História, Memoria, Sofrimento - Aula 1
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História, memória, sofrimento
Aula 1
Eis, por exemplo, uma mulher que foi a um primeiro encontro. Ela sabe bem das
intenções, a seu respeito, do homem que lhe fala. Ela também sabe que cedo ou tarde
ela deverá tomar uma decisão. Mas ela não quer sentir a urgência: ela se liga apenas
àquilo que a atitude de seu parceiro oferece de respeitoso e discreto. Ela não
apreende essa conduta como uma tentativa para realizar o que se chama “as primeiras
aproximações”, ou seja, ela não quer ver as possibilidades de desenvolvimento
temporal que tal conduta apresenta. Ela limita seu comportamento ao que há no
presente, ela não quer ler nas frases que ele lhe endereça outra coisa que seu sentido
explícito. Se ele lhe diz: “Eu te admiro tanto”, ela desarma esta frase de seu pano-de-
fundo sexual. Ela liga aos discursos e à conduta de seu interlocutor significações
imediatas que ela compreende como qualidades objetivas. O homem que lhe fala
parece-lhe sincero e respeitoso como a mesa é redonda ou quadrada, como a pintura
da parede é azul ou cinza. (...) É que ela não está a par do que deseja : ela é
profundamente sensível ao desejo que ele a inspira, mas o desejo nu e cru a
humilharia a lhe horrorizaria. (...) Mas eis que ele pega sua mão. Este ato de seu
interlocutor pode mudar a situação apelando a uma decisão imediata. Abandonar esta
mão é consentir ao flerte, é engajar-se. Retirá-la é romper esta harmonia problemática
e instável que faz o charme da hora. Trata-se de atrasar o instante da decisão o
máximo possível. Sabemos o que então se produz: a garota abandona sua mão, mas
não se percebe abandonando-a. Ela não se percebe porque, por acaso, ela é neste
momento toda espírito. Ela leva seu interlocutor até as regiões mais elevadas da
especulação sentimental, ela fala da vida, de sua vida, ela se mostra sob seu aspecto
essencial: uma pessoa, uma consciência. E durante este tempo, o divórcio do corpo e
da alma se realiza. A mão repousa inerte entre as mãos quentes de seu parceiro – nem
consentindo nem resistente – uma coisa1.
Esta garota que esquece suas mãos é uma criação de Jean-Paul Sartre, em O ser e o
nada. Mesmo sendo uma criação literária, ela é uma bela ilustração do vínculo profundo entre
1 SARTRE, L’être et le néant, p. 90
memória e consciência que constitui uma das bases da noção moderna de sujeito. Para
preservar a única situação na qual sabe como agir, a garota de Sartre precisa restringir sua
existência à literalidade do presente. Ela vive assim em um mundo de coisas estáticas, não em
um mundo de ações que engajam mudanças no tempo e que, por isto, devem ser apreendidas
como signos a serem interpretados, traços que carregam uma história passada e futura. Seu
mundo, para poder sobreviver em sua estaticidade, deve ser um mundo sem memória. Sua
consciência deve, a todo momento, esquecer: esquecer as mãos que são tocadas, esquecer a
rede de desejos na qual ela está presa, esquecer as promessas que cada gesto do outro porta.
Por usar o esquecimento como modo de defender um mundo fixo e estático, a garota de
Sartre adoece. Como adoecem todos os que não poderão falar de si, contar a história de como
estavam no parque e, sentindo o desejo do homem que caminhava a seu lado, deixaram sua
mão ser tocada. Deixaram-se tocar como quem interpreta um signo e abre sua existência para
além da literalidade do instante. Eles adoecem por não serem capazes de falar de si.
É certo que, em um certo sentido, a garota de Sartre poderá falar sobre si mesma, ela
lembrará de coisas que lhe ocorreram e de coisas que ela deseja. No entanto, esta será ainda
uma fala vazia. Pois lhe faltará um certo trabalho da memória que nós aprendemos a definir
como fundamento da auto-identidade individual. Pois nossa ideia de identidade é, antes de
tudo, a crença na possibilidade de uma identidade temporal, consciência de uma certa
continuidade no interior do tempo.
A ideia de que a quebra da capacidade de construir uma fala de si que seja a narração
do trabalho da memória é matriz de sofrimento psíquico estará presente não apenas no
exemplo de Sartre. A partir do final do século XIX: “a memória, que já era considerada como o
critério da identidade pessoal, transformou-se então na chave de compreensão do espírito
para as ciências”2. Ao menos três tipos de ciências da memória se destacarão: 1) os estudos
neurológicos sobre a localização dos diferentes tipos de memória; 2) os estudos experimentais
sobre os fenômenos ligados à lembrança; 3) um gênero de reflexão sobre a psicodinâmica da
memória e seu lugar na constituição de modalidades de sofrimento psíquico. Destes três tipos,
foi a reflexão sobre a psicodinâmica da memória que influenciou de maneira decisiva a cultura
ocidental e sua noção de auto-identidade. Desde então, impedimentos do trabalho de
memória e sofrimento psíquico tecerão entre si relações profundas.
Notemos inicialmente como a constituição de “ciências da memória” era um fato
recente. Até então, conhecíamos artes da memória, ou seja, reflexões, normalmente ligadas à
retórica, que procuravam pensar técnicas capazes de ampliar nossa capacidade de lembrança.
2? Hacking, Ian; L’ ame réécrite : étude sur la personnalité multiple et les sciences de la mémoire, p. 313
A memória era uma questão de estocástica. Em um importante livro sobre o assunto3, Frances
Yates insiste no fato de o artifício fundamental das técnicas antigas de recordação estar
vinculado à capacidade de associar mentalmente imagens de coisas a lugares organizados em
sistemas arquitetônicos rigorosos, como uma casa ou uma praça pública. Assim, o bom orador
antigo seria aquele capaz de mover-se em imaginação, durante seu discurso, através de uma
edificação construída mentalmente, extraindo dos lugares memorizados as imagens ali
colocadas de objetos, argumentos e personagens. Tal artifício demonstra como a memória
aparece então como um processo de espacialização, como constituição de um verdadeiro
espaço mental no qual arquivamos imagens. Algo muito distinto do desvelamento da
temporalidade própria aos usos atuais da memória e da rememoração.
Tal modificação, no entanto, foi fruto do aparecimento de outro discurso com
aspirações científicas, a saber, a história. Desde os gregos, conhecemos uma modalidade de
discurso definida como história, termo que em grego significa “investigação”, “conhecimento
resultante de investigação”. Historia vem de histor, que significa “testemunho” no sentido de
ter visto algo. De Heródoto e Tucídides aos Iluministas, a história significou, em larga medida, a
“investigação através da interrogação de testemunhas”4. Investigação cujo objetivo maior será
permitir aos sujeitos servirem-se do passado como quem se serve de uma coleção de
exemplos5. Daí uma expressão paradigmática de Cícero: Historia magistra vitae (história como
mestre da vida). Narrar-se a histórica como quem procura feitos notáveis que nos indique
como proceder diante de situações análogas no presente. Mas essa concepção de história com
sua força pedagógica exigia a crença em um tempo continuo, no qual passado e presente se
desdobrariam no interior de uma mesma duração. Condição necessária para que interesse
pelo passado reduza-se, basicamente, à procura de relatos exemplares a serem repetidos no
presente. Como disse o historiador Reinhart Koselleck: “Seu uso remete a uma possibilidade
ininterrupta de compreensão prévia das possibilidade humanas em um continuum histórico de
validade geral”6.
Mas a partir do Iluminismo e, principalmente, da Revolução Francesa, uma
compreensão renovada da história se fará sentir. A experiência de um tempo radicalmente
novo ligado à Revolução pressupõe a possibilidade da ordem político poder ser
profundamente reconfigurada. Neste espaço aberto, orientar-se na ordem política não implica
3 YATES, Frances ;A arte da memória, Campinas: Edunicamp, 20084 ENGELS, Odilo; GÜNTHER, Horst, MEIER, Christian e KOSELLECK, Reinhart; O conceito de história, Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 415 Como dirá Koselleck: “Assim, ao longo de cerca de 2000 anos, a história teve o papel de uma escola, na qual se podia aprender a ser sábio e prudente sem incorrer em grande erro” (KOSELLECK, Reinherdt; Futuro Passado, p. 42)6 Idem, p. 43
mais agir a partir do reconhecimento de exemplos vindos do passado, mas implica o
conhecimento de causas que determinam o presente como depositário da latência do que
ainda não se realizou. Haveria um processo em marcha que empurra o tempo para frente em
direção a uma realização sem referência com o que até agora foi feito. Haveria um projeto que
parece indicar a possibilidade de encarnar na ordem política o que a filosofia iluminista tinha
tematizado através da noção de “progresso”. O tempo entra assim em regime de progressão e
é dela que, a partir de agora, irá tratar a historia. Por isto, a história não será mais o espaço de
uma reprodução do passado no presente, mas de uma construção que pode inicialmente
parecer começar no passado em direção ao presente. No entanto, como veremos neste curso,
ela das pressões do presente à reinscrição contínua do passado, à descoberta da plasticidade
do passado.
Notemos simplesmente que será a partir deste momento que poderemos falar de “a
história” como autônoma e autoativa, e não apenas “história de ...”. Esta autonomia expõe
que a história não será mais apenas a narrativa de ações de sujeitos (como a história de César)
ou de objetos determinados (como a história do Brasil). Ela será um “metaconceito”7 que
descreve o processo de temporalização da experiência, com causas e consequências próprias
ao desdobramento temporal, com uma velocidade própria. A história como discurso com
aspirações científicas pode se constituir, assim pode aparecer um “tempo especificamente
histórico”8.
Tal transformação do conceito de história não deixou de rapidamente ter
consequências para a maneira com que, a partir de então, compreenderemos a consciência.
Esta mudança no regime do tempo terá, como uma de suas consequências maiores, a
mudança na estrutura do sujeito, pois tempo e sujeito são conceitos profundamente
articulados. Neste sentido, devemos tirar as consequências da história, a partir do começo do
século XIX, aparecer para pensadores do porte de Hegel e Marx como a destinação necessária
da consciência, não apenas por ela ser o campo no qual se dá a compreensão do sentido das
ações dos indivíduos, mas sobretudo por ela impedir o isolamento da consciência na figura do
indivíduo atomizado, isto ao mostrar como a essência da consciência encontra-se na
reconciliação de seu ser com um tempo social rememorado. Através da história, ser e tempo
se reconciliariam no interior da uma memória que deveria ser assumida reflexivamente por
todo sujeito em suas ações. Memória que seria a essência orgânica do corpo político, condição
para que ele existisse nas ações de cada indivíduo, como se tal corpo fosse sobretudo um
7 ENGELS e alli, idem, p. 1228 KOSELLECK, Reinhart; Futuro passado: contribuição á semântica dos tempos históricos, Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p. 54
modo de apropriação do tempo, de construção de relações de remissão no interior de um
campo temporal contínuo capaz de colocar momentos dispersos em sincronia a partir das
pressões do presente.
Deste momento em diante, a consciência não podia mais ser, como ela era para
Descartes, simplesmente o nome do ato de reflexão através do qual posso apreender as
operações de meu próprio pensamento. Ato através do qual poderia encontrar as operações
de meu pensar quando me volto para mim mesmo no interior de um tempo sem história,
tempo instantâneo e pontilhista que dura o momento de uma enunciação, como vemos na
segunda meditação cartesiana9. A partir de então, a consciência será fundamentalmente o
nome de um modo de apropriação do tempo, ou seja, “consciência histórica”, modo de
presentificação de um complexo de relações que parecem se articular a partir de uma unidade
em progresso. Daí se segue a razão pela qual, a partir do século XIX, a memória será elevada à
condição de função intencional definidora da consciência. Com a consolidação da história
como discurso, com a conseqüente determinação da consciência histórica como uma espécie
de verdadeira natureza humana, a memória deixou de ser compreendida como um processo
de estocagem para ser descrita como algo próximo daquilo que poderíamos chamar de
“atividade contínua de reinscrição”.
Este é um ponto importante, pois a temporalização da memória aparece como a
possibilidade de construção contínua de si no interior de uma narratividade contínua.
Construção que só será possível a partir do momento que for possível afirmar: “As lembranças
não são imutáveis, mas são reconstituições operadas sobre o passado e em perpétuo
remanejamento que nos dão um sentimento de continuidade, a sensação de existir no
passado, no presente e no futuro”10. Isto pressupõe uma certa plasticidade do passado, ou
seja, plasticidade da maneira com que o passado se inscreve em nós que pode, muitas vezes,
ser perdida e transformar-se em matriz profunda de formas de sofrimento psíquico. Isto nos
explica porque várias práticas clínicas compreenderão a importância de vincular a cura a
processos de elaboração do passado. Não uma elaboração que signifique alguma forma de
redescoberta das determinações causais vindas do passado, mas de reaquisição de sua
plasticidade. O psicanalista Jacques Lacan havia compreendido claramente este ponto ao
afirmar, de forma clara:
9 Ver, a este propósito, WAHL, Jean; Du rôle de l’idée d’instant dans la philosophie de Descartes, Paris: Alcan, 1920. 10ROSENFIELD, Israel; L’invention de la mémoire, Paris: Flammarion, 1994, p´. 87.
A história não é o passado – A história é o passado enquanto ele é historicizado no
presente – historicizado no presente porque ele foi vivido no passado (...) o fato do
sujeito reviver, rememorar, no sentido intuitivo da palavra, os acontecimentos
formadores de sua existência, não é em si mesmo algo realmente importante. O que
conta é que ele reconstruiu (...) Eu diria que, no final das contas, o que realmente se
trata é menos de se lembrar do que de reescrever a história11.
Podemos ver em uma afirmação como esta, que demonstra como a história é dissolução
contínua das ilusões do determinismo, o ponto de chegada de uma profunda reconstrução do
sujeito moderno através do impacto do desenvolvimento do tempo histórico como essência da
subjetividade. É esta articulação entre memória, história e subjetividade que será o principal
objeto de nosso curso. Ela nos permitirá compreender melhor a natureza da experiência
temporal que está pressuposta em certas estratégias clínicas, em especial na psicanálise. Pois
como vemos, não se trata de uma espécie de arqueologia da temporalidade esquecida que, de
maneira inconsciente, causaria em silêncio nossas ações. Trata-se de compreender como as
estruturas causais temporais estão em contínua processualidade, modificando-se
constantemente a partir do presente. De certa forma, o passado nunca passa por completo
porque seu sentido está continuamente sendo recomposto.
Objetivos do curso
Neste sentido, este curso tem ainda dois objetivos complementares. Primeiro, um
objetivo epistemológico que consiste em mostrar como a psicologia constitui-se como campo
autônomo de saberes e práticas através de uma série de apoios e empréstimos em relação a
outros campos de saberes e práticas. Tais apoios não expressam apenas apropriações
conceituais diretas, como ocorre atualmente nas relações entre psicologia e neurologia onde
propõe-se um reducionismo eliminativo nos modos de descrição psicológicos em prol dos
modelos de descrição neuronais. Eles expressam sistemas de transposições que permite o
desenvolvimento de conceitos por analogias. Foi assim, por exemplo, com a noção de energia,
utilizada pela física e transposta para a psicologia através da construção de uma noção
análoga, a saber, a “energia psíquica”. Veremos, neste sentido, quão importante foi o sistema
de transposições entre psicologia e história. Conceitos como: desenvolvimento, maturação,
regressão, degenerescência são impossíveis de serem compreendidos sem levar em conta o
impacto da noção de tempo histórico, de progresso, tal como desenvolvido no interior da
11 LACAN, Séminaire I, Paris: Seuil, pp. 19-20
reflexão histórica. Categorias clínicas como fetichismo, por exemplo, são transposições diretas
de categorias históricas desenvolvidas no interior de teorias do progresso. Tal elaboração
epistemológica nos mostrará, com mais clareza, como conceitos e processos responsáveis pelo
horizonte de racionalidade de práticas clínicas e que influenciarão nossas noções de cura e de
saúde mental dependem de valores que se desenvolvem de forma exterior à clínica e que se
expressam em conceitografias de saberes como a história. Esta é ainda uma forma de
demonstrar a ancoragem profunda da psicologia no interior do campo de saberes que
convencionamos chamar de “ciências humanas”.
Já o segundo objetivo do nosso curso é eminentemente clínico. Trata-se de mostrar
como a racionalidade de alguns processos centrais de intervenção clínica e de construção de
categorias nosográficas funda-se na elevação da rememoração (Erinnerung) à condição de
operação fundamental da vida psíquica. A rememoração pressupõe capacidade de elaboração
temporal, de construção de sínteses temporais que expressariam a capacidade reflexiva da
consciência. Neste sentido, a impossibilidade de rememorar aparecerá como uma das fontes
mais decisivas do sofrimento psíquico. Sigmund Freud é certamente um dos melhores
exemplos desta forma de vincular memória e sofrimento. Todos vocês conhecem sua
afirmação: “a histérica sofre de reminiscências”. Esta era uma forma de desdobrar a defesa da
centralidade do trauma na definição da etiologia das neuroses. Pois uma das características
fundamentais do acontecimento traumático é sua impossibilidade em ser elaborado e
integrado através da memória. Neste sentido, é toda a teoria freudiana das neuroses que
aparece como uma longa reflexão acerca do sofrimento provocado pelo bloqueio da memória.
A neurose é, em sua dimensão mais profunda, um problema ligado ao tempo.
Isto nos explica porque um dos dispositivos centrais dos processos de cura na clínica
freudiana é a noção de rememoração (Erinnerung). No entanto, como pode a memória e o ato
de rememorar serem elementos fundamentais no processo de cura das ditas doenças
mentais? Em que condições podemos dizer que problemas como os rituais compulsivos do
obsessivo, sua maneira de defender-se destruindo seu desejo, os sintomas histéricos de
conversão, entre outros, deixam evidente a incapacidade de certos sujeitos em rememorar
processos constitutivos da subjetividade? Estas perguntas nos levam a compreender melhor
aspectos centrais não apenas da clínica freudiana, mas nos mostram como é necessário
colocar uma pergunta simples apenas em aparência, a saber: o que Freud entende exatamente
por “rememorar”?
No entanto, notemos que além do trauma e do esquecimento como fenômenos
ligados à produção do sofrimento psíquico, o final do século XIX e começo do século XX
insistirá em uma terceira modalidade de fenômeno clínico ligado ao bloqueio da memória: a
dissociação. Ela será fundamental para a constituição do quadro dos transtornos dissociativos
e da esquizofrenia.
Trauma, esquecimento e dissociação, como gostaria de mostrar neste curso, são três
figuras centrais para a compreensão da especificidade daquilo que chamamos de sofrimento
psíquico. Se é inegável que a análise de tais fenômenos foi sempre acompanhada pelo
desenvolvimento do saber a respeito dos estados cerebrais que os acompanham, é certo que
uma questão epistemológica maior consiste em vê-los em relação com ideias que vem de
outros campos da cultura. Neste sentido, é inegável que a mutação na compreensão da
história, assim como a mutação na arte de falar de si mesmo, terá impacto fundamental em
nossos protocolos de orientação clínica.
Estrutura do curso
O curso será dividido em três módulos. O primeiro será dedicado ao conceito de
memória. Veremos como as primeiras concepções moderna de sujeito não elevavam a
memória a atributo fundamental da consciência. Elas ainda eram dependentes de uma noção
estocástica de memória. Este será o assunto da nossa próxima aula, na qual pedirei a vocês a
leitura das duas primeiras Meditações, de Descartes. Nosso objeto será principalmente a
segunda meditação e sua noção instantaneista de tempo como tempo próprio à reflexividade
da consciência. Tempo como uma sucessão de “agoras” que só tecem relações entre si através
da imaginação. Nas aulas seguintes, veremos a constituição do conceito de rememoração e,
com ele, a compreensão de que o tempo da consciência não é um tempo instantaneista, mas
um tempo propriamente histórico, tempo de uma narrativa no interior da qual posso falar de
mim como quem fala de um processo. Por fim, veremos como a discussão sobre a memória
chegou até nós através das pesquisas em neurologia, em especial através da compreensão das
relações entre memória, aprendizado e plasticidade cerebral. A sua maneira, tais pesquisas
parecem confirmar a capacidade transformadora do conceito de rememoração. Os textos a
serem trabalhados neste módulo são: as duas primeiras Meditações, de Descartes; “Repetir,
rememorar, perlaborar” e “Notas sobre o cubo mágico”, de Freud; além de “The molecular
biology of memory storage”, de Ernst Kandel.
O segundo módulo tem como tema principal a história enquanto ciência e suas
relações com a psicologia. Não se trata aqui de tentar compreender como a psicologia poderia
colaborar na compreensão de fatos históricos ou como ela é permeada por representações
sociais historicamente constituídas. Nosso debate será epistemológico, ou seja, trata-se de
definir como a história fornece um importante quadro epistemológico para o desenvolvimento
de conceitos no campo da psicologia.
Para tanto, procuraremos compreender como a temporalidade histórica será
absorvida no interior das discussões psicológicas sobre desenvolvimento e maturação. Muitas
vezes acreditamos que a referência central para o conceito psicológico de desenvolvimento
encontra-se na noção biológica de evolução, principalmente devido à importância da chamada
“lei biogenética fundamental”, de Ernst Haeckel, com suas postulações de paralelismos entre a
ontogênese e a filogênese. Gostaria de insistir que tal paralelismo nasce da crença, presente
por exemplo já em Augusto Comte, de que a história individual repete a história do progresso
social. Podemos compreender isto de maneira muito clara se focarmos nossa atenção em um
caso aparentemente local da relação entre história e psicologia, a saber, a importação
conceitual do conceito de “fetichismo”. Nascido no interior de uma teoria do progresso e dos
estágios de desenvolvimento social, o uso da noção de “fetichismo” para descrever não apenas
uma modalidade de perversão sexual, mas a lógica geral das perversões (como bem viu Michel
Foucault), denuncia uma noção de doença mental como degenerescência extensivamente
utilizada para a descrição do sofrimento psíquico. No entanto, para além deste modelo de
relação, gostaria de apresentar também uma certa arqueologia dos conceitos de
desenvolvimento e maturação em psicologia a partir do sistema de apropriações entre
psicologia e história. Isto nos levará a trabalharmos um texto de Jean Piaget chamado:
“Problemas de psicologia genética”.
Por fim, nosso terceiro módulo será dedicado às relações entre memória e sofrimento.
Não se trata aqui de discutir apenas categorias clínicas claramente relacionadas à incapacidade
da memória operar suas sínteses temporal e unificações reflexivas da identidade, como os
transtornos dissociativos (com seus transtornos de dissociação de identidade, de amnesia
dissociativa, de despersonalização/desrealização) e transtornos traumáticos ou relacionados a
estresses (com seus transtornos de apego reativo, de engajamento social desinibido, de stress
pós-traumático, de stress agudo, de ajustamento). Gostaria de discutir as relações entre
memória e sofrimento também e principalmente em duas categorias clínicas profundamente
ligadas a uma impossibilidade de operar temporalizações, a saber, as neuroses (veremos de
maneira mais específica a relação entre culpa e tempo na neurose obsessiva e para tanto
gostaria de trabalhar o caso freudiano do “homem dos lobos”) e os transtornos depressivos.
A este respeito das depressões, lembremos como, segundo a Organização Mundial da
Saúde, 7% da população mundial sofria de depressão em 2010, sendo a principal causa
conhecida de sofrimento psíquico. Em países como o Reino Unido, 1 em cada 5 adultos sofre
atualmente de depressão. Os casos de depressão crescem, em média, 20% ao ano em países
como os EUA, onde 9,1% da população sofre da doença, e representam, atualmente, a
modalidade de sofrimento psíquico com maior impacto econômico12. Tal natureza “epidêmica”
do diagnóstico de depressão talvez sirva, ao menos, para percebermos a maneira com que a
experiência temporalidade nos faz sofrer. Pois uma das características estruturais das
depressões é a atomização do tempo em um conjunto desconexo de instantes desprovidos de
tensão e relação. Assim, em uma fórmula feliz de Maria Rita Kehl, a respeito da qual
entenderemos o sentido no decorrer do curso: “o tempo morto do depressivo funciona como
refúgio contra a urgência das demandas de gozo do Outro”13. A negatividade contra um
desempenho em fluxo contínuo elevado à condição de motivo de gozo vai, preferencialmente,
em direção ao “refúgio” de um tempo morto. Tempo desconexo no qual: “dois anos passam
rápido, difícil é passar dois minutos”14.
12.Ver http://www.nimh.nih.gov/health/statistics/prevalence/major-depression-among-adults.shtml. 13 KEHL, Maria Rita; O tempo e o cão: a atualidade das depressões, Sào Paulo: Boitempo, 2009, p. 2114 Idem, p. 67