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstruo de si. Essa construo, porm, no est isenta de mudanas, de negociao e de transformao em funo do outro. A construo da identidade um fenmeno que se produz em referncia aos outros, em referncia aos critrios de aceitabilidade, de admissibilidade e de credibilidade, e que se estabelece por meio da negociao direta com os outros. Isto quer dizer que memria e identidade podem ser perfeitamente negociadas e no so fenmenos que devam ser compreendidos como essncias de uma pessoa ou de um grupo. Seguindo essa linha de raciocnio, a memria pode constituir um elemento importante para o reconhecimento e a valorizao de indivduos ou grupos. Com esses objetivos, mesmo a memria constituda efetua um trabalho de manuteno, de renovao, de coerncia, de unidade, de continuidade, de organizao.

    * Trabalho apresentado originalmente no encontro "tica e Histria Oral", [1995: So Paulo], em convnio com Programa de Histria Oral da PUC-SP, Centro Cultural do Banco do Brasil e Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil. So Paulo, 16-21 out. 1995. 1 Raynaud P. La comemoratin: ilusion ou artifice? Le Debat, n 78, jan.-fev. 1994, pp. 104-6. 2 Idem, ibidem. 3 Pollak, M. Memria e identidade social. Estudos Histricos, n 10, 1992.

    FERREIRA, Marieta de Moraes. Histria oral, comemoraes e tica. Projeto Histria. tica e Histria oral, So Paulo, n 15, p.157-164, abr. 1997.

  • Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil CPDOC / FGV www.cpdoc.fgv.br 2

    Assim, a constituio e a construo social de memria demonstram a necessidade de um investimento, os riscos existentes nos momentos de mudana e da rearrumao de memria, e evidenciam a ligao desta com as identidades coletivas. Entende-se por identidades coletivas todos os investimentos que um grupo deve fazer ao longo do tempo, todo o trabalho necessrio para dar a cada membro - quer se trate de famlia ou de nao - o sentimento de unidade, de continuidade e de coerncia de pertencimento4. Articulada problemtica da identidade e memria, Gilberto Velho adiciona um novo elemento: a noo de projeto5. Nas sociedades onde predominam as ideologias individualistas, a noo de biografia , por conseguinte, fundamental. A trajetria do indivduo passa a ter um significado crucial como elemento no mais contido na e sim constituidor da sociedade. Neste sentido, a memria deste indivduo que se torna socialmente mais relevante. Suas experincias pessoais, seus desejos, sofrimentos, decepes, privaes, traumas so os marcos que indicam o sentido de sua singularidade enquanto indivduo. Assim, a conscincia e a valorizao de uma individualidade singular, baseadas em uma memria, conferem consistncia a uma biografia e possibilitam a formulao de projetos. O projeto e a memria associam-se e articulam-se ao dar significado vida e s aes dos indivduos e sua prpria identidade. A memria e o projeto, de alguma maneira, no s ordenam como do significado a essa trajetria 6. O projeto o instrumento bsico de negociao da realidade com outros atores, indivduos ou coletivos. Transpondo essas consideraes para o uso da Histria Oral como instrumento para promover comemoraes atravs do resgate da memria e do reforamento da identidade de indivduos ou grupos, inmeras questes podem ser levantadas. Poderamos iniciar nosso debate colocando em pauta a prpria validade das comemoraes. O historiador Paul Garde, em artigo recentemente publicado7, sustentou que o projeto comemorativo o contrrio da abordagem da histria. A segunda recoloca o evento no seu contexto mais amplo e esfora-se para torn-lo compreensvel. O primeiro o extrai do seu contexto real, atribuindo-lhe um valor simblico em funo dos interesses e de categorias do momento e o mostra (como) nico e inintelegvel. Ainda que possamos relativizar alguns desses pontos e sustentar que atravs dos projetos comemorativos possvel captar representaes acerca do passado, de carter recorrente e repetitivo, que nos permitam produzir uma histria da memria 8 de um grupo ou de uma sociedade, sem dvida, muitos perigos se apresentam ao tratamos dessa temtica. Histria Oral, comemoraes e mercado no Brasil Primeiramente necessrio explicitar que nos anos 90 no Brasil vem ocorrendo o que se pode chamar de boom da Histria Oral. Este boom pode ser explicado a partir de mudanas no prprio campo da

    4 Idem, ibidem. 5 Velho, G. Memria identidade e projeto. Uma viso antropolgica. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, vol. 95, out.-dez., 1988, pp. 119-26. 6 Idem, ibidem. 7 Garde, P. Faut il commmorer? Le Monde, 7/8/1996. 8 Rousso, H. "A memria no mais o que era". In: Ferreira, M.M. e Amado, J. (orgs). Usos e abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro, FGV, 1996.

  • Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil CPDOC / FGV www.cpdoc.fgv.br 3

    histria, com o rompimento do paradigma estruturalista, mas tambm a partir de transformaes mais gerais na sociedade brasileira. O que aconteceu no campo da pesquisa histrica? Em linhas gerais, revalorizou-se a anlise qualitativa, resgatou-se a importncia das experincias individuais, ou seja, deslocou-se o interesse das estruturas para as redes, dos sistemas de posies para as situaes vividas, das normas coletivas para as situaes singulares. Paralelamente, a histria cultural ganhou novo impulso, o estudo do poltico experimentou um renascimento e, finalmente, foi aceito o estudo do contemporneo9. O aprofundamento das discusses acerca das relaes entre passado e presente na histria e o rompimento com a idia que identificava objeto histrico e passado, definido como algo totalmente morto e incapaz de ser reinterpretado em funo do presente, abriram novos caminhos para o estudo da histria do sculo XX. Nesse movimento, foi extremamente significativa a expanso dos debates acerca de memria e de suas relaes com a histria. Essas discusses estimularam o abandono de uma viso determinista que limita a liberdade dos homens e levaram ao reconhecimento de que os atores constroem sua prpria identidade. Demonstraram tambm, de forma inequvoca, que o passado pode ser construdo segundo as necessidades do presente e que, portanto, pode-se fazer uso poltico do passado. Estas novas perspectivas alargaram, evidentemente, horizontes da Histria Oral. Estavam neutralizadas as crticas tradicionais, j que a subjetividade, as distores dos depoimentos e a falta de veracidade a eles imputadas podiam ser encaradas de uma nova maneira, no como uma desqualificao, mas como uma fonte adicional de significados para o pesquisador. As transformaes ocorridas no campo da pesquisa histrica, em especial na Frana, provocaram um grande dinamismo que se traduziu numa grande vitalidade do movimento editor ial, numa renovao dos cursos de ps-graduao, num aumento expressivo do nmero de pesquisadores e professores e num crescente interesse da sociedade em geral pelos temas histricos. No Brasil, essas alteraes tiveram reflexos importantes no perfil dos cursos de Histria, que ampliaram suas linhas de pesquisa, incorporaram de forma definitiva o estudo do tempo presente e abriram espao para a Histria Oral. preciso no esquecer tambm que a sociedade brasileira nos anos 90 reforou sua prtica democrtica. J iam longe os anos em que se considerava arriscado falar, passara a poca em que toda modalidade de histria que no a das estruturas econmicas era vista com maus olhos. As curiosidades se ampliaram, e aflorou o interesse da sociedade pela recuperao da memria coletiva e individual. Tomou-se urgente ampliar o conhecimento sobre a vida poltica do pas e apontar os entraves que impediam o acesso da grande maioria da populao aos benefcios de cidadania. Essa problemtica, debatida no seio da comunidade acadmica em funo da crise dos grandes paradigmas estruturalistas, transportou-se para setores sociais mais amplos provocando uma demanda por parte das empresas e instituies pela memria. Recentemente foi publicada na Gazeta Mercantil artigo relatando o interesse de vrias empresas em recuperar e organizar suas memrias atravs da elaborao de livros, exposies e museus com o objetivo de criarem novos instrumentos de gesto importantes, mas principalmente de reforarem sua imagem institucional. Esses projetos so concebidos, em geral, para datas comemorativas e valorizam especialmente o registro das trajetrias das empresas e instituies a partir de depoimentos orais de seus fundadores, diretores e funcionrios.

    9 Chartier, R. "O olhar do historiador modernista. In: Ferreira, M.M. e Amado, J. (orgs). Usos e abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro, FGV, 1996.

  • Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil CPDOC / FGV www.cpdoc.fgv.br 4

    O que explica esse interesse das empresas em patrocinar iniciativas com fins de propaganda com forte apelo ao passado e memria? Vrias ordens de argumentos podem ser apresentadas. Uma delas o acirramento do individualismo, que pressupe o reconhecimento da liberdade de escolha entre os homens e o confronto entre sociedade e indivduo na fixao de valores, que torna as pessoas curiosas em relao ao outro como forma de reforar a existncia de sua prpria singularidade, enquanto que podem estabelecer as diferenas. Esta curiosidade em relao ao outro acaba por criar, em termos editoriais, toda uma demanda, qual a histria vem procurando atender. Um segundo ponto a ser destacado diz respeito ao quadro poltico-econmico que o Brasil vem atravessando. Os anos 90 vm colocando em pauta grandes desafios para a sociedade brasileira em geral e para empresas e empresrios em particular. O questionamento do modelo de desenvolvimento econmico brasileiro, vigente durante algumas dcadas, que preconizava uma forte presena do Estado como agente econmico fundamental e estabelecia inmeras regras e restries participao do capital estrangeiro e s importaes, inaugurou um grande debate nacional. A abertura da economia, a importncia e a dimenso das privatizaes, os limites e contornos de ao do novo Estado tm mobilizado diferentes setores para a definio de um novo perfil para o pas. Essa agenda de discusses tem sensibilizado profundamente burocratas responsveis pela administrao das empresas estatais, empresrios, polticos. nesse quadro que podemos entender o interesse de grandes empresas em recuperar sua memria, em resgatar seu papel na Histria do pas e estabelecer novas estratgias para o futuro. A Histria Oral pode ser um instrumento privilegiado para atender a tais demandas. Como j dissemos anteriormente, em conjunturas de grandes transformaes, quando as identidades de grupos ou de empresas esto sendo redefinidas e seu papel e de suas lideranas esto sendo colocados em xeque, as comemoraes de aniversrios ganham imensa importncia e a Histria Oral pode se constituir num meio til para valorizar e divulgar imagens. Que questes esta modalidade de prtica da Histria Oral nos coloca10? Quais so suas vantagens, seus riscos e dilemas? As respostas para estas questes no so simples e devem ser discutidas com cuidado e ateno. Poderamos comear apontando algumas vantagens. Em pases com recursos escassos destinados cultura, com um pequeno nmero de agncias financiadoras, como o Brasil -onde hoje se assiste, como j foi dito, a uma reduo do papel do Estado como agente financiador -, a entrada em cena de empresas privadas interessadas em patrocinar o resgate da memria de uma atividade ou setor econmico pode parecer animadora. Certamente, tambm, dos recursos provenientes da empresa privada que se podero esperar inovaes tecnolgicas - vdeos, cd-roms, etc. - que enriquecero a dimenso tcnica da prtica da Histria Oral. Do ponto de vista de uma instituio de perfil acadmico, a venda de projetos de Histria Oral pode significar a possibilidade de transferncia de recursos para outros projetos de caractersticas propriamente acadmicas ou sociais que no encontrariam financiamento de outra maneira, ou para a [produo de] preservao de acervos de depoimentos que podero ser utilizados para outras pesquisas. Por exemplo, um projeto de.Histria Oral encomendado por uma empresa de seguro de sade para comemorar seu aniversrio pode possibilitar a constituio de um acervo sobre o setor que ser de utilidade para pesquisadores futuros que desejarem fazer um estudo crtico e analtico sobre o tema.

    10 Ferreira, M.M. "Desafios e dilemas da Histria Oral nos anos 20: o caso do Brasil. Conferncia apresentada na sesso de abertura do IX International Oral History Conference. Gotemborg, Sucia, 1996.

  • Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil CPDOC / FGV www.cpdoc.fgv.br 5

    Esta modalidade de trabalho se caracteriza pela relao que se estabelece entre os participantes do projeto, que objeto de um contrato: de um lado, o contratante, ou seja, o cliente, que ir pagar por um produto, livro de depoimentos ou vdeo, destinado a divulgar o papel de sua empresa no mercado; do outro, o pesquisador contratado, que ir realizar o trabalho e receber pelos servios prestados. Este pesquisador pode ser um pesquisador individual, pode trabalhar para uma empresa de publicidade, de divulgao, de promoes, etc., que entre outras atividades "faz" Histria Oral, ou ainda estar ligado a um centro de pesquisa de perfil acadmico. Em geral as empresas interessadas em encomendar projetos de Histria Oral preferem contratar os servios de instituies ou pesquisadores com vinculaes acadmicas, pretendendo com isso que o produto final ganhe maior legitimidade. E quanto aos riscos desta prtica? Primeiramente, a empresa que contrata servios est preocupada em criar ou mudar uma imagem j existente, isto , ela tem um projeto bem definido. Em geral, ela toma a iniciativa de recuperar sua memria em conjunturas de mudanas importantes, de poltica interna e de poltica econmica do pas, quando sua imagem est sendo alvo de crtica. Isto reduz a autonomia dos pesquisadores que executam o projeto e coloca os resultados finais da pesquisa sob o controle da empresa contratante. Isso se manifesta desde a soluo. Inmeras vezes o pesquisador v-se envolvido na produo de uma imagem positiva de uma empresa que contraria os interesses mais gerais da sociedade, o que, do nosso ponto de vista, coloca um problema tico relevante. Qual o compromisso do pesquisador de Histria Oral? Atender ao cliente que pagou pelos servios que contratou, ou manter seus princpios ticos de trabalhar em prol de uma maior democratizao da sociedade? Este dilema, colocado para todos os que praticam a Histria Oral atravs da venda de projetos, pode ter sadas diferentes. Evidentemente, ningum obrigado a desenvolver projeto algum. Aceito o projeto, instituies culturais ou educacionais com tradio acadmica tm fora suficiente para definir regras ou procedimentos no momento de elaborao do contrato e estabelecer limites de interferncia do contratante. Empresas ou entidades privadas sem tradio nos meios culturais e tambm sem outras fontes de recursos ficam mais vulnerveis a presses. Como suas atividades tambm no esto comprometidas com projetos de pesquisa, elas no dispem da possibilidade de, num segundo momento, produzir anlises crticas sobre o material que foi coletado, pois logo em seguida estaro engajadas era novos projetos de mesma natureza.

    Por todas essas razes, consideramos que a prtica da Histria Oral como instrumento de marketing no mnimo polmica, e, se ela no pode ser simplesmente descartada, deve ser vista com muito cuidado11.

    11 Ethics and Interpersonal Relationships in Oral History Research. Oral History, 22/1 (Summer, 1995); pp. 51 e 56.